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‘Rimas do
Além Túmulo’
Versos Mediúnicos de
Guerra Junqueiro
Grupo Espírita Roustaing
Belém do Pará 1929
Casa Editora Guajarina
O
Presente de Natal
Ao irmão LINO IATAROLA (1)
(1)-A dedicatória parece ter origem
na circunstância
de não haver Lino latarola conseguido
jamais decorar uma poesia
exceto os versos de Guerra Junqueiro
intitulados ‘O Fiel’.
Quando ele aparecia à curva do caminho,
andando de mansinho,
descalço e mal
vestido,
bradavam as más
línguas: vem o maltrapilho;
ainda tão pequeno e
já bem atrevido.
E as crianças
soberbas assim: empecilho,
não queremos brincar contigo, és
malcriado,
não sabes nem
cantar,
e sempre que
apareces vens esfarrapado;
por seres sujo,
magro e tão desajeitado,
nós já sentimos
nojo até de te falar!
E ele ri, (o seu
riso era tão inocente!),
mas, depois,
respondia em voz angelical,
olhando o azul do céu
resplandecente:
eu tenho paciência;
chegando o Natal,
eu também vou
ganhar uns lindos brinquedinhos
e roupa nova para
correr nas estradas,
e ter, como vocês,
um par de sapatinhos
para ir passear à
beira das calçadas.
E as crianças voltavam
costas desdenhosas,
já eram orgulhosas,
devido à educação
que tinham dos seus pais,
pois estes
costumavam, impiedosamente,
enxotar o menino,
porque pobremente
vestido, e insultá-lo,
em termos bem brutais,
quando ele,
sorrateiro assim como um ladrão
e sem pedir
licença,
entrava lhes de
chofre pelo amplo portão
do palacete, a rir,
numa alegria imensa...
Toda a gente sabia
a historia do enjeitado,
que misteriosas
mãos haviam desprezado
à porta de uma
venda. E a rústica vendeira
o recolhera, mas
lhe dava diariamente,
para juntar ao paio
ração do inocente,
socos e bofetadas,
com a mão grosseira.
Mas era inofensivo
o pobre enjeitadinho...
Tinha o olhar tão
calmo e o riso tão sereno!..
E como ele era órfão
(coitado, o Pedrinho!)
as crianças
zombavam, riam do pequeno,
pois sempre é
desprezada a virtude que brota
sob o teto acanhado
de rasa choupana,
e o certo é que a
vendeira, bem que mui devota,
ainda pertencia à
pobre raça humana.
Quantas vezes
Pedrinho foi, horas inteiras,
de castigo,
amarrado ao tronco das fruteiras,
só por haver comido
um fruto sazonado,
ou então de joelhos
na terra inclemente!
O castigo era
bárbaro, e o pobre inocente
já estava atrofiado,
mas nem sequer lhe
vinha ao menos à lembrança,
ao mártir pequenino,
à tímida criança,
fugir às garras vis
dessa mulher feroz,
pois tinha lhe o
respeito de um filho obediente
e curvava a cabeça,
resignadamente,
quando ela lhe
infligia algum castigo atroz.
Enfim chegou o dia,
o DIA DE NATAL.
E não obstante o tempo
estar enevoado,
preparavam-se as
festas,- júbilo geral.
De cada lar saía um
hino entusiasmado,
um concerto de
vozes, risos cristalinos,
que as gargantas
gentis da alegre criançada
soltavam pelo ar,
em trilos argentinos,
inocentes, fazendo
um barulho estridente.
E, quando a noite
veio ligeira, e tristemente
estendeu sobre a
Terra o seu espesso véu,
não brilhava um só
astro, uma só estrelinha,
nem a Lua surgia, pálida
rainha,
do mistério insondável
de um escuro céu..!
Nessa noite,
Pedrinho
silencioso e
triste, perto da lareira,
escutava a zoada
que vizinho, junto,
faziam, na alegria
sã, alvissareira,
festejando o Natal.
