A Igreja sem Deus
por Carlos Wagner
Reformador (FEB) Dezembro 1925
“E Maria deu a luz o seu filho primogênito, envolveu-o em
panos e o deitou numa manjedoura, por não haver lugar para eles na hospedaria.” (Lucas II,7)
Aí vem
o dia de Natal. Reavivemos as nossas recordações antigas e refresquemos as
velhas tradições. Quiséramos que todos vos sentissem envolvidos em alguma coisa de muito suave, de muito
íntimo; que, no presente, tão difícil e sombrio para alguns, os vossos corações
sentissem que dentro lhes renasciam claridades de outrora, recordações da
infância e da juventude, reflexos do belo tempo em que a família estava completa,
em que, pequeninos, todos saltáveis nos joelhos dos vossos avós. Por um momento
gozareis do misterioso encanto de vos tornardes crianças.
Quiséramos
que ainda possuísseis a faculdade de assimilar os cânticos do
Natal, o entusiasmo dos pastores e toda
a beleza de que a alma humana cercou o berço do Cristo!
Poderíamos,
então, graças a essas impressões, organizar uma espécie de comunhão muda, que a
todos nós confortaria. Entre o Passado e o Presente, estabeleceríamos uma corrente
de simpatia e de solidariedade; pelo sagrado laço da lembrança e pelo culto das
relíquias da alma, as coisas antigas se juntariam à vida atual.
Pedir-vos-íamos
demasiado esforço se em seguida vos convidássemos, a medir a distância que separa
os Natais da história, gloriosamente constelados, da data desconhecida, do dia
obscuro em que nasceu o Menino!
Há
um mundo entre as belezas tradicionais, a legenda do ouro cujas portas se abrem
sobre maravilhosas paisagens; entre o que, da festa de Natal, fez a humanidade
piedosa, com seus cânticos e orações, e o que foi a verdadeira noite, nos
campos de Belém. Essa antítese deve fazer vos compreender melhor o Natal,
melhor aprender os pontos de vista e melhor apreciar os fatos.
Na história,
o Evangelho se mostra agora com uma força imensa. Caminhou e engrandeceu
caminhando. O colossal desdobramento da potencialidade do Espírito se acresceu,
em cada etapa, de tudo o que as gerações juntaram ao patrimônio de seus antepassados.
O entusiasmo pejo Divino, o vigor da esperança, os esplendores da Fé lhe
formaram luminosa auréola. Mas, no princípio, nenhum nimbo exterior havia. Nada
para os olhos da carne; apenas invisível esplendor e realidades da alma. Belezas
da lembrança, claridades gloriosas, perfumes do amor, piedoso entusiasmo,
profundos cânticos dos séculos, tudo isso só mais tarde nasceu da irradiação
emanada do Filho do homem e foi reenviado ao seu foco de origem pela humanidade
reconhecida, do mesmo modo, do mesmo modo que, da terra adornada de suas vestes
primaveris, as flores enviam seus sorrisos ao sol que as faz desabrochar e que
primeiro as amou.
Somos
dos que se conservam mudos no concerto universal. Mas julgamos salutar a
rememoração da pobreza dos começos.
Prosternamo-nos
em adoração, no silêncio dessa noite em que tantas sombras humanas envolviam
tanta beleza divina. Que é o que divisamos nela? Um pobre casal a errar pelas ruas de
uma cidade invadida por excessiva população. Uma moça a procurar em vão um
canto onde repousasse a cabeça, exatamente quando lhe soara a hora de ser mãe.
Disse
mais tarde o Cristo que o reino de Deus não vinha por meio de manifestações ostensivas.
Nunca será demais recordá-lo. Habituados a considerar os fatos históricos, não na
sua simplicidade frustra, mas num abrasamento de luzes, onde se concentram
todas as cintilações do sonho, da lenda e toda a decoração dos acontecimentos
posteriores, muito nos arriscamos a introduzir nos nossos Espíritos
necessidades de encenação e a tornarmos incapazes de apreciar fatos não
ornamentados. Com semelhante deformação do juízo, classificamo-nos, no domínio
espiritual, entre os que têm olhos para não ver e ouvidos para não o ouvir.
Todas
as grandes coisas começam humildemente. Se puderdes, apagai de
de quando em vez as cintilações para
melhor dos verdes, do mesmo modo que no teatro se apagam as luzes, para melhor
ser vista acena.
Sob um
céu estrelado, numa noite calma, numa época em que se passam fatos políticos
cuja lembrança a história entendeu que devia assinalar, um fato minúsculo e de importância
nula se produz. Nasce um menino. Somente seu pai e sua mãe, gente que se refugiara
num estábulo com ele se ocupam. E este significativo esclarecimento se nos dá:
Não havia lugar para eles na hospedaria! Aí temos o de que precisamos sempre lembrar-nos,
porquanto esse fato é simbólico.
As ideias,
em sua origem, dormem ao relento; carecem de abrigo, de casa. Não se instalam
em lugares que hajam adquirido! São suspeitas de vagabundagem, visto não terem
papéis, nem domicílio conhecido. A humanidade está organizada de maneira tal
que, na hospedaria que em cada idade caracteriza a sociedade contemporânea, todas
as necessárias precauções se tomam, para que as novas ideias, os sentimentos novos
não possam entrar livremente. Vigilantes guardas os detêm no limiar. Foi sempre
assim e assim será sempre!
Os séculos
passaram. O menino, que por berço teve apenas a manjedoura de
um estábulo, se tornou homem e homem dos
mais triunfantes. Não havia lugar para ele na hospedaria, hoje é dono, não só
de uma hospedaria, mas de inúmeras sucursais pelo mundo em fora! Sua grandeza tem
guardas e de fausto real é cercada a sua glória. Fazem-no avançar por entre uma
extraordinária hierarquia, a fim de melhor lhe medirem a altitude, marcando os
degraus que se tem de subir a ele. Fizeram-no tão grande, tão rico, tão
suntuoso, que os pobres e os pequenos às vezes já não o reconhecem!
Não
pensei nos outros, neste momento, vós que me ouvis; não penseis em igrejas de
pompas exteriores, pensai em vós mesmos. As hospedarias de que falo não
precisam de ornar-se com magnificência. Elas podem ser edificadas exclusivamente
sobre conceitos e dogmas! Em certos sistemas teológicos, hospedarias puramente intelectuais,
o Cristo é uma abstração a que se chega através por outras abstrações! Noutras,
ele não é um dogma, nem uma realeza com um reino solidamente fundado neste
mundo, um reino que combate e até mata, para viver e conservar o seu prestígio;
mas é Deus coroado de potestade, vivendo em meio de tais magnificências que toda
púrpura e todo ouro visíveis não são mais que pálido reflexo da sua Majestade.
Deus se fizera homem: o homem fez dele novamente um Deus; ele viera até nós,
recambiamo-lo para sua casa.
Volvo
agora à noite de Belém, à manjedoura, ao menino em quem Deus visitou a nossa
miséria. Volvo a Jesus de Nazaré em sua simplicidade, em seu amor, em sua
sede de clemência e de sacrifício, àquele em quem Deus vivia, e proponho a mim
mesmo esta questão: Na maravilhosa hospedaria
a que hoje seu nome, sua figura e sua cruz servem de emblema, haveria lugar
para Ele? Digo – para Ele, o verdadeiro, não para sua imagem, para suas
pálidas cópias desta, para suas caricaturas?
Essa questão
me enche de tristeza e de angústia. Muito ruído se há feito em torno do que,
com ira e desdém, se chamou: a escola sem
Deus. Porém, que contraste bem mais horrendo, que juízo terrível não
enfeixaríamos na concisão de uma fórmula, se fôramos obrigados a confessar que
bem poderia haver uma igreja sem Deus, uma religião sem Deus.
Não nos
deixemos equivocar pela forma estranha e paradoxal de semelhante proposição.
Atentemos nas realidades: Deus é uma realidade, a realidade suprema. Não poderá
dar-se que dessa realidade, se nos descuidarmos, apenas a aparência permaneça nos
nossos cultos e na nossa vida? Faz muito tempo já que o Profeta disse: Este povo me honra com os lábios; seu
coração, porém, está longe de mim.
Ora, se
o coração está longe de Deus, não será fatal aconteça que os próprios nomes sob
que o designamos caiam na categoria de conchas vazias? Fórmulas sagradas, tradições,
ritos que o costume perpetua, esvaziam-se do seu conteúdo. Pronunciam-se as
mesmas palavras e fazem-se os mesmos gestos que no tempo em que essas fórmulas eram
perfumadas de espírito e quentes de vida. No entanto, apenas se venera um ídolo
estranho, que se acomoda com as nossas mediocridades e a nossa injustiça.
