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quarta-feira, 3 de novembro de 2021

O Protestantismo e o Espiritismo

 

O Protestantismo e o Espiritismo

 por Romeu do Amaral Camargo

1928 - Estabelecimento Gráphico Irmãos Ferraz – SP

                                               Páginas 95/96/97 - trecho atribuído a Charles Reynolds Brown.

             A Bíblia, ainda que não tecnicamente infalível, é sem contestação o Livro dos livros e é visando os interesses da fé e a maior influência deste livro no seu poder sobre o coração humano que os sábios reverentes estão procurando uma base firme para nossa confiança. Tem aumentado incalculavelmente o interesse humano pelo livro, salientando o fato que a Bíblia não caiu do céu como herança sem preço para toda a raça, mas que, com paciência infinita, foi entrelaçada na vida e na experiência de homens de carne e osso, que encarnavam o dever, que lutaram contra as tentações, que conheceram o mal e que, pelo auxílio divino, alcançaram o gozo da liberdade espiritual. “Não é difícil destruir a crença na absoluta e igual inspiração de todas as partes da Bíblia”. “Tem-se pregado que a Bíblia é em todas as partes a infalível palavra de Deus; que estas palavras são tão verdadeiramente suas, como se Ele as tivesse proferido com sua própria boca, ou como se as tivesse escrito com sua própria mão, e que o fato de tê-las ditado a homens inspirados é o que lhe dá autoridade. Esta posição é insustentável, como verificará qualquer leitor da Bíblia que não fuja dos fatos. É uma teoria que vem de fora. Não é tirada do que a Bíblia diz de si.

            A passagem muitas vezes citada para defender esta ideia (II Timóteo, 3:16) segundo a melhor tradução, quer simplesmente dizer: “Toda a Escritura divinamente inspirada é também útil para ensinar, para repreender, para corrigir e para instruir na justiça a fim de que o homem de Deus seja perfeito, plenamente preparado para toda a boa obra.” O escritor não está emitindo opinião sobre a infalível inspiração de todos os livros da Bíblia, e de todas as partes de cada um destes – não podia fazer isso porque alguns nem existiam naquele tempo. Nem está declarando a inspiração do Novo Testamento, pois estes escritos ainda não estavam colecionados nem aprovados. Ele está simplesmente dizendo que todos os escritos dados por Deus são úteis. Está indicando que a edificação espiritual que se pode tirar de qualquer escrito “inspirado por Deus”.

            “Às vezes, querem provar a infalibilidade pelos últimos versos do Apocalipse: “Se alguém lhes acrescentar alguma coisa, Deus lhe acrescentará as pragas escritas neste livro; e, se alguém tirar qualquer coisa das palavras do livro desta profecia, Deus lhe tirará a sua parte da árvore da vida e da cidade santa, que estão escritas neste livro.”

            “Mas, visto que algumas partes do Novo Testamento foram compostas depois de escritas estas palavras, e como não houve durante a vida do autor nenhuma coleção autorizada dos livros do Novo Testamento, o certo é que não estava defendendo a inspiração deste. Claramente só tratava de proteger da multidão e dos acréscimos o Apocalipse, que acabara de escrever.

            Se estudarmos os fatos, veremos quanto é impossível sustentar a velha ideia da inspiração. Mateus, no capítulo 27, cita um versículo do Velho Testamento e diz que é de “Jeremias, o profeta”. “Mas, o dito versículo não se encontra nos escritos de Jeremias, mas está no capítulo II de Zacarias. Mateus, citando de memória, sem o manuscrito do Velho Testamento perante os olhos, enganou-se. Marcos, no cap. 2, faz referência a alguma coisa que Davi fez quando Abiatar era sumo sacerdote. Procurando a história em I Samuel, descobrimos que Abimeleck era o sumo sacerdote. Paulo, no capítulo 10 de I Coríntios, faz referência a uma certa matança de israelitas e diz que caíram naquele dia “vinte e três mil”. Voltando ao cap. 28 de Números, onde o fato está registrado, verificamos que o número dado é de “vinte e quatro mil”. “A inscrição colocada na cruz de Cristo é de muita importância. Bem poderíamos supor que a importância sagrada da ocasião, o número limitado das palavras, a tríplice repetição em Hebraico, Grego e Latim, seriam suficientes para fixa-las na mente daqueles que as viram. Entretanto, Marcos diz que a inscrição era: “O Rei dos Judeus”. Lucas diz que era: “Este é o Rei dos Judeus.” João diz que era: “Jesus, o Nazareno, Rei dos Judeus.” E Mateus diz que era; “Este é Jesus, o Rei dos Judeus.” A ideia geral em todos é a mesma, mas as palavras diferentes em tudo. Ora, na realidade, a inscrição continha certas e determinadas palavras e mais nenhuma. Três dessas inscrições, portanto, não são exatas.” “A infalibilidade exige a ausência de todo erro e contradição e não simplesmente um alto grau de exatidão que se aproxime da perfeição.” “Há frequentes divergências nas narrações paralelas, em Reis, Crônicas e nos quatro Evangelhos. A pretensão de que os homens inspirados chegaram a tal ponto que cada palavra que pronunciaram era escolhida pelo Espírito Santo, está refutada por estas divergências que teriam sido impossíveis se as palavras da mesma fossem divinamente ditadas.” “A resposta tantas vezes ouvida, que temos de aceitar tudo ou de rejeitar tudo, é tola e, além de tola, perversa. “A inspiração resulta da operação do Espírito de Deus, e esta varia segundo a receptividade do homem. Os apóstolos foram homens inspirados, sem dúvida alguma, mas é certo que a sua inspiração não os tornou infalíveis na instrução e administração da Igreja. Eles cometeram erros graves.”








terça-feira, 5 de novembro de 2019

Salvação pela fé ou pelas obras? - parte 1



1. Salvação pela fé ou pelas obras?
por Romeu A. Camargo
Empresa Gráfica da “Revista dos Tribunais - São Paulo SP - 1941

Esboço Exegético-evangélico
(Responde o Evangelho nas Lições do Bom Ladrão, de Zaqueu e do Centurião Romano)

Aos bondosos amigos e confrades,

José Angelo PeIlegrino
Coronel Arlindo Ribeiro de Andrade

Antonio Baptista Lino
Carlos Inglez de Souza
José Peres Castelhano
Dr. Lino da Rocha Leão

Dr. Fernando Paes de Barros

Pedro de Camargo (Vinicius)
Olavo Augusto de Oliveira
Dr. Raul Soares,

a cujo apoio moral e material deve esta obrinha o seu aparecimento

a profunda gratidão do AUTOR.

Índice

Só a Bíblia - População do mundo - Religiões - Curiosidades da Bíblia - Traduções e tradutores - A palavra "religião" - População e religiões nos EE. UU. - Em 1901, 11 milhões de espíritas e 30 mil médiuns, nos USA.

Seremos salvos pela fé ou pelas obras? - Resposta do católico e do protestante - A figura de Paulo - Os padres acima de Deus - Victor Hugo e a instrução - Congressos Eucarísticos   .

Superioridade do Protestantismo - Estatística impressionante - A Reforma e a Salvação

Pela fé ou pelas obras? - Paulo e Tiago em plena harmonia.

As cartas de Paulo e a de Tiago - Caráter e objeto dessas cartas - Ideias universalistas desses apóstolos.

Caráter diferencial entre o Evangelho e as Epístolas.

Jesus é Salvador - Fala Paulo - "Deus é amor e “quer” um só destino - Salvação pela “vida” de Jesus.

Paulo, o maior intérprete do Evangelho - Sua emocionante defesa diante das altas autoridades – “Ó insensatos Gálatas!”.

Paulo prega: “Fora da caridade não há salvação”.

Porquê “Filho do Homem”? - A inspirada e encantadora palavra de Mélinge.

As boas-obras do ladrão arrependido - O único advogado de Jesus – “Senhor, lembra-te de mim quando entrares no teu Reino!”

“Hoje serás comigo no paraíso" - Não a morada de Deus - O que significa “Céu” ou “Reino de Deus” e “inferno”.

“O Evangelho das boas-obras - Lições do publicano Zaqueu – Por que “Terceira Revelação?” – Por que “Espiritismo?” - Que significa essa palavra e como nasceu? - E por que não “espiritualismo?” - O Consolador ficará “eternamente” conosco - A pecadora samaritana.

Fé - Catolicismo ou Universalismo - Como entendia Paulo o verbo “crer” e o substantivo “salvação” - A fé do Centurião romano.

“Suplício eterno”, “cárcere”, “prisão”, “bicho que rói”, “trevas exteriores”, “Geena” - Evolucionismo e penalismo, dentro da Bíblia - O que é o Mal - O Bem - É real a condenação....

“O que não crê já está condenado” - A lei de causalidade - Quem esqueceu a fraternidade, por ela será esquecido - Quem ferir à espada, a espada será ferido - ou, “quem com ferro fere, com ferro será ferido”.

A palavra final do Mestre - O Evangelho das boas obras - O Juízo Final - Base para o julgamento    .

Jesus e a Medicina - Não sendo médicos nem operadores, porquê se metem os espíritas a curar? 

A ordem imperativa do Mestre, escudada no seu próprio exemplo - "Aquele" que crê em mim, fará as obras que eu faço, e fará outras “ainda maiores”.

No Juízo do último dia - A Justiça e o seu critério.

                                             Só a Bíblia

Sim, só a Bíblia é invocada neste trabalho, como autoridade, como informante, como conselheira e como julgadora. É que estas páginas vão ser lidas por católicos, por protestantes e por espiritas. Três pontos de vista, três escolas, três correntes de pensamento dentro da Bíblia. Explicada está a interferência do Livro dos livros como autoridade única em toda a extensão desta obrinha. Ao demais, “a Bíblia é o alicerce da Revelação Divina; o Evangelho é o edifício da redenção das almas." (Emmanuel, em "O Consolador").

Iniciamos e terminamos o nosso trabalho, nos dias da horrorosa luta fratricida na Europa. Horrorosa e escandalizante, Entredevoram-se as quatro maiores, mais ricas e mais civilizadas nações cristãs do civilizadíssimo continente europeu. Falência do Cristianismo? Não, que este ainda não foi praticado; se os homens o praticassem, a guerra não existiria. Falência, sim, e completa, da cristandade. Por faltar o Evangelho, não nos lábios e nas estantes, mas nos corações, é que aí vão submergindo as maravilhosas conquistas de uma civilização vinte vezes secular e pomposamente batizada com o adjetivo "cristã". Uma guerra! horrorosa e escandalizante, dissemos. Sim, escândalo para os outros povos que não estão sob a mesma bandeira do “Amai-vos uns aos outros.” A palavra grega skandalon: - diz o rev. João Beatty Howell - significa um obstáculo no caminho, coisa que leva o homem a tropeçar e cair; as perseguições serviriam de pedra de tropeço para que muitos caíssem na apostasia, e se separassem da Igreja de Cristo. (Comentário ao Evang. segundo S. Mateus).

Eis a população do globo e as principais religiões; segundo os ilustres professores, Dr. Aroldo de Azevedo e Miguel Milano, em seus compêndios, respectivamente: Geografia, 1ª Série Secundária; Geografia Geral.

Curso Secundário:

População: Europa, 500 milhões de almas; Ásia, 1.100 milhões; América, 250 milhões, América, 150 milhões; Oceania, 10 milhões.

Religiões: Católica Romana, 260 milhões; Protestante, 180 milhões; Grega-Cismática ou Ortodoxa Oriental, 120 milhões.

Fora do Cristianismo: Budismo, 450 milhões; Confucionismo, 270 milhões; Islamismo ou Maometismo, 230 milhões; Bramanismo, 220 milhões; Fetichismo, 120 milhões; Judaísmo, 20 milhões.

Curiosidades da Bíblia

3.566.480 LETRAS - 773.746 PALAVRAS

Livro sem par e sem rival na história dos povos, é tido e reverenciado como o maior reservatório de espiritualidade. "Nenhum outro livro fala tão direta e universalmente aos homens das diversas raças e civilizações. Escrito originariamente nas línguas hebraica (Velho Testamento) e grega (Novo Testamento), este grande livro ultrapassou os limites em que estas línguas se falavam, para apresentar-se aos corações de todo o mundo. Desde a civilização europeia e a americana, até à cultura rudimentar dos povos da África, da Ásia continental e de remotas ilhas, homens têm ouvido ou lido as suas páginas, declarando maravilhados: “Como este livro conhece o meu caráter! Como esquadrinha os pensamentos e sentimentos de minha alma!”

“A Bíblia é bem o livro da humanidade. É, porém, mais do que isso: é o livro de Deus para a humanidade. Quando se leem as suas páginas, quando se medita sobre o que a Bíblia diz ao coração humano, conhece-se que ela é mais do que uma simples narração de experiências individuais, relatadas viva e claramente. É um registo da experiência humana em relação com Deus e, através de suas páginas, o homem ouve a voz divina que lhe fala. Estadistas, heróis, mártires, santos, pessoas humildes cercadas das angústias e dificuldades da vida - todos tem achado nela a voz de Deus aconselhando, confortando, repreendendo, ordenando, dando esperança e coragem. A Bíblia, pois, tem sido tão repetidamente traduzida, porque é o livro de Deus para a humanidade.”

