A hereditariedade
e o fluido vital
por Gonçalves Júnior
Reformador (FEB) Julho
1907
Sr. Presidente e caros confrades
(*)
(*) Este
trabalho foi lido pelo autor, em uma das sessões da Federação Espírita
Brasileira, quando aí se estudava a questão do suicídio, magistralmente exposta
em ‘Os Quatro Evangelhos’, de J.B. Roustaing, tendo-se, na intercorrência dos
debates, tratado da transmissibilidade do fluido vital, como importante fator
da duração da vida.
É a primeira vez que
peço a palavra nesta assembleia, para tomar parte nestes elevados e profundos
estudos do Espiritismo. A minha posição aqui tem sido sempre a de quem precisa estudar
e não se sente com bastante competência para emitir uma opinião sobre tão
transcendentes questões deste departamento do saber.
Entretanto, como vedes, quebro a minha norma de proceder,
porque na sessão de terça-feira passada um dos nossos companheiros tocou em um
ponto que bem merece a nossa atenção.
Discordei de sua opinião sobre esse assunto; e é por isso
que vos venho roubar alguns momentos de atenção.
Antes de tudo devo confessar que não compreendo a
religião sem a ciência - Se elas são irmãs e fitam o mesmo ideal, não podem ser
jamais separadas.
Não há fato contraditório em ciência, disse um dos nossos
mestres em fisiologia: quando eles parecem existirem, é porque houve engano por
parte do observador: é porque as leis que regem tal fato lhe são desconhecidos.
O mesmo princípio deve ser aplicado à religião; e esse
mesmo princípio deve ser ainda aplicado à interpretação da religião pelas
ciências – A ciência não pode contradizer a religião e nem esta contradizer a
ciência; e digamos, parodiando o ensino do nosso mestre: e contradições parece
existirem entre a religião e a ciência, é porque os fatos não foram bem observados,
ou porque as leis que regem esses fatos são desconhecidas do investigador.
O Espiritismo é o ensino que satisfaz esse supremo ideal,
e é por isso que ele será sempre vencedor no domínio do pensamento e do sentimento.
O companheiro nos disse que achava contradição no fato, afirmado
pela ciência de que se os pais transmitem aos filhos caracteres e elementos de
vitalidade, pois que o espírito, que se vai encarnar, possui fluidos que lhe
são próprios.
Vamos, com os conhecimentos que adquirimos, procurar
esclarecer este ponto de real importância para nós.
Antes de tudo, devemos fazer umas considerações, que nos
parecem necessárias, para o esclarecimento da questão.
Conhecemos, pelo estudo da histologia e da fisiologia, a
célula e os seus elementos componentes: protoplasma e núcleo; e sabemos que ela
é a unidade viva. – É dela que todo o ser parte, em sua evolução progressiva e
constante.
Não se pode estudar os organismos superiores, sem conhecer
a célula, porque eles não são mais do que agrupamentos de colônias celulares. Ela
possui, em síntese, sob o título de propriedades fundamentais da substância
viva, todas as manifestações dos organismos mais adiantados: é assim que ela
move-se, nutre-se, reproduz-se e sente.
É a célula uma espécie de ABC com que o biologista soletra
a vida na escala dos seres vivos. Não se pode estudar a função de um órgão, por
mais adiantado que, sem conhecer as propriedades fundamentais da substância
viva, pois que a função nada mais é que uma propriedade exaltada, na frase expressiva
do Dr. Oscar de Souza nosso mestre em Fisiologia.
Fazer um estudo sumário da célula e das suas propriedades,
seria ocuparmos um tempo muito longo, do qual não dispomos aqui, nesta breve e
resumida palestra.
Tomemos para a demonstração da nossa tese uma célula
perfeita: o óvulo. Nela encontramos todos os elementos de uma célula completa: membrana,
protoplasma, núcleo e nucléolos. Demoremos um pouco no estudo do núcleo, pois
que ele é o elemento principal na reprodução, e que nos vai fornecer os dados necessários
para afirmarmos que a hereditariedade é um fato inconteste, e que não contradiz,
segundo o nosso modo de ver, os princípios que o Espiritismo ensina.
Nós, os espíritas, temos a vantagem de caminhar ao lado dos
materialistas no terreno da experiência científica, e seguirmos além, muito
além do limite em que eles se deixam ficar no terreno da interpretação dos fatos
observados. Para o espírita não existe horizonte - temos diante de nós a imensidade
luminosa, que nos conduz aos mais elevados domínios do pensamento. Não devemos
excluir a ciência no estudo do Espiritismo, porque é nela que temos os dados
mais poderosos e irrefutáveis, para combater, no domínio da razão e da lógica, os
nossos encarniçados inimigos em matéria de doutrina religiosa.
Que é, em uma palavra, a ciência? – Uma série de fatos
comprovados pela experiência.
Disse-nos ainda o Dr. Oscar de Souza, em uma de suas sábias
lições: “Para que um fato faça parte
integrante da ciência, é necessário que a experiência venha comprová-lo. A ciência
não se forma com os fatos agrupados: ela só se constitui pelo conhecimento dos fenômenos
e pelas leis que regem a generalidade. Assim é que, unindo bem os fatos e
procurando o nexo que os prende, chegamos pouco a pouco ao conhecimento de uma ciência.”
A religião sem a ciência, ou ciência sem religião, é uma verdadeira
contradição.
O Espiritismo é a religião, porque sintetiza numa
harmonia perfeita toda a ciência, e caminha, banhado, banhado pela luz de uma
alvorada perene, até o seio da majestade divina.
Mas voltemos a falar do núcleo, parte essencial da célula,
nos fenômenos de reprodução. O núcleo apresenta várias formas, das quais não
trataremos aqui; é envolvido por uma, chamada membrana nuclear, e constituído por
uma substância esponjosa, reticulada, ou melhor, para dar uma ideia mais clara,
por uma esponja embebida de um líquido, chamado hialoplasma. (Também conhecido como citosol, o hialoplasma é um
líquido presente no interior das células dos seres vivos). Este retículo ou esponjioplasma, toma o nome de substância
cromática, ou cromatina, assim chamada por ser facilmente colorida por
reativos.
Chegamos à matéria essencial do núcleo que procuramos -a
cromatina, à qual Mathias Duval deu, com muita propriedade, o nome de
substratum material da hereditariedade. Não trataremos do líquido que aí se encontra,
nem dos nucléolos, para não nos alongarmos multo neste estudo.
Tomemos somente a rede de cromatina, para a base do que
desejamos demonstrar.
Essa rede de cromatina é constituída por um ou vários filamentos
chamados cariomitomas que, pelos seus contornos e circunvoluções, dão um
aspecto reticulado ao conjunto.
Esses filamentos são constituídos, a seu turno, por pequenos
corpúsculos (cariomicrosomas) formados de uma substância fosforada e
albuminoide chamada nucleína a única substância que, na realidade, se colore no
filamento cromático. Esses corpúsculos ou grãos de nucleína dispõem-se em
séries, como as contas de um rosário; e são unidos por uma outra substância
chamada Iinina, que não se colore pelos reativos.
O filamento cromático pode se desenrolar; e desenrola-se
no ato divisão celular.
A divisão celular tem por fim, por uma série de atos,
dividir esse filamento cromático em partes iguais, para fornecer à nova célula
esse elemento material indispensável a vida do novo ser.
Pois bem: é nessa matéria que a célula mãe transmite à célula
filha todos os seus caracteres; e é por isso que toda a célula ou, ampliando,
todo o ser é a imagem perfeita do ser que lhe deu origem.
O que se dá com a célula, dá-se com o organismo mais perfeito,
o do homem.
Que é o homem - esse ser ocupa o ápice da escala dos seres
na Terra, e que apresenta as mais complicadas funções?
Duas células que se fundiram numa; o óvulo fecundado que
evoluiu!
Maravilhosa Sabedoria essa que dirige o destino dos seres!
No desenvolvimento ontogênico (do indivíduo), pode-se ler
toda a história do seu passado, tudo o que ele foi na escala zoológica, antes
de atingir ao ponto culminante a que chegou.
E assim que o homem, ser mais perfeito entre os seres da Terra,
tem a sua origem biológica numa simples célula! No óvulo, no embrião que se
desenvolve, ele vai escrevendo, como para lembrar a sua pequenez no Universo,
tudo o que ele foi na escala dos seres vivos.
Foi esta verdade que o sábio poeta da ‘Oração à Luz’, Guerra Junqueiro, cristalizou
nestes versos que passarão à posteridade, como um atestado da presença, em
nosso céu, da estrela d’alva, precursora do dia que há de iluminar as gerações
futuras:
Desde que, verme
escuro, andei de rastros
E lodo, em pé, sob o clarão
dos astros,
Ao verter uma lágrima
ligeira,
Me tornei homem pela vez
primeira!
O materialista, que
vê tudo pelo prisma que melhor lhe convém, lê somente a parte material desses maravilhosos
fenômenos, e diz que a matéria evolui, quando, na realidade, nós o sabemos, o que
evolui é o espírito: a matéria, ou a forma material, acompanha somente a
evolução do espírito.
Mas não nos desviemos do caminho traçado. Feito o estudo
do núcleo, conhecida a cromatina e o seu valor, passemos um rápido olhar sobre
a fecundação nos mamíferos. Estudar a fecundação nos mamíferos ou, melhor, nos equinodermos,
(Os equinodermos (do grego echinos:
espinhos; derma: pele) constituem um grupo de animais exclusivamente marinhos,
dotados de um endoesqueleto (endo = dentro) calcário muitas vezes provido de
espinhos salientes, que justificam o nome zoológico do grupo.) que realizam todas as condições requeridas para esses
estudos, é estudar o homem.
No caso da fecundação nos mamíferos é ainda a cromatina o
veículo, o transmissor da hereditariedade. É a célula masculina que vai levar,
no menor volume, a maior quantidade dessa substância à célula feminina, para
que, assim reunidas, nas mesmas proporções, as duas quantidades de cromatina,
masculina e feminina, se possa desenvolver o óvulo em embrião. É por isso que o
ser que então se forma apresenta caracteres comuns aos organismos que lhes
deram origem. E tanto isso é verdade, que nunca vimos um homem dar origem a uma
palmeira, ou a um outro animal que lhe seja inferior.
Procuremos agora interpretar os fatos, para que possamos
ver se há contradição nos ensinos que o Espiritismo nos fornece.
Estudamos em fisiologia que a matéria nada mais é que uma
simples portadora de energia.
A energia pode ser potencial ou de tensão, cinética ou real.
Pois bem: a cromatina é portadora de energia potencial; e
essa energia permanecerá nesse estado, enquanto não se reunirem as duas
cromatinas masculina e feminina (pronucleus macho e pronucleus fêmea) (é o núcleo de um espermatozoide ou óvulo durante o
processo de fecundação, após o espermatozoide entrar no óvulo e antes de se
fundirem). Uma vez dada a fusão, a
energia passa ao estado cinético e o óvulo se desenvolve.
Até aí falou conosco, no estudo núcleo a ciência materialista.
Agora vamos ver se, à luz clara do Espiritismo, podemos caminhar mais além, e
explicar o concurso de um terceiro elemento no desenvolvimento do ser – o
espírito que dirige a matéria.
Temos visto, nos casos de materializações, realizadas em
todas as partes do mundo, a necessidade do concurso de um médium para a
realização desses fenômenos.
Que é que o médium fornece ao espírito, para que ele se
possa materializar?
- Fornece fluidos, a fim de que possa condensar o seu
perispírito.
Que é esse fluido senão a energia sob um outro aspecto?
O espírito precisa de fluidos, ou melhor de energia,
dizemos nós, para se apresentar no nosso mundo material – Da qualidade do fluido
do médium depende o espírito que se tem de materializar: quanto mais elevado é
o estado de vibração dos fluidos do médium, tanto mais adiantado será o espírito
a se manifestar: há uma espécie de atração simpática Entre um e outro, ou, se quiserdes,
um fluidotropismo positivo. (Tropismos são
movimentos de mudança de direção de crescimento que ocorrem em organismos vivos
ou suas partes devido ao estímulo de um fator externo). Tanto isto é verdade que, nos centros onde predominam
baixos sentimentos e, portanto, onde a atmosfera é pesada e grosseira, nunca os
bons espíritos se podem manifestar.
O espírito é assim atraído pela quantidade do fluido do
médium.
Ora, que é a cromatina ou antes, a energia levada pela cromatina senão os fluidos desses médiuns que são os pais?
Da qualidade dessa energia depende o espírito que se vai
encarnar, isto é: o espírito que se vai encarnar é um espírito que se encaixa
perfeitamente à qualidade da energia fornecida pelos pais. – Daí a hereditariedade
que se apresenta como um fato incontestável no domínio da ciência.
Um espírito de um mundo superior não poderá se encarnar
na matéria que constitui o nosso organismo, ainda grosseiro em comparação com esses
corpos leves e etéreos que eles animam, porque não será atraído por ela. A prova
disso temos no corpo fluídico, astral, de que Jesus se serviu para vir a Terra.
O espírito de um homem também não poderá encarnar num animal inferior, porque a
vibração do perispírito e do corpo material absolutamente não se podem harmonizar.
É assim que há urna perfeita correlação entre os dois fenômenos
A harmonia permanece infrangível, e a obra gigantesca e maravilhosa do Eterno,
cientista dos cientistas, permanece bela, sublimemente perfeita e completa.
O materialista, que deixa ficar no limite estreito e
acanhado da matéria, não pode compreender estes fenômenos, e afirma que a
ciência não se pode adaptar ao ensino religioso. Por outro lado, os
espiritualistas que ainda não foram banhados por esta luz bendita da nova
revelação, caminham, como duas individualidades perfeitas, nos dois terrenos,
isto é: - são religiosos, sem serem cientistas,
na igreja: são cientistas sem serem religiosos, nos laboratórios científicos!
- Perfeita incoerência do pensamento humano!
No caso da hereditariedade, o cientista materialista e o
espiritualista desta última espécie não podem compreender o fenômeno que se passa,
porque desconhecem as leis que regem o espirito, ou melhor, que reúnem o espírito
à matéria: o primeiro, o materialista, nega o concurso dessa inteligência, que ele
não conhece: o segundo, o espiritualista incompreensível, fecha os ouvidos para
não se contradizer.
Mas, perguntar-nos hão os
materialistas se os organismos são como dissestes, e como dizemos nós, agrupamentos
de colônias celulares, como é que existe o espírito no organismo humano? Essas células,
o glóbulo branco do sangue (leucócito) a célula nervosa, por exemplo, não são individualidades
perfeitas?
-Sim, respondemos nós, como são todas as células, que se
reúnem para constituir o Organismo: porém são individualidades dependentes da inteligência
superior que as rege.
Tomemos um exemplo: fácil, para fazer compreender o nosso
pensamento. Um exército é constituído por milhares de soldados; cada soldado é
uma individualidade perfeita: a reunião dessas individualidades constitui o exército
sob as ordens de general que o rege: o general é o espírito diretor do exército,
sem o qual não existiria a integridade do conjunto. – Desaparecendo o general,
desmembra-se o organismo.
Damos este esclarecimento, para mostrar que não há incoerência
naquilo que afirmamos e, para mostrar, mais uma vez, que o Espiritismo é e será
sempre, o facho radiante que guiará, num clarão maravilhoso e esplendorosamente
belo, todas as inteligências que procurarem a verdade, custe isso embora o
despedaçamento de todos os erros e preconceitos a que ainda está ligada a
humanidade da Terra.
A harmonia é a divisa da natureza: ela existe, quer na
Terra, quer nos mundos que rolam em clarões resplandecentes pelas profundezas
insondáveis do Universo! Ela é o laço que nos prende à cadeia da animalidade na
Terra; ela será a escada de Jacó que nos levará, através, dos mundos, aos mais
altos destinos da espiritualidade!