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terça-feira, 2 de março de 2021

Pôncio Pilatos

 


Pôncio Pilatos

por Luciano dos Anjos       Reformador (FEB) Junho 1963

             Durante a chamada Semana Santa alguns filmes de conteúdo bíblico foram, como de tradição, projetados nas telas nacionais. Este ano tivemos uma safra nova e variegada, se bem não faltasse a representação, nos célebres “poeirinhas”, das cópias tragicómicas de “O Mártir do Calvário", horrível produção francesa de meio século atrás. “O Rei dos Reis” por nós já comentado nestas mesmas páginas, infelizmente não foi exibido novamente.

            Apesar dos muitos equívocos e distrações que continha, foi sem dúvida o melhor trabalho até hoje produzido no gênero. Assim, não podendo bisá-lo, como era de nosso desejo, fomos assistir à película “Pôncio Pilatos” (Ponzio Pilato), em apresentação na linha de cinemas do circuito Vital Ramos de Castro.

            Jean Marais faz o difícil papel do Procurador da Judeia, destacando.se ainda as interpretações de John Drew Barrymore, como Judas e Jesus, e mais Jeanne Crain, Basil  Rathbone, Letícia Roman, Massimo Serato, Ricardo Garone, Lívio Lorenzon e Roger Tréville. Dirigiram o espetáculo o americano lrving Rapper e G. P. Calligari. Trata-se duma co-produção ítalo-francesa da Glomer Film-Lux-CCF, dublada para o inglês e distribuída pela Condor Filmes. Técnica e artisticamente o filme é péssimo, horroroso, como veremos no final deste comentário. Por ora, analisemos os ângulos que mais interessam a nós e que dizem respeito, obviamente, ao enredo em si, à luz da verdade histórica e da Doutrina Espirita.

 ***

             A cena de abertura mostra-nos Pilatos diante de César, em Roma, para onde fora mandado por Vitélio, governador da Síria, a fim de explicar seus desmandos na Palestina. Observe-se desde logo a preferência do roteirista pela hipótese da conversão de Pilatos ao Cristianismo, constante num evangelho apócrifo, porém a que melhor fere a sensibilidade do público pagante. Enquanto é asperamente inquirido por César, Pilatos recorda intimamente, todos os célebres acontecimentos em que estivera envolvido e, em torno deles que se desenrola o filme, num longo período de quase três horas de projeção, que vai desde as perguntas-condenação do imperador até a resposta-conversão do procurador.

            A “performance” de Pôncio Pilatos não parece corresponder fielmente à realidade histórica. Ao que se sabe, Pilatos foi administrador duro e pouco probo. Dão noticia disso os historiadores Filon e Flávio Josefo, bem como os próprios evangelistas. Numa carta de Agripa I referida por Filon, narra-se que ele era de índole inflexível, severíssimo, cruel e soberbo; que condenava à morte sem julgamento, deixava-se corromper e praticava intoleráveis iniquidades. Isto, sem conter a leviandade de seu caráter, desnudado na sensualidade delituosa, cuja melhor descrição, sem dúvida, vamos encontrar nas páginas extraordinárias do romance de Emmanuel intitulado “Há dois mil anos”. Aliás, o filme chega a mostrar um rápido flerte do Procurador' com uma plebeia, confirmando assim, embora insuficiente e insatisfatoriamente, essa repugnante facies da sua personalidade maculada pela viciação contumaz. Dizemos insuficiente e insatisfatoriamente, porque no filme essa passagem revela muito mais ingenuidade de sentimentos que propriamente alta traição à sua vida conjugal com Cláudia Prócula. Somente lendo Emmanuel podemos sentir o quanto era asqueroso o celebérrimo Governador Pôncio Pilatos.

            Em relação a Jesus, de fato ele busca subtraí-lo à condenação infamante que lhe preparam, lançando mão, para isso, de quatro expedientes. Primeiro, manda-o à presença de Herodes; depois, autoriza a flagelação, como simples castigo, pensando em libertá-lo logo após: em seguida, permite à multidão escolher entre Jesus e Barrabás, na expectativa de que escolhessem o Mestre; e, finalmente, a tentativa de mover o povo à piedade, apresentando-lhe o Cristo desfigurado e exclamando: “Ecce Homo!”; (Eis o homem!). Durante o julgamento a fita repete rigorosamente o texto evangélico e nisso vai muito a contento. Pilatos, na verdade, empresta pouca ou quase nenhuma importância à acusação dos sacerdotes e dos fariseus, eis que reconhece a falsidade deles. Procura colocar-se à margem do assunto, enviando Jesus a Herodes (Jo. XVIII, 31-38 e Lucas XXIII, 6 e segs.). Entre Pilatos e Herodes havia certa animosidade decorrente dum fato que por sinal o filme registra. Herodes escrevera a Tibério, no ano 27, pedindo-lhe que mandasse retirar do Templo os escudos dourados que Pilatos ali mandara colocar. O Imperador aquiesceu e deu ordem de transferi-los para o templo dedicado a Augusto, em Cesaréia. Isto fez que Pilatos se declarasse inimigo de Herodes. Contudo, a deferência com a qual o romano enviou o Nazareno ao Rei da Galileia deu motivo à mais completa reconciliação entre os dois. Todavia, como é sabido, Herodes devolve o Cristo para o seu tribunal e os chefes judaicos insistem então na condenação. Não obstante afirmar por três vezes a inocência de Jesus, Pilatos não se atreve a pô-lo em liberdade, com receio de desagradar aos judeus. Por isso tenta os quatro expedientes de que falamos acima. Os chefes judaicos, entretanto, crescem em audácia à vista da indecisão do Procurador e chegam ao extremo custo de ameaçá-lo de não zelar a autoridade de César, caso se negue a castigar Jesus com a morte (Jo. XIX,12). Pilatos, obedecendo então a uma superstição, lava as mãos diante do povo, a julgar que assim se purificava do crime de derramar sangue inocente. Em seguida, entrega Jesus aos seus inimigos para que o crucifiquem (Mat, XXVII, 15 e segs. e Luc. XXIII, 15 e segs.). Desta forma agiu para mostrar não ser por sua vontade que se ia praticar o crime. Variam, porém, as opiniões sobre o impulso que moveu Pilatos. Acreditam uns que ele teria imitado o costume dos romanos e dos gregos que imaginavam apagar as manchas de seus crimes lavando as mãos e, às vezes, o corpo todo. Outros, no entanto, com Orígenes, querem que Pilatos tivesse em mente acompanhar o costume dos judeus, segundo se compreende do Deuteronômio, quando refere à expiação do homicídio oculto nos seguintes termos:

