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terça-feira, 15 de outubro de 2013

Carta a um amigo



Carta a um amigo
Eça de Queiroz (Espírito)
por Gilberto Campista Guarino
Reformador (FEB) Outubro 1976

Eternidade.

Meu caro:

            Encontro-te na posição de quem luta desesperadamente por sair de um labirinto de dúvidas excruciantes.

            Eras sereno como o rosa pôr-do-sol, firme como uma rocha acostumada ao impacto das ondas; Eras seguro, sem rodeios, preciso, de raciocínio límpido e claro. Não alimentaras ainda a avantesma da dúvida aterradora, que hoje te cerca, com um séquito de íncubos e súcubos lançando-te leito abaixo, quando (crês) mais necessitas descansar.

            Todo organismo sofre crises, meu caro amigo (permita-me, outra vez, dar ao meu verbo esse toque de fraternidade, que fraternidade eu sinto); tu estás como quem desperta, vivo, entre a sepultura de mortos, crendo-te defunto em terra de vivos. Não invertas as posições; não busques outras complexidades nas tantas que hoje te ameaçam, ou melhor, que crês te ameaçarem a integridade.

            Dizia o teu amigo (não confundas... sou o que deste país te escreve) que, uma vez, tu te sentiste firme como rocha acostumada às lambadas do oceano. Com efeito, meu caro... (que ouvido algum nos ouça... ) - estarias mesmo na posição em que só se colocam as almas redimidas? O como te situas hoje prova-te que não eras o todo-poderoso que imaginavas.

            Caíste do pedestal... ora... porque estavas no ar, porque jamais tiveste os pés sobre o solo.

            Sim, eras, talvez (que a consciência te conceda esse entendimento, é justo...), uma rocha; mas, não consideraste, porventura, que as rochas também tombam e afundam na areia das praias, sob o fustigar das vagas?.. Consideraste, sim, meu caro, a pedra, só a pedra; mas simplesmente te esqueceste de medir e pesar, caramba, o tremendo valor da água! Eras rocha, mas (pretendendo ser inflexível) esquecias-te de que vivias à beira do mar, de um mar calmo, certo. Nunca aventaste a possibilidade de uma ressaca ou desse fenômeno que os técnicos denomina cabeça-d’água? Nunca pensaste em que um cascalho lançado sobre a água poderia gerar uma vaga monstruosa, que haveria de pilhar-te bem quando tomavas sol, estirado sobre os grãos macios da areia?

            Não foste, todavia, colhido por ressaca, ou por cabeça-d'água: um maremoto sacudiu-te e quase te destroça. Serve isso para que a crise nova (que demonstra que o teu organismo está vivo) te impulsione para a prudência.

            Permita-me dizer, meu bom amigo: sempre tiveste horror aos defeitos que, segundo a tua filosofia, caracterizam o vulgo. Mas (esse foi o teu engano, pensa bem... ) debatias-te infantilmente por imitar os "grandes homens"... em tudo, integralmente e fielmente... fidedignamente, dizias de ti para contigo. E querias copiá-los até mesmo nos defeitos (enormes, meu caro) que pensavas fossem virtudes. Só te esqueceste de que era nesses defeitos, precisamente neles esses valores negativos, se assim preferires, que eles se igualavam ao que apelidas vulgo. Eram eles, os grandes homens, nesses momentos, os grandes tolos, porque, na relatividade desse mundo sem filosofia divina, subjaziam aos pequenos.

            Tinham mais, entendiam mais, sabiam mais falavam de tudo, quase sempre sem dizer coisa alguma. Meu querido: novamente te confundiste!.. Esses não eram os grandes homens; teu conceito de grandeza estava errado.

            Vias como gigante o pretensioso, porque só frequentaste o meio dos pretensiosos. Ouve cá, meu caro... Quem te fala é um velho companheiro que vegetou na prosápia dos salões um pimpão que se fartou da futilidade das louvaminhas, que apreciou e renunciou à zumbaia, que repetiu a ladainha do orgulhoso (do tolo...) na piedade falsa, que tem por cerne não o desejo louvável de ascender, mas a satisfação mórbida da hipertrofia do eu, que o teu singular engano te mostra agora. Eu desejo; eu quero; eu pretendo, eu faço, eu considero... Eu; eu, eu... eu!

            Eu!.. por Deus, meu irmão!.. Não penses que estás a morrer justo quando nasces para o Altíssimo!

            Teu, do coração,

Eça de Queiroz

            PS - A ti, o integral do meu respeito. Toma do chicote... não te furtes à grande oportunidade de passar de nobre, sob o pesado estore dos faetontes, a trintanário, na boleia do carro da humildade. Ama, meu caro.

Do Blog
prosápia - linhagem, ascendência, raça. Orgulho, jactância, vaidade.
pimpão - Vestido com elegância.
zumbaia- Cortesia exagerada, mesura rasgada, salamaleque.
louvaminhas - lisonjas continuadas.
estore - Cortina de fazenda ou lona para janelas que levanta e abaixa por meio de dispositivo.
faetonte - Carruagem leve, descoberta e de quatro rodas.

trintanário - Empregado que viaja ao lado do cocheiro, na boleia da carruagem.

domingo, 29 de abril de 2012

Carta a Humberto


Carta a Humberto

Meu querido:

            Já eu me dispusera a planejar um futuro de comunicados mediúnicos, quando veio a mim a auspiciosa notícia da tarefa a que te propuseras realizar.

            Confesso-te: de início assemelhou-se-me a empresa invulgar e agigantada, mas muito própria ao amor que teu coração retém e que acumulaste nas vivências gregas e romanas. Confirma-se, deveras, o primeiro qualificativo, que o meu entusiasmo insuflou à consciência e que, agora, a pena reproduz com ligeireza. Mas quanto ao agigantado do trabalho, apresso-me em confidenciar ao panorama espírita que a magnitude do tesouro que pulsa em teu peito em muito superou-lhe o grau.

            Tenho andado, asseguro-te, num torvelinho de atividades, mas - e isso tu mesmo o sabes - ... como diferem da tortuosa produção materialona as criações do indivíduo cônscio de perspectivas inusitadas, afastadíssimas do empertigado clima mundano, sobretudo dos salões regurgitantes da cidade-luz. .. Acho-me atravessado por um novíssimo raio de esperanças e - quero certificar-te - minhas certíssimas experiências na Terra, em futuro, hão de ser de menos petardos causticantes e de mais luta .. Assim, no momento em que enfrentar desta vez não sei de qual nação a aduana, viverei menos azombado, mais feliz. Isso tudo é certo!

*

            Imagina que há uns tempos percorri as regiões africanas, sob a égide de um amigo que me não autoriza o revelar-lhe o nome. O que colhi, a mancheias, anula toda a minha obra terrena: é experimentação novíssima para mim. Eu mesmo estonteei-me com as pinturas que analisei. Não há, nem jamais houve, realismo literário que logre retratar o sofrimento contido em cada homem, ou mulher, ou criança que passassem os olhos vermelhos e muito secos pelo meio das cabilas áridas, naquele exílio da vida. A cabeça dos anciães, meu caro Humberto, coroada por agulhante carapinha, continha, entretanto, a nobreza mais pura e mais nobre
(tu me entendes ... ) que o mundo ostenta. Voltei mentalmente a Paris e o que recordei fez-me sentir a mim mesmo o mais rasteiro dos vermes, dentre a abundância de vermes que a Terra abriga. Eram criaturas azoinadas, a quem faltavam as poltronas em que se repimpassem gordalhufamente, como os estarostes da Rússia Imperial. Ali, em meio ao odor que, no Brasil, o bugre toma ao africano, a administração era a dos sofrimentos mais diversos. O anedotário configurava a dor; a própria dor fazia da felicidade a mais autêntica das quimeras.

*

             Meu querido: anteontem, cumprimentei-te com todo o afeto e respeito que te voto. Hoje, torno a endereçar-me à tua luta e digo-te: Tu o sabes; a forma vale pouco; o fundamento é praticamente tudo. Na época em que o mundo balança, qual malabarista em corda-bamba, foi esse um dos empreendimentos mais lúcidos que tive a ventura de presenciar. Nunca houve tanta carência de bibliotecas que contivessem livros, muitos, muitíssimos, mas, sobretudo, que guardassem nesses livros amor em grande monta!  Estamos atravessando uma etapa de vacuidade absoluta: há muito desentendimento. O raciocínio, aciona-o a chave do orgulho, que mata incontinenti o coração, originando a incipiência dos institutos pessoais: aqueles que deveriam ser o auxílio incondicional, em nome de Jesus. (Figura o que dirão os sapientíssimos dicionários ambulantes, ao verem o velho Eça transformado em beatíssimo arauto de religião!. .. Oh, Senhor! Deixai-os viver, pobres deles!)

            Meu bom amigo: foi validíssimo o "tour de force" que perpetraste. Suaste muito! Mas, crê: já existe uma pequenina construção nova na obra do Cristo. Essa é a tarefa de todos. Já são novos e sucessivos horizontes a clarear o "tête-à-tête" humano, apaziguando as pavorosas cenas de berros e de bofetões que o homem apronta. Foi mais um passo, Humberto.

            Abençoe-nos o Senhor.

            O teu
              Eça de Queiroz

P.S. Sabes bem do porquê da ausência de data. Não há dia que marque mais a amizade do que aquele em que maior vontade de renovação haja. E esse são-no já todos.

Eça de Queiroz  
por Gilberto campista Guarino,
na antevéspera da reabertura
da Biblioteca da FEB, na Avenida Passos em 11-10-73
in Reformador (FEB)  em Jan 1974



Do  Blog: Aos que buscam informar-se sobre o quebra cabeças do 'Quem foi Quem' temos aqui mais uma informação confiável: Humberto e Eça viveram tanto na Grécia como na Roma antigas.