* * *

Livro sagrado de toda a cristandade, a Bíblia encerra, entre duas capas, verdadeira biblioteca, formada de 66 livros, sendo 39 no Antigo ou Velho Testamento e 27 no Novo Testamento.

O Velho Testamento é o livro sagrado de um povo - o povo hebreu ou povo israelita; o Novo Testamento, ou mais particularmente, o Evangelho, é o livro sagrado da humanidade.

A Bíblia contém 3.566.480 letras, 773.746 palavras, 31.173 versículos, 1.189 capítulos, sendo 929 no Velho e 260 no Novo Testamento.

A letra "E" é repetida 46.277 vezes no volume sagrado. A palavra "Deus" é empregada 1.855 vezes. O versículo que ocupa o meio da obra é o 8° do Salmo 118. O versículo mais longo é o 9° do 8° capítulo de Ester, que contém mais de 80 palavras; o mais curto é o 35° do capítulo II do quarto Evangelho, que contém apenas 3 palavras: “Então chorou Jesus”.

O Sermão da Montanha, que encerra a doutrina completa de Jesus, numa síntese admirável e encantadora, constituindo a perfeita estruturação do edifício moral do Cristianismo, abrange III versículos, nos capítulos V, VI e VII do primeiro Evangelho.

Razões de ordem eclesiástica, de par com a necessidade de diretrizes para o pensamento religioso, revelavam a falta que fazia uma tradução do Velho e do Novo Testamento. “Afim de pôr termo às divergências de opinião, no próprio momento em que vários concílios acabam de discutir acerca da natureza de Jesus, uns admitindo, outros rejeitando a sua divindade, o papa Dâmaso confia a São Jerônimo, em 384, a missão de redigir uma tradução latina do Antigo e do Novo Testamento. Essa tradução deverá ser, daí em diante, a única reputada ortodoxa (isto é, de conformidade com a sã e verdadeira doutrina) e tornar-se-á a norma das doutrinas da igreja: foi o que se denominou a Vulgata."

O primeiro Novo Testamento publicado em português foi impresso em Amsterdam, em 1681, traduzido do grego por João Ferreira de Almeida, pregador do Evangelho na Batávia, capital da ilha de Java, uma do arquipélago da Sonda (Oceania), possessão holandesa (Índias Holandesas, conquistadas aos portugueses).

Entre os anos de 1748 e 1753, ainda na capital javanesa, saiu impressa a primeira edição completa do Velho Testamento, segundo a tradução desse ilustre pregador, em dois volumes.

Depois dessa tradução, a primeira tradução da Bíblia, em português, foi a do ilustre latinista e famoso gramático português, padre Antônio Pereira de Figueiredo, em 1790. Foi esta a primeira versão completa, em língua portuguesa, da Vulgata Latina“No ano de 1902, a Sociedade Bíblica Americana e a Sociedade Bíblica Britânica e Estrangeira acordaram fazer uma nova tradução “segundo os originais hebraico e grego”, com o auxílio das versões de Figueiredo e de Almeida. A primeira edição desse novo trabalho, pela Sociedade Bíblica Americana, apareceu em 1917, conhecida pelo nome de “Tradução ou Versão Brasileira.”

- Em muitas e muitas passagens, esta tradução brasileira difere da tradução do padre Figueiredo e da de Almeida. Basta citar um exemplo, onde ressalta o vulto da divergência. Veja-se o primeiro cap. do quarto Evangelho, versículo 18. Aqueles dois eminentes tradutores escreveram: “o Filho unigênito, que está no seio do Pai”. Na versão brasileira lê-se: “o Deus unigênito, que está no seio do Pai.” Os leigos, ou estranhos aos estudos exegéticos, não deixam de mostrar o seu espanto, diante dessa vultosa discrepância, tendo em vista a comprovada, a comprovadíssima competência do padre Antônio Pereira de Figueiredo, como vernaculista e latinista, ao lado da reconhecida competência do pastor João Ferreira de Almeida, igualmente latinista e profundo helenista. A propósito deste ministro do Evangelho, seja-nos lícito transcrever duas palavras apenas, devidas à pena brilhante do eminente teólogo evangélico português, Eduardo Moreira, em “A Madeira Nova”:

“A história deste português ilustre (o pastor Almeida), a quem os holandeses deram o título de “Defensor da Verdade”, é rica de ensinamentos. Pena é que até hoje nenhum crítico ou historiador literário, a não ser Antônio Ribeiro dos Santos e Teófilo Braga, tenha procurado pagar a dívida de gratidão da Pátria a tão insigne filho. Teófilo chama à sua tradução “o maior e mais interessante documento para se estudar a língua portuguesa no século XVII”, e considera-o por isso um magnifico monumento literário. E nestas afirmações mais não faz do que seguir o padre Ribeiro dos Santos." ("O Estandarte", órgão presbiteriano, São Paulo, n.º 21; de 24 de Maio de 1928).

São duas as maiores organizações divulgadoras das Escrituras Sagradas em todo o mundo: a Sociedade Bíblica Americana, fundada em 1816, e a Sociedade Britânica e Estrangeira, fundada alguns anos antes.

Dados históricos e estatísticos, encontramo-los no interessante relatório publicado pelo rev. H. C. Tucker, secretário da Agencia da Sociedade Bíblica Americana no Rio de Janeiro, em comemoração do primeiro centenário da independência do Brasil, relatório intitulado “Ligeiros Traços da Origem, História e Ação da Sociedade Bíblica Americana”.

A Bíblia toda, acha-se traduzida em mais de 175 línguas, e o Novo Testamento em mais de 208. No todo ou em parte, a Bíblia está traduzida em 972 línguas e dialetos, incluindo o Esperanto, língua internacional.

A tradução é obra muito difícil e dispendiosa; a publicação, só em parte é paga pela venda dos livros, porque são vendidos sem lucro, e a distribuição é feita principalmente pelas agências e pelos colpoltôres (distribuidores), que precisam de seus ordenados para suas despesas.

Na sua obra mundial, que estende sobre os cinco continentes e as ilhas dos sete mares, a Sociedade Bíblica Americana gasta anualmente mais de um milhão de dólares, ou 7.000:000$000 ao câmbio atual (em 1922; hoje tais cifras vão muito além, talvez três vezes mais).

Para a execução do seu programa mundial, a Sociedade Bíblica Americana depende em grande parte de ofertas e donativos de seus amigos e dos leitores da Bíblia. Contando com o trabalho feito pelas duas Sociedades, a Britânica e a Americana, e por mais de 30 outras Sociedades Bíblicas e algumas empresas publicadoras particulares -, calcula-se que atualmente (1922) não menos de 32.000.000 de exemplares das Escrituras Sagradas, em nada menos de 500 diferentes idiomas, se distribuem anualmente em todos os países do mundo. Em pouco mais de 100 anos, as duas Sociedades, a Americana e a Britânica, distribuíram pelo mundo: a primeira, 146.590.521 exemplares, e a segunda, 319.470.000, num total de 466.060.521 exemplares, até o ano de 1922. Não há no mundo outro livro que apresente tiragem e circulação semelhantes. 

2. Salvação pela fé ou pelas obras?
por Romeu A. Camargo
Empresa Gráfica da “Revista dos Tribunais - São Paulo SP - 1941
                       
A PALAVRA "RELIGIÃO", NA BíBLIA

Será, talvez, a maior das curiosidades que apresenta o maravilhoso livro, dada a natureza do seu conteúdo. Ninguém ignora que a Bíblia não é propriedade exclusiva desta ou daquela religião, desta ou daquela seita. É patrimônio comum, e o que é comum não é de nenhum, porque é de todos.

Não há, nessas mil e muitas páginas, uma só, onde se descubra uma dedicatória, uma referência mesmo, pela qual se conclua que o Livro pertence “exclusivamente” a esta ou aquela denominação religiosa, a este ou àquele povo. No Velho Testamento, particularmente nos cinco primeiros livros ou Pentateuco -, descobre-se que o grande legislador hebreu, Moisés, dirige-se ao povo de Israel, com o qual foi feito o pacto da Antiga Aliança. E é por isso que os judeus ou israelitas, nestes dias, ainda não aceitam o Novo Testamento, que para eles não tem valor, mas só o Velho Testamento, e isso mesmo em parte... É sabido que eles não aceitaram e não aceitam a realeza espiritual de Jesus, o filho do carpinteiro. Dizia o ardoroso pregador dos Gentios: “Pregamos a Cristo crucificado, que é escândalo para os judeus e loucura para os gentios". (I Cor., 1,23).

Na Bíblia encontram fundamento para suas convicções religiosas, muitas, muitíssimas religiões, além das inúmeras seitas existentes na face da terra. Dentre os povos protestantes, o norte-americano é o que mais propaga a leitura do volume sagrado. Das nações cristãs, a União Norte Americana é a mais populosa e a mais rica. Segundo noticiou o consulado americano desta capital, no "O Estado de S. Paulo", de 3-XIl.1940, pag. 3, coluna 2ª, a população dos Estados-Unidos, suas possessões e territórios, se eleva a 150.362.326 almas. Só na parte continental, a população é de 131.409.881.

Quanto ao sentimento religioso, é ainda a prodigiosa União Norte-Americana que ocupa o primeiro lugar. As estatísticas de 1936, que acabam de ser completadas, revelam a existência de 256 religiões e seitas distintas, em um total de 56.807.366 membros. Veja-se o mesmo órgão da imprensa paulistana, de 11-VIlI.1940, 1ª pág., 5ª coluna. Eis a distribuição desse total:

Catolicismo, 19.114.937 membros; Judaísmo, 4.641.184; Igreja Batista, 3.782.462; Igreja Metodista Episcopal, 3.609.763; Convenção Batista do Sul, 2.700.155; Igreja Metodista Episcopal do Sul, 2.071.783; Igreja Presbiteriana, 1.797.927; Igreja Protestante Episcopal, 1.735.335; Convenção Batista do Norte, 1.329.044; Igreja Luterana, 1.286.612; Discípulos de Cristo, 1.196.315. A seita com menos adeptos é a dos “Friends”, com uma igreja e 14 membros apenas. No Brasil há mais de trinta denominações evangélicas com suas igrejas organizadas (“O Mundo Cristão”, Abril de 1940; diretor, Ernesto Thenn de Barros, prof. do Ginásio Estadual de Tatuí, Estado de S. Paulo).

(Um parêntese. Segundo essas estatísticas de 1936, completadas agora, como afirma o comunicado norte-americano, numa população global de 131.409.881 pessoas, declararam-se ligados a religiões, 56.807.366. É este o total, reza a notícia. Falta, pois, classificar o modo de crer ou de não crer do restante, isto é, de 74.602.215 pessoas, ou seja a maioria da população. Para auxiliar o espírito de quem nos lê, diremos: haverá muitos materialistas, muitos descrentes, muitos céticos. Seja o número desses, aí por uns 20 milhões, o - que já representa muito materialismo, muita descrença, muita dúvida. Pois ainda restam 54 milhões e meio de pessoas, sem classificação... O comunicado, nessa lista discriminativa dos crentes, não faz a mais leve referência aos outros espiritualistas, como seja o teosofista, o espiritista, que representam duas escolas com avultado número de adeptos.

Eis que se aclara o caso, de modo indireto. Em uma de nossas estantes, pouquíssimas estantes, entre os poucos alfarrábios que ali fazem número, topamos com um livro de grande formato, encadernado, com 384 páginas. Nada mais que 24 fascículos enfeixados entre duas capas. Uma revista ilustrada, editada na Capital Federal. Esses fascículos são de Janeiro de 1901 a Dezembro de 1902, da revista "O Arauto da Verdade", publicação oficial da denominação religiosa Adventismo do Sétimo Dia ou Sabatismo. Na capital paulista, Rua Taguá, distrito da Liberdade, ergue-se o majestoso templo dos Adventistas do Sétimo Dia.

Trata-se de uma revista mensal, muito bem escrita, com escolhido corpo de colaboradores. Assuntos variados enchem as colunas, sobre exegese bíblica, história, geografia, economia política, questões de política internacional, estatísticas, etc., com ilustrações fotográficas, desenhos e gravuras. Continuando nesta digressão, dentro ainda do parêntese, queremos dar ao leitor uma notícia, colhida ali, nas páginas do volume do ano de 1901, nº 4, mês de Abril.

Como é sabido, os Adventistas ou Sabatistas são adversários implacáveis do Espiritismo, por estar este basificado no princípio da imortalidade da alma, ao passo que o Adventismo não admite a alma imortal senão para eles... Fora desse grêmio, não há imortalismo. Pois então, vai falar sobre o Espiritismo o Sr. Willi, no citado volume, pag. 56. Diz ele:

            “...Religião ou ciência, como quer que se lhe chame, desde que os seus ensinos implicam a origem, natureza e destino da humanidade, inculcando-se com verdades únicas na matéria, o seu estudo não pode nem deve ser desprezado, tanto menos quanto é crescido o número dos que a ele aderem, pois só nos Estados Unidos o número de seus adeptos é taxado em onze milhões". (O grifo é nosso). À pag. 39 do mesmo volume lê-se isto: “Estas manifestações, porém, manifestações espiríticas, como então lhes chamavam e ainda hoje lhes chamam, não ficaram por muito tempo restringidas à família Fox. Com efeito, este movimento adquiriu um impulso tal, que, no curto espaço de 2 a 3 anos o número dos médiuns, reconhecidos tais, nos diversos Estados (USA), era avaliado em mais de trinta mil." Assinado: R. M. Devens, no ‘Our First Century’.