            “Todos os anciães desta cidade, mais próximos do morto, lavarão as mãos sobre a novinha desnucada no vali, e dirão: As nossas mãos não derramaram este sangue, e os nossos olhos o não viram derramar-se. Assim, eliminarás a culpa do sangue inocente do meio de ti." (Dt. XXI, 6, 7 e 9.) O filme, nesta cena, mostra na bandeja um matiz sanguinolento que, se por um lado impressiona o espectador, por outro é dum mau gosto indizível. Recurso provinciano, artisticamente intragável e só apreciado pelos que se alheiam à boa arte e aos espetáculos de alto gabarito.

            A penúltima cena do celuloide é exatamente aquela em que Pilatos escreve de próprio punho (teria sido?) a inscrição a ser encimada na cruz do Crucificado. Nesse gesto, Pilatos quer revelar toda a sua indignação e o seu desprezo pelos chefes judaicos, recusando-se a modificar o texto quando lhe é solicitado (Jo. XIX, 22). Mais tarde (esse episódio é omitido no filme) acede facilmente a que José de Arimatéia retire o corpo de Jesus, visto estar determinado na lei romana que os parentes e amigos pudessem dar sepultura aos cadáveres dos condenados. E quando os príncipes dos sacerdotes e os fariseus vão ter outra vez com ele para que mande reforçar a guarda do sepulcro, mostra-se sobremaneira aborrecido e despacha-os imediatamente, dizendo apenas: “Aí tendes uma escolta; ide e guardai o sepulcro como bem vos parecer.” (Mateus, XXVII, 65)

            Uma tradição que se conserva em Jerusalém conta que Pilatos, além da inscrição colocada sobre a cruz, redigira uma sentença, cuja transcrição ainda hoje se divulga com algumas variantes. É muito possível que o fato seja autêntico, porquanto os sacerdotes não levariam o Cristo à crucificação senão devidamente resguardados da sua responsabilidade mediante um documente qualquer. Não andam certos - pelo menos do ponto de vista lógico - aqueles que querem ter sido apenas verbal a sentença de Pilatos. O documento a que nos referimos estaria assim redigido: “Ao décimo sétimo ano do Império de Tibério César, e vigésimo quinto dia do mês da Março, na cidade de Jerusalém, sendo Anás e Caifás Sacerdotes e Sacrificadores do Povo de Deus, Pôncio Pilatos, Governador da Baixa Galileia, assentado a Sede Presidial do Pretório, condena Jesus de Nazaré a morrer numa cruz entre dois ladrões. Visto que as grandes e notáveis testemunhas do Povo dizem: 1º) que Jesus é sedutor; 2º) que é sedicioso; 3º) que é inimigo da Lei; 4º) que se diz falsamente que é Rei de Israel; 5º) que se diz falsamente Filho de Deus; 6º) que entrou no Templo, seguido duma multidão, trazendo palmas na mão. Ordena ao Primeiro Centurião Quinto Cornélio que o conduza ao lugar do suplício. Proíbem-se todas as pessoas, pobres ou ricas, que impeçam a morte de Jesus. As testemunhas que assinaram esta sentença contra Jesus são: 1º) Danile Robani, fariseu; 2º) Tomás Zorobatel; 3º) Rafael Robani; 4º) Capet, homem público. Jesus sairá da cidade de Jerusalém pela Porta “Struenes”.

***

             O filme ainda mostra duas passagens importantes, quais sejam, a introdução em Jerusalém das águias de César e a construção do Aqueduto com dinheiro do Templo. Flávio Josefo narra que Pôncio Pilatos fez o que nenhum procurador, antes dele, se atrevera: introduziu em Jerusalém bandeiras e escudos militares com a imagem de César a fim de abolir as leis judaicas, ameaçando de morte os judeus discordantes. Por outro lado, gastou na construção do Aqueduto, dinheiro destinado ao Templo e, como o povo protestasse, mandou vestir soldados à maneira judaica e distribuí-los entre a multidão - detalhe que o filme omite – levando consigo, escondidos, fortes azorragues com os quais maltrataram, fustigaram e mataram muitos judeus.

 ***

             Pôncio Pilatos governou a Judeia mais quatro anos após a crucificação de Jesus, mostrando-se um administrador cada vez mais inepto e mais inapto. Chegou afinal ao extremo de mandar dispersar e matar uma multidão de Samaritanos que subiam ao monte Ganizim. Os habitantes de Samaria queixaram-se a Vitélio, Governador da Síria, o qual determinou a sua imediata deposição, ordenando-lhe ainda que se apresentasse a Roma a  fim de justificar-se perante o Imperador pelo genocídio de que os judeus o acusavam. A narrativa fílmica quer fazer supor que tais fatos haviam decorrido imediatamente após a crucificação do Cristo e motivados precisamente por este crime. Todavia, conforme dissemos, a verdade é que Pilatos ainda governou a Judeia por quatro longos anos e só é deposto pela matança provocada no monte Ganizim. Quando chegou a Roma, já Tibério havia morrido. O historiador Eusébio conta que Pilatos, caído em desgraça, acabou por suicidar-se. Segundo outros autores, teria sido condenado à morte, mais tarde, por Nero. E há ainda o evangelho apócrifo, aqui antes mencionado, que o dá como convertido ao Cristianismo e condenado à morte, ainda ao tempo de Tibério. O filme preferiu a sua conversão. Nós ficamos com Emmanuel, que apenas cita o seu suicídio, embora não firme nem confirme o ato da conversão. O suicídio teria ocorrido em Viena, nas Gálias, pelo ano de 39, quando Pilatos se lançou ao Ródano. Caio ou Calígula o tê-lo-ia exilado para aquelas terras.

