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domingo, 31 de outubro de 2021

A lição aproveitada

 

A Lição aproveitada

por José Brígido (Indalício Mendes)

Reformador (FEB) outubro 1964

             Conversavam aqueles dois homens há longo tempo, sem que parecesse haver concordância entre eles.

- O que o Espiritismo nos pede é muito difícil. Somente os santos podem cumprir a Doutrina. Vivemos num mundo de solicitações inferiores, acotovelados por gente de toda espécie. Por muito que desejemos resistir, acabamos cedendo e falhando.

- Concordo que a exemplificação real seja muito difícil. O pior, entretanto, é não realizarmos nenhum esforço sério para cumprir cada dia um pouco do muito que a Doutrina exige de nós, para o nosso bem. O que não está certo é que vivamos a achar difícil fazer isto e aquilo, sem fazer verdadeiramente nada de construtivo.

- Se você é tão claro nas lições que dá, deverei ser também eficiente na exemplificação, meu amigo... – tornou o outro, com certa ironia.

            - Não estou dando lições, mas apenas repito o que considero tão útil a mim como a você. Só Deus sabe a minha tristeza por não resistir às tentações do erro. Faço planos, estabeleço o propósito de não cair, mas a minha resistência nem sempre é forte. O pior de tudo é que somente me apercebo de que fali, depois de praticado o erro. Antes, tenho a noção de que vou errar. Armo-me para resistir, mas termino derrotado... Todos os dias recomeço a luta, honestamente empenhado em respeitar a Doutrina de alguma forma. Não desejo que você passe pelas provações que me assaltam. Você já experimentou a mágoa de haver cometido uma ação censurável, quando sabia antecipadamente que não deveria praticá-la, mas que, impotente, cedeu à sedução?   

            - Às vezes me acontece o mesmo. Por isso é que acho a exemplificação da Doutrina Espírita muito difícil. Para não me preocupar, prefiro não pensar nela.  

            - Discordo. A luta é grande. Somos seres inferiorizados pela ausência de coragem para realizarmos a reconstrução da nossa personalidade. Qualquer que seja o resultado de cada dia, devemos insistir no respeito e na exemplificação da Doutrina. Alguma coisa há de ficar dentro de nós e um belo dia veremos que estamos resistindo mais ao mal e cedendo mais ao bem. Estou aprendendo com dificuldade, mas quero levantar-me voluntariamente, sem forças para dele fugir.

            - Acho muito bonito o que você diz, mas muito pouco prático. Se os fatos demonstram que você luta em vão, ou quase em vão, e que ainda se mostra preocupado com os erros que comete, melhor situado estou eu, que já se não poder resistir e não penso na Doutrina, para não me criar maiores aborrecimentos.

            - Olhe quem vem aí: o Pedro. Ei, Pedro, Pedro!  

            E o recém chegado, que era excelente médium, saudou-os afetuosamente:

            - Bons olhos os vejam! Está bem, “seu” Anselmo? E o senhor “seu” Ivo?

            - Tudo bem, Pedro. Nós estávamos justamente falando da nossa dificuldade em cumprir a Doutrina. Acha o Anselmo que é melhor não nos preocuparmos com ela, a fim de não termos muito trabalho. Eu, que estou falhando dia a dia, reconheço, entretanto, que devemos continuar fazendo força para dar alguma exemplificação boa. Que acha, Pedro?

            - Acho que o senhor pensa acertadamente. O melhor, quando temos uma ideia negativa, um pensamento inferior a nos perseguir, é buscarmos um meio de derrota-lo. Se tivermos uma pessoa por perto, devemos procura-la e puxar conversa sobre matéria que nos faça esquecer o pensamento que nos vinha mortificando. Se não podemos fugir por esse meio, temos o recurso de uma leitura boa, elevada, que realmente nos interesse.

            Tirando o livro do bolso, Pedro prosseguiu:

            - A propósito. Trago aqui o livro “Ação e Reação”, de André Luiz.

            - Conheço-o de nome, Pedro – disse Ivo.

            Mas Pedro, você tem forças e conta com um “protetor” para ajudá-lo. É médium...