Essas palavras e esses dados numéricos dispensam qualquer comentário, maximamente considerados como testemunho insuspeito. Qualquer um de nós, ou todos nós estamos habilitados a olhar com outros olhos aquele hiato, aquele espaço em branco na citada relação dos crentes recenseados recentemente nos Estados Unidos da América do Norte. Há quarenta anos, precisamente, - disseram os inconciliáveis adversários do Espiritismo que este contava nos Estados-Unidos 11.000.000 de adeptos, e, há noventa anos - ou três anos após os fenômenos prodrômicos (iniciais) das manifestações espiríticas, na família Fox, os médiuns eram em número superior a 30.000. Fechemos o parêntese).

Pois bem. Sendo a Bíblia, como é, a base de tantas, tantíssimas religiões e seitas cristãs, eis que no seu conteúdo, em toda a sua contextura, nessas centenas de milhares de palavras, nesses três milhões e meio de letras, a palavra “religião” aparece apenas duas vezes, e com significação que não é a corrente entre as diversificadas denominações da terra. Nem Moisés, guia do povo israelita e receptor da Lei Divina, nem Elias, nem os demais profetas da Antiga Aliança, nem mesmo o Mestre dos Apóstolos empregaram essa palavra ...

É que Jesus não veio trazer teorias, e “religião” não é teoria. Mestre único, veio ensinar a sua doutrina, que se baseia no exemplo, nas boas-obras; que se torna conhecida pelos “atos” e não pelas palavras. É sabido que Ele nada escreveu, ou antes, escreveu uma única vez, e essa mesma na areia ou no chão, sede das sujidades calcadas por nossos pés, e por isso a única página que merecia o registo da perversa hipocrisia dos chefes da “religião” judaica, que queriam ver condenada à morte, por lapidação - mas condenada por sentença de Jesus - aquela pobre mulher por eles mesmos feita adúltera, quando eles, acusadores, não podiam atirar a primeira pedra (como mandava a lei), por serem mais pecadores e mais culpados do que aquela pobre vítima da sua falseada “religiosidade”. (João, cap. VIII).

Jamais disse Jesus que viera pregar “religião”, no sentido de “corpo de doutrinas e de dogmas”, de “coisa sobrenatural”, “ritualismo”, “forma de culto”, “mistérios”, “exterioridades”. Isso tudo já estava ali, no Judaísmo, não por obra de Moisés, mas dos fariseus. “Em vão me honram, ensinando doutrinas e mandamentos que vêm dos homens. Este povo me honra com os lábios, mas o seu coração está longe de mim". (Mt., XV 8,9)

Fora da “igreja” de Jerusalém, pensavam os judeus, não era possível adorar a Deus. Uma religião regionalista, rigidamente i-gre-ji-fi-ca-da.

Com espanto e indignação, notavam os doutores da lei que o Mestre não predicava no templo, e o primeiro discurso que proferiu, o mais importante porque o em que resumiu o seu ensino, toda a sua doutrina -, esse, denominado o Sermão da Montanha, foi proferido ao ar livre, como a significar que suas palavras não podiam caber no espaço confinado por quatro paredes, mas deviam voar pelo infinito, nas asas de luz do seu verbo divino...

A essência desse discurso amorável é esta: “Deus é o pai de todos os homens e todos os homens devem amar-se uns aos outros.” Eis a religião, tal como a entendia Jesus, tal como a estabeleceu na terra. “Somente isto é religião, porque só isto religa os homens entre si.”

Eis explicado o silêncio da Bíblia, do Evangelho, sobre a palavra “religião”.

Em português - como sabemos - existem duas traduções autorizadas do Livro Sagrado: a católica, do Padre Antônio Pereira de Figueiredo, e a protestante, do pastor João Ferreira de Almeida. E esses ilustres tradutores encontraram a palavra "religião" apenas duas vezes! Empregaram-na os dois apóstolos do universalismo: Paulo e Tiago. Eis Os textos:

...porque eu - diz Paulo no seu admirável discurso perante o rei Agripa - segundo a seita mais segura da nossa religião, vivi fariseu." (Atos do Apóst., XXVI,5).

“Se algum pois cuida que tem religião, não refreando a sua língua, mas seduzindo o seu coração, a sua religião é vã. A religião pura, e sem mácula aos olhos de Deus e nosso Pai, consiste nisto: em visitar os órfãos e as viúvas nas suas aflições, e em se conservar cada um a si isento da corrupção deste século” (ou deste mundo). (Tiago, I, 26, 27).

Este apóstolo era companheiro inseparável de seu Mestre. Com a “mente” esclarecida pela palavra e pelo exemplo de Jesus, revela neste texto a ideia que formava de “religião”, ou melhor, “da” religião do Mestre.

“Há na terra duas religiões... igualmente necessárias - diz Latino Coelho -, a religião da fé e a religião do entendimento.”

Ensina o Mestre, em Mat., XXII, 37: - “Amarás o Senhor teu Deus de todo o “teu” entendimento” - e não de todo o teu credo... (*)

(*) A palavra credo é latina e quer dizer eu creio.


3. Salvação pela fé ou pelas obras?
por Romeu A. Camargo
Empresa Gráfica da “Revista dos Tribunais - São Paulo SP - 1941

                Seremos salvos pela fé ou pelas obras?

Não é filho de Deus quem não está filiado à Igreja de Roma. PIO XI.

Qual a resposta do católico? E a do protestante? E o que diz a Bíblia, base doutrinária de ambos?

É o que vamos ver. O próprio título deste opúsculo já indica a importância do assunto para esses crentes, por se referir ao destino da alma após a morte do corpo. Acompanhe-nos o leitor nesse inquérito, que é interessante e instrutivo; interessante, pela própria natureza do assunto, que diz respeito à vida futura, vida espiritual, que é vida imortal, e isto nos interessa; instrutivo, porque em toda investigação, em toda inquirição, em toda análise, nosso espírito ganha sempre algum ensino por nós ignorado, alguma informação que nos instrui. Da infância à velhice, não perde a criatura humana a curiosidade investigadora.

Acompanhe-nos o leitor na caminhada que vamos fazer e que não será longa, porque procuramos seguir a linha reta, deixando de lado as curvas traçadas pelas controvérsias religiosas. Para chegarmos ao fim desejado é bastante ouvirmos o ensino principal da Igreja Romana e da Igreja Reformada ou Protestante. Conhecida a voz dessas duas comunidades cristãs, escutaremos as Sagradas Escrituras, através da palavra dos representantes do profetismo do Velho Testamento, de par com a doutrina clara e sem ambiguidades de Jesus, no seu Evangelho, e divulgada por seus discípulos, notadamente os apóstolos Mateus, João, Paulo, Tiago e Pedro.

Uma pequena circunstância assinalada na vida da Igreja Cristã, mas de grande significação, e que não deve ficar esquecida, é esta: o apóstolo Paulo não fez parte do colégio apostólico durante os três anos em que o Mestre andou pela Palestina, no exercício do seu messianato. Conseguintemente, não lhe acompanhou os passos, não lhe ouviu a palavra como os outros apóstolos, nem testemunhou aqueles feitos maravilhosos narrados pelos evangelistas. Foi chamado à atividade, na Seara do Senhor, como "vaso escolhido" (Atos, 9:15), dois anos depois do drama do Calvário. Foi um embaixador “extraordinário”, um apóstolo especial, extranumeral, escolhido precisamente no momento em que se acumpliciava com os seus colegas de farisaísmo na cruel perseguição ao primeiro agrupamento de crentes.

A crueldade dessa perseguição culminou na morte de Estevão, que foi lapidado ou morto a pedradas, pelo fato de seguir as pegadas do Mestre, amando os seus semelhantes e obrando grandes prodígios. Culminara a exasperação dos perseguidores (entre os quais figurava Saulo ou Paulo), quando viram que não podiam resistir à sabedoria e ao espírito que falava em Estevão, e Saulo era consentidor na sua morte (2). Contudo, o ardoroso Paulo foi diretamente inspirado por Jesus, de quem recebeu a missão de pregar a Verdade fora do campo judaico, “diante das gentes, e dos reis, e dos filhos de Israel" ou judeus cristãos da congregação de Roma.

Tornou-se o maior e mais ativo dos pregoeiros do Evangelho, e foi, dentre os neo testamentários, o que mais escreveu. O Novo Testamento compõe-se de 27 livros: 4 evangelhos, 1 livro histórico (Atos dos Apóstolos), 1 livro profético (Apocalipse ou Revelação) e 21 epístolas ou cartas. Destas 21 epístolas, 14 foram escritas por Paulo, e encerram verdadeiro compêndio da doutrina cristã. (Na Vulgata Latina ou Bíblia Sacra Latina, que é a tradução do Antigo e do Novo Testamento, do hebraico e do grego, por São Jerônimo, no séc. IV, por ordem do papa Dâmaso, dada no ano 384, nessa tradução a Epístola aos Hebreus é atribuída a Paulo, e os protestantes adotam essa tradução, conforme se vê nas livrarias evangélicas. Possuímos um exemplar da Bíblia Sacra Latina ex Biblia Sacra Vulgata Editionis, Sixti V et Clementis VIII; London, Samuel Bagster and Sons Limited - 15 Paternoster Row, edição protestante da tradução católica. Não esqueçamos este ponto essencial: os Evangelhos, as Epístolas e o resto da Bíblia foram traduzidos no séc. IV, e o Protestantismo apareceu no seco XVI; no ano de 1517).

(2) Ler o livro histórico do Novo Testamento, Atos dos Apóstolos, caps. 6 e 7. A tradução do Padre Antônio Pereira de Figueiredo (do latim, de São Jerônimo) deve merecer preferência sobre todas as outras traduções, pela uniformidade da linguagem em todas as edições católicas e edições protestantes.


4. Salvação pela fé ou pelas obras?
por Romeu A. Camargo
Empresa Gráfica da “Revista dos Tribunais - São Paulo SP - 1941

Igreja Romana - O católico, a rigor, não afirma nem nega a salvação, se pela fé ou pelas obras. A razão é simples: ele se atém ao ensino de sua Igreja, e, sendo ela a única verdadeira e depositária única da verdade religiosa -, força é convir que a salvação de seus profitentes está garantida, desde que sejam obedientes aos mandamentos da Santa Madre. Não ignora o católico que a Igreja se encarrega de salvar as almas de seus adeptos, por meio das missas que os parentes destes mandam rezar, as quais são pagas adiantadamente, segundo a tabela de preços e a classificação delas (missa simples ou missa acompanhada de música sacra, missa com ornamentação do templo ou missa sem ornamentação, missa celebrada pelo vigário ou pelo coadjutor ou ainda por um bispo; quando encomendada por pessoas muito ricas ou pertencentes à alta sociedade ou às esferas governamentais, então a missa, de caráter especial, será rezada pela mais alta dignidade da Igreja, na província eclesiástica, com direito a uma solene alocução).

Essas cerimônias, é sabido, obedecem a preços tabelados, de acordo com a categoria do templo (na Igreja de S. Bento, por exemplo, aqui na Pauliceia, cujo templo é riquíssimo porque riquíssima é a Ordem dos Beneditinos, os preços não são os mesmos da tabela de outros templos menos ricos).   

Quanto, porém, ao estágio ou permanência nas chamas purificadoras do purgatório, é coisa ainda não sabida. Os próprios sacerdotes lá do Vaticano não sabem o tempo que as almas levam a penar. Todavia, dizem todos, no caso de dúvida, é sempre bom o sufrágio pelos mortos, como prova de devoção e de caridade. Assim, pode-se e deve-se mandar rezar missas por intenção da alma de pessoa falecida há muitíssimos anos. Talvez não seja impedida uma missa pela alma de Caim, de Pilatos ou de Torquemada.

Parece, mesmo, que não há razão nem conveniência para que a Igreja diga se a salvação é pela fé ou pelas obras; se é pelo poder da missa que ela tira as almas do purgatório, então não é nem pela fé, nem pelas obras... O que interessa, e muito, é a obediência passiva dos fiéis à palavra do sacerdote que é a palavra da Igreja (e, sendo a palavra da Igreja a mesma de Jesus, segue-se que a palavra do sacerdote é a palavra de Jesus). Consequentemente, não é da conta dos crentes saber se a salvação é por este ou por aquele meio. Cumpra cada qual os mandamentos da Igreja, faça o que ela manda e impõe, ainda que não compreenda o que vai fazer. Pouco importa. Não procure saber qual o destino da alma depois que o corpo baixar à sepultura. Na obediência absoluta está a chave da salvação. Nem mesmo uma consulta ao Evangelho deverá ser feita, porque acima da palavra de Jesus está, agora, a palavra do sacerdote, que é seu único representante, assim como os membros do clero, em geral. E no seio da Igreja já se anunciou que os sacerdotes estão, num certo ponto, acima do próprio Deus. Escute o leitor a palavra de um grande mestre:

“Estamos os eclesiásticos tanto acima dos governos, imperadores, reis e príncipes deste mundo, quanto o Céu acima da terra. Os reis e príncipes mundanos diferenciam-se tanto dos padres, quanto o chumbo do ouro mais fino e mais puro. Muito abaixo do padre estão os anjos e arcanjos; porque ele pode em nome de Deus perdoar os pecados, ao passo que os anjos nunca o puderam. Nós somos superiores à mãe de Deus; porquanto ela não deu à luz o Cristo senão uma só vez, e nós o criamos todo o dia. Sim, os sacerdotes estão, até certo modo, acima de Deus; visto que Ele deve achar-se a todo tempo e em toda parte, à nossa disposição, e por ordem nossa baixar do Céu para a consagração da missa.

Deus criou, é certo, o mundo, com a simples palavra “seja”; mas nós, padres, criamos o próprio Deus com três palavrinhas. Confessamos que todo e qualquer padre é maior que a mãe de Deus, Maria mesma, que apenas deu à luz Nosso Senhor uma vez só, enquanto um padre romano sacrifica e cria Jesus Cristo, não só em intenção, mas na realidade, onde quer que lhe parece, e, depois de cria-lo, ingere-o completo.” (Consulte-se Ruy Barbosa em O Papa e o Concilio, págs. 112 e 113, nova edição, Saraiva & Comp., editores, Livraria Acadêmica, S. Paulo).

E se os católicos não devem saber nada mais, além do que lhes ensina o sacerdote, claro é que não devem mesmo procurar ouvir a voz de Jesus no Evangelho. É essa a razão por que raríssimo é o católico que lê o Evangelho, base fundamental da sua crença, raríssimo o que se preocupa com questões doutrinais ou com a salvação de sua alma. Assim foram orientados e educados pela Igreja. Generalizou-se aquele ensino da Ordem dos Jesuítas, quanto à obediência cega devida à Igreja:

“Se nossos olhos virem que uma coisa é branca e a Igreja disser que é preta, devemos dizer que é preta, porque assim o diz a Santa Madre” Alguns dicionaristas registram certas locuções e frases peregrinas ou estrangeiras, entre as quais esta: Perinde ac cadaver, isto é, como um cadáver. E lá explicam: “locução que exprime a obediência passiva e absoluta, e que dizem ser a divisa dos jesuítas".

É a realidade. Entre os católicos não pode haver liberdade de consciência, muito menos a liberdade de examinar ou o livre-exame, como entre os protestantes. Nem mesmo o simples exame de um só ponto de fé. Basta crer: Nada de examinar! Cada crente, por assim dizer, passa procuração ao sacerdote para pensar por ele. E como bom procurador, o padre poderá dizer: feche os olhos, que eu olharei por você.     

Assim educados, não possuem os católicos o hábito da reflexão, de pensar por si mesmos, em matéria de religião. Daí essa fria indiferença que lavra na massa inteira dos católicos, pelas coisas da religião. Procuram fazer uso da “razão” quando tenham de emitir um juízo, uma opinião, fora desses limites, ou praticar um ato que acarrete responsabilidade. Aí, sim, a coisa é diferente, e não há procurador, porque o cantar é outro: aparece bem nítido o raciocínio ou trabalho operado pela razão. Seriam capazes até de subscrever aquela expressão de Garrett e registrada por Aulete: “Razão” que és d'alma o sol, gira em nossa alma, dá-nos dia e clarão ao pensamento.” Mas, em se tratando dos interesses da alma ou da vida imortal, a coisa muda de rumo: isso é lá com o seu guia espiritual, e este não aceita a autoridade da razão...

Nesses casos figurados, o bom católico não confia em nenhum estranho: ele mesmo é que raciocina, ele mesmo é que resolve, da mesma maneira que come com a sua boca; não é capaz de pôr sua assinatura num papel sem primeiro examinar o que ali está escrito; sua razão, nesse caso, é uma sentinela fiel e vigilante; em matéria de religião ou de coisas espirituais, prefere falar por outra boca e olhar com olhos que não sejam os seus. Em suma: elaboração própria, isto é, uma conquista mental que seja sua, não pode haver, em assunto religioso, porque não há conquista mental onde o cérebro é dirigido -por outro cérebro. Com justeza e com ironia mordente, assim se expressa o grande idealista e filósofo argentino, José Ingenieros, acerca dos homens que pensam e agem por essa forma: “Astrônomos houve que se negaram olhar para o céu, através do telescópio, temendo ver desbaratados os seus erros mais firmes. Pressentem um perigo em toda ideia nova; se alguém lhes dissesse que os seus erros são ideias novas, chegariam a julgá-los perigosos. Preferem o silêncio e a inércia; não pensar é a sua maneira de não errar. Seus cérebros são casas de hospedagem, mas sem dono; os outros pensam por eles que, no íntimo, agradecem esse favor.”


5. Salvação pela fé ou pelas obras?
por Romeu A. Camargo
Empresa Gráfica da “Revista dos Tribunais - São Paulo SP - 1941

Cristão não é, pois, aquele que segue a Cristo na prática da solidariedade e da fraternidade, mas sim o que obedece cegamente à Igreja da cidade de Roma. E o chefe dessa Igreja já o disse ao mundo inteiro: Não terá Deus como Pai quem se tiver recusado a ter a Igreja como Mãe. (Carta Encíclica de Pio XI, acerca da Educação Cristã da Juventude, pag. 7 - Empresa Gráfica da "Revista dos Tribunais", 1930 - S. Paulo).

Com o cérebro cheio de ideias afinadas por esse diapasão papal -, é claro que o católico não pode mesmo pensar na salvação, se pela fé ou pelas obras; e se não pode pensar, quanto mais opinar! ...

Uma coisa os católicos não ignoram e é esta: que eles se grupam em duas categorias bem definidas: católicos práticos e católicos teóricos. Os primeiros, aceitam sem relutância todos os dogmas, todo ensino, todos os mandamentos da Igreja. Os segundos, que constituem a maioria absoluta, não admitem a infalibilidade papal; não toleram a existência do confessionário onde um pecador vai pedir perdão a outro pecador por haver pecado contra outro pecador; não acreditam na existência de um inferno - lugar, arquitetado e construído pelo Pai da humanidade; não podem crer, seja a Igreja da cidade de Roma a única depositária da verdade religiosa, como se Deus, não podendo suportar o peso dessa verdade, se achasse na necessidade de reparti-la com uma única comunidade, privilegiadamente italiana; não acreditam que Os sacerdotes possam criar tantos Cristos quantas missas, diariamente; não acreditam que os sacerdotes façam descer Jesus do Céu, nos altares, o mesmo Jesus que andou na terra, para ser ingerido inteiro pelos sacerdotes no mistério da transubstanciação, como ainda o afirma hoje a Igreja; não admitem seja o padre mais poderoso que Deus.

Em se tratando de assunto merecedor de todo respeito, esse, que se refere ao destino da alma após a morte do invólucro material, não nos esqueçamos, leitor amigo, de que o papa Pio XI escreveu essa encíclica não para a mentalidade da Idade Média, mas para os dias desta geração, para a juventude destes dias. Acaso nutrirá esperança a Igreja de Roma, de que a juventude acolha com seriedade e com convicção tal sentença judicial do Sumo Pontífice?    

Ora, se a Igreja está realmente praticando e exemplificando o ensino de Jesus; ai ela está pregando a doutrina confraternizadora do Mestre, doutrina segundo a qual todos os homens são irmãos, sejam quais forem suas raças ou crenças -, se ela está cumprindo assim a sua missão de fiel condutora e de iluminadora de almas, como explicar que os homens se afastem mais e mais, em vez de se chegarem a ela?.. Se os seus sacerdotes são realmente os sucessores dos apóstolos e são um exemplo vivo de fé e de santidade -, como explicar a incredulidade assustadoramente avassalante em todas as camadas sociais? Como explicar, então, o fato de irem os homens buscar, fora da Igreja, conhecimentos que lhes saciem a sede de luz? Como isso?

Essas interrogativas merecem atenção. Após alguns minutos de reflexão, o leitor mesmo responderá, dizendo: “Estamos no século das análises. A Física e a Química, aliadas à Matemática e à Astronomia, governam o mundo. O homem de hoje quer estudar para conhecer, quer analisar para compreender, quer compreender para crer porque a fé - se de fato exprime convicção - não pode ter outra base que não seja a compreensão. Ninguém se convence de uma verdade que não seja entendida. Cada dogma - raciocinam hoje - deve encerrar uma verdade, e a verdade jamais temeu confrontos, porque uma verdade não pôde ir contra outra verdade. No entanto, os dogmas exigem e impõem o silêncio, e, pela voz da Igreja ensinam que os crentes devem crer neles sem indagar, obedecer sem discutir, caminhar sem olhar para o alto mas só para baixo, porque a palavra do... sacerdote é sagrada, é a palavra do próprio Deus".

Essa juventude que o papa Pio XI quis instruir com aquele espírito exclusivista, ardente de vida e sacudida pelas vibrações do bem e do belo, sem temor das ondas do pensamento contemporâneo; essa geração que surge amparada pelo influxo da verdadeira concepção da liberdade, da justiça, da verdade -, sim, essa gente nova que sabe pensar por si, concebe a religião não mais como um conjunto de ritos e símbolos, de dogmas indevassáveis e de mistérios amedrontadores, mas como adoração, justiça e amor, expressões espontâneas do sentimento e não mais da memória; entende essa geração nova que igreja é a assembleia das adorações, dos justos e dos que amam; compreende a religião como uma ciência, a ciência do amor e das ações. Sabe essa mocidade que a religiosidade de um indivíduo ou de um povo, não se mede pelas palavras nem pelo número, mas pelo sentimento de fraternidade corporizado na conduta, pelo nível moral das criaturas, pelo amor à verdade e à justiça, pela prática do bem.

E, caminhando nessa direção do pensamento, a juventude de nossos dias sabe pensar com o eminente economista belga, Emílio de Laveleye, afirmando que “a instrução é a base da liberdade e da prosperidade dos povos; afirmando, também, que em relação à instrução elementar, os povos protestantes estão mais adiantados que os povos católicos, visto que o culto protestante repousa sobre um livro: a Bíblia; O protestante deve, pois, saber ler, ao passo que o culto católico, pelo contrário, repousa sobre certas práticas, como a confissão, a missa, o sermão, que não exigem a leitura. Saber ler não é, pois, necessário; é antes um perigo, porque abala necessariamente o princípio da obediência passiva, sobre a qual se apoia todo o edifício católico."

Essa juventude que o papa Pio XI desejou ver envolvida pela ideia segundo a qual só a igreja italiana merece o amor de Deus, sim, essa juventude estuante, fervente de vida e de aspirações, sabe reflexionar com Victor Hugo, o maior cérebro francês de todos os tempos: "Para fazer um cidadão, principiemos por educar um homem. Abramos escolas por toda parte: Não é homem o que não tem a luz íntima que a instrução dá: é uma cabeça do grande rebanho, sem ação, que o dono guia, ora para a pastagem, ora para o matadouro. Aquilo que resiste à escravidão, na criatura humana, não a matéria, é a inteligência. Começa a liberdade onde acaba a ignorância.”

- É claro porque é lógico porque é racional, que a juventude contemporânea não representa cabeças do grande rebanho. Eis a razão por que os jovens de hoje não podem tolerar, não podem suportar o ensino que repele a luz da razão, que não admite o raciocínio dentro da religião. Se os dogmas não resistem a luz da razão num simples exame mental, é para duvidar-se, então, da sua solidez. Se não suportam o sopro da lógica, é que não encerram senão partículas da verdade, pois que a lógica é a ciência do raciocínio ou arte de chegar à verdade. E assim, a juventude, que já tem “olhos de ver”, vai logo raciocinando: dogmas significam “estática” ou “imobilidade”, mas o nosso século é da dinâmica, do movimento, da análise, do exame. E chega facilmente à conclusão fatal porque inevitável de que não é possível afinidade entre a inércia e o movimento, pois que a luz também é movimento, e movimento vibratório rapidíssimo...

Difícil, muito difícil, para os jovens, a resposta solicitada no frontispício deste opúsculo... Essa dificuldade jamais será diminuída, visto que a Igreja afasta-se mais e mais do ensino do Evangelho, o que vale dizer: afasta-se da palavra de Jesus. É que ela não quer deixar aquele dogmatismo da Idade Média, a escolástica, um misto de filosofia e teologia ensinado nas escolas, cujos professores ventilavam problemas de ginástica mental como estes: "Que cor tinha a barba de Judas? A mulher terá alma? Quantos anjos poderão caber na ponta de um alfinete?" - Isso tudo enricava o nome da Igreja, e essa riqueza era o Dogmatismo que, segundo os mestres, é o “sistema dos que admitem os dogmas; sistema dos que não aceitam discussão do que afirmam ou alegam.” E para dar vida a esse passadismo, muito artifício malabarístico se faz preciso. Aos olhos dessa juventude inteligente e indagadora, aos olhos dessa brilhante geração que surge com espírito já emancipado, não escapa a observação do movimento desenvolvido pela Igreja, de uns anos para cá, no sentido de tornar a religião cada vez mais externa, mais materializada, mais rica em exterioridades, para mostrar a sua pujança, o seu poder. A prova desse retrogradismo aí está nesses Congressos Eucarísticos, que reúnem os elementos da alta sociedade, a elite, o escol, a flor do intelectualismo. Para quê? Tal a interrogativa de toda gente que pensa, que raciocina; tal a interrogativa dos jovens destes dias. Por que não havia antes? Verdadeira novidade ou mais uma das mil inovações da Igreja de Roma -, os católicos das camadas mais baixas da sociedade ainda estão por saber o que significam esses congressos e o que valem para o povo que sente fome de pão espiritual; querem saber o que valem esses congressos dos letrados, se a grande massa dos iletrados, se a maioria da população jaz na escuridão do analfabetismo e na mais penosa ignorância dos ensinos de Jesus. Sim, querem saber qual o benefício colhido nessas reuniões aristocráticas pelo povo que trabalha e que faz toda a civilização; que se lhes aponte um só benefício para a grande massa que sofre, mas sofrimento que os Srs. congressistas ignoram, porque as grandes dores e as grandes deformidades morais se abafam no recesso das choupanas e dos escuros porões, cujo solo poderia manchar a sola dos ilustres membros desses banquetes intelectuais.

E, passados esses dias de fausto, de luminárias e de oratória, o povo continua na sua escuridão religiosa. Todavia, como ficha consolatória, lá no seu íntimo vai comparando esse espetáculo moderníssimo de Retórica Aristocrática Católica com aquela vida simples, sublime e edificadora de Quem não tinha sequer uma pedra onde reclinar a cabeça, mas que lançou aos quatro ventos este bálsamo para lenir as grandes chagas morais: “...aos pobres é anunciado o Evangelho. Bem-aventurados vós os pobres, porque vosso é o reino e Deus.” (Lucas, caps. 6 e 7).

“Serei salvo pela fé ou pelas obras?” - indagara na simpleza de sua bondade e de sua ignorância espiritual algum dos mais pobres dentre esses pobres que formam o povo.

Antes, porém, que o leitor adivinhe a resposta, faça uma experiência, que vamos lembrar. Provavelmente o amigo já conhece, como nós, os efeitos interessantes e engenhosos de uma câmara lenta dos estúdios cinematográficos. Pois bem, lembramos-lhe uma como imitação. Fechando os olhos, pelo espaço de meio minuto apenas, converta a sua mente em uma câmara lenta e faça desfilar por ela, um a um, todos os que habitam o seu lar e os demais parentes, e também todos os seus amigos, cada qual com a sua respectiva crença religiosa estampada na fronte. Para completar o número, o amigo encabeçará essa longa fila. Passados esses trinta segundos, reabra os olhos, escute a consciência e responda-nos: acha possível essa unanimidade de crença exigida pela Igreja Romana e confirmada solenemente pela fulminativa asserção de Pio XI? Seria possível esse unanimismo compacto, sem frinchas nem  poros? Acha o leitor possível levar todos esses parentes e amigos ao confessionário?

Com os olhos abertos, e agora, fora da sua câmara lenta, responda o leitor pelo católico: pela fé ou pelas obras?

Salvação pela fé ou pelas obras? - parte 2



6. Salvação pela fé ou pelas obras?
por Romeu A. Camargo
Empresa Gráfica da “Revista dos Tribunais - São Paulo SP - 1941

Igreja Reformada ou Protestante - O grande movimento religioso do século XVI foi o maior acontecimento dos tempos modernos. E a civilização moderna foi assinalada por quatro grandes invenções: a pólvora, a bússola, o papel e a imprensa.

E essas invenções determinaram uma mudança nos costumes e nos destinos do velho mundo. "A pólvora tornou inúteis as fortificações medievais dos castelos, e das propriedades dos nobres, deu o último golpe no regime feudal e consolidou o prestigio da realeza (ou dignidade do rei). A bússola, tornando mais seguras as derrotas (ou viagens marítimas), conduz às grandes descobertas, demonstra a esfericidade do planeta e lança por terra a antiga concepção geográfica (geocentrismo). O papel, tornando dispensável o caro pergaminho, preserva da destruição grande número de trabalhos de vulto que servirão para orientar a humanidade no período moderno, e fornece à imprensa o veículo próprio para a transmissão dos conhecimentos. Finalmente, a imprensa, vulgarizando as concepções do pensamento humano, torna a ciência accessível a todos e acaba com o monopólio que as ordens monásticas (conventos) faziam da instrução. O primeiro livro que se imprimiu foi a Bíblia, em 1445. A instrução deixou de ser um privilégio exclusivo das abadias, igrejas e universidades, e teve livre entrada em todas as mansões.”

A grande revolução religiosa teve, pois, bases firmes que garantiriam seu triunfo através dos séculos: as grandes descobertas marítimas, a invenção da imprensa e a renascença das ciências e das artes. “A essas causas veio-se juntar o. profundo desgosto pela corrupção do clero, seu luxo, sua insolência e sua ignorância, e a vulgarização dos conhecimentos científicos pelos leigos (não sacerdotes).”

Como é sabido, a Reforma teve como centro a Alemanha, berço de Gutenberg, que personifica a imprensa, e de Lutero, que corporiza a liberdade de pensamento.

Os crentes da Igreja Reformada são os continuadores daqueles que, orientados e dirigidos pelo ardoroso reformador alemão, protestaram, no séc. XVI (1517), contra o desvirtuamento da doutrina cristã pela Igreja de Roma.

Os reformados ou protestantes, ou ainda, cristãos evangélicos, procuraram seguir a Moral do Evangelho e praticá-la. E por assim pensar e proceder, os protestantes tornaram a linha de frente no caminho do progresso, deixando os romanistas na retaguarda. Vamos repetir o que dissemos há pouco, em outro trabalho: por que não se vê espetáculo semelhante ao espanhol (luta fratricida, de 1936 a 1939) na Holanda protestante, na Suíça mais protestante que católica, na Dinamarca protestante, na Suécia protestante, na Noruega protestante, na Inglaterra protestante, na Alemanha feita e formada no protestantismo, na União Norte Americana protestante? De onde virá esse espírito de ordem, de disciplina, de respeito à liberdade de consciência, “condição e fonte de todas as liberdades”? Por que não se verificam, nesses países, movimentos subversivos, abalos desfibradores da ordem? A causa dessa superioridade que caracteriza os povos protestantes está na qualidade do sistema educativo, do sistema de formação mental, do sistema de cultura da alma do povo, sistema que tem por principal escopo a iluminação do espírito e a abolição completa do analfabetismo, erva daninha que viceja frondejante no campo romanista. É essa a explicação da superioridade dos povos protestantes sobre os povos católicos. E a Espanha foi o espelho fiel onde o mundo viu a falência completa do sistema católico romano, na formação moral, mental e espiritual de seus professantes, sim, a Espanha que foi sempre alimentada de catecismo e dominada pela Igreja. “Repleta de igrejas, cheia de conventos, povoada de organizações religiosas, a Espanha é a região do planeta onde os dogmas dos bispos romanos encontraram mais guarida e maior amplitude.” (Emmanuel). (*)

(*) Ver nosso livro "De cá e de lá", págs. 289 e 441.

O leitor tem ao alcance da vista, que lhe oferecemos, excelente elemento probante, da referida superioridade do sistema educativo protestante sobre o sistema educativo católico: a estatística. É um documento de valor, porque é a expressão numérica das forças sociais.

Ilustre escritor patrício, em magnífico artigo publicado no "O Estado de S. Paulo", do dia 19 Fev. 1938, citou a The Modern Encyclopedia, de cujas páginas extraiu a relação dos principais países civilizados, com a respectiva porcentagem de analfabetos.

Baseado naqueles algarismos, imaginemos distribuída em cidades de 10.000 almas, a população de cada um dos países seguintes.

Países protestantes - Em cada cidade de 10.000 habitantes, possuiria a Suécia apenas 1 analfabeto, a Suíça 1, a Dinamarca 2, a Alemanha 3, a Holanda 20, a Inglaterra e Escócia 30, os Estados-Unidos 430.

Países católicos - Em cada cidade de 10.000 habitantes, a França possuiria 840 analfabetos, a Bélgica 930, a Itália 2.700, a Argentina 3.790, o Uruguai 3.980, o Chile 4.790, o Equador 5.000, a Colômbia 6.000, a Espanha 6.370, Portugal 6.800, e o Brasil 7.550. (Cálculos baseados nos dados da The Modern Encyclopedia).

A eloquência do contraste é impressionante. Os países mais adiantados são exatamente os que procuram ler a Bíblia como a única regra de fé e prática, o Evangelho, cuja Moral ensina ao homem a compreender o que faz na terra, porque aqui está, para onde vai, e, sobretudo, ensina ao homem a amar os seus semelhantes que são seus irmãos. Essa Moral, que faz abrir os olhos e lhes desvenda os infinitos horizontes da Espiritualidade, leva o homem a compreender que cada um é responsável por seus pensamentos, por seus atos, por sua conduta, por seu destino. Dando a cada um a noção e o senso da responsabilidade individual, é bem de ver que essa Moral não pode ensinar que João, pecando por pensamento contra José ou Josefina, vá confessar esse pecado ao ouvido do pastor e este o declara limpo desse pecado.

Diferente do católico que nada diz porque nada abe acerca da salvação - se pela fé ou pelas obras -, o protestante tem suas diretrizes, sabe pensar por si. Essa disparidade é um libelo acusatório contra a Igreja Romana. Como diz um grande filósofo cristão, "dezenove séculos decorreram desde os tempos do Cristo, dezenove séculos de autoridade para a Igreja, dos quais doze de poder absoluto. Quais são, na hora presente, as consequências do seu ensino?

O Cristianismo tinha por missão recolher, explicar, difundir a doutrina de Jesus, dela fazer o estatuto de uma sociedade melhor e mais feliz. Soube ela desempenhar essa grande tarefa? Julga-se a árvore pelos seus frutos, diz a Escritura. Verga ela ao peso de frutos de amor e de esperança? A árvore, indubitavelmente, se conserva sempre gigantesca, mas, na sua ramaria, quantos galhos não foram decepados, mutilados, quantos outros não secaram, quantos não ficaram infecundos!

De que procede o atual estado de coisas? Durante doze séculos a Igreja dominou, formou a seu talante a alma humana e toda a sociedade. Em sua mão se concentravam todos os poderes. Todas as autoridades residiam nela, ou dela procediam. Ela imperava sobre os espíritos como sobre os corpos; imperava pela palavra e pelo livro, pelo ferro e pelo fogo. Era senhora absoluta no mundo cristão; nenhum freio, nenhum marco limitava a sua ação. Que fez ela dessa sociedade? Queixa-se da sua corrupção, do seu ceticismo, dos seus vícios. Esquece-se de que, acusando-a, acusa-se a si mesma? Essa sociedade é obra sua; a verdade é que ela foi impotente para a dirigir e melhorar. A sociedade corrompida e cética do século XVIII saiu de suas mãos. Foram os abusos, os excessos, os erros do sacerdócio que determinaram o seu estudo ele espírito. Foi a impossibilidade de crer nos dogmas da Igreja o que impeliu a humanidade para a dúvida e para a negação.

O materialismo penetrou até a medula no corpo social. Mas de quem é a culpa? Se as almas tivessem encontrado na religião, tal como lhes era ensinada, a força moral, as consolações, a direção espiritual de que necessitavam, ter-se-ia afastado dessas igrejas que em seus poderosos braços embalaram tantas gerações? Teriam elas deixado de crer, de amar e de esperar?

A verdade é que o ensino da Igreja não conseguiu satisfazer as inteligências e as consciências. Não pode dominar os costumes; por toda parte lançou a incerteza, a perturbação do pensamento, de que proveio a hesitação no cumprimento do dever e, para muitos, o aniquilamento de toda esperança.

Se, no auge do seu poderio, a Igreja não conseguiu regenerar a humanidade, como o poderia fazer hoje? A Igreja Romana sempre impôs o temor de Deus às multidões. Havia nisso um sentimento necessário para realizar o seu plano de domínio, para submeter a humanidade semibárbara ao princípio de autoridade, mas um sentimento perigoso, porque, depois de haver feito por muito tempo escravos, acabou por suscitar os revoltados -, sentimento nocivo, esse do medo, que, depois de ter levado o homem a temer, o levou a odiar; que o ensinou a não ver no poder supremo senão o Deus das punições terríveis e das eternas penas, O Deus em cujo nome se levantaram os cadafalsos e as fogueiras, em cujo nome correu o sangue nas salas de tortura. Daí se originou essa reação violenta, essa furiosa negação, esse ódio à ideia de Deus, do Deus carrasco e déspota, ódio que se traduz por esse grito que hoje em dia ressoa em toda parte, em nossos lares: nem Deus, nem Senhor!

Ah! Talvez, se a Igreja abandonasse os seus palácios, as suas riquezas, o seu culto faustoso e teatral, o ouro e a púrpura; se, cobertos de burel, com o crucifixo na mão, os bispos, os príncipes da Igreja, renunciando aos seus bens materiais e se tornando, como o Cristo, sublimes vagabundos, fossem pregar às multidões o verdadeiro evangelho da paz e do amor, então talvez a humanidade acreditasse neles. Não se mostra disposta a Igreja Romana a desempenhar esse papel; o espírito do Cristo parece cada vez mais abandoná-la. Nela quase não resta senão uma forma exterior, uma aparência, sob a qual já não existe mais que o cadáver de uma grande ideia."

* * *

No tocante à doutrina da salvação, se pela fé ou pelas obras, a Igreja Reformada, pela voz de todas as suas denominações (Igreja Metodista, Igreja Presbiteriana, Igreja Batista, Igreja Cristã, etc.) definiu a sua posição. O pecador se salva pela fé, sem o concurso das boas-obras. Estas jamais entrariam no plano judicial de Deus. "Pela graça é que sois salvos, mediante a fé, e isto não vem de vós, porque é um dom de Deus. Não vem das nossas obras, para que ninguém se glorie.” (Efésios, 2:8, 9). A salvação depende da fé na eficácia expiatória do sangue de Jesus.

Na Igreja Presbiteriana; pode-se consultar a obra “Esboços de Teologia”, do rev. A. A. Hodge, prof. de Teologia Sistemática no Seminário Teológico de Princeton, New Jersey, USA. Leia-se o cap. XI, bem como o cap. XXXIII, págs. 465 a 468, edição de 1895, sob o título "Da Justificação".

Esse versículo da carta de Paulo aos Efésios é o eixo em torno do qual gira toda a doutrina que forma a estruturação religiosa do Protestantismo.

De acordo com o ensino da Igreja Presbiteriana, Deus é Pai de amor infinito. É ensino de aceitação geral. Vejamos outro, não geral. É do Presbiterianismo. Antes de formar a Terra, ou melhor, antes de criar os milhões de estrelas, de planetas e de nebulosas ou poeiras de estrelas que rolam no Infinito -, Ele, que é onisciente, escolheu as criaturas que ainda não existiam, umas para o gozo da bem-aventurança eterna, e outras, em número muito maior, para o fogo de tormentos sem fim.

É o dogma da predestinação divina. Segundo este dogma, “os fiéis são salvos não por um exercício da sua livre vontade, nem por seus próprios merecimentos, porque não há livre-arbítrio em face da soberania de Deus, mas por efeito de uma "graça" que Deus concede a seus eleitos. Acompanhando este argumento em todas as suas consequências lógicas, poder-se-ia dizer: é Deus quem atrai os escolhidos; é Deus quem endurece os pecadores. Tudo se faz pela predestinação divina. Adão, por conseguinte, não pecou por seu livre-arbítrio; quem não tem liberdade, não tem responsabilidade.” “A liberdade e a responsabilidade são correlativas no ser e aumentam com sua elevação; é a responsabilidade do homem que faz sua dignidade e moralidade. Sem ela, não seria mais do que um autômato, um joguete das forças ambientes: a noção de moralidade é inseparável da de liberdade. A responsabilidade é estabelecida pelo testemunho da consciência, que nos aprova ou censura segundo a natureza de nossos atos. A sensação do remorso é uma prova mais demonstrativa que todos os argumentos filosóficos. Para todo espirito, por pequeno que seja o seu grau de evolução, a Lei do dever brilha como um farol, através da névoa das paixões e interesses. Por isso, vemos todos os dias homens nas posições mais humildes e difíceis preferirem aceitar provações duras a se abaixarem a cometer atos indignos.” - Se Adão foi predestinado à queda, a Lei do dever era então um farol apagado e ele não poderia fugir á queda; consequentemente, não era ou não foi responsável, visto que Deus, absoluto e soberano, o predestinou à queda...

E, a queda de Adão induz fatalmente à pesquisa sobre a origem dessa entidade pessoal que o levou a cair, conduzido pelo braço de sua companheira. De onde veio o tentador, diabo ou satanás? Se no Éden ou paraíso terreal só existia o casal, duas criaturas puras e inocentes -, como explicar a existência, ali, de uma entidade pessoal, disfarça da sob a pele de serpente, com autoridade ou poder superior ao de Deus, pois que seu palavreado prevaleceu sobre a ordem divina e o casal caiu na tentação da desobediência, comendo do fruto proibido? (Gen., 2:16, 17 e cap. 3, vers. 1 a 13),

Essa inquirição admite esta alternativa: ou esse ser foi criado ou não foi criado; se foi criado, é criatura de Deus e nesse caso é a negação da Bondade Infinita, mas não deixa de ser irmão do casal claudicante (e tio da descendência); se não foi criado, então é incriado ou eterno; mas, seria o cúmulo dos absurdos admitir a ideia de duas Eternidades ou dois Infinitos, um, o Infinito do bem, derrotado em seus planos pelo Infinito do mal.
Deixemos de analisar essa questão filosófica, para não entrarmos nos domínios da metafísica, pois sairíamos dos limites desta obrinha. Podemos dizer, de escantilhão e à guisa de reportagem, que é promissor o movimento que já se vai operando no seio das congregações evangélicas, a prol da revisão de seus postulados.

Na Inglaterra, por exemplo, o protestantismo está revelando acentuado interesse por uma revivificação espiritual. Será certamente o primeiro fruto dessa acurada e profunda investigação em torno de ensinos tradicionais, como o da ressurreição dos corpos, o da unicidade da existência, o do inferno eterno. Quem lê revistas e jornais ingleses pode acompanhar esse movimento evolutivo. Não nos referimos a publicações particulares ou de associações, mas aos grandes órgãos da imprensa britânica, The Times, Daily Express, em cujas colunas se encontram frequentemente artigos, notícias e fotografias, de fundo nitidamente religioso, em busca da verdade, sem peias de preconceitos ou de dogmatismos, antes, com base no testemunho irretorquível da experimentalidade objetiva dos fatos, no vastíssimo campo das investigações psíquicas.


7. Salvação pela fé ou pelas obras?
por Romeu A. Camargo
Empresa Gráfica da “Revista dos Tribunais - São Paulo SP - 1941

Pela fé ou pelas obras?
Paulo e Tiago estarão em desacordo
quanto ao método de salvação?

AMBOS, DENTRO DO EVANGELHO.

O leitor precisa conhecer um ponto importante, sim, importante para quem crê no Evangelho e o adota como única regra de vida. É aquele ponto em que parece haver divergência entre esses dois grandes apóstolos, quanto ao plano de salvação dos homens. Essa divergência - dizem os intérpretes ou exegetas bíblicos - é aparente e não real.

Paulo fala da justificação (digamos logo salvação) pela fé, sem as obras; Tiago fala da Justificação pelas obras e não pela fé.

A Reforma, pela voz de Lutero e de Calvino, concentrou o plano de salvação ou iluminação do homem no pensamento vazado nestes dois versículos: “Pela graça é que sois salvos mediante a fé, e isto não vem de vós, porque é um dom de Deus. Não vem das nossas obras, para que ninguém se glorie". "O justo vive da fé.” “(Epístolas de Paulo: aos Efésios, cap. 2 v. 8; aos Gálatas, cap. 3 V. 11).

Está firmado o plano de salvação. Meditado, examinado e analisado, quer dizer: a salvação é dom ou dádiva de Deus. Não depende da vontade do homem. Está condicionada entre outros dois dons, ou, flutua entre outras duas dádivas de Deus: a graça e a fé.

As obras do pecador nada valem diante da graça e da fé. Deus não as vê, como também não vê o esforço e o trabalho do homem para se salvar. Segundo Calvino (fundador do calvinismo ou presbiterianismo) serão salvos da condenação eterna não todos os homens, mas os predestinados ou eleitos por Deus. Eleger, bem o sabemos, é escolher, preferir; logo, é parcializar ou escolher uma parte e deixar a outra parte. Mas, racionalmente, ninguém ousaria atribuir a Deus a fraqueza de querer ser parcial.

Pergunta-se: não quer toda a humanidade a salvação? Sim. E por que não se salvam todos os homens? Porque depende isso da “graça” que Deus concede, não a todos os filhos, mas aos seus eleitos ou preferidos que são os predestinados à salvação. Logo, a salvação ou iluminação não depende da vontade do pecador, faça o que fizer, viva ele a vida que viver, de provação, de privação, de paciência, de resignação, de inflexível moralidade, amando e praticando a beneficência.

E porquê tudo isso nada vale? Simplesmente porque a salvação depende exclusivamente da graça e da , dois dons, duas dádivas, conferidas a quem é eleito ou escolhido por Deus. Ganha-as, não quem quer, mas aquele a quem Deus quer.

Como está vendo o leitor, essas reflexões giram em torno da palavra de Paulo, mas palavra isolada do resto da sua palavra no resto das suas epístolas. Examinemos a questão.

Coloquemos a epístola de Paulo aos Gálatas em frente da de Tiago, outro apóstolo, este, companheiro inseparável de Jesus. Que resulta desse confronto? Ouçamos Tiago:

“Que aproveitará, irmãos meus, a um que diz que tem fé, se não tem obras? Acaso podê-lo-á salvar a fé? Se um irmão, porém, ou uma irmã estiverem nus, e lhes faltar o alimento quotidiano, e lhes disser algum de vós: ide em paz, aquentai-vos e fartai-vos; e não lhes derdes o que hão de mister para o corpo, de que lhes aproveitará? Assim também a fé, se não tiver obras, é morta em si mesma.

Poderá logo algum dizer: Tu tens a fé e eu tenho as obras; mostra-me tu a tua fé sem obras; e eu te mostrarei a minha fé pelas minhas obras. Tu crês que há um só Deus. Fazes bem, mas também os demônios o creem, e estremecem. Queres, pois tu saber, ó homem vão, que a fé sem obras é morta? Não é assim que nosso pai Abraão foi justificado pelas obras, oferecendo a seu filho Isaac sobre o altar? Não vês como a fé acompanhava as suas obras, e que a fé foi consumada pelas obras? Não vedes como pelas obras é justificado o homem, e não pela fé somente? Do mesmo modo até Rahab, sendo uma prostituta, não foi ela justificada pelas obras, recebendo os mensageiros (ou espiões de Josué) e fazendo-os sair por outro caminho?

Porque, bem como um corpo sem espirito é morto, assim também a fé sem obras é morta." (Cap. 2, vs. 14 a 26).

* * *

Esses treze versetos, por si sós, dissipam qualquer dúvida sobre a questão... A linguagem de Tiago é clara, claríssima, sem ambiguidade, sem sentido figurado. Mas, continuemos a considerar o assunto, posto que está entre a palavra de Paulo e a de Tiago.


8. Salvação pela fé ou pelas obras?
por Romeu A. Camargo
Empresa Gráfica da “Revista dos Tribunais - São Paulo SP - 1941

SALVAÇÁO PELA FÉ - DIZ PAULO
SALVAÇÁO PELAS OBRAS - DIZ TIAGO

Sim, cada um no seu ponto de vista. Não há antinomia ou contradição.

Acompanhe-nos o leitor na elucidação do assunto. Dispa-se, porém, de qualquer ideia preconceituada. Preconceito é conceito antecipado, e com ele ninguém poderá julgar, porque será mau observador, e mau observador nunca poderá ser bom julgador. É que o preconceito não permite ao homem reflexionar nem comparar ideias. É espirito de partido, de sistema, que se afasta da opinião geral para formar a sua opinião. Nesse estado mental, o sectário não poderá ler isto que estamos escrevendo, porque seus olhos lerão antes o que ele traz no cérebro e não o que estas linhas dizem.

Varia entre os homens a ideia acerca da finalidade da obra de Jesus. E não podia deixar de ser assim, desde que o modo de entender ou de apreender está proporcionado à capacidade mental que é capacidade intelectiva, e a inteligência varia de indivíduo a indivíduo. Sabe-se que entre os seres criados, animados e inanimados, não há dois iguais, e o grande Charles Richet, o maior mestre em Fisiologia (“ciência dos fenômenos da vida e das funções dos órgãos, tanto dos animais como dos vegetais”), afirmou que não existe igualdade entre duas coisas, nem mesmo entre dois átomos de hidrogênio. “A inteligência compreende como pode, não como se quer. Forçar os espíritos a crer, sob o pretexto de unidade de fé, é enganar-se de domínio, submetendo o espírito a força, que é lei da matéria.”

Consequentemente, quem diz “conhecimento”, “capacidade", e as capacidades geram a “diversidade”. Daí, aquela inspirada pergunta de Bossuet, o ilustre bispo de Meaux (França) e célebre orador: “Que diríeis de um homem que não soubesse ler uma carta? Não seria, de certo, que a carta não exista, mas que ele a não sabe ler. Porque negais as verdades que não podeis entender?

Não andará errado quem se propuser descobrir no Evangelho, no espirito e não na letra desse maravilhoso livro, o verdadeiro caráter e a verdadeira finalidade da obra realizada pelo Mestre.

É com esse propósito que nos apresentamos. Desprezamos toda a sabedoria de fora, desde que não esteja de acordo com a palavra de Jesus, seja sabedoria encasacada pela filosofia ou abatinada pelo cientificismo teológico, mas sempre sabedoria inclinada á “infalibilidade, que é uma tirania intelectual.” Preferimos dar pouco, muito pouco, mas do que é real, a fazer transfusão de ideias anuviadas, máxime no campo da fé, que estamos palmilhando.

Na aquisição do conhecimento do Evangelho que é o pensamento de Jesus ou o pensamento de Deus, obedecemos ao conselho de ilustre escritor francês: “Pelo que toca ao conhecimento de Deus, não peçais a cada um, senão “segundo a medida de fé que Deus mediu para cada um, escreveu formalmente S. Paulo, “somente essa fé constitui uma adoração racional" (Rom., XII 1 a 3). E Deus mede a cada um, diz Jesus, segundo a capacidade de cada um” (Mat., XXV, 15).

Dito isso, passemos adiante. Vejamos a suposta disparidade entre as duas epístolas.

Lendo o prefácio dessas cartas, ressalta logo à nossa vista o seguinte: Paulo escreveu cartas particulares, a certas e determinadas igrejas ou agrupamentos de crentes, e até a determinadas pessoas, como iremos ver daqui a pouco -, ao passo que Tiago escreveu carta ou Epístola Católica (isto é, Universal) “às doze tribos que estão dispersas” ou sejam os Judeus convertidos e espalhados pelo mundo. Não se dirige a uma igreja, a uma congregação, a um indivíduo, mas a todos os cristãos, vindos do Judaísmo. É epístola de caráter universal, e como tal, todas as instruções, todos os ensinos, todos os conselhos ali encerrados, têm este endereço: a toda a cristandade. O autor dessa carta generalizou as suas instruções, que serviriam aos cristãos da Palestina, da Etiópia, da Grécia ou da China. Um padrão para todo crente.

Este traço distintivo é de importância capital. Outro é o objetivo das cartas paulistas, que visam núcleos locais, ora na Europa (Roma, Corinto, Tessalônica, Filipos), ora na Ásia (Colossos, Éfeso, Galácia).

Essas cartas, segundo o teor de cada uma, obedeciam a interesses locais, ocasionais, o que diferenciou a natureza delas, pois o conteúdo mostra a diversidade do assunto.

Para radicar no espírito do leitor a certeza da particularidade e não generalidade das epístolas de Paulo, vamos examinar rapidamente algumas delas. Vejamos em primeiro lugar a Epístola de Filemon. Citaremos sempre a tradução do Padre Antônio Pereira de Figueiredo, pelo motivo declarado no começo desta obrinha. Servimo-nos da edição católica do revm. Santos Farinha, a qual encerra algumas anotações do editor.

A Epístola a Filemon é única no gênero. Carta particular, de caráter íntimo. De Roma escreveu Paulo a Filemon, homem de posição que vivia em Colossos (Ásia), convertido ou pelo próprio Paulo ou por seu discípulo Epafras, Paulo remete Onésimo, escravo de Filemon, que fugira de casa do seu senhor com receio de ser castigado, acolhendo-se em Roma sob a proteção do apóstolo, que o instruiu na fé. Terminada a obra de conversão do escravo, remeteu-o com todas as provas de consideração, recebendo-o Filemon de braços abertos e cooperando ambos na difusão do Evangelho.

As três Epístolas aos discípulos Timóteo e Tito, “epístolas pastorais”, tratam de assuntos referentes ao ministério pastoral, e em particular à escolha, aos deveres e virtudes dos pastores de almas.

Vejamos as Epístolas de caráter coletivo. Tomemos a 1ª Epístola aos Coríntios.

“Esta não tem nada de dissertação nem de tratado dogmático; é uma série de avisos, reflexões, soluções dirigidas pelas circunstancias e repartidas em sete artigos: Podemos dividi-la da seguinte forma:

           PRIMEIRA SEÇÃO - Reforma dos abusos notados em Corinto:

a) abusos introduzidos por certos pregadores (caps. I e IV);

b) diversos escândalos dados por particulares (caps. V e VI).


SEGUNDA SEÇÃO - Resposta às dúvidas formuladas:

a) sobre o casamento (cap. VII);

b) sobre os manjares consagrados aos ídolos (cap. VIII e X);

c) acerca da ordem durante as reuniões na igreja (cap. XI);

d) do uso dos dons espirituais (cap. XII e XIV);

e) sobre a ressurreição ou transfiguração cap. XV).”

Esta Epístola revela o espírito disciplinado e disciplinador do grande apóstolo, que responde a perguntas que lhe foram dirigidas e dá solução a questões submetidas ao seu alto critério.

Motivos locais da congregação da cidade de Corinto, na Europa, determinaram essa carta de Paulo, escrita da cidade de Éfeso, na Ásia, no ano 56.

Vamos agora examinar os motivos que levaram o apóstolo a escrever aos crentes da cidade de Éfeso. Achava-se ele em Roma, no ano 62.

Éfeso, metrópole da Ásia proconsular (governada por um pro cônsul, do império romano, era célebre pelo seu comércio, pela sua riqueza e sobretudo pelo seu celebérrimo templo de Diana, uma das sete maravilhas do mundo. Paulo chegou até aí, pregou, recolheu bom fruto do seu apostolado e fundou aí uma florescente cristandade. Nesta Epístola o grande apóstolo dirige-se aos seus irmãos e procura-os penetrar do grande amor que deviam ter a Jesus Cristo, deixando os enganos fantasiosos da mentira, as artimanhas da gentilidade ou paganismo, as sutilezas dos gnósticos (filósofos que formularam e ensinaram a Gnose ou Conhecimento em Ciências Sagradas).

Objeto dessa Epístola:

a) pôr em relevo a grandeza da obra de Jesus; todos os povos e todos os indivíduos foram pelo Redentor chamados à adoção divina [cáp. I, cáp. II, v. 11);

b) traçar aos cristãos a sua regra de conduta, dar-lhes conselhos gerais (cáp. IV; cáp. V vs. 21) e particulares (cáp. V vs. 22 e cáp. VI) para os diversos estados da vida cristã.

O estilo é as vezes obscuro, mas as ideias são profundas e os pensamentos sublimes.

Para se fazer ideia do atraso mental do povo efésio, bastará ler o pequeno relatório do grande apóstolo, em Atos dos Apóstolos, pelo qual se vê o perigo a que se expôs, quando foi anunciar ali o Evangelho. Tão fanáticos pelos deuses da mitologia grega, pelas imagens ou ídolos fabricados pelos artífices - mas, sobretudo pela imagem de Diana, deusa, filha de Júpiter, que, não só não queriam ouvir a Paulo, como nem ao menos queriam ouvir a voz de um judeu! E Paulo era judeu. Tamanha confusão reinou no seio do povo, quando souberam que havia judeus pregando o Evangelho, que discípulos de Paulo não lhe permitiram se apresentasse no teatro da cidade, onde pretendia falar acerca da doutrina do Crucificado, Fanatizado por sua crença, o povo, querendo mostrar a sua desaprovação e repulsa pela palavra dos Judeus, chegou a gritar pelo espaço de quase duas horas: “Viva a grande Diana os efésios! (Atos dos Apóstolos, cáp. 24 a 28 e cáp. 19 vs. 1 a 40).

A esse povo, de costumes grosseiros, praticante de obras más, na proporção desses costumes faltos de moralidade - não podia falar Paulo que Jesus exigia boas obras, pois que os efésios entenderiam por boas obras, as que eles praticavam...

Nas instruções e nos conselhos gerais de sua Epístola aos Efésios, o grande apóstolo fala muito claramente sobre as obras a serem praticadas. “E não comuniqueis com as obras infrutuosas das trevas, mas antes, pelo contrário, condenai-as; porque as coisas que eles fazem em secreto, vergonha é ainda dizê-las. (Cap. 5 vs, 11, 12).        

Passando a apontar os deveres domésticos, aí, sim, fala Paulo de modo a servirem suas instruções e seus conselhos a todo e qualquer cristão e a estranho mesmo. Um compendio de sublimes normas morais, sobressaindo as que ditam deveres conjugais, visando diretamente a família, célula fundamental da sociedade, Exortações aos maridos, às esposas, aos filhos, aos servos (escravos) e aos senhores.
           
            Uma congregação, uma família, um indivíduo, com normas desse quilate, finíssimo quilate, não poderiam deixar de praticar muito boas obras, excelentes obras, desde que subordinadas à ideia motriz, à fé geradora dessas obras, não aquela do politeísmo observada no famoso templo de Diana, que tal fé não era senão um índice das obras vergonhosas -, mas a fé baseada na doutrina de Jesus, fé sinônima de virtude, força, coragem de avançar para a frente, confiante no poder de Deus, na autoridade de Jesus, como a do comandante do batalhão romano que a externou por esta forma: “Senhor, eu não sou digno de que entres na minha casa; porém, manda-o só com a tua palavra, e o meu criado será salvo, Pois eu também sou homem sujeito a outro, que tenho soldados às minhas ordens, e digo a um: Vai acolá, e ele vai; e a outro: Vem cá, e ele vem; e ao meu servo: Faze isto, e ele o faz.” “E Jesus, ouvindo-o assim falar, admirou-se (porque esse centurião era pagão como os seus superiores e o resto do governo imperial romano), e disse para os que o seguiam: em verdade vos afirmo que não achei tamanha fé em Israel!” (Mt., 8 vs. 5 a 10). Isto é, entre os Judeus, não vi fé semelhante!

O comandante da centúria (cem soldados) não externara ideia alguma acerca de Deus ou de Jesus; não tinha nem podia ter opinião religiosa sobre Jesus, porque era ele uma parcela do poder público da Roma pagã, e como pagão só podia ter ideias pagãs, confusas e anticristãs...

A fé, de que fala Paulo aos efésios, é dessa natureza, e por isso, há de manifestar-se através da conduta, das ações, das obras do homem como indivíduo, como marido, como filho, como escravo, como senhor, Jesus não indagou do centurião se sabia o que era “reconciliação”, “propiciação”, justificação' predestinação, “expiação”. Louvou a fé do pagão e apontou-a aos discípulos como fé-exemplo, fé-padrão, digna de ser imitada! E disse Jesus: “Vai, e faça-se segundo tu creste.” “E naquela mesma hora ficou são o criado.”

Passemos a considerar a Epístola aos Gálatas, escrita de Éfeso, no ano 55.

9. Salvação pela fé ou pelas obras?
por Romeu A. Camargo
Empresa Gráfica da “Revista dos Tribunais - São Paulo SP - 1941

               AOS GÁLATAS

Na sua segunda viagem missionária, isto é, por volta do ano 53, havia Paulo conquistado para a fé em Jesus Cristo um número bastante considerável de Gálatas, ou, seja, de Gauleses estabelecidos, ali pelo ano 280, a. C., numa pequena província da Ásia Menor, que deles tomara o nome de Galácia. A Galácia era a Gaba do Oriente (gauleses, antecessores dos franceses).

Os gálatas eram inteligentes mas de espírito volúvel, de caráter inconstante, traço característico da raça gaulesa. Aí o apóstolo Paulo pregou o Evangelho e obteve resultados lisonjeiros.

Que Cristianismo lhes ensinara ele? O Cristianismo nada complicado que Jesus lhe revelara e que consistia muito simplesmente em crer que o mesmo Jesus é o Cristo, quer dizer: o celeste enviado incumbido de ensinar que todos os homens são irmãos, todos filhos do mesmo Deus, que a todos ama e só lhes pede amor para lhes perdoar os pecados; que os ajuda com a sua graça, para os conduzir livremente à santidade e que a todos predestinou à bem-aventurada vida de eterna ascensão no mundo espiritual: "que nos abençoou com toda a bênção espiritual em bens celestiais em Cristo; assim como nos elegeu nele mesmo, antes do estabelecimento do mundo, pelo amor que nos teve, para sermos santos e imaculados diante de seus olhos". (Efésios, I, 3 e 4).

Dois anos depois, pregando em Éfeso, Paulo vem a saber que os cristãos de Jerusalém tinham enviado nas suas pegadas, aquela cristandade livre que ele fundara e organizara, missionários do Cristianismo deles (doutores judaizantes), para o fim de imporem, além da fé em Jesus Cristo, toda a lei judaica, práticas do mosaismo, a começar pela circuncisão, e que os Gálatas, ingênuos e timoratos; se deixavam persuadir. Se uns resistiram, outros deixaram-se enlevar pela novidade, estabelecendo a necessária e consequente cisão, pelo que, ele, imediatamente, lhes escreveu essa carta, na qual a sinceridade vai até à violência e que permanecerá, façam o que fizerem, como indestrutível sustentáculo da liberdade cristã.

Era este o objetivo de Paulo:

a) demonstrar a realidade do seu apostolado e perfeita identidade com a doutrina dos apóstolos (cáp. 1, 2; cáp. II, 16);

b) demonstrar que a justificação ou salvação dos homens depende da fidelidade a Jesus Cristo e não ao mosaismo, cuja observância é perigosa (cáp. II, 17; cáp. V. 13);

c) corrigir os abusos e fortalecer os espíritos na lei máxima dada por Cristo (cáp. V, 14);

d) lembrar que a vaidade é reprovável (cáp. VI, 3) e que a responsabilidade é direta e intransferível (cáp. VI, 5, 8);

e) reafirmar que a criatura vale diante de Jesus, não pelas ideias que professe, mas pela renovação da sua mente e da sua vida [cáp. VI, 15).


10. Salvação pela fé ou pelas obras?
por Romeu A. Camargo
Empresa Gráfica da “Revista dos Tribunais - São Paulo SP - 1941

CARÁTER DIFERENCIAL 
ENTRE O EVANGELHO 
E AS CARTAS DE PAULO 
AOS GÁLATAS 
E AOS EFÉSIOS

Da leitura atenta dessas cartas paulistas, ressalta vivo e inconfundível o caráter particular dado pelo autor a essas epístolas. Não há necessidade de elementos subsidiários para essa constatação. Todavia, o assunto merece e exige mesmo particular atenção.

Haverá, como de fato há, preceitos de caráter geral ao lado de instruções ou advertências de índole particular. E não podia deixar de ser assim, desde que o objetivo do epistológrafo era procurar adaptar o espírito dos destinatários ao espírito do Evangelho ou norma principal. Exemplo (Gálatas, V: 14, 15): “Porque toda a lei se encerra neste só preceito: Amarás ao teu próximo como a ti mesmo.” - É o mandamento por excelência dado pelo Cristo, cuja observância exclui qualquer outra exigência para alcançar o reino de Deus (Luc. X: 25 e 37). Essa forma citada por Paulo tinha aplicação entre os Gálatas como entre os romanos ou outros crentes. Ao lado dessa norma universal figuram ensinos e admoestações só para os Gálatas, porque só entre eles encontrou Paulo motivos especiais, como por exemplo: “Vós porém vos mordeis e vos devorais uns aos outros; vê de não vos consumais uns aos outros.” Honestamente, ninguém jamais poderá supor, muito menos afirmar, que o apóstolo pretendera estabelecer normas fixas e imutáveis para todos os povos, uma vez que ele sabia, melhor que os leigos ou alheios no assunto, que o Evangelho, escrito por quatro homens inspirados pelo Alto, encerra a substancia completa da palavra toda do Mestre dos mestres. Ele, o grande Paulo, nunca poderia pretender - falar mais alto do que falara o Mestre, pois se considerava sempre seu servo, seu submisso, seu imitador, como se vê desta bela exortação, de cunho imperativo: “Rogo-vos pois que sejais meus imitadores, Como também eu o sou de Cristo." (I Cor. IV: 16).

E, caso ele alimentasse o desejo de perpetuar suas instruções entre todos os povos, teria acrescentado no endereço ou dedicatória onde se lê “aos Gálatas” mais algumas palavras... Mas, tal não se deu nem poderia dar-se, visto que o converso da estrada de Damasco tinha um só objetivo: dar instruções, solucionar questões ou situações, de certos e determinados agrupamentos, como os da Galácia e de Éfeso, como de Corinto e de Roma, de Tessalônica, etc.

Não há mal em insistirmos: se cada carta de Paulo traz “um endereço”, uma dedicatória, é que essas cartas não eram de caráter geral. Sim, pois que elas trariam o prefácio da de Tiago, se fossem para todos os crentes.

Então seria este o começo de cada carta ou epístola paulina: “às doze tribos de Israel”, ou “a todos os crentes em Jesus Cristo, espalhados pelo mundo.”

Para clarear mais ainda o nosso pensamento, podemos recorrer ao processo por analogismo que é processo comparativo, pela analogia ou semelhança.

Uma nação tem a sua Carta Constitucional ou Constituição Política, ou ainda Código Político. É a lei básica, fundamental, estatal, para todos os cidadãos desse Estado. Se os países são “expressões geográficas”, os Estados ou Nações são “formas de equilíbrio político” ou forma de governo, cada uma com a sua norma administrativa interna, cada uma regendo-se por leis próprias, emanadas de si mesmo e gozando dos direitos de soberania.

A Carta Constitucional ou Código Político do Brasil, de 10 de Novembro de 1937, no seu art. 130, estatui: "O ensino primário é obrigatório e gratuito."

Baseada nesse texto constitucional, cada unidade da Federação, por seu representante legal que é o chefe do governo, emprega toda diligência no sentido de facilitar aos pais a matrícula de seus filhos nas escolas estaduais. O Estado do Ceará, por exemplo, organiza horários especiais para o verão, de modo que as crianças possam frequentar as aulas das 8 às 12, em classes mistas. O Estado de S. Paulo, para dar instrução às crianças residentes na zona rural, isto é, nos núcleos agrícolas, fazendas ou sítios -, organiza programas onde figuram rudimentos sobre a cultura do arroz, do feijão, do algodão, etc. E assim, cada Estado, conhecedor das suas possibilidades, empreende medidas capazes de responder as necessidades sentidas pelo povo, as quais variam na proporção do crescimento da população.

Cada Estado da Federação Brasileira fala, age, delibera, aconselha - por intermédio de seu órgão ou representante, que é o chefe do governo, escolhido e nomeado pelo Supremo Magistrado da Nação.

Cada Governador estadual é autônomo, isto é, governa por leis próprias (estaduais), em harmonia com a Lei Federal que é a Constituição ou Código Político, para todos os Estados. Todos os Estados tem a sua autonomia, ou a faculdade de se governar por leis próprias -, Autonomia ou independência. A Nação possui a Soberania, que significa Poder Supremo, autoridade máxima, que não é dada aos Estados.

Reza o art. 142 da Lei Federal: “A usura será punida.”

O ilustre constitucionalista, Dr. Antônio Figueira de Almeida, comenta esse texto: “A usura é o recebimento de juro extorsivo, desumano, e ilegal porque superior ao que é permitido pela lei. Ser usurário é exercer função não honesta nem permitida, por isso que não constitui, sequer, uma profissão. É mesmo praticar um crime contra a ordem natural e a ordem pública. Por todos estes fundamentos morais, sociais, econômicos e políticos -a usura será e já tem sido punida desde a data da Constituição."

Agora, suponhamos que o Governador de um dos Estados do Brasil, invocando a Bíblia, estriba-se na palavra do grande legislador hebreu e, de um traço de pena, baixa um Decreto-Lei, declarando que a usura é proibida, mas só aos nacionais. E lá cita ele, textualmente, o livro Deuteronômio (que significa repetição da lei):

"Não emprestarás com usura a teu irmão, nem dinheiro, nem grão, nem outra qualquer coisa que seja: mas somente ao estrangeiro.” (Deut. XXIII, 19 e 20).

Levanta-se a grita da imprensa contra essa medida posta em Decreto-Lei. Os defensores, porém, obedientes ao livro de Deuteronômio, alegam que os ministros dos dois ramos do cristianismo, no país, escudam-se no cáp. XVIII, 11, desse livro, para condenar a doutrina cientifico-filosófico-religiosa do Espiritismo.

Vai abaixo esse Decreto-Lei, porque está contra o espírito e a letra da Lei Geral. Não prevalece a alegação de que tal Decreto-Lei foi assinado por um apóstolo do Chefe da Nação, visto que esse enviado não interpretou, como devia, o pensamento da Constituição ou Código Político. Ao demais, a legislação mosaica foi abolida, e mesmo entre o povo judeu, não mais vigoram as ordenações que chocam o direito moderno.

O Governador que teria assinado esse Decreto-Lei, não pretenderia legislar para todos os brasileiros, senão para um reduzido número deles, habitantes no figurado Estado.

Já o leitor apreendeu o símile. O Código Político de 10 de Novembro de 1937, é o Evangelho para todo o Brasil; os Decretos-Leis dos Governadores são epístolas ou cartas, que variam em sua natureza, em seus dispositivos, em suas finalidades, de acordo com as necessidades de cada circunscrição administrativa ou Estado, este, formado de municípios, compreendendo muitas cidades, vilas e povoações. O Código Político ou Constituição, é a Lei. E lei é o direito escrito, ou então, “é o direito positivo ditado pelo Estado e que deve valer como norma obrigatória para todos os cidadãos.”

Nenhum Governador irá contra os dispositivos constitucionais. Se houver alguma antinomia ou divergência entre os Decretos-Leis e o Código Político, prevalecerá este - e aqueles serão desprezados.

Mutatis mutandi - quando houvesse divergência ou antinomia entre uma Epístola ou Carta de Paulo ou de Pedro, e o Evangelho, este é que prevaleceria sempre. Mas não há tal. As Epístolas de Paulo, de Pedro, de caráter particular, encerram assunto para particulares, grupados em igrejas, congregações, do mesmo modo que os brasileiros se distribuem por Estados, municípios, cidades, vilas, povoações.

Os apóstolos epistológrafos estão para Jesus como os governadores estão para o Chefe da Nação. Os enviados estão subordinados àquele que os envia. A lei só poderá ser modificada por seu autor. Ora, “a lei contém dois elementos, que constituem as suas duas partes essenciais: uma, na qual o legislador dispõe o que deve ser observado; outra, na qual estabelece pena ou vantagem para quem transgride ou cumpre o preceito legal. Aquela se chama parte dispositiva; esta se denomina parte sancitiva ou sanção. A sanção é a recompensa ou o castigo, que decorrem da observância ou da transgressão da lei, - e que servem para faze-la respeitada por todos; é o meio coercitivo empregado para se conseguir o cumprimento de um preceito legislativo. A lei moral tem por sanção o remorso ou a satisfação da consciência; a lei religiosa tem por sanção a recompensa ou as penas da vida futura; a lei natural tem por sanção as consequências físicas resultantes da prática da virtude ou do vício; a lei social tem por sanção o desprezo ou a estima dos nossos semelhantes; a lei jurídica tem por sanção a vantagem ou a pena ligada ao seu cumprimento ou à sua transgressão, e se distingue pelo cunho característico de poder tornar-se efetiva por meio da coação material exercida pelo poder público.”

O Evangelho ou Código Moral dos Cristãos, é a Lei Suprema, completa, perfeita, tanto na parte dispositiva como na sancitiva, esta, fundada na satisfação da consciência, ou no remorso que é remordimento da mesma consciência. Os epistológrafos neo testamentários não podiam jamais alimentar a pretensão de alterar um “til”, d esse monumento de saber e amor, porque ali não há nem poderia haver coisa alguma alterável. A palavra de Jesus é para todos os homens e para todos os tempos. A nossa miopia mental é que poderia ter a pretensão de ver divergência entre a palavra de Jesus e a de Paulo. Na interpretação das epístolas, cumpre, a quem lê, observar estas circunstancias: quando, como, porque e a quem fala o apóstolo.

Ninguém se convencerá de que a carta aos Gálatas possa assumir o mesmo caráter da de Tiago, isto é, de generalidade. E é fácil a verificação dessa impossibilidade de extensão. Figuremos a aplicação do inteiro conteúdo dessa epístola a uma congregação do Estado do Pará, a uma outra do Estado do Rio Grande do Sul, ao mesmo tempo em que é dirigido aos crentes da Galácia. As congregações desses Estados brasileiros poderiam encontrar alguma coisa que lhes fosse aplicável; os gálatas encontraram tudo, porque assim devia ser, uma vez que a carta era só para eles. A absurdidade da generalização aos brasileiros, por nós figurada, é patente. E absurdos não se comentam; desprezam-se.

Para rematar este assunto, queremos que o leitor não se esqueça jamais de que o Evangelho, a palavra direta de Jesus, é a pedra fundamental desse monumento e se chama a Verdade; as epístolas, inspiradas no Evangelho, e que dele fluem, são as pedras secundárias.  

Logo adiante, é o grande Paulo que mostrará ao leitor como tem mostrado a todos os amigos de Jesus e do seu Evangelho - que o método de “salvação” adotado pelo Mestre é simples, e o apóstolo secunda, confirma e apregoa esse método, com toda a força do seu entendimento, com todo o calor da sua fé, com todo o brilho da sua palavra, com todo o entusiasmo da sua sinceridade.

Paulo não era separatista. Não disse que os Gálatas seriam salvos pela fé somente, e os Efésios pela “graça” mediante a fé. Veremos daqui a pouco, pelas palavras do próprio apóstolo, que ele jamais se afastou uma virgula da doutrina do seu Mestre. Dotado de brilhante inteligência, possuía bela e sólida cultura filosófica, conhecia a literatura grega (Atos dos Apóstolos XVII, 28), tinha sua biblioteca e pergaminhos (II Tim. IV, 13), coisa pouco comum ou mesmo rara, quinze séculos antes da imprensa, quando as letras e as ciências eram privilégio dos ricos e, principalmente,' da casta sacerdotal.