 ***

            Há no celuloide ainda duas interpretações que merecem comentadas: a de Barrabás e a dum tal Aaron ec Mezir, agiota que especulava com dinheiro dos romanos. Quanto a este, não sabemos onde os produtores da fita o foram buscar. Não nos consta ter sequer existido tal personagem. Muito menos com a importância que lhe querem emprestar, isto é, encarnando, em última análise, o verdadeiro responsável pela morte de Jesus-Cristo, tendo em vista o prejuízo que este lhe vinha causando aos negócios escusos, especialmente depois da expulsão dos vendilhões do Templo, local onde seus sequazes mercadejavam com melhores lucros, à sombra da fé. Positivamente foi a primeira vez que ouvimos falar nessa versão “a Ia manière” de “Wall Street”...

            Quanto a expulsão dos vendilhões, foi feliz, até certo ponto, a sua encenação. Jesus aparece apenas com a chibata na mão, sem usa-la porém. De nossa parte, preferimos aceitar com Bittencourt Sampaio (“Jesus Perante a Cristandade”. págs. 73/74, 4ª edição da FEB, 1932) que o episódio não existiu, explicando-se os acontecimentos na seguinte linguagem: “Colocai nas mãos do Divino Mestre um látego de luz; imaginai-o, mostrando-se em toda a sua grandeza, diante dos profanadores do templo; figurai a turba dos mercadores, caindo por terra, atônita e confusa, perante a grande luz que se irradiava do Divino Nazareno, e assim tereis o azorrague de que se serviu Jesus.!” Contudo, poderia ter ocorrido também que Jesus houvesse casualmente segurado uma corda (quantas não haveria no local!), parecendo aos demais, esse seu gesto inocente e desintencional, que buscara um fim premeditado. Simples detalhe do acaso mal interpretado pelos evangelistas e por todos os presentes ali então. A verdade é que as Escrituras não falam no uso do chicote. Apenas registram: “Tendo feito um azorrague de cordas, expulsou a todos do templo, bem como as ovelhas e os bois, derramou pelo chão o dinheiro dos cambistas, virou as mesas, e disse aos que vendiam as pombas: Tirai daqui estas coisas: não façais da casa de meu Pai casa de negócio.” (Jo. II, 15 e 16.) Anote-se ainda que, dos quatro evangelistas, apenas João fala desse azorrague. O filme, graças a Deus, também não mostra o Mestre fazendo uso dele, mas apenas empunhando-o. Ainda bem.

            Quanto a Barrabás, preferimos aceitar o que nos dizem dele, fortuitamente, Mateus, Marcos, Lucas e João, apresentando-o apenas como um preso famoso, participante dum motim e assassino dum homem. Falam também de sedição e não temos porque rejeitá-la, ainda que ocorrida em termos reduzidos e em proporções devidas. As hipóteses em torno do nome de Barrabás são várias. Há, por exemplo, os que admitem não ter ele sequer existido ao tempo de Jesus e que sua origem tem lugar apenas numa adaptação evangélica do Carabás dos soldados romanos sediados em Alexandria. Renan rejeitou inteiramente essa tese, pela considerar infundada. Outros, mais radicais, acham que Barrabás seria o próprio Jesus (!?). Por outro lado, seu tipo tem ganho diversos característicos segundo as obras mais conhecidas de Par Lagerkvist, de Lucien Descaves, de Emery Bekessy e de Sholem Asch. Orígenes diz que ele tinha o mesmo prenome do Mestre, isto é, Jesus Barrabás. "Salteador vulgar” é o termo empregado pelos evangelistas; possivelmente um dos muitos que participavam das constantes sedições contra o dominador romano. Daí, porém, à liderança política que o filme lhe reserva, vai uma distância quilométrica...

 ***

             “Ponzio Pilato” não exibe - o que poderia ter feito bem, tratando-se de superprodução - a destruição da Torre de Siloé, acontecimento marcante, intimamente ligado à administração nefasta de Pilatos e referido por Lucas no capítulo XIII do seu Evangelho. Esconderam-se os judeus naquela torre depois de serem escorraçados do Templo, por ordem de Pilatos. Este, indignado com a resistência verificada, desesperou-se ao saber dessa teimosia, mandando derrubar a torre.

 ***

             A figura de Caifás, na fita, ganha uma interpretação jamais imaginada por nenhum hermeneuta.

            De todo e drama ele se sai comodamente, transparecendo sempre ser um sacerdote magnânimo, munificente (generoso), ponderado, muito comedido e até interessado, paternalmente, em resguardar Jesus da morte. Mais ainda; surge melifluamente, como uma espécie de confidente do Mestre! Ora, que ele foi um hábil político, não duvidamos, pois soube manobrar com argúcia e maestria para arrancar de Pilatos a concatenação infamante. Suas boas intenções, narradas no filme, chegam a torná-lo ridículo, senão burlesco e caricato. Somente a preocupação de não desagradar ao Judaísmo de nossa época justifica tamanha distorção histórica.

            Caifás liderou a manobra sub-reptícia contra Jesus, submetendo-o a dois julgamentos; o primeiro, noturno (o filme aqui é autêntico), portanto, ilegal, contrário ao Direito judaico; o segundo, pela manhã do dia seguinte. Perante juízes venais e testemunhas compradas é que Jesus foi ignominiosamente condenado, aliás, conforme estava profetizado em Salmos, cap. XXVI, 9 e 10. Rui Barbosa, na sua “Coletânea Literária”, examinando o sumário de culpa de Jesus Cristo à luz do Direito, comenta que Caifás, interrogando o Nazareno acerca de seus discípulos e de sua doutrina, transgride “as regras jurídicas assim na competência como na maneira de inquirir”. As instituições hebraicas não admitiam tribunais singulares. “O acusado, - prossegue Rui – tinha jus ao julgamento coletivo, e sem pluralidade dos depoimentos criminadores não podia haver condenação. Se a sua prédica incorria em crime, deviam pulular os testemunhos diretos. Esse era o terreno jurídico. Mas, porque o filho de Deus chamou a ele os seus juízes, logo o esbofetearam. Era insolência responder assim ao pontífice. Sic respondes pontifici? Sim, revidou Cristo, firmando-se no ponto de vista legal; se mal falei, traze o testemunho do mal; se bem, por que me bates?”  

        Um julgamento, portanto, nulo de direito mas tornado válido pela abominável pressão exercida diretamente por Caifás e seus asseclas.

 ***

             Não deslembremos a figura de Judas Iscariotes. Na fita, sua posição histórica até que está razoável, em que pese à sua péssima encenação artística. Trata-se dum obcecado (sem dúvida, um obsidiado também), dum irresponsável, dum espiríto - como sabemos, através das lições de Roustaing - que ambicionou mais do que podia realmente alcançar. Curioso, entretanto, é não terem registrado o suborno a que acedeu pelas trinta moedas de prata. Assim também é demais. Judas não é aquele monstro satânico pintado pela Igreja e repulsivamente malhado todos os anos; porém, não vamos ver na sua personalidade nenhum “santo incompreendido”, incapaz daquela venalidade de que nos falam os evangelistas e os historiadores. Ao que parece, contudo, não foi outra a intenção do produtor cinematográfico, omitindo afinal uma passagem que é a única, talvez, capaz de justificar a importância da encarnação de Judas à época do Cristianismo primitivo. Negar seu suborno é o mesmo que negar a existência de Judas.

 ***

             Quase no final da história fílmica, temos os trovões que se seguiram à rendição do Espírito de Jesus. Um rapidíssimo quadro, de no máximo três segundos e que terá passado despercebido a 99 por cento dos espectadores, mostra um eclipse do Sol, de permeio à revolta celeste. Vemos aqui uma vez mais a influência dos que não querem emprestar ao Cristo missão extra-humana. Assim, buscam explicar os fenômenos àquela época ocorridos, todos eles, como absolutamente normais e decorrentes, no caso da morte do Salvador dum simples eclipse solar. Allan Kardec, em “A Gênese”, pág. 326, 134ª edição da FEB, procura negar essa hipótese nos seguintes termos: “A duração de tal obscuridade teria sido a de um eclipse do Sol, mas os eclipses dessa espécie só se produzem na lua nova, e a morte de Jesus ocorreu na fase de lua cheia, a 14 de Nissan, dia da Páscoa dos judeus.” Kardec aventa rapidamente a possibilidade de terem sido os fenômenos provocados pelas manchas físicas que às vezes encobrem a superfície do Sol, sem entretanto aceita-la integralmente. Para ele, o eventual desprendimento dum fragmento de rochedo provocou agitação entre os discípulos ali postados ante a cruz, os quais teriam visto nesse fato “um prodígio e, ampliando-o, tenham dito que as pedras se fenderam" (“A Gênese”, pág. 321. ed. citada). É bem verdade que os fatos podem ser assim explicados; todavia, através de “Os Quatro Evangelhos” de J.B. Roustaing, inteiramo-nos de que todos aqueles fenômenos foram provocados por Espíritos encarregados das forças da Natureza. Os mesmos que antes fizeram parar a tempestade sobre o mar por ordem do Mestre. Aliás, Allan Kardec em “O Livro dos Espíritos”, pág. 281, 28ª ed. da FEB, refere esses Espíritos, dizendo: “Outros, finalmente, presidem aos fenômenos da Natureza, de que se  fazem os agentes diretos.”

 ***

            Analisemos agora, para arrematar, alguns aspectos puramente técnicos e artísticos da película, conforme prometêramos no início deste artigo. Jean Marais é talvez o único que se salva, embora não seja bastante convincente quanto ao seu arrependimento. Sua figura porém foi bem escolhida e ele se desincumbe satisfatoriamente do difícil papel que lhe foi dado. Os demais vão muito mal. John Drew Barrymore, como Judas, está grotesco e exageradíssimo, principalmente nas cenas em que se põe a ouvir a voz de Jesus acusando-o por antecipação do crime que vai cometer. Seus gestos dramáticos fazem lembrar melhor as encenações de Hamlet a monologar com a caveira na mão. As batalhas foram filmadas todas em primeiro plano, possibilitando aos espectadores verificar que tanto judeus como romanos são interpretados pelos mesmos “extras”. Faltou gente para encher a tela, não obstante tratar-se duma superprodução... O tecnirama e o tecnicolor colaboraram para suavizar as imperfeições generalizadas. Como último parágrafo consignemos o mau gosto dos diretores, permitindo que John Drew Barrymore interpretasse os papéis de Judas e de Jesus ao mesmo tempo. 



sábado, 2 de maio de 2020

A Coroa de Espinhos



A Coroa de Espinhos

 27,27 Os soldados do governador conduziram Jesus para o Pretório e rodearam-no com todo o pelotão. 
27,28  Arrancaram-Lhe as vestes e colocaram-Lhe um manto escarlate. 
27,29  Depois, trançaram-Lhe uma coroa de espinhos, meteram-Lha na cabeça e puseram-Lhe na mão uma vara. Dobrando os joelhos diante Dele, diziam com escárnio: Salve, Rei dos Judeus! 
27,30  Cuspiam-Lhe no rosto e, tomando da vara, davam-Lhe golpes na cabeça. 
27,31  Depois de escarnecerem Dele, tiraram-Lhe o manto e entregaram-Lhe as vestes. Em seguida, levaram-no para o crucificar!
  
         O Teatro Vivo, conforme relato de Luiz Sérgio por Irene Pacheco Machado, em “Dois Mundos Tão Meus” é excelente oportunidade para nos inserirmos no contexto da história do Cristo vivenciando-a muito de perto:

            “Víamos Jesus na sala de Pilatos: Sua figura digna, linda e majestosa impressionara o Procurador romano, acostumado a lidar com culpados. Junto a ele, encontrava-Se o Mestre, o Governador da Terra. Não via culpa em Jesus, via um homem de aspecto calmo e digno, cujo rosto refletia a paz dos deuses.

            Quem é esse homem, e para que o trouxestes? Que acusações trazeis contra este homem? perguntava Pilatos. Ninguém ousava depor contra Jesus, o que assustou os sacerdotes, que julgaram Pilatos fraco e vacilante. Mas ali estava Ele, diante de Pilatos e era necessário julgá-Lo.

            Volvendo o olhar para Jesus, perquiriu: Vós sois o rei dos judeus?, ao que Jesus respondeu: Tu o dizes.

            Gritos se fizeram ouvir, todos pediam a condenação de Jesus. Mesmo assim, Pilatos muitas vezes tentou ajudá-Lo. entretanto seus interesses foram maiores do que o sentimento.      Diziam os sacerdotes: “Este homem alvoroça o povo, ensinando por toda a Judeia.” Ao ouvir que Cristo era da Judeia, Pilatos decidiu mandá-Lo para Herodes, Governador daquela província. Jesus foi entregue aos soldados e mais uma vez insultado pelo povo enfurecido.

            Vimos Cristo sendo levado a Herodes. Este, ao vê-Lo, sorriu de felicidade, pois nutria uma louca vontade de conhecer Jesus pessoalmente. Julgava que Jesus fosse João, que ele assassinara cruelmente. Este é João, que mandei degolar; ressuscitou dos mortos (Marcos 6,16). Muitos sacerdotes e anciãos acompanharam Cristo até Herodes. Ele pediu silêncio e com muito orgulho e arrogância interrogou Jesus, mas o Mestre manteve-Se em completo silêncio.

            Nisso entraram no recinto coxos, cegos, leprosos, enfim, vários enfermos. Pediu Herodes que Jesus os curasse, prometendo-Lhe sua libertação se curasse um daqueles doentes. O olhar de piedade com que Jesus fixara Herodes era de fazer gelar qualquer criatura, mas o duro Governador continuou atormentando Jesus, dizendo serem os demônios os autores das curas.

            O silêncio de Jesus enfurecia Herodes, entretanto o Mestre, naquele momento, não ia jogar pérolas aos porcos; viera para dar exemplos e, mesmo que curasse os doentes, não acreditariam n’ Ele. Herodes, irado, acusou Jesus, dizendo: “ Se és filho de Deus, salva-te a ti mesmo operando milagre ”. O povo avançou sobre Jesus, instigado por Herodes, mas os soldados romanos não permitiram que Jesus fosse esquartejado.

             Assim, Herodes não pode condená-Lo.

             Mandou-O de volta a Pilatos, que, desorientado, viu-se novamente diante do Mestre, principalmente porque Cláudia, sua esposa, que não era judia, tivera um sonho com Jesus, no qual um anjo lhe contara que Ele era o Príncipe de Deus.

            Ela era médium vidente e previu tudo o que estava acontecendo.

             Pilatos, assombrado, não sabia o que fazer. A arriscar sua posição, preferiu entregar Jesus para ser crucificado, mas declarando-se inocente do sangue de Cristo.

             Caifás, então, gritou, juntamente com a multidão: “ -Seu sangue cairá sobre nós e sobre nossos filhos.”  O povo fez sua escolha.

             Pilatos ainda olhou para o Cristo, deu um passo em Sua direção, mas voltou atrás.

             O poder era mais importante do que a vida de um homem.

            Então Cristo, o nosso Jesus, o Homem-deus, o Mestre dos Mestres, foi levado ao calvário...”  

         Para Mt (27,27-31),  -A Coroa de Espinhos - encontramos em “Elucidações Evangélicas”, (Ed. FEB), de Antônio Luiz Sayão, a palavra a seguir apresentada:
           
            Os exemplos de paciência e resignação que neste passo deu Jesus, devemos tê-los presentes sempre ao nosso espírito. Não sejamos nunca dos que acusam e insultam, por mais que pareça legítimo o direito que nos assista de assim proceder, porque, cegos que somos, podemos estar a acusar e insultar a um inocente.

            A paciência e a doçura é o que nos cumpre opor aos que de nós zombem ou escarneçam. Fora inútil tentarmos demonstrar a cegos os princípios e as propriedades da luz. Perderíamos o nosso tempo. Firmemo-nos na pureza das nossas intenções, na pureza da nossa consciência e dos nossos atos e estejamos certos de ter sempre no Senhor um juiz imparcial e equânime.”
           

             
                                                               
                  

quarta-feira, 22 de abril de 2020

Jesus e Pilatos


Jesus e Pilatos

27,11  Jesus compareceu diante do governador Pilatos que o interrogou. 
27,12  Ele, porém, nada respondia às acusações dos sacerdotes e dos anciãos.
27,13  Perguntou-Lhe Pilatos:- Não ouves todos os testemunhos que levantam contra Ti? 
27,14  Mas, para grande admiração do governador, não quis responder à nenhuma acusação. 
27,15  Era costume que o governador soltasse um preso a pedido do povo  em cada festa da páscoa. 
27,16  Ora, havia, naquela ocasião, um prisioneiro famoso chamado Barrabás. 
27,17  Pilatos dirigiu-se ao povo reunido: Qual quereis que eu vos solte? Barrabás ou Jesus, que se chama Cristo? 
27,18  Ele já sabia que tinham entregue Jesus por inveja. 
27,19  Enquanto estava sentado no tribunal, a sua mulher lhe mandou dizer: Nada faças a esse justo!  Fui intuída em sonho a esse respeito!
27,20  Mas, os sacerdotes e os anciãos persuadiram o povo que pedisse a libertação de Barrabás e fizesse morrer Jesus. 
27,21  O governador, então, tomou a palavra: Qual dos dois quereis que eu vos solte? Responderam-lhe: Barrabás.        
                                        
          Para  Mt (27,11-14), -Jesus e Pilatos - encontramos  no Cap. XI de “O  Evangelho segundo o Espiritismo”  a palavra de Emmanuel discorrendo sobre a chaga do Egoísmo.  Note bem que é a única  mensagem assinada por Emmanuel em todo o “O Evangelho...”:

O Egoísmo...

            O egoísmo, essa chaga da Humanidade, deve desaparecer da Terra, cujo progresso moral retarda; ao Espiritismo está reservada a tarefa de fazê-la subir na hierarquia dos mundos. O egoísmo é, pois, o objetivo para o qual todos os verdadeiros crentes devem dirigir suas armas, suas forças e sua coragem; digo coragem porque é preciso mais coragem para vencer a si mesmo que para vencer os outros. Que cada um, pois, coloque todos os seus cuidados para combatê-lo em si, porque esse monstro devorador de todas as inteligências, esse filho do orgulho, é a fonte de todas as misérias deste mundo. É a negação da caridade e, por conseguinte, o maior obstáculo à felicidade dos homens.