            - A melhor resposta que eu lhe posso dar, “seu” Ivo, é reler alguns trechos deste livro. Ouça: “Não me creiam separado de vocês por virtudes que não possuo...” “A ninguém devemos o destino senão a nós próprios. Entretanto, se é verdade que nos vemos hoje sob as ruínas de nossas realizações deploráveis, não estamos sem esperança...” Essas são palavras do Instrutor Druso.  

            Um médium não tem imunidades, meus amigos. Suas responsabilidades são até maiores e mais perigosas. Na realidade, ninguém tem o direito de se julgar livre, se continua prisioneiro de maus hábitos, de pensamentos sombrios e depressores. Nem os senhores estão sós nem eu. Ninguém está só. E por não estarmos sós, devemos estar mais vigilantes. Não resistir, demonstra que somos espíritas de boca, não de coração. Isto é o que eu penso de mim mesmo.

            Fechando e reabrindo o livro, Pedro frisou:

            - Até parece que foi escolhido este trecho. Aqui o Ministro Sânzio diz a André Luiz: “O “carma”, expressão vulgarizada entre os hindus, que em sânscrito quer dizer “ação”, a rigor, designa “causa e efeito”, de vez que toda ação ou movimento deriva de causas ou impulsos anteriores. Para nós expressará a conta de cada um, englobando os créditos e os débitos que, em particular, no digam respeito. Por isso mesmo, há conta dessa natureza, não apenas catalogando e definindo individualidades, mas também povos e raças, estados e instituições.”

            Anselmo não estava gostando da conversa. Interrompeu a leitura de Ivo e se despediu:

            - Bem. Vocês estão com a vida ganha. Preciso ir andando. Vou pensar no que leu, Pedro. Não gosto de fazer nada no ar...

            E saiu.

            Ivo e Pedro continuaram trocando ideias. Foram caminhando e, quando se separaram, Ivo levava o livro aberto entre as mãos, engolfado na leitura preciosa que Pedro lhe proporcionara.

            Cada lição representava um tijolo para a reconstrução da sua personalidade afetada. Dali por diante, a sua tranquilidade em face do futuro se acentuou. Ele não lia apenas por prazer: assinalava as lições, procurando aplica-las nas oportunidades que a vida lhe oferecia. Tornou-se até elemento útil no Centro que passara a frequentar com assiduidade.

            Nunca mais teve ocasião de rever Anselmo, que, certamente, preferia continuar desconhecendo os deveres determinados pela Doutrina Espírita, para não se preocupar...

 


quarta-feira, 27 de outubro de 2021

Rosas e Espinhos

 

Rosas e Espinhos

José Brígido (Indalício Mendes)

Reformador (FEB) Agosto 1964

             Quando chegaram ao roseiral, disse o avô enternecido à neta meiga e atenta:

            - Estás vendo, amor, quantas rosas lindas e perfumosas?

            - Sim, vovô. Como são belas! Vou colher aquela ali, que tem a seu lado dois formosos botões...

            - Cuidado, menina. Não te deixes fascinar pela beleza das rosas a ponto de esqueceres os espinhos que as acompanham. Eu mesmo tirarei uma delas.

            Em seguida, o avô solícito se aproximou da roseira e com extrema cautela pôs-se a vergar pequeno caule para quebra-lo. Consegui-o logo, mas, não obstante o cuidado, foi picado por um espinho e de seu dedo saiu uma gotícula de sangue.

            - Está aí, menina. Observa bem que de nada valeram a minha prevenção e a minha experiência. Colhi a rosa, mas pague o tributo do sangue.

            Inquieta, a netinha comentou arrependida:

            - Fui culpada, vovô. Para me satisfazeres, sofreste essa espetadela.

            - Tudo tem uma razão para acontecer. Agora, ainda estás pequena, pouco sabes da vida. Doze anos quase nada representam no começo da vida.  Entretanto, deves prestar muita atenção às minhas palavras e guardar esta lição, que poderá ser muito útil a tua vida futura.

            Passando carinhosamente a mão pelos cabelos macios da menina, o avô continuou falando:

            - Mais tarde, quando já estiveres bastante crescida, sentirás a vaidade natural do teu sexo. Terás alegria em ser bonita e admirada. A beleza física, quando desamparada da beleza moral, corre perigo. Justamente porque é bela, a mulher é requestada. Experimenta secreto prazer por ser admirada.

