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quinta-feira, 26 de maio de 2011

12 (e final) Escravidão e Espiritismo




-XII-
 ‘Glorioso Ascenção’

por Alberto de Souza Rocha
Reformador (FEB)  Dezembro 1988

           
Quando virmos alguém, quem quer que seja, em condições de dificuldade, se não pudermos de pronto ampará-lo, pelo menos procuremos não julgá-lo pelas aparências. Muito especialmente em se tratando de criança. Ninguém sabe a rigor, em princípio, que alma estará animando aquele corpo. No mínimo, um irmão na romagem evolutiva. Poderá ser, porventura, por menos que se espere, aquele a quem as gerações futuras homenagearão com o preito merecido por grandes feitos ou pelo exemplo deixado.
Um garoto desceu certo dia de uma favela no Rio de Janeiro, deu de frente com modesta tipografia e – homem feito – fundou a Academia Brasileira de Letras. Que se poderia esperar de outro garoto nascido de mãe escrava e de pai fidalgo português, que pouco faria por merecer essa condição? É o que pretendemos rememorar aqui.
Transcorria o ano de 1830, quando o Brasil contava apenas oito anos de Independência. A Bahia, no entanto, um pouco menos, pois vivera a luta pela emancipação e pela unidade nacional. E nessa luta tombaram muitos heróis, entre eles Soror Angélica. Pois, nesse ano, nascera de uma negra mina e desse fidalgo, como de resto acontecia por esses brasis afora, o menino Luís Gonzaga, o santo do dia das folhinhas. Atestava-se a catolicidade dominante à época, e se fizera  hábito por muitos anos, ainda, a escolha do santo do dia para nome dos recém-nascidos. Por extenso seu nome seria exatamente Luís Gonzaga Pinto da Gama. Mas a explicação da vinda daquele Espírito adrede preparado ao regaço maternal de uma escrava será dado pelo que se contém no capítulo de “O Livro dos Espíritos” referente à escolha do gênero de provas por parte do reencarnante. Especialmente a Questão 260, que ensina:

Forçoso é que seja posto num meio onde possa sofrer a prova que pediu. Pois bem! É necessário que haja analogia. Para lutar contra o instinto do roubo, preciso é que se ache em contato com gente dada à prática de roubar”.

Deve ser exatamente por isso que o nosso Luís Gama escolheu provas por demais ásperas, mergulhando na carne no seio da raça espezinhada para viver plenamente o potencial de sacrifícios, desenvolvendo a tenacidade como verdadeiro escudo. Vindo ao mundo numa fusão de raças, haveria de sentir todo o clamor da que era aviltada. Pois, tinha apenas 10 anos quando, a 10 de Novembro de 1840, o pai, jogador inveterado, premido por acordo com o dono de uma casa de tavolagem, resolveu fazer um negócio. Levou o garoto pela mão para visitar um navio que partiria para o Rio de Janeiro, o “Saraiva”. Propositadamente deixou-o com estranhos, prometendo voltar. Para logo o garoto, muito atilado, exclamou com segurança:

- Meu pai, o senhor me vendeu!”

Fora esse o negócio. Como os irmãos a José, o pai o vendera por alguns mil-réis. Iniciara-se lhe o pesadelo. Coloque-se qualquer de nós por um instante fugidio na posição do pequeno Luís, vendo desmoronarem-se diante dele, aos 10 anos, todas as ilusões, todas as esperanças... De Salvador veio ao Rio e depois para São Paulo. Em breve o negrinho estava exposto à venda no mercado escravagista de Campinas.
Há, desse tempo, uma versão anedótica, a de que o Conde de Três-Rios esteve prestes a compra-lo. Pensando um pouco, ter-lhe-ia dito:

“- Já não foi por boa coisa que te venderam tão pequeno.”

A curiosidade do episódio está em que, muitos anos depois, o Conde o teria como um de seus melhores amigos.
Irrequieto, Luís desde cedo mostrava traços de sua superioridade e a ânsia de instruir-se. Tanto que teria aprendido as primeiras letras às ocultas com um filho de seu proprietário. Com essa chave preciosa se abriria caminhos para o futuro.
Certo é que vamos vê-lo mais tarde em busca de emprego. Foi tipógrafo. Daí para o jornalismo foi um pulo. Ora, ninguém, porque saiba ler e escrever, porque aprenda a manejar uma caixa de tipos gráficos, revela por isso dotes de inteligência e de cultura invulgares.  Aquela cultura e aquela inclinação lhe vieram por força de outras vidas. Passou a escrever no jornal “Ipiranga”, depois no “Radical Paulistano”. Instalou banca de advocacia e se fez ao mesmo tempo jornalista veemente. Descobriu-se orador de grandes platéias emocionadas. Escreveu poesias. Inúmeras vezes apresentava defesas extraordinárias no Tribunal. Vítimas de críticas mordazes e insultuosas, que lhe tentavam macular a origem, respondia-as com sagazes ironias, deixando o opositor arrependido da provocação.
Como José do Egito, vendido, não se curvou ao que seria para ele o destino traçado, implacável. Não nascemos para curvar-nos ás dificuldades, mas para superá-las, ou para tenta-lo com dignidade e valor. E ele venceu. Sua pena e sua voz se ergueriam, varonis, contra o desamor e a opressão, que experimentara ele próprio.
Conta-se que, certa feita, entrou em seu escritório um escravo, a pedir por sua causa. Logo a seguir, o senhor, exclamando:

“- Que te falta? Queres deixar o cativeiro de um homem bom para seres infeliz em outra parte?
Ao que, por ele, respondeu Luís Gama:

“ - Falta-lhe a liberdade de ser infeliz onde e como queira.”

Luís Gama não viu, como encarnado, a epopéia do 13 de Maio. Desencarnara 6 anos antes, a 24 de agosto de 1882. Já trouxemos a estas páginas a sua bela mensagem mediúnica sobre o velho ideal, que não morre, mas que se transmuda em gloriosa ascensão.[1]

Encerra-se o ano dedicado às comemorações do Centenário da Abolição. Encerra-se aqui esta série.
Pretendemos admitir que estejamos, de certa forma, nos desobrigando gratamente de algum compromisso consciencial. Quem o saberá? Certo, sempre nos tocou profundamente a sensibilidade a situação desses nossos irmãos agrilhoados de corpo e, tantas vezes, de alma. Se é notório que existem resíduos sociais de difícil absorção ainda hoje, não é menos verdade que a Abolição, por medida legal, representou uma conquista não apenas da raça mas do País, uma etapa decisiva pela dignificação da pessoa humana. Comovente, pelo que se processou na Terra como nos Céus.