Façamos
o nosso exame de consciência. De caminho, seremos esclarecidos pela tão
melancólica quão sugestiva explicação: “Não
havia lugar para eles na estrebaria.” Poderá acontecer que haja uma igreja
organizada, ou uma religião individual, onde não existe lugar para Deus? Que é
o que nos poderia dar a conhecer esse fato inaudito? – Oh! é muito simples, de
uma simplicidade terrível e sem réplica.
Na
hospedaria de Belém não havia lugar “para eles”. – Porque? Por que o pobre casal
de Nazaré não tinha dinheiro ou, pelo menos, não tinha bastante para pagar
aposentos de preço sem dúvida elevado. Não há casos em que, se não tiverdes
dinheiro, não haverás para vós igreja? Casos tais se verifica, não somente onde
a religião, com o seu pessoal, suas instituições, seus meios de obter graça,
constitui uma espécie de mercadoria de alto preço, mas também onde quer que não
se tenham em conta os humildes, onde estes são desprezados.
Ora,
os humildes podem sofrer desprezo mesmo no seio de uma religião que só tenha
por moldura paredes nuas. O orgulho mais sutil é o que toma os exteriores da humildade. O
orgulho mundano e o orgulho espiritual são uma das pestes dos meios religiosos.
Podem coexistir, mesmo sob as aparências da mais ampla caridade. Muitas há que
nunca compreenderam que todos somos irmãos em Deus. Admitem-no em teoria: na
prática, porém, nada lhes parece mais descabido, nem mais contrário à
distinção.
O lugar de Deus, numa religião, é o lugar da verdadeira
fraternidade. Mas, para esse Deus, único verdadeiro, justo é que se declare que
não há lugar na hospedaria, dentro de uma religião que repele, despreza, classifica
desdenhosamente os humildes.
Também dizemos que Deus é o Deus de Verdade, que ama os
corações retos, as palavras sinceras que não vão além e não ficam aquém das
convicções e dos sentimentos; que, como manifestação religiosa aprecia
sobretudo o que traduza lealmente o santuário íntimo de cada um. Por isso, onde
está o Seu Espírito, está o respeito às consciências, a preocupação da
dignidade, da liberdade, da integração da alma de cada um.
Porém, se nivelais os corações e os pensamentos; se
aquele que não pensa simetricamente com as vossas fórmulas convencionais, é
tratado de pária; se excluis o Mestre na pessoa daqueles de seus discípulos que
o compreendem de maneira diferente da vossa, então a liberdade está banida e
excomungada a fé espontânea; o constrangimento e a convenção exterior
substituem a inspiração; a unidade fictícia se sobrepõe à unanimidade profunda.
E Deus, onde está? – Aí já não há lugar para Ele.
O Deus de verdade também ama, entre todos os homens, aos pesquisadores,
aos pioneiros, prontos a despender grandes esforços para chegarem a ver mais
claro no seio da maravilhosa e misteriosa criação divina. Ama neles o espírito
de sacrifício, a intrépida coragem. Em suma, é ele quem os suscita e guia,
ainda quando lhe não deem nome algum. Ama-os, porque, valorosos, se espoem a
desconhecidos mares, para descobrir realidades novas. Não se engana o que
imagina que Ele se lhe associa à caravana, que com eles partilha as dores e das
esperanças e dorme ao ar livre sobre o duro chão, enquanto procuram as pátrias longínquas
e constroem a cidade futura.
Entretanto, se uma Igreja proclama possuir a Verdade e,
além de já não pesquisar, desanima os pesquisadores, essa Igreja exclui os
pioneiros do porvir; se se entrincheira e calafeta num conservantismo acanhado
de interesses e de ideias, pretendendo encerrar o Universo nos limites do que
ela ensina por sua conta, que faz do Deus da Verdade ilimitada, transbordante,
sempre nova, do Deus que quer que o homem avance, se santifique, progrida,
corrija sua obra e repare o mal secular!
Para esse Deus, não há lugar nessa hospedaria correta,
que pretende conduzir e guiar a todo mundo, sem nada aprender de ninguém. Ela
ultraja e repele os amigos e servidores desse Deus, repelindo-o, portanto, a
ele próprio. Desde os donos até aos despenseiros e cozinheiros, todo o pessoal
da casa se acha perfeitamente acorde, como se fora um só homem, para recusar o
pão e o sal a quem quer que lhes não pertença à seita.
Que há então de surpreendente em que
tantos estabelecimentos oficiais da religião se achem baldos de todo cunho
divino? Deus mudou-se. Não o busqueis nesses lugares fechados e cobertos, onde ressoam
amortecidos passos, vozes abafadas, onde acabam de vegetar anêmicas flores de uma
estéril piedade. Ele não está aí; está fora, lá na amplidão, onde sopram os
grandes ventos, lá onde sussurram as brisas da montanha, onde quer que batam
corações valorosos, onde quer que lutem bravos, ao longo dos caminhos ainda não
palmilhados.