            Ela se entrega aos desvelos de cabelereiros exímios, reúne cosméticos e ingredientes especiais para realçar lhe a beleza ou para apagar lhe os traços incompatíveis com os cânones do belo. Dentro em pouco, todo o seu tempo será empregado nesse mister. Se desatenta de seus deveres espirituais, acabará por esquece-los de vez. Toda a sua vida se resumirá em mostrar-se bela e elegante. Sem o sentir, torna-se prisioneira de si mesma, egocêntrica, fria e indiferente para tudo quanto não se relacione com a sua pessoa.

            Casa-se e, nos primeiros tempos, quando ainda não está estabelecida uma familiaridade mais completa com o marido, tudo irá aparentemente bem. Depois, ela cederá à tirania do ego. Se o esposo for sensato, poderá reeduca-la devagar, com ternura, e recoloca-la no bom caminho.  Mas se estiver deslumbrado com a sua beleza e fraquejar, então, minha filha, o pretenso amor do casal durará o tempo desse deslumbramento.

            Pode acontecer que o egocentrismo exagerado corrompa até o sentimento materno de uma esposa em tais condições. A ela pouco importará que os filhos estejam bem ou não, que se vistam convenientemente ou que andem sujos e quase desnudos. Ela cuida de si, apenas de si, deixando as crianças entregues a empregadas nem sempre pacientes e dedicadas.

            Enquanto isso, a rosa ostenta suas pétalas maravilhosas e exala extasiante perfume. Todos se encantam com a sua beleza e com o seu odor. Ela própria vive num mundo diferente, num mundo que é somente seu, porque se constitui exclusivamente de si mesma.

            Essa, minha querida neta, é a primeira parte da história.

            Tens mais, vovô?

            - Sim. É o mais importante também.

 ***

           - Já conversei contigo muitas vezes sobre pontos da Doutrina Espírita.

            - E eu gosto muito quando falas dela, vovô.

            - Então, ouve. Como sabes, somos Espíritos de passagem pela Terra, ainda em fase de aprendizado. Vimos do mundo espiritual para o mundo terreno; depois, saímos do mundo espiritual para o mundo terreno; depois, saímos do mundo terreno e voltamos para o mundo espiritual, para, de novo, retornar à Terra. Essas idas e vindas estão reguladas por leis muito sábias e corretivas, a mais importante das quais é a denominada “Lei de Causa e Efeito”, que alguns dizem “Lei do Retorno” e os orientais chamam “Carma”. Segundo essa lei, o nosso destino (deves entender “destino” como “futuro”) depende principalmente da nossa maneira de pensar e agir em todos os instantes da existência.

            Aquela criatura que se fez centro de gravitação universal, que somente pensa em si, que se tornou vítima de mórbido narcisismo, não resistirá à ação do Tempo. Quando, tal qual a rosa bonita que colhemos no jardim, a sua beleza começar a declinar, como a flor se irá despetalando, irremissivelmente, então ela verá, em torno de sua alma, não o vácuo, porque o vácuo não existe, mas entidades que lhe parecerão estranhas e incômodas. Depois que a rosa desaparece, o que dela fica é apenas a haste nua, eriçada de espinhos. Não há rosas sem acúleos perigosos, como não há vida sem problemas e preocupações sérias. Todavia, o destino da rosa é aquele: embelezar a Natureza que a criou e ceder sua vez a outras rosas para que se cumpra a sua finalidade.

            A mulher, entretanto, pode engrandecer-se, crescer, ganhar louvores por seu amor desinteressado e fecundo. Pode ser bela sem ser inútil. Pode cuidar de sua beleza sem olvidar as obrigações naturais da sua função na vida familiar e social. Se busca refúgio no culto à Espiritualidade, eleva-se, purifica-se, diviniza-se, principalmente quando ingressa na maternidade e se desvela pelos filhos e pelo esposo, encontrando ainda oportunidade para fazer algo de bom por seus semelhantes. Então, será uma rosa sem espinhos, cujo perfume se embalsamará com as bênçãos do Alto, e sua beleza, em vez de ser um tropeço, será um estímulo ao Bem, uma atração benéfica e redentