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Não é somente um lar doméstico,
entretanto, e a pretexto dos laços de família, com a sua consequente possibilidade
de afetuosas demonstrações, auxílios e serviços de toda ordem, que se pode
efetuar entre espíritos, que o ódio ou a simples incompatibilidade de
sentimentos desuniu, a reconciliação pessoal e, simultaneamente, à reparação de
faltas do passado, posto que seja esse, no que se pode considerar a terapêutica
divina, um dos remédios heroicos para a cura daquela verdadeira enfermidade do
espírito. Nos círculos de sua atividade social, no mais ou menos demorado
convívio que mantêm as criaturas, sob o estimulo das necessidades sempre várias
da existência, às vezes mesmo em encontros aparentemente fortuitos, mas no
fundo providenciais, inúmeros ensejos se oferecem de aproximação moral, de
permuta de ideias e serviços, que são outros tantos imperceptíveis laços a
vincular os que vivem numa mesma pátria, nutrem-se dos mesmos pensamentos em
circulação, criando assim relações de mutualidade que, por pouco que o
percebam, não exerce menos sobre eles a Influência, de que resulta o fenômeno,
mais que necessário, inevitável de adaptação.
É por isso que, contempladas em globo, as
sociedades humanas distribuídas pelas
diferentes latitudes do planeta, sejam raças, povos ou nações, apresentam caracteres
gerais, modos de pensar e de sentir comuns, que até certo ponto as
individualizam e distinguem, sem embargo das infinitas variantes que, de uns a
outros dos indivíduos que as
compõem, se possam observar, no que se refere à moralidade e inteligência.
Não é contudo esse aspecto geral que
pode interessar, no ponto de vista da tese que nos propomos aqui desenvolver,
senão a razão oculta, o motivo providencial que encaminha os espíritos a se
reunir em pequenas ou grandes coletividades, com um mesmo fim de
aperfeiçoamento, de resgate dos erros anteriormente acumulados ,e, por
conseguinte, de preparo para a realização de seus altíssimos destinos.
Já vimos que as violações
perpetradas contra a lei de amor, que é a razão suprema da existência, obrigam
os culpados a voltar e reparar os danos causados aos seus semelhantes,
promovendo com estes uma reconciliação, que não consulta apenas os seus interesses
de evolução espiritual, mas que é um imprescritível dever de restabelecimento
da harmonia pelas leis divinas estatuída para a ordem moral, por eles perturbada.
Agora acrescentaremos que não ha uma única desobediência, um só desvio
praticado em relação a essas leis, que não faça recair sobre ele as suas
desagradáveis consequências - chame-se expiação, castigo, ou simplesmente
reação natural, o nome pouco importa – e não exija do culpado a proporcional
reparação, do mesmo modo que todo ato, movimento ou pensamento bom atrai sobre
o individuo o correspondente efeito benfazejo
e neutralizador do mal. É o que - novamente o lembraremos - os orientais
denominam Carma, lei que os espiritualistas de todos os matizes e com eles 'os
espíritas chamamos de justiça podendo acrescentar que o é também de amor.
De amor, sim, porque, nascido todo
espírito para realizar em si a suprema perfeição, na sabedoria e na bondade,
que seria dos obstinados no ódio, que gera a rebeldia, se a cada um dos seus
delitos, como a todos os seus interiores impulsos desarmônicos não correspondesse
uma dolorosa repercussão, em sua consciência provocada pela inflexibilidade da
Lei, que os não quer ver privados, cedo ou tarde, de sua partilha na divina
herança? É necessário, pois, em benefício do culpado, que sobre ele mesmo
recaiam, como advertências salutares, as consequências de seus erros, a fim de
que, segundo a palavra profética de Ezequiel, não pereça ele, mas se converta e
viva.
Na terapêutica divina, a que
acabamos de aludir, é esse também, por excelência, o remédio heroico de que
necessitam os endurecidos para a obtenção da saúde moral, que se traduz na
posse das virtudes, como de um modo geral é sob os estímulos dessa lei sábia,
lei de amor - insistiremos - que todos, mais ou menos delinquentes, vão sendo
conduzidos pelas escarpadas, mas felizes veredas da regeneração.
É assim que de vida em vida, neste
mundo, vai o espírito colhendo o fruto
de suas boas ou más obras: a poder de experiências, frequentemente dolorosas, tornando-se
melhor, beneficiando de todo bem que repartiu, sofrendo o que fez sofrer aos outros;
de altivo, opulento e desdenhoso, voltando obscuro, pobre e desprezado ;
vergando ao peso das iniquidades que
julgara poder impunemente perpetrar; prisioneiro de um corpo defeituoso e
achacado, corroído de enfermidades repulsivas, se em dissipadas existências
abusou dos dons da natureza e dos prazeres dos sentidos, trazendo, em suma,
impresso nos dinamismos vitais, que vem desenvolver, o estigma secreto de seus
passados desacertos, credores implacáveis que lhe reclamarão até 'o "último
centil," antes que saía da penitenciária deste mundo.
E tão benéfica, por vigilante, é a
ação dessa Justiça-Amor que, mesmo quando, advertido por tais apropriadas
reações, faz rumo o espírito às reparações, pelo arrependimento do passado, enquanto
conserve os recônditos germens de predisposições para funestas recidivas, há
de, subindo embora os primeiros degraus da glorificação na obediência aos
ditames da bondade, receber em troca o amor, a indiferença, como resposta às
mais extremas dedicações o vilipendio, e ver-se repelido, caluniado até nos
mais santos impulsos, e nas mais nobres intenções, a fim de não somente
conseguir em si mesmo exterminar os derradeiros vestígios das revoltas paixões
que o infortunaram, como, através de todas essas resistências ambientes,
firmar-se em seus heroicos,
decisivos propósitos de reabilitação.
Não é agora a ocasião de
desenvolvermos esse magnífico tema do sofrimento como atalaia infatigável, que
é, do aperfeiçoamento do espírito, em todos os graus da evolução. O que nos
propomos por enquanto assinalar é que é ele sempre justo e necessário, quer se
trate de expiações de anteriores erros, quer de provações - segundo a técnica que
os espíritas adoptamos, - pelo próprio espírito deliberadamente aceitas ou pedidas.
E aqui se nos depura a questão da
escolha das provas, a que entre nós se tem pretendido dar uma extensão, a nosso
ver, exagerada. É assim geralmente admitido que os sofrimentos e vicissitudes
como as vantagens e trabalhos, tudo em suma que constitui a vida do homem, não,
sem dúvida, em seus mínimos incidentes, mas em seus acontecimentos importantes,
desde a posição que ocupa na sociedade até o gênero de morte em que termina o
seu fadário, é o resultado de uma escolha livremente feita pelo espírito antes
da reencarnação, daí resultando que nenhuma razão de queixa lhe assiste, nem
motivo de se insurgir contra os males, quaisquer que sejam, que a oprimam, uma vez
que voluntariamente e no uso de seu livre arbítrio foi ele mesmo que, antes de mergulhar no ergástulo
da carne, os preferiu como os mais convenientes às suas necessidades
de progresso. Não haverá nisso, contudo, um exagero?
O que, mesmo rapidamente, acabamos
de esboçar a cerca das reações da lei moral sobre os espíritos culpados, fazendo-os,
de bom ou de mau grado, padecer as consequências de seus atos, e que não
somente se acha de acordo com os ditames da justiça e com a noção de lei, como é
documentado pelos depoimentos de espíritoa desencarnados que confessam achar-se
em dolorosa situação, apesar de todos os seus desejos em contrário, exclui essa
faculdade de opção por um gênero de provas, de preferência a um outro, a que se
venham deliberadamente submeter. Estaria neste caso à mercê do espírito contrariar
a ação da lei? Ou restar-lhe-á unicamente, por uma resignada conformidade,
atenuar o seu rigor?
Por outros termos: uma vez cometidas
as faltas, acumulados os crimes ou simplesmente as erros, geradas numa palavra
as causas, será licito ao espirito impedir que contra ele produzam seus
efeitos? - Seria o mesma que o indivíduo, depois de se haver queimado,
pretender que a queimadura não doesse ou não ocasiona-se, conforme a sua
extensão e intensidade, a destruição dos tecidos atingidos pela combustão. Porque
tão inflexível é a ação da Lei na ordem física, como deve logicamente ser na esfera
moral e espiritual. O que ele pode, para evadir o sofrimento, é cautelosamente
abster-se do contato com o fogo, ou, se por ignorância ou imprudência chegou a
ser por seus efeitos alcançado, é mitigar com apropriados sedativos a dolorosa
reação .
No domínio moral essa reação se
traduz pelo que denominamos expiações e provas, e não haverá para as evitar
outro meio que não seja a abstenção de todo o mal, que fatalmente as acarreta,
podendo elas apenas ser tanto mais suavizadas quão mais submisso e paciente se
conduzir sob o seu peso o indivíduo.
Não pretendemos, todavia, contestar
de um modo absoluto a possibilidade para o espírito de escolher as provas por que haja de passar numa futura encarnação,
contanto que, em primeira lugar, se trate de espíritos já dotados de suficiente
lucidez que lhes permita discernir o que verdadeiramente lhes convém, e em
segundo que a essa escolha seja atribuída um sentido meramente relativo, não de
caprichoso arbítrio, insubmisso a toda lei, mas de voluntário assentimento, subordinado
às suas injunções.
Porque, à semelhança do homem nas diferentes
fases da existência, a espírito é tanto menos apto para imprimir conveniente
direção à sua jornada de progresso, quão mais ignorante e atrasada se encontre
nessa escala. Como a criança precisa ser conduzida pela vontade alheia, até
que, transposto esse período, adquira a capacidade de por si mesma dirigir-se,
assim o espírito, nos estágios inferiores da evolução, é encaminhado ora pelas
simples advertências da lei moral, com as suas consequentes reações exteriores,
ora por uma vontade que não é a sua e que o faz procurar, em cada vida, o meio
e as condições propícias ao seu mais
rápido progresso. Não será esse, por
exemplo, o caso dos espíritos adversos de que falávamos a pouco e que, irreconciliáveis
mesmo na erraticidade, são induzidos entretanto a encarnar juntos, com o fim de
se harmonizarem? É certo que, em tais condições, não terão procedido por
escolha ou por vontade própria.
Preciso é, pois, que tenha a espírito
atingido, com um certa grau de evolução, um discernimento apreciável para que,
embora ainda sofredor, em consequência dos erros praticados, oriundos de suas
imperfeições morais, ao examinar no estado errante a vida que deixou e ao
verificar as faltas nela cometidas, se disponha voluntariamente a repará-las em
uma nova encarnação. Vendo então claro, coma na Terra o não havia feito, o
caminho que devera ter trilhado e de que
se desviou, considerando pesaroso os deveres que traiu e a falência que o seu
não cumprimento representa, compreendendo em suma a uma nova luz, que aqui
desconhecera, o verdadeiro objetivo da existência, deseja e pede a Deus lhe permitir voltar em
condições de
emenda e
aproveitamento. Assim, por exemplo, o rico orgulhoso e egoísta, contanto que
tenha sido um homem inteligente, longe de pretender que a riqueza, perigosa
fonte de entorpecimento e queda, lhe seja de novo confiada, preferirá voltar,
numa existência laboriosa e obscura, para aprender a ser humilde e a dedicar-se
ao próximo, sendo tanto maior o seu mérito quão maiores os sacrifícios a que
deva, para esse fim, submeter-se. O mau esposo, o mau filho, o perdulário das
coisas materiais como dos bens espirituais, todo aquele numa palavra que, antes
por leviandade que por mal, não soube resistir às suas tentações e dissipou a existência,
cuja utilidade providencial ignorava e agora lhe é patente, pungido de remorsos
sentirá a
necessidade
de uma inversão de posições em futura encarnação e não somente a proclamará
justa em sua consciência, mas a desejará como indispensável à sua própria, dignificadora
reabilitação.
A tais espíritos, suficientemente
esclarecidos para apreciarem com rigor os seus atos e os julgar em suas consequências
é que se pode atribuir a faculdade de escolher as provas, 'Se escolha se pode
considerar esse reconhecimento dos desacertos cometidos e a disposição de
oportunamente os reparar. Que ele, porém, o reconheça ou não, dê ou não dê o
seu voluntário assentimento às injunções da lei que exige a reparação de todo
mal, nem por isso a lei deixará de seguir o seu curso, o que quer dizer que o
ajustar-se a vontade do espírito às suas exigências em nada a modifica, a não
ser em beneficio deste, que de rebelde se converte em obediente. Doutro modo,
se ao espírito fosse lícito, por uma escolha arbitrária, eximir-se indefinidamente
às consequências de seus atos e, por conseguinte, às expiações e provas
resultantes dos males semeados através das vidas, cessaria a Lei, que sentimos
presidir à ordem moral, substituída pelos caprichos pessoais das criaturas, do
que só o caos poderia resultar.
Não nos deteremos em examinar agora
quais serão para o culpado arrependido os benefícios da obediência a que
acabamos de aludir, nem até que ponto influirá para a abreviação de suas penas
esse outro fator, de que ainda não é tempo de nos ocuparmos – o perdão, que
pela palavra de Jesus, o excelso Legislador cuja autoridade sobreleva a dos
códigos religiosos de todos os tempos, nos é apresentado como uma das modalidades
da justiça eterna. Quando, em capítulo adiante, tratarmos do sofrimento em seus
múltiplos aspectos, procuraremos estabelecer então a concordância entre os efeitos
comutatórios dessa figura jurídica, que não deve ser desprezada no conjunto
expositivo do que em verdade se pode considerar a jurisprudência divina,
capitulada na teodiceia, e a inflexibilidade das reações morais, de que nos
temos ocupado, provocadas
pelas
violações do espírito à soberana lei do amor.
Por enquanto nos limitaremos a esta
simples referência.