[1]

11 Escravidão e Espiritismo


-XI-
 ‘O Tigre da Abolição’

por Alberto de Souza Rocha
Reformador (FEB)   Novembro 1988

           
José Carlos do Patrocínio nasceu em 9-10-1853 na Cidade de Campos-RJ, sendo filho do vigário João Carlos, que o reconheceu e mandou educar. Sua mãe chamava-se Justina, a quem ele amou e protegeu. Nunca escondeu ele sua origem, gabando-se de mencionar que sua mãe era uma preta que vendia guloseimas no adro da Igreja-Matriz. Iniciou o estudo de Medicina mas se formou em Farmácia. Sua verdadeira vocação, porém, eram as letras. Tornou-se jornalista, publicista, orador e escritor de raro talento, dominando as massas com a sua pena e o seu verbo eloquente. Deixou três romances: “Mota Coqueiro”, “Os Retirantes” e “Pedro Espanhol”. Fundou vários órgãos de imprensa, como ‘A Cidade do Rio”; dirigiu vários jornais; foi redator de muitos deles e em quase todos colaborou. Desencarnou em 30-1-1905, no Rio de Janeiro, portanto já na República. E em 1902, acusado de envolvimento em sedições contra o Governo Floriano, foi preso e deportado para longínqua região do Norte do País, com outras figuras ilustres. Conta-se que teve premonição da medida que revogava aquele ato de força, reanimando os companheiros em pânico que, para logo, foram devolvidos ao centro cultural e administrativo do País.
  Patrocínio, cognominado, pela energia de seu trabalho e pelo vigor de sua palavra, “O Tigre da Abolição”, conta-se que, no auge do contentamento, rojou-se aos pés da sereníssima princesa, no instante em que a Magnânima Senhora assinava a Abolição da escravatura. Teria exclamado, em arrebatamento:

            “- Meu Deus! Não há mais escravos em minha terra.”

O belo soneto alexandrino de José do Patrocínio em “Parnaso de Além-Túmulo”, já o transcrevemos na íntegra. [1]Pois bem, foi em 1971 que ouvimos sua palavra através do médium Olympio da Silva Campos e tivemos oportunidades de gravar e copiar importantes dizeres desse antigo líder da liberdade e sua exposição, em linhas gerais, coincide com o sentido da poesia aludida. Não deixaremos alguns trechos;

Liberdade! A liberdade de pensar, de realizar, a flâmula da liberdade que todos nós desejamos esteja erguida bem alto a conclamar os homens na defesa de seus princípios! Liberdade! Partidário da Justiça, não admitimos que essa liberdade de que Deus, na sua infinita misericórdia, dotou as suas criaturas, possa ser cerceada pela prepotência, pelo domínio, pela maldade, pela ira, pelos golpes de impiedade, com o sangrar constante das vítimas indefesas, por questões de nascimento, de raça ou de cor, para o luxo excessivo, no entusiasmo prepotente dos senhores do mundo e das cousas, do poder da autoridade. Hasteamos a bandeira da liberdade contra a escravatura. Não era mais possível ver um ser humano a gemer no tronco, separados os seus membros pela impiedade de um senhor que após exigir-lhe o trabalho ainda estimulava a revolta nascida da desigualdade de condições humanas e da diferenciação de princípios que regia esse descalabro da prepotência e da escravidão. Depois de todas essas campanhas, de todas essas falações, de todo esse trabalho, tivemos um dia de abandonar nosso corpo e volver às paragens da eterna liberdade... Mas não nos sentimos libertados, pois ainda estávamos preso aos ímpetos da alma. Nossa consciência tece cordões de acordo com as atitudes tomadas na escola do mundo e o Espírito, embora liberto da carne, prende-se à cadeia dos princípios que defendeu, de tudo aquilo que fervilhava dentro de sua alma. É então preciso que os grilhões das paixões sejam eliminados pela luz do conhecimento e da razão. É preciso que ele enxergue e sinta que acima de sua vontade há uma outra maior; que nós mesmos tecemos os grilhões da própria escravidão impulsionados pelas paixões através de várias existências, quando também subjugamos o nosso semelhante. Mas a peneira divina vai, através das oportunidades, eliminando os seixos do nosso Espírito para que ele ganhe mais luz, mais brilho e mais potencialidade.  Potencialidade capaz de refletir a sapiência divina; capaz de emitir as energias que reúne em amor ao próximo; de ajudar a rasgar a camisa de força ajustada ao Espírito, produzida pela paixões descabidas das vidas que se foram. Diante desses conhecimentos o homem vai-se libertando. Mas as consequências das iniquidades continuam a existir em outros, sendo necessário que, à proporção que os Espíritos se libertem, voltem à retaguarda para ajudar os outros, atados ainda à ignorância.”

E prossegue:

Todos os emissários que vieram à Terra com o propósito de libertar o homem da cegueira e da escravidão sofreram, foram condenados (...), massacrados, injuriados... O amor universal é uma essência muito pura, mas muito tenra, que medra, mas muitas vezes é sufocada pela imperfeição e pela negligência da maioria dos habitantes da Terra, ainda em preparo, incapaz de sentir a grandeza de Deus”.

Com as ressalvas de uma transcrição de mensagem psicofônica, ou, como se diz no Parlamento, “não foi revista pelo orador”, aí está o pensamento de alguém que sente na ignorância dos povos uma forma de servidão difícil de abolir por medidas governamentais.




[1] “Nova Abolição”, em “Reformador” de fevereiro/1988, pág 52.

sábado, 30 de abril de 2011

10 Escravidão e Espiritismo


Slave trader's business in Atlanta, Georgia, USA     1864


-X-
 ‘O Profeta da Abolição’

por Alberto de Souza Rocha
Reformador (FEB)   Outubro  1988

           
As grandes causas tem seus mártires e os mártires tem seus métodos ou sua maneira própria de agir na luta pelo ideal. Podem uns ser mais felizes que outros. John Brown, nos EUA, abandonou os meios pacíficos de luta e apelou para a violência, terminando seus dias na forca. A Guerra de Secessão ensanguentou o solo norte-americano e esse fato refletiu-se na demora com que no Brasil se implantou gradualmente, por leis sucessivas, a libertação dos escravos.
Entre os brasileiros, muitos Espíritos vieram encarnar para o fim especial de preparar o clima necessário a esse evento.
Assim foi que nasceu, na Fazenda Cabaceiras, a sete léguas de Curralinho (hoje Castro Alves), então Freguesia de Muritiba, Bahia, Antônio Frederico de Castro Alves, filho do médico Antônio José Alves e de D. Clélia Brasília da Silva Castro. Isso se deu a 14 de março de 1847. Iria desencarnar aos 24 anos de idade (1871), 17 anos antes da Lei Áurea.
Sua infância foi assistida pela dedicação da escrava Leopoldina.
Começou a poetar em plena adolescência como quem tivesse muita pressa de iniciar a tarefa por uma velada intuição de sua rápida estada conosco. E nessa curta passagem deixaria monumentos literários como ‘Vozes d’África’, ‘Navio Negreiro’, ‘Espumas Flutuantes’, ‘A Cachoeira de Paulo Afonso’ e, em prosa, ‘Gonzaga ou a Revolução de Minas’. Houve quem reconhecesse que, se Castro Alves houvesse escrito os seus magistrais poemas em língua de maior penetração, estaria colocado pela crítica mundial ao lado de Homero e de Virgílio, tais a pujança de sua palavra, a comoção despertada e a a harmonia do estro. Não se discuta nisso a excelência do idioma pátrio, mas o aspecto de sua popularização.  
Em ‘Grandes Vultos da Humanidade e o Espiritismo’, nosso saudoso Sylvio Brito Soares dedica-lhe precioso capítulo e traz a conhecer várias opiniões a seu respeito, como a do Professor Pedro Calmon, notável historiador patrício, que nele reconhece o gênio e o dom profético. “Reformador” (Nov. 55) publicou um trabalho de Ismael Gomes Braga intitulado ‘A profecia de Castro Alves’ Brito Soares acrescenta:

Sim, foi também o profeta da Abolição, porque ele via melhor que seus contemporâneos que a libertação dos escravos se daria, mais hoje mais amanhã, mas que o essencial consistia em não se esmorecer na luta, nessa luta a que ele deu o melhor de sua inteligência, de seu esforço, dedicação e coragem.’

Ainda com referência aos dons proféticos, deixou Castro Alves poesias que previam claramente vinte anos antes a deposição de D. Pedro II (‘Nas cãs deste velho/ verás fanados lauréis/...’)  e até mesmo a entrada das Américas, o Brasil inclusive, no conflito mundial de 14/18. Continuemos com Brito Soares:

Castro Alves tinha sua alma embalada pelo cântico harmonioso das verdades espíritas; em alguns de seus versos, aprecia-se perfeitamente essa influência, como, por exemplo, em ‘Pelas Sombras’ (segue-se no texto, o poema). Tanto assim que nosso confrade cita o biógrafo Eugênio Gomes, reconhecendo que ‘por entre estrepitosos clamores de profunda indignação predomina a idéia de que, em paga de todas as humilhações e sofrimentos terrenos, o escravo teria a cobiçada liberdade após a morte.’

E prosseguem na obra as citações textuais desse último autor, encontrando conexões entre a mensagem do gênio – o poeta da raça – e a teoria do Espiritismo, como aqui:

Eu não olho jamais para o mundo deste mundo / mas para o mundo invisível.”

Procurava o poeta, comenta aquele biógrafo, uma obra espírita que falasse de Poética do Espiritismo. Perdoe-nos aqui uma idéia muito pessoal. Acreditamos que houvessem chegado ao seu conhecimento as referências que se encontram em ‘Obras Póstumas’, da Allan Kardec, a respeito de Arte Espírita, as palavras de Rossini sobre música, de que alguém lhe houvesse falado sobre isso, pois é o que mais se aproxima do que fosse poética dentro das obras kardequianas. Todavia, de alguma forma, pensamos que a maior antologia poética relacionada com o Espiritismo sairia bem mais tarde e dela, por força, ele próprio, como Espírito, participaria. Referimo-nos com toda a tranquilidade, é lógico, ao ‘Parnaso de Além Túmulo’. Pois, olhando ele agora e não mais para o ‘mundo invisível’ (invisível para nós outros...), no velho estilo de ‘O Livro e a América’, exclama:

MARCHEMOS!

“Há mistérios peregrinos
No mistério dos destinos
Que nos mandam renascer:
..............................
É a dor que através dos anos,
Dos algozes, dos tiranos,
Anjos puríssimos faz,
Transmutando os Neros rudes
Em arautos de virtudes,
Em mensageiros de paz.”

Em outros momento,
o bardo desencarnado dá a palavra à deusa Morte,
 em longo poema em que, a certa altura, expõe:

.....................................
“Sou prisão ou liberdade,
Nova aurora ou nova cruz
.....................................
Conduzo seres aos Céus,
À luz da realidade;
Sou ave da Liberdade
Que ao lodo da escravidão
Venho arrancar os Espíritos,
Elevando-os às alturas:
Dou corpos às sepulturas,
Dou almas para a amplidão.”

Clóvis Ramos, estudando ‘Temas espíritas na poesia brasileira’, 
notável trabalho de pesquisa literária de valor, também, 
doutrinariamente falando, recorda vários poemas
 onde transparece a vivência espírita mais ou menos 
velada do vate condoreiro; 
recordemos ‘O Último Fantasma’ e, 
dele, estes fragmentos:

Quem és tu, quem és tu, vulto gracioso
.....................................................
Baixas do céu num voo harmonioso
....................................................
Onde nos vimos nós? És de outra esfera?

Hoje é ele, Castro Alves, dotado do mesmo estro, 
que nos fala de outra esfera e que, 
ainda ligado à pátria que o serviu, apela:

-“Brasil de perenes brilhos,
Pela união de teus filhos
Deus te conserve em Jesus”.

(Encontro em Brasília, 1976)




09 Escravidão e Espiritismo






Slave market, Georgia, USA


-IX-
 ‘Escravidão na Literatura Espírita’

por Alberto de Souza Rocha
Reformador (FEB)   Setembro  1988

            Não seria fácil afirmar, a rigor, quantas obras espíritas, especialmente aquelas romanceadas, históricas ou de ficção. – romances de época – registram passagens relacionadas com vidas terrenas de personagens na condição de escravos ou de senhores. Quantos, na realidade, teriam sido escritas por inspiração mediúnica!... É por isso difícil fazer-se de pronto uma visão geral. Poderemos, todavia, em simples amostragem, focalizar algumas. Vejamo-lo.
            “Há 2000 anos”, autobiográfica, de Emmanuel, por F. C. Xavier, recorda o senador romano Publio Lentulos destacado para servir ao Império em Jerusalém.  Mais que indiferente, é hostil, de início, aos rogos de André Gioras em benefício do filho Saul, preso e condenado ao cativeiro. Quando, sensibilizado, se dispunha a interceder por ele, foi informado que fugira. Na verdade, o jovem fora vendido clandestinamente em Roma. Em “50 anos depois”, ressurge o autor espiritual na personalidade de Nestório, escravo de origem judia, já aí o contraste, como acerto de contas. Em virtude de guerras cicis, seus antepassados tinham-se mudado para Jônia havia alguns decênios. Em Terebinto fora feito escravo. Mas  a senhora recomendara às filhas a seu respeito.

            “Nunca humilheis a liberdade deste homem, que terá toda a independência para cumprir os seus deveres!...”

            Filho de Nestório, Ciro se fez também escravo e é libertado. Os dois irão encontrar-se em momentos supremos de doloroso testemunho, já agora cristãos.

            Paulo de Tarso, na biografia de Emmanuel (F. C. Xavier), é uma das joias de fino lavor de nossa literatura. A obra, como se sabe, é “Paulo e Estevão”. Nela aparece logo de início a figura de Jesiel, judeu nascido livre e escravizado pelos conquistadores romanos. Outro não é que o grande mártir Estevão. Após a visão surpreendente de Saulo na estrada de Damasco, vê-lo-emos como guia espiritual do próprio verdugo do passado, transformado em Apóstolo dos Gentios, com o nome cristão de Paulo.

            O Espírito escritor Conde de Rochester, por intermédio da Senhora Krijanowsky, é o romancista dos velhos tempos de Roma e do Egito e onde, por força disso, a presença de escravos em suas narrativas é uma constante, como a história de José do Egito em “O Chanceler de Ferro”, por exemplo. E não fica aí. Em “Herculanum”, Metela compra um menino de 12 anos, e Sempronius, muitos escravos para servi-lo em Roma. Mas o Egito dos faraós vai reviver em “O amor venceu”, de Lucius por Zilda Gaspareto (Edicel) quando Solimar, uma escrava, anjo bom de toda a narrativa, reconhecia:

            “- Podemos escravizar o corpo pela força bruta, mas nunca pelo Espírito. Existem escravos que são mais livres que os seus senhores. Muitos são os escravos dedicados e resignados que podem estar em paz com sua consciência, poucos os senhores que possam fazê-lo.”

             Passemos sem delongas a alguns casos pinçados ao momento brasileiro. Em “Nosso Lar”, de André Luiz, médium F. C. Xavier, Capítulo 34, encontramos um diálogo em que uma antiga escravagista desencarnada em grande sofrimento ainda exclama:

            “(...) Escravo é escravo. Se assim não fora, a religião nos ensinaria o contrário. Pois se havia cativos em casa de bispos, quanto mais em nossas fazendas? Quem haveria de plantar a terra, senão eles? (...) os escravos são seres perversos, filhos de Satã!”

Em “Instruções Psicofônicas”, através de F.C. Xavier, há um “Depoimento” dos mais dramáticos, de um senhor de escravos da cidade de Vassouras. Descobrira ideias preparatórias de próxima emancipação da parte de um servo culto e inteligente a quem se afeiçoara. Tomado de rancor, impôs-lhe castigos mortais. Este, porém, em plena agonia, beijou-lhe os pés; daí o remorso que o acompanhou pelo restante de seus dias terrenos. Desencarnado, reconheceu no ex escravo seu próprio pai de outra encarnação. A Providência Divina permitiu-lhe o reconforto de palavras dulcificadas no Evangelho. Quer então o reencontro com a sua vítima e para isso se prepara com vistas a nova encarnação. E exclama:

Louvo a liberdade que me permite agora pensar em receber o bem-aventurado cativeiro da prova, favorecendo-me por fim o galardão da cura!...”

Eis a Justiça Divina na sublimação do resgate.

Já a obra “Contos e Apólogos”, e com eles voltamos a Irmão X, no lápis de F. C. Xavier, no capítulo “Dívida e Resgate”, conta-nos a história de rica senhora de escravos do Vale do Paraíba, irritada com a mestiça que lhe dera netos com o Senhorzinho. Expulsa-a, mas de molde a que viesse a morrer tragada pelas águas. Cem anos depois está reencarnada e é esposa de um pobre operário. O casebre onde mora é violentamente tomado pela enxurrada que, finalmente, leva-lhe o corpo na caudal que se forma. É o resgate. Em “Ação e Reação” – André Luiz (F.C. Xavier) -, a trama insondável dos destinos faz de orgulhoso senhor de escravos a vítima de um crime passional. Os cúmplices tornam à escola do sofrimento e o pai, que fora assassinado, renasce filho adotivo que recebe a ternura e a proteção do próprio parricida do passado.
Curioso  o que narra Hilário Silva em “Almas em Desfile”. Certo comendador, fazendeiro da região havia 80 anos, fora um homem terrível. Possuía legiões de escravos e, entre eles, era conhecido por flagelo de todos. Valia-se de capatazes cruéis e às vezes chicoteava ele próprio os escravos até a morte. Sabendo disso, nossos confrade Jorge Sales, dirigente da Casa Espírita nos arredores da antiga fazenda, tinha imensa tarefa à sua frente: doutrinar inúmeros Espíritos ainda presas da revolta. E reconhecia:

Eu também pareço sofrer a influência dessa perigosa entidade (o antigo senhor)... As referências ao comendador desabam sobre mim como choques elétricos. Só em ouvir-lhe o nome, sinto-me mal.”

Indaga, um belo dia,  ao orientador dos trabalhos, se não seria mais justo evocar esse Espírito. O orientador informava-lhe que não, pois que o comendador encontrava-se em provas. Com a insistência de Jorge, inconformado, o orientador teve de revelar-lhe:

A evocação não deve ser feita, porque o ex comendador  (...) é você mesmo... reencarnado.”

Para quem quer que tenha dirigido reuniões mediúnicas, o fato não é de estranhar, mas citemos o que se encontra em “Missionários da Luz”, médium F. C. Xavier, autor espiritual ainda uma vez André Luiz, Capítulo 18, quando se descreve um caso de subjugação por terrível vingador. Dizia ele:

“- Por simples capricho, ela (a obsidiada, atualmente) vendeu minha esposa e meus filhos! (...) Será crível que Jesus, o Salvador por excelência, aplaudisse o cativeiro?”

Coube ao doutrinador explicar que o Mestre Sublime não aprovaria a escravidão, ao tempo que convidava o interlocutor a considerar, de sua parte, os próprios erros: o “credor exigente, em geral, é cego para com os próprios compromissos”. E afinal de contas, um erro jamais justifica outros tantos.

“Libertação”, também de André Luiz e ainda através de Chico, Capítulo 7, conta a história de uma pobre mulher em drama dos mais pungentes. Fora tirânica senhora de escravos e perseguira desditosa jovem e os filhos desta com o seu marido, em uma união anterior ao próprio casamento. Separada e vendida a jovem cativa, acusados e flagelados os dois filhos, tornaram-se os três terríveis vingadores. Voltaria ela à vida física e os verdugos de agora seriam reencarnados como filhos. É o acerto de contas a desdobrar-se sob as bênçãos do tempo.




08 Escravidão e Espiritimo


Bill of sale for the auction of the "Negro Boy Jacob" for "Eighty Dollars and a half" to satisfy a money judgment against the "property" of his owner, Prettyman Boyce. October 10, 1807. Fonte: Wikipedia.us


-VIII-
 ‘Somos todos Irmãos’

por Alberto de Souza Rocha
Reformador (FEB)   Julho  1988

            Como não poderia deixar de acontecer, a presença decisiva do negro na vida brasileira estabeleceu laços de profunda consanguinidade com a miscigenação racial, a fraternidade e a assimilação da cultura em nossa sociedade. Nas artes plásticas, na literatura, na linguagem coloquial, na toponímia, na culinária, em todos os domínios. No samba, no Carnaval, nos hábitos de vida diária da população. No folclore, enfim. Adaptados ritos fetichistas às práticas religiosas que lhes foram impostas pelos seus senhores e pelos sacerdotes, no esforço de cristianização, com a adaptação de dogmas e de rituais, realçando-se, espontânea, a presença de fenômenos anímico-mediúnicos, formou-se o conhecido sincretismo como uma força de religião nacional. Explica-nos muito bem esse processo o Prof. Deolindo Amorim em ‘Africanismo e Espiritismo’ e em ‘O Espiritismo e as Doutrinas Espiritualistas’. Devemos respeitar o fato histórico, a cultura própria e a liberdade de crença e de manifestação desses nossos irmãos. Desconhecimento de causa tem feito muita gente englobar todas as práticas, porque mediúnicas, esquecendo-se de refletir nas bases filosóficas e na universalidade da fenomenologia. E não só isso acontece, como certas práticas até mesmo desavisadamente se confundem. Pois, nossos irmãos desencarnados que foram escravos no passado mais ou menos próximo não são proibidos de se manifestar em ambientes religiosos espíritas propriamente ditos. E é exatamente aqui que se estabelece a confusão. Quem foi índio ou negro em dada existência pode trazer-nos a sua experiência. Devemos mesmo aproveitar-lhes a humildade, não a nosso interesse pessoal ou egoístico, mas para que nos elevamos espiritualmente um e outro. É esse o pensamento que vimos em ‘Lázaro Redivivo’. Mas também em ‘Vozes do Grande Além’, sob o título ‘Eles, nossos irmãos’. Falamos o Espírito José Inácio Silveira da Mota, que foi Senador do Segundo Império. Recordando que os escravos tinham por salário o pelourinho, o flagelo e o chicote, esse pensador observa:

            “Entretanto, a redentora Lei de 13 de Maio de 1888, que lhes devolveu a liberdade, não lhes atingiu de todo a vida espiritual, porque, ainda hoje, abertas as portas do intercâmbio entre os dois mundos, ei-los, de novo, atraídos e engodados nas múltiplas linhas do fenômeno psíquico, para continuarem na posição de elemento servil.”

E então o Estadista do passado formula indeclinável apelo:

Espíritas do Brasil, pregoeiros da fé renovadora, quando em contato com os desencarnados, que ainda se ligam ao mundo africano, por força de estágio evolutivo, olvidai a paixão escravagista, deles aprendendo a abnegação e a humildade e ajudando-os, em troca, a subir para mais altas formas de educação.
Manter o cativeiro do corpo ou da alma é falta grave, pela qual responderemos, um dia, nos tribunais celestes.”

Em ‘Falando à Terra’ – este e os dois livros anteriormente citados recebidos pelo médium F.C. Xavier – é a vez de ouvirmos ‘Do Além’, na fala de Luís Gama (Espírito):

Antigamente, combatíamos o cativeiro e brandíamos o tacape da nossa indignação contra a megalomania escravagista. Usávamos a lâmina da palavra e fomentávamos o espírito revolucionário contra a displicência dos senhores rurais que mantenham na América o feudalismo da crueldade, pretendendo encontrar neles, com o nosso requinte de sarcasmo, os monstros infernais do chicote e da senzala, que a aristocracia do dinheiro e do poder metamofoseava em sorridentes barões.
(,,,) entretanto, se o nosso concurso valeu, indiscutivelmente, para libertar milhares de companheiros asfixiados no tronco da humilhação ou enclausurados no quilombo da angústia, livrando-os da perseguição sistemática de capatazes impiedosos, em despertamento além da morte reconhecendo-os na situação de misérrimos escravos de nossas próprias paixões.”

Mais adiante, não é possível deixar de transcrever um raciocínio do grande lidador:

Jesus, naturalmente, não encabeçou qualquer  movimento de extinção da escravocracia de seu tempo, não porque abonasse a indébita apropriação do trabalho de muitos por alguns, mas pela extrema compaixão, que muito mais a merecem dominadores do que servos.
(...) Os mais infelizes não se encontravam nos serviços pesados (...) mas na glória vazia dos titulares e dos libertos, impando de autoridade e de ouro, sem recursos, no entanto, para o desenvolvimento espiritual, encastelados na fortaleza da ilusão e da ignorância que a situação lhes impunha ou que os privilégios lhes outorgavam,”

Sim, diremos, mas a escola terrena inclui também a disciplina das experiências múltiplas e o soberbo passará por aquela da servidão... Afinal, somos todos irmãos. E, exatamente por isso, a seu tempo e ainda hoje, para muitos, a Doutrina do Cristo – falamos da sua verdadeira doutrina – seria considerada subversiva, como observa Emmanuel, por igualar os servos e os seus senhores.


07 Escravidão e Espiritismo



Ledger of sale of 118 slaves       Charleston, South Carolina, c. 1754


-VII-
 ‘O Grande Débito’

por Alberto de Souza Rocha
Reformador (FEB)   Junho  1988


            Em “Lázaro Redivivo”, o autor espiritual, através de F. C. Xavier, assina-se “Irmão X”, mas todos sabemos tratar-se de Humberto de Campo. A páginas 154 e seguintes o repórter do Além data de 1583, segundo Rio Branco, o primeiro contrato de introdução de escravos negros no Brasil. E escreve:

A contar de 1758, quando o corajoso sacerdote Manuel Ribeiro da Rocha ousou escrever contra a vergonha da escravidão, autorizadas vozes se levantaram, sob a Luz do Cruzeiro, contra o doloroso comércio de homens livres. Em 1789, a abolição já constituía um dos itens do programa político da Conjuração Mineira. Em 1810, o Príncipe D. João fez o possível por golpear o ignóbil movimento, sensibilizado com as injustiças que presenciava diariamente no Rio, efetivando providências para a extinção gradual do cativeiro, que culminaram com a ratificação do tratado comcluído em Viena, entre Portugal e Inglaterra, pelo qual a Nação Portuguesa se propunha a cessar todo o tráfico na costa africana. Mais tarde, D.Pedro I, na Convenção de Novembro de 1826, assinava novo acordo com a Grã-Bretanha, pelo qual se comprometia a proibir toda a espécie de comércio de escravos na Costa da África.”

Recordemos a força de expressão daquele hino que cantávamos nas escolas de antigamente e hoje meio esquecido:

É necessário libertar-nos, para que compreendamos a liberdade.”

Teremos, com todo o esforço bravamente realizado, considerado também a enormidade do débito que assumimos para com aquele povo e para com aqueles Espíritos?        Voltemos ao livro supracitado e anotemos o pensamento inserto na página 39:

Nós nem cremos que escravos outrora
Tenha havido em tão nobre país...”

Terá isso acontecido? Pois, mais adiante está escrito:

A ignorância estabelece o cativeiro (destaque do autor), mas a sabedoria oferece a liberdade.”

Tais reflexões fazem sentido com outras afirmações na mesma obra, páginas adiante, Capítulos XXXIII e XXXIV. No primeiro, o autor refere-se aos ‘indianismos’ e ‘africanismos’ de inúmeras manifestações da fenomenologia, e indaga se já pensamos maduramente na expressão moral desses acontecimentos. É claro, reporta-se ele à situação de subalternidade a que ficam relegados muitos Espíritos desejosos de trabalhar para progredir, mas que na realidade atendem ao chamado mediúnico – distante da orientação doutrinária espírita -, induzidos, de hábito, a manter o atraso espiritual em que se encontram, para, de melhor forma corresponderem a ridículos caprichos dos encarnados. Um círculo vicioso de ignorâncias... E o autor é bem claro aqui:

Supõe você que a Abolição terminou em 13 de Maio de 1888? A grande revolução  da princesa Admirável atingiu os ‘escravos físicos’, continuando-se aqui o serviço de libertação dos ‘cativos espirituais’. José do Patrocínio e Luís Gama, Antônio Bento e Castro Alves, André Rebouças e Joaquim Nabuco prosseguem na jornada redentora. A Princesa Isabel não considera o movimento terminado e continua, também, servindo à grande causa, desatando os grilhões da ignorância e acendendo novas luzes na esfera a que você chegará em futuro próximo.”

É na página 151 que Irmão X verbera:

Quem recebeu na terra farta de Santa Cruz, os europeus esgotados por lutas sangrentas, abrindo-lhes caminho novos à realização espiritual, transformando-se em escravo sofredor dos conquistadores inteligentes? Não foi, por acaso, o índio? (...) Desconhece o que fez Pizarro, o tirano espanhol, diante dos americanos ingênuos que mais confiaram? E os africanos? Quem os arrebatou da terra natal, arrebanhando-os como animais, a fim de aproveitar-lhes o braço forte nas construções do Mundo Novo? Quem os assassinou, devagarinho, em navios infectos, e vendeu os que resistiram à morte aos cruéis senhores do feudalismo rural? E é justamente você, meu amigo, leitor assíduo da História, quem admira, com falsa ingenuidade, as manifestações dos  nossos irmãos, ainda encarnados no rudimentalismo da forma? Entretanto, Pai Mateus e Mãe Ambrósia, a quem se refere com tanto sarcasmo, foram pajens carinhosos de seus bisavós, furtaram o leite dos próprios filhinhos para que os seus antepassados vivessem, e choraram, na senzala, em segredo, quando os seus recuados parentes  lhes prostituíram as filhas, vendendo-as, logo após, com frieza e ferocidade, aos tiranos do cativeiro.”

E, conclusivo:

Não considera, você, que todos nós, Espíritos de Inteligência requintada, mas de sentimento galvanizado no mal, somos devedores antigos dessas almas virtuosas e nobres, embora, muitas vezes, cristalizadas em velhos hábitos que lhes retardam o progresso intelectual? (...) Se encontramos numerosas Entidades de africanos e indígenas, em nossos ministério espiritual, é que nos serviram a todos, nestes últimos quatro séculos, na terra abençoada e farta do Brasil.”

E ainda um recado muito expressivo (Capítulo XXXIV):

Diga aos nossos companheiros do Espiritismo cristão no Brasil que eles receberam de Jesus um sagrado depósito, qual o de associar o Evangelho de Redenção às conquistas científicas, filosóficas e religiosas da Humanidade.”

Finalmente, a Espiritualidade pede-nos o concurso:

“- Que eles nos ajudem no benemérito serviço de educação e libertação daqueles a quem tanto devemos.”



06 Escravidão e Espiritismo




-VI-
 ‘Movimentos Libertários’

por Alberto de Souza Rocha
Reformador (FEB)   Maio  1988

            Estávamos no século XVIII quando a Inglaterra, por motivos de ordem econômica, se insurgiu contra a escravidão nas colônias da América. E viria a exercer pressões, segundo se sabe, nas demais colônias, de modo a que se ampliasse o seu comércio. Decisões de um congresso contra o tráfico escravagista, ocorrido em Viena, repercutiam a essa altura em todo o mundo. No Brasil-Colônia  os movimentos nativistas traziam no bojo a idéia de um povo realmente livre, de livres irmãos. Assim foi o movimento inconfidente de Minas Gerais, que culminou com a morte do herói da Nacionalidade, o Alferes Tiradentes. Fora de nossas fronteiras, com a revolta de 1848, a França delibera a extinção do cativeiro em seus territórios. Em 1861 foi a vez da Rússia czarista, com Alexandre II. De 1861 a 1865 o solo norte-americano foi sacudido coma Guerra de Secessão, que terminou pela vitória da liberdade. De nossa parte, liberto o nosso País do jugo português em 1822, o patriarca José Bonifácio de Andrade e Silva, que voltaria ao corpo físico com a personalidade de Rui Barbosa, foi então dos primeiros a tratar da escravatura com vistas a uma abolição gradual.  Considerava o Ministro que o trabalho escravo era essencialmente antieconômico. Esses mesmos argumentos inspiraram a Regência, durante a Minoridade do Augusto Imperador. Dessa forma, em 7-11-1831, a Lei determinava que todos os negros que a partir de então viessem ao império eram declarados livres no País. Mesmo assim, o tráfico, já agora ilegal, prosseguiria. D. Pedro II bem desejaria antecipar-se ao movimento abolicionista.
            Mas considerava, por outro lado, a fragilidade das instituições.  Guerra civil americana levava-nos ao temor de consequências desastrosas, sobretudo por havermos passado pelas lutas da Cisplatina e do Paraguai, enfraquecendo a economia da Nação. Veio então a Lei Eusébio de Queirós, de 4-9-1850, proibindo energicamente o tráfico negreiro. Embora, com isso, começasse o Sul a comprar escravos no Norte/Nordeste para as lavouras de café.
            Em 1866, os escravos que lutaram na Guerra do Paraguai foram declarados livres.
            Intensificava-se a campanha por volta de 1869 e nesse ano uma nova lei, muito pouco citada mas profundamente humana, proibia a venda de escravos em leilões públicos e a separação da família.  Não entendemos por que esse registro é tão pálido. É ainda por essa época que Adolfo Bezerra de Menezes publica um estudo intitulado “A Escravidão no Brasil e as medidas que convém tomar para extingui-la sem dano para a nação” (ver Zeus Wantuil, “Grandes Espíritas do Brasil”, ed. FEB). Preocupava-se  o grande homem público com os acontecimentos ocorridos nos Estados Unidos da América. Em 1870, Pimenta Bueno, Presidente do Conselho de Ministros, volta a falar da abolição. Mas só em 28-9-71 o Ministro José Maria da Silva Paranhos, Visconde do Rio Branco, consegue aprovar a chamada Lei do Ventre Livre. Estava sendo praticada um força gradual de libertação. Em 1879 volta o assunto à baila. Falam sobre ela Jerônimo Sodré e Joaquim Nabuco. Eis que então começa a surgir em todo o País o movimento popular que ganharia as ruas e os palácios. Fundam-se clube abolicionistas, com o apoio franco e decisivo da imprensa, clubes esses que viriam a ser, logo a seguir, também republicanos.
            Sim! O século XIX, século que viu Kardec, haveria de caracterizar-se por novas luzes em todo o mundo, nas áreas das Ciências, da Economia, da Indústria e da Filosofia, antecipando-se às conquistas do século atual. Assim, diz Emmanuel em “”A Caminho da Luz”, por intermédio de F. C. Xavier (página 203).

            “cumprindo as determinações do Divino Mestre, seus mensageiros do plano invisível laboram juntos aos gabinetes administrativos, de modo a facilitar a vitória da liberdade.”

São citadas no Rio, a antiga Capital Federal, André Rebouças, Gusmão Lobo, Joaquim Serra, João Clapp Ferreira de Menezes, Rui Barbosa e muitos outros, mas, destacando-se o Tigre da Abolição, José Carlos do Patrocínio.  Em São Paulo, o brilho do movimento ficou por conta de Luís Gama, de Antônio Bento, do poeta baiano Castro Alves, uma das mais altas expressões para poesia condoreira. Não só nas grandes cidades o movimento ganhou expressão. No Ceará, um humilde canoeiro negou-se a transportar escravos em sua embarcação. Esse gesto repercutiu como um grito e em breve a Província do Ceará, depois a do Amazonas extinguiam a escravidão em seus territórios. O mesmo ato glorificou alguns municípios gaúchos. Saía então a Lei dos sexagenários, em 28-9-85, projeto do Ministério Dantas, mas só efetivado na gestão do Conselheiro Sraiva. Apartir de 1887 o Exército imperial negava-se a capturar escravos fugidos. Chegaria ao auge o movimento quando, no Ministério João Alfredo, o Parlamento é, também ele, sacudido pelo movimento popular. Dessa forma, a 13 de maio de 1888 é promulgada a Lei Áurea. Estava em Portugal o Imperador D. Pedro II, em tratamento de saúde, e a Princesa Imperial Regente a sancionava com uma pena de ouro adquirida por subscrição popular. Sabe-se que Sua Alteza Imperial tinha plena consciência de seu ato. “- Vossa Alteza – ter-lhe-ia dito Cotegipe – ganhou a questão, mas perdeu a coroa.”  Referia-se à implantação da República, que se daria no ano seguinte. E essa sua plena consciência e, portanto, essa renúncia engrandecem extraordinariamente o gesto magnânimo que faz elevar o seu nome e a sua memória no reconhecimento do povo e não bênção de Deus.
            Nesse dia – descreve-nos o mesmo Espírito-repórter Humberto de Campos em “Brasil, Coração do Mundo, Pátria do Evangelho”-

            “ao Rio de Janeiro afluem multidões de seres invisíveis, que se associam às grandes solenidades da Abolição. Junto do espírito magnânimo da Princesa, permanece Ismael com a bênção da sua generosa e tocante alegria. Foi por isso que Patrocínio, intuitivamente, no arrebatamento do seu júbilo, se arrastou de joelhos até aos pés da princesa piedosa e cristã (...) O marco divino da liberdade dos cativos erguia-se na estrada da civilização brasileira, sem a maré incendiária da metralha e do sangue (...) Jesus, com a sua misericórdia infinita, lhes outorgava a carta de alforria, incorporando-se, para sempre, ao organismo social da pátria generosa dos seus sublimes ensinamentos”.

O Escravo
                      por  Ciro Costa

Do taquaral à sombra, em solitária furna,
(para onde, com tristeza, o olhar curioso alongo),
sonha o negro, talvez, na escuridão noturna,
com os límpidos areais das solidões do Congo.

Ouve-lhe a noite a voz tristíssima e soturna,
num profundo suspiro, entrecortado e longo.
é o rouco, surdo som, zumbindo na cafurna,
é o urucungo a gemer na cadência do jongo.

Bendito sejas tu, a quem, certo, devemos,
a grandeza real de tudo quanto temos!
sonha em paz Sê feliz! E que eu fique de joelhos.

Sob o fúlgio céu a relembrar magoado.
que os frutos do café são glóbulos vermelhos,
do sangue que escorreu do negro escravizado.

05 Escravidão e Espiritismo




-V-
 ‘Planejamento:
Expiação e Resgate’

por Alberto de Souza Rocha
Reformador (FEB) Abril  1988

            Comecemos por transcrever, de uma obra didática, o que se segue:

            “A pretexto de salvar as almas, a bula Dum Diversas, do Papa Nicolau V, de 1452, autorizava a escravidão. Permitia aos portugueses, nas suas viagens de descobertas, penetrar no reino dos sarracenos (destaque do autor), dos pagãos e de outros inimigos de Cristo e tomar como escravos seus prisioneiros. Estes deveriam ser batizados para terem as suas almas ‘salvas’.  O que viria depois, segundo a moral da época, isto é, escravidão ou a exploração do homem, era de importância secundária.” (Panorama Geográfico Brasileiro”, Melhen Adas, Editora Moderna, 2ª Edição.)

            Sigamos. Então, os fatos.
            Chegavam por mar às terras brasileiras para os grandes latifúndios os indefesos e pobres cativos. Em suas pátrias e dentro da respectiva cultura seriam muitos deles nobres e senhores, reis em suas tribos. Mas vinham eles a ferros, em infectos porões, para serem vendidos quando a peste não lhes dava por túmulo o oceano. Ouçamos o que deles nos diz Humberto de Campos (Espírito) no livro já citado (“Brasil, Coração do Mundo, Pátria do Evangelho”), na p. 51 da 16ª ed. FEB, pondo o autor espiritual a exposição nos lábios do próprio Governador do Planeta:

            “- Havia eu determinado que a Terra do Cruzeiro se povoasse de raças humildes do Planeta, buscando-se a colaboração dos povos sofredores das regiões africanas; todavia, para que essa cooperação fosse efetivada sem o atrito das armas, aproximei Portugal daquelas raças sofredoras, sem violência de qualquer natureza. A colaboração africana deveria, pois, verificar-se sem abalos perniciosos, no capítulo das minhas amorosas determinações. O homem branco da Europa, entretanto, está prejudicado por uma educação espiritual condenável e deficiente. Desejando entregar-se ao prazer fictício dos sentidos, procura eximir-se aos trabalhos pesados da agricultura, alegando o pretexto dos climas considerados impiedosos. Eles terão a liberdade de humilhar os seus irmãos (...) mas, os que praticarem o nefando comércio sofrerão, igualmente, o mesmo martírio, nos dias do futuro, quando forem também vendidos e flagelados em identidade de circunstâncias.”

            O referido autor espiritual, na mesma obra (págs 68 e 69 da 16ª ed. FEB), esclarece que formavam os escravos coletividades espirituais reencarnadas, já então sinceramente arrependidos de seu passado delituoso:

             “- Aí se encontravam antigos batalhadores das cruzadas, senhores feudais da Idade Média, padres e inquisidores, Espíritos rebeldes e revoltados, perdidos nos caminhos cheios da treva das suas consciências poluta

            Encontravam eles

” (...) nos carreiros aspérrimos da dor que depura e santifica, a porta estreita para o céu de que nos fala Jesus nas suas lições divinas”.

Façamos uma reflexão: O esquecimento das vidas passadas, dir-se-ia, poderia importar na inutilidade do sofrimento-reparação. Mas as vidas sucessivas são solidárias, é bom não esquecermos. E, como sabemos, esse esquecimento é relativo. Em alguns instantes de afastamento do Espírito, de emancipação da alma, recorda-se a criatura, de uma forma mesmo que nebulosa, mas suficientemente esclarecedora, de compromissos assumidos e, quando desperta, consoante o próprio esforço, momentos há em que se lhe fica, sob a condição de reminiscência, um certo resíduo, traduzido naquele desejo insistente de resistir às tendências que resultam na provação por que esteja passando. Tanto maior quanto os seus méritos e a sua capacidade de resistência. Mas prossegue aquele amigo espiritual reportando:

“- Foi por isso que os negros do Brasil se incorporaram à raça nova, constituindo um dos baluartes da nacionalidade, em todos os tempos. Com as suas abnegações santificantes e os seus prantos abençoados, fizeram brotar as alvoradas do trabalho, depois das noites primitivas. Na Pátria do Evangelho têm eles sido estadistas, médicos, artistas, poetas e escritores, representando as personalidades mais eminentes.”

E diz, mais:

Todos os grandes sentimentos que nobilitam as almas humanas eles os demonstraram e foi ainda o coração deles, dedicado ao ideal da solidariedade humana, que ensinou aos europeus a lição do trabalho e da obediência, na comuna fraterna dos Palmares, onde não havia nem ricos nrm pobres e onde resistiram com o seu esforço e a sua perseverança, por mais de setenta anos, escrevendo, com a morte pela liberdade, o mais belo poema dos seus martírios nas terras americanas.” 

Voltemos a páginas atrás do mesmo livro:

– Através das linhas tortuosas dos homens, realizou Jesus os seus grandes e benditos objetivos, porque os negros das costas africanas foram uma das pedras angulares do monumento evangélico do Coração do Mundo. Sobre os seus ombros flagelados, carrearam-se quase todos os elementos materiais para a organização física do Brasil e, do manancial de humildade de seus corações resignados e tristes, nasceram lições comovedoras, imunizando todos os Espíritos contra os excessos do imperialismo e do orgulho injustificáveis  das outras nações do planeta, dotando-se a alma brasileira de fraternidade, de ternura e de perdão.”

“Mémorias de um Suicida”, uma obra de peso da lavra do grande Camilo, na psicografia de Yvonne A. pereira, também esclarece no mesmo sentido:

Grandes falanges de romanos ilustres, do Império dos Césares; de patrícios orgulhosos, de guerreiros altivos, autoridades das hostes de Diocleciano, como de Adriano e Maxêncio, dolorosamente arrependidos (...) expungiram sob o cativeiro africano a mancha que lhes enodoava o Espírito” (p. 534)”. E conta, nas páginas 526 e seguintes, os dramas vividos e o suicídio de um ex traficante de escravos, suas paixões inferiores e sua prepotência. O escravo, sua vítima, o perdoara. Contudo, faz-nos uma severa advertência (página 532):

As sociedades brasileiras (...) sofrem hoje e sofrerão ainda, por espaço de tempo que estará ao seu alcance dilatar ou reprimir, as consequências das iniquidades que em pleno domínio da era cristã permitiram  fossem cometidos em seu seio. (...) Se não foi crime individual e sim coletivo, será a coletividade que expiará e reparará o opróbio, o grande martírio infligido a uma raça carecedora do amparo fraternal da civilação cristã (...).”