E quedo, e vacilante,
tanto afagou o
desejo de ir à brincadeira
que, pé a pé, saiu
de junto da lareira
sorrindo triunfante,
e fugiu pela porta,
á rua, mansamente,
sem ninguém pressentir.
Lá fora, se atirava
o vento doidamente,
como um ser incorpóreo,
atlético, a rugir!
Enfrentando com
calma a rija ventania,
o menino, impassível,
sereno, seguia,
andando, a passos largos,
na rua molhada,
até que, enfim,
chegando em frente do portão
onde os ricos
moravam, parou; viu, então,
que a porta estava
aberta e a casa iluminada.
Cauteloso, Pedrinho
entrou pelo jardim
e, depressa, a
esconder-se, subiu a escadaria.
E, oculto em dobras
de uma cortina, por fim
a Árvore de Natal
viu, lá, em mesa esguia,
com brinquedos e
doces e coroas de flores
suspensos dos
galhinhos; e, a tremeluzir,
bailavam lampadinhas
de variadas cores,
bonequinhos a
rir...
E ficou-se a mirar
largo tempo entretido,
por detrás da
cortina, espreitando escondido,
tendo bem a aparência
de novel ladrão.
Esteve, horas a fio
ainda, contemplando
as crianças brincar
à roda do salão.
Depois pensou: já é
tempo de ir-me retirando
E saiu a correr.
Mas, ao chegar à
frente da velha morada,
de pavor e de
espanto ficou a tremer:
cruelmente já a
porta se achava fechada!
Foi em vão que
bateu, foi em vão que chamou...
Ninguém lhe veio
abrir a porta inflexível.
pobre enjeitadinho,
a tiritar, ficou
tremendo e
soluçando naquele ermo horrível!
De repente, porém,
ouviram seus ouvidos
uns clamores, que
mais pareciam grunhidos:
era a voz da mulher,
que, de dentro, bradava,
terrível e brutal:
Não penses que te
abro a porta, ó fera brava;
já não posso aturar-te,
ò sórdido animal;
se entras para
aqui, eu te juro que apanhas
até ficar sem vida
(depois vem a
policia, e, por tirar-te as manhas,
prender-me-ão e vou
ficar perdida).
O menino escutou
aquela repreensão,
encostado à parede,
febril e abatido.
E, apertando com
mão gelada o coração,
tinha a mágoa cruel
de um pássaro ferido.
E, como um pobre
cão, a quem ingrato dono
atirasse de noite a
uma rua encharcada
Pedrinho inda
carpiu o seu pobre abandono...
Depois, adormeceu
na pedra da calçada.
E que sonho bonito
ele teve, avistando
Jesus, resplendente,
descer, rápido, em
luz, das nuvens do Infinito
trazendo-lhe um
presente!
E seu corpo tremia,
em febre repentina,
que às vezes rouba
a vida,
essa febre terrível
que ardente fulmina
uma existência já mortalmente
ferida.
E quando, ao outro
dia, a ríspida vendeira
a porta abriu,
recuou, soltando um grito:
acabava de ver, bem
do passeio à beira,
completamente
inerte, o corpo do Pedrito,
os olhos
entreabertos, já sem luz de vida,
e, com as mãos no
peito, inanimado e frio,
A criança jazia
como que embebida
num sonho juvenil
sobre um leito macio.
O rosto sorridente
parecia dizer, em
tom confidencial
que ele já obtivera
o mais lindo presente
que se pode ganhar
na noite de NATAL
e que, após ter
falado, em sonhos, com Jesus,
sem poder resistir
ao rútilo esplendor,
foi despertar,
sorrindo, inundado de Luz,
No REINO DO SENHOR!
(Lede esta comunicação e confrontai-a
aos versos
que escrevi quando na Matéria e sob
o título de FIEL).
Guerra Junqueiro
27 de Dezembro de 1928
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