            Jesus vos deu o exemplo da caridade e, Pôncio Pilatos, o do egoísmo; porque enquanto o Justo vai percorrer as santas estações do seu martírio, Pilatos lava as mãos dizendo: Que me importa! Ele disse aos judeus: Este homem é justo, por que quereis sacrificá-lo? e, entretanto, deixa que o conduzam ao suplício.

            É a esse antagonismo da caridade e do egoísmo, à invasão dessa lepra do coração humano, que o Cristianismo deve não ter cumprido ainda toda sua missão. É a vós,  apóstolos novos da fé e que os Espíritos Superiores esclarecem, a quem incumbe a tarefa e o dever de extirpar esse mal, para dar ao Cristianismo toda a sua força e limpar o caminho das sarças que lhe entravam a marcha. Extirpai o egoísmo da Terra, para que ela possa gravitar na escala dos mundos, porque já é tempo de a Humanidade vestir seu traje viril e, para isso, é preciso primeiro extirpá-lo do vosso coração.” (Emmanuel, Paris, 1861)


         Para Mt (22,11-14),-Jesus e Pilatos -  encontramos em “O Evangelho...”, de Kardec, no seu Cap. II, alguns trechos que nos orientam sobre essa passagem:

            “O reino de Jesus não é deste mundo, é o que cada um compreende; mas sobre a Terra não terá também uma realeza?”

      “Essa realeza, nascida do mérito pessoal, consagrada pela posteridade, não tem, freqüentemente, uma preponderância maior do que aquela que leva o diadema? Ela é imperecível, enquanto que a outra é o jogo das vicissitudes; ela é sempre abençoada pelas gerações futuras, enquanto que a outra, por vezes, é amaldiçoada. A realeza terrestre acaba com a vida; a realeza moral governa ainda, e, sobretudo, depois da morte. A esse título,  Jesus não é um rei mais poderoso que muitos potentados?”

         Ainda no Cap.II, um espírito que se apresentou como  “Uma Rainha de França”  transmitiu o que se segue, para nossa reflexão:

         "Para se preparar um lugar nesse reino, é preciso a abnegação, a humildade, a caridade em toda a sua prática celeste, a benevolência para com todos; não se pergunta o que haveis sido, que posição haveis ocupado, mas o bem que haveis feito, as lágrimas que haveis enxugado...”    

Jesus e Pilatos

27,22  Pilatos perguntou: Que farei, então, de Jesus que é chamado o Cristo?
Todos responderam: Seja crucificado! 
27,23 O governador tornou a perguntar: Mas, que mal fez Ele? E eles mais clamavam dizendo: Seja crucificado! 
27,24  Pilatos viu que nada adiantava mas, que, ao contrário, o tumulto crescia. Fez com que lhe trouxessem água e lavou as mãos diante do povo, e disse: Sou inocente do sangue Deste homem. Isto é lá convosco! 
27,25  e todo o povo respondeu: Caia sobre nós o Seu sangue e sobre nossos filhos! 27,26  Libertou, então, Barrabás e mandou açoitar Jesus e Lho entregou para ser crucificado. 
        
         Para Mt (27,23 ),  - Que mal fez Ele? - encontramos em “Fonte Viva”, de Emmanuel por Chico Xavier, essa  bela passagem:
           
Solidão...
            A medida que te elevas, monte acima, no desempenho do próprio dever, experimentas a solidão dos cimos e incomensurável tristeza te constringe a alma sensível.

            Onde se encontram os que sorriram contigo no parque primaveril da primeira mocidade? Onde pousam os corações que te buscavam o aconchego nas horas de fantasia? Onde se acolhem quantos te partilhavam o pão e o sonho, nas aventuras ridentes do início?

            Certo, ficaram...

            Ficaram no vale, voejando em círculo estreito à maneira das borboletas douradas, que se esfacelam ao primeiro contato da menor chama de luz que se lhe descortine à frente.

            Em torno de ti, a claridade, mas também o silêncio...

            Dentro de ti, a felicidade de saber, mas igualmente a dor de não seres compreendido...

            Tua voz grita sem eco e o teu anseio se alonga em vão...

             Entretanto, se realmente sobes, que ouvidos te poderiam escutar a grande distância e que coração faminto de calor do vale se abalançaria a entender, de pronto, os teus ideais de altura? 

           Choras, indagas e sofres...

            Contudo, que espécie de renascimento não será doloroso? A ave, para libertar-se, destrói o berço da casca em que se formou, e a semente, para produzir, sofre a dilaceração na cova desconhecida. A solidão com o serviço aos semelhantes gera a grandeza.

            A rocha que sustenta a planície costuma viver assolada e o Sol que alimenta o mundo inteiro brilha sozinho.

            Não te canses de aprender a ciência da elevação. Lembra-te do Senhor, que escalou o Calvário, de cruz aos ombros feridos. Ninguém o seguiu na morte afrontosa, à exceção de dois malfeitores, constrangidos à punição, em obediência à justiça.

            Recorda-te dele e segue...

            Não relaciones os bens que já espalhaste.

            Confia no Infinito Bem que te aguarda.

            Não esperes pelos outros, na marcha de sacrifício e engrandecimento. E não olvides que, pelo ministério da redenção que exerceu para todas as criaturas, o Divino Amigo dos Homens não somente viveu, lutou e sofreu sozinho, mas também foi perseguido e crucificado.”

           
            O livro 'Revelação dos Papas' da União Espírita Suburbana, RJ, RJ nos trouxe uma psicografia de um espírito que se intitulou Pôncio Pilatos dando-nos, assim, mais uma prova de nossa  marcha inexorável para Cristo. Leiamos:

            (Apresentando-se à vidente um espírito muito luminoso, envolto em luz branca e verde, distinguindo-se apenas o seu vulto no meio dessas luzes, não podendo a vidente reconhecer o sexo a que pertenceu o espírito.
            A luz branca tem reflexos prateados e, da mistura com o verde e branco, aparecem também raios lilases. Afinal, a vidente reconhece ser um homem que está em sua presença)

            Antes de tudo quero agradecer a Jesus as graças que tem concedido ao meu pobre espírito.

            Quero render, aqui mesmo na Terra, graças a Deus pelo muito que me foi concedido pelo nada que fiz.

            Curvo-me, reverente e humilde, para agradecer à Infinita Misericórdia os benefícios e favores dispensados a este humilde e insignificante servo do Senhor, a quem nesta hora sublime recorro, pedindo forças e alento para poder falar aos meus irmãos, em nome de Jesus, que me disse:

            Vai tu também, Poncio, e proclama  a sublime verdade.
            Vai, meu filho, e reparte com teus irmãos o que recebeste de meu Pai, dá ao mundo o exemplo da tua humildade; oferece à humanidade a prova material da tua existência e da realidade da infinita misericórdia de meu Pai, em cujo nome falarás, cujos desígnios proclamarás, cuja sabedoria patentearás aos olhos dos homens que habitam aquele atrasado planeta.
            Vai, meu filho, e fala também em meu nome; anuncia a minha presença entre essa gente ingrata, que tanto se tem esquecido dos ensinamentos do seu Mestre, das provas de amor que lhes têm sido dispensadas pela sublime vontade do Pai.
            Vai, e dizei o que sabes, conta o que viste aqui, anuncia às criaturas o futuro que as espera; fala-lhes em linguagem simples, mas sugestiva, emprega frases repassadas de doçura, mas, ao mesmo tempo, enérgicas e incisivas, de modo a abalar-lhes a consciência, despertar-lhes na alma os sentimentos que parece terem para sempre emigrado do coração do homem.
            Vai, e  anuncia  entre os homens que - são chegados os tempos prometidos pelas Escrituras.”

            Venho, portanto, no cumprimento de uma ordem do Mestre: volto ao mundo na qualidade de enviado do Nazareno, a quem um dia procurei defender da sanha feroz dos homens, não o conseguindo, porém, porque era justamente seu destino: morrer para salvar o gênero humano.

            Deus julga as nossas intenções, preocupando-se muito pouco ou quase nada com os atos da criatura, que nem sempre traduzem os desejos íntimos do espírito encarnado. Deus julga o nosso foro íntimo, busca saber o que nos conduziu à prática de determinados atos, o móvel das nossas ações. Os atos exteriores pouca significação têm para o eterno ser: a consciência é quem responde perante o supremo tribunal de Deus.

            Os crimes perpetrados na Terra são, muitas vezes, atenuados perante a justiça eterna, que julga levando sempre em conta o grau de adiantamento de espírito, o seu passado e presente, as causas remotas que concorreram para a criatura cometer estas ou aquelas ações, e executar atos muitas vezes involuntários, porquanto, neste caso, o espírito é levado a tais crimes por circunstâncias independentes de sua vontade, sendo, em várias ocasiões, mero instrumento de outras vontades que constantemente atuam sobre a alma encarcerada e a conduzem ao erro, ao crime e à desgraça.

            Muitos dos criminosos da terra acham-se no mundo dos espíritos em condições de relativa calma e felicidade, porque Deus é justo e a balança divina é perfeita e acusa a mais insignificante partícula, de mais ou de menos, nas culpas dos espíritos julgados pela infinita Sabedoria.

            Deus julga sem recorrer ao testemunho humano, como fazem os Juízes da Terra. Não estuda processos preparados por outros juízes. Ele é o principal e o único órgão dessa justiça infalível e sábia até o infinito; as suas decisões  são inapeláveis; as suas sentenças irrevogáveis porque são absolutamente sábias e justas, quer quando condenam, quer quando absolvem o culpado.

            A justiça de Deus não tem alternativas, nem sofre contraste com outra justiça, por ser a única existente em todo o Universo.

            Deus julga as almas pela intenção, pelo que observa no fundo da consciência, e não castiga nem perdoa, mas dá o que cada um merece.

            Deus não condena seus filhos a penas eternas, isto porque, se assim procedesse, anularia o grandioso e principal objetivo da sua obra colossal: - progredir até o infinito, caminhar sempre, nascendo e renascendo, para poder viver eternamente.

            O espírito que delinque está no caminho do aperfeiçoamento e é comparável ao aprendiz que só executa maus trabalhos ou produz obras imperfeitas, sem que, por isso, o Mestre o expulse da oficina, o que seria iniquidade pois, se assim procedesse o Mestre chegaria o momento de lamentar a falta de artífices, atrofiando-se, por esse modo, as artes e as indústrias, paralisando o seu desenvolvimento e progresso.

            O Universo é a formidável oficina onde todos nós aprendemos a trabalhar, a produzir boas obras, a executar com perícia os trabalhos e as tarefas que nos são confiadas pelo nosso Mestre. Assim, Deus não condena nem absolve, propriamente falando; Ele dá o que o aprendiz merece, aquilo a que fez jus pelos seus esforços e perseverança no trabalho.

            Aí tendes a imagem da reincarnação, e porque Deus não condena, nem absolve, o que importaria na anulação do plano divino: - caminhar, sempre, aperfeiçoando-se à custa dos próprios esforços, nascendo e renascendo até o dia em que, não mais precisando das provas terrenas, possa o espírito viver eternamente.

            Deus perdoa. mas o seu perdão é condicional, e não como concebeis - o esquecimento eterno da culpa, não!

            Deus, em sua justiça divina, quer o aperfeiçoamento das almas, e se a culpa ficasse desde logo esquecida, o espírito permaneceria inerte, daquele momento em diante; nenhum compromisso assumido para com seu Criador, ficaria inativo, interrompendo, assim, o seu progresso.

            A justiça de Deus suspende o sofrimento logo que o espírito, ao reconhecer o mal praticado, se propõe repara-lo em existências sucessivas.

            Mas não é perdoar, condenar ou absolver, é apenas apreciar as obras da criatura, compara-las, pesa-las, medi-las, e, depois, dar a cada um o que merecer.

            A ideia do perdão absoluto e incondicional é, como vedes, errônea, visto como perdoar é esquecer, nada mais exigir daquele sobre quem recai o perdão, dispensando-o de qualquer reparação, do mal praticado.

            Deus dá dessa forma o que cada um merece pelos seus esforços, pelos sacrifícios feitos com intuito de caminhar para a perfeição absoluta, por isso que é justo, sábio, misericordioso e infinitamente bom. 

            Ser bom, portanto, é ser justo, dar a cada um o que lhe pertence, e não condenar eternamente ou perdoar a falta cometida por aquele que, não tendo ainda adquirido o aperfeiçoamento necessário, voltará um dia à prática de novos crimes, cercando-se das maiores cautelas para escapar à ação da justiça que o condenou ou perdoou anteriormente.

            Deus não esquece; o Criador não consente que se apague o que estiver escrito no livro do infinito, com relação aos erros e crimes praticados pela criatura. A própria alma, na ascensão que for fazendo pelo tempo além, irá apagando, ela mesma, o que estiver escrito em letras de fogo - a história dos seus desregramentos, das suas fraquezas e misérias.

            Ao passar de um plano inferior para o imediatamente superior, o espírito salda as suas contas até aquele dia, pois vai, desse momento em diante, começar uma nova vida, percorrer nova fase, e Deus, infinitamente bom, consente que a alma leve consigo, para a nova existência, as virtudes que possui, os dons e os predicados de que for portadora, ficando os erros, os defeitos, as faltas e os crimes apagados, por ter o espírito, com suas próprias mãos, os destruído para sempre.

            Ah! tendes a justiça de Deus pintada em rápidas e singelas palavras; aí estão, em ligeiros traços, descritos, os intuitos e desejos da divina Providência mandando o espírito diversas e inúmeras vezes à superfície dos mundos de expiação, aos planetas atrasados, como este onde habitei e habitais neste momento.

            Tudo quanto tendes aprendido sobre o modo de agir da suprema justiça é falso, nada valendo o que têm ensinado os chamados diretores espirituais e os intitulados livros sagrados; a justiça de Deus não tem preferencias, no tribunal divino não se distinguem os delinquentes por outros meios senão o exame das intenções que os levaram a delinquir.

            O que se examina nesse tribunal superior é o forum intimum do espírito, a intenção, o móvel das suas ações boas ou más.

            Ninguém, a chegar a essas paragens se lembra de que foi na Terra. O espírito, ao transpor aquelas regiões, sente que se apagam todas as reminiscências, se lhe enfraquecem a memória das honras, posições e riquezas, do poder de que dispôs entre os homens, da força que enfeixou em suas mãos, de que gozou e do que desfrutou.

            Diante dos nossos olhos espirituais desenham-se nítidos, lá no grandioso tribunal, os nossos pecados, as faltas, os erros e crimes que praticamos como também as boas ações, os atos indignos, as obras de caridade e amor que deixamos na Terra, e, ah! meus queridos irmãos e amados companheiros! felizes dos que podem, nessa hora solene, ver brilhar diante de si a luz suave dos atos de caridade, de amor e de piedade para com seus semelhantes!

            Ah! meus irmãos! que delícia, que felicidade desfruta todo aquele que ouve ali o eco das preces, os votos dos que ficam na terra orando pela alma que no mundo cumpriu o seu dever cristão, dando com a direita sem que a esquerda o percebesse, que amou o seu semelhante como a si mesmo, que só fez a outrem o que desejou que outrem lhe fizesse, que não feriu, que perdoou e, por isso, encontra no mundo dos espíritos o que merece pelas suas boas obras!

            Este que vos está falando também compareceu à barra desse grandioso tribunal e viu escrito os seus erros, todos os delitos mas, o! meus queridos irmãos! como foi para ele consoladora a lembrança naquela hora dos atos bons que praticara, avultando entre eles o da defesa de Jesus, a intenção de defender o justo da sanha feroz dos seus algozes! Como vos hei de contar as minhas alegrias ao ouvir ali ecoarem as minhas palavras, proferidas quando levaram Jesus à minha presença, no tribunal da Judeia! Como foram doces para mim aqueles momentos, em que ouvi também a voz de Jesus, dizendo: Que se cumpra a vontade de meu Pai!

            Essa recordação compensou largamente os dissabores que então experimentei pelos erros e delitos que pratiquei na Terra, onde tenho comparecido diversas vezes, mas sempre amparado pela divina misericórdia, guiado pela luz dos ensinamentos de Jesus, que hoje venho também proclamar, na qualidade de seu discípulo e enviado, para dizer-vos tudo quanto ficou escrito e, ainda, que me reencarnei na Terra, para propagar os santos princípios da doutrina daquele cujas palavras já abalavam o meu espírito, no tempo em estive entre vós e me chamei Pôncio Pilatos. Hoje sou defensor do puro Cristianismo, do Deus de infinita bondade e amor, sou discípulo de seu filho - o divino Jesus - que proclamo aqui o Mestre dos Mestres, o Rei dos reis, o supremo Diretor deste planeta!

            Eis aí, meus amigos e irmãos queridos, cumprida a minha missão, o meu dever, e satisfeito o compromisso; que assumi com a divina misericórdia, de vir a Terra narrar o que acabastes de ouvir, para que tenhas melhor noção da justiça eterna, que em nada se parece com a dos homens.

            Agora, resta apenas dirigir-me a vós, irmãos e companheiros muito amados; resta-me fazer-vos um pedido, dar-vos um conselho que, de certo, vos servirá de muito: - Caminhai na vida com os olhos fitos em Jesus; marchai sempre guiados pelos ensinamentos do Mestre, os quais deveis cultivar e propagar, procurando o caminho do bem, da justiça e do amor ao próximo.

            Jamais vos afasteis da caridade cristã, da caridade pura, dando com a direita sem que a esquerda o perceba, perdoando o vosso semelhante, querendo e amando os vossos irmãos como a vós mesmos.

            Defendei Jesus, livrai a sua doutrina dos botes e assaltos dos novos fariseus, ensinai as suas máximas, divulgai as suas parábolas, interpretai o fundo dessas sublimes palavras e tirai dali toda a luz de que careceis para a vossa viagem nesse vale de lágrimas, procurai praticar pelo menos um bom ato na vossa vida, para que, um dia, quando tiverdes de comparecer perante o tribunal de que tantas vezes vos falei no correr desta comunicação, possais ser consolados como foi o vosso irmão que hoje vos visita em nome de Deus e de Jesus e que se retira dizendo-vos: “Amai-vos uns aos outros e a Deus sobre todas as coisas.”
                                                           Pôncio Pilatos
                                                                                           (Março de 1917)