*
E vós que me ouvis, tendes religião? Que lugar ocupa, na
vossa religião, a manjedoura de Belém, o Evangelho de simplicidade, de pobreza,
de verdade, que os pastores proclamavam e os anjos cantavam? Que lugar ocupa no
vosso coração o essencial?
Tendes livros de devoção? Tendes, com certeza, hábitos e
mesmo ideias religiosas e, quiçá, um sistema para explicar o mundo. Em tudo
isso, que fazeis do Indispensável, daquilo que é o Necessário? O Espírito, que
confia em Deus, conserva-se junto de seu próximo, arrepende-se do mal, e se
associa a todas as reparações. Sereis ricos de tudo e pobres somente de Deus?
Tereis olhos para vê-lo, quando Ele passa?
Todos os dias, em todas as épocas, Deus passa, anônimo,
por nós. Estranho às demonstrações oficiais, em que seu nome é levado ostensivamente
em farândula (aglomeração de
baderneiros), particular
predileção tem Ele pelo incógnito. Tem, sem dúvida, seu modo especial de
fazer-se adivinhar; porém, que se abram bem os olhos, para reconhece-lo. Tomai
cuidado em não o repelirdes, quando se vos apresentar sob uma forma que ainda
não vistes. As formas do divino são infinitas, como o próprio Deus; a todo
momento surgem novas e, por vezes, onde ninguém o esperava.
Em Belém, onde havia muita gente e
rumor, nada se passou que não fosse efêmero. Na sombra, num recanto ignorado,
num estábulo, é que nasceu a criança que trazia em si o sinal divino.
Pode acontecer que, também ao nosso derredor, haja muita
gente, muito ruído, mesmo cânticos e preces, e que Deus aí não esteja, enquanto
que na solidão passe ao nosso lado, sem que nem sequer suspeitemos que Ele lá
está!
Sucede frequentemente a Deus, ao
Cristo, ao Evangelho, o que ocorre com o amor em certas famílias. No começo das
Uniões, extrema simplicidade reina nos testemunhos ostensivos do Amor. Dá-se
uma flor ou um beijo e isso baixa à felicidade, porque o menor sinal de afeto,
quando verdadeiro, tem grandíssimo valor. Mas os corações, não raro, esfriam e
gradativamente se desunem. Dia vem, afinal, em que o Amor deixa de existir.
Quer-se, porém, conservar a aparência de que ele ainda existe. Reforçam-se,
então, as demonstrações; os ramalhetes se tornam mais luxuosos; oferecem-se
joias, uma carruagem e se os recursos o permitem, um palacete na cidade e uma
bela casa de campo.
Contudo, para aquele dos dois que se
manteve fiel, tudo isso é tristeza, são testemunhos de nada, flores sobre uma
tumba.
O que assim acontece ao sentimento
mais delicado do coração humano, com o qual nos engrandecemos ou amesquinhamos,
vivemos e morremos, acontece também ao amor a Deus. Ao iniciarem-se os
movimentos religiosos, há mais calor íntimo e menos atenção para com as
exterioridades. Pelo só fato de amá-lo, tem-se Deus nas mãos, nos lábios, nos
olhos, no coração. Raras são as palavras, nulas as pompas, mas a força interior
é inexaurível: a ideia do verdadeiro Deus é torrente d’água viva que jorra dos
corações.
Retornemos a essas belezas ocultas!
Aí está o Nata! O dia do Nascimento! Em todos os
Aniversários, a grande questão se formula: porque vim ao mundo? Se não viveis
de maneira que valha a pena terdes vindo, o do nascimento se torna de tristeza
e de marasmo.
No Natal, dia do nascimento do Salvador, obscuro
princípio do Evangelho, lembremo-nos da razão de ser da religião.
Que Deus nos conceda a graça de sermos severos para
conosco mesmos e nos esclareça sobre os verdadeiros bens. Que de nós se não
possa dizer, nem das nossas organizações, desse “Lar da Alma” e da nossa
religião pessoal, que são belas hospedarias, donde, no entanto, Deus está ausente,
porque longe dele se acham os nossos corações, porque a nossa vida é contrária
à sua vontade e porque nas nossas casas, construídas de egoísmo, de desprezo ao
próximo, de impureza e de iniquidade, não há lugar para o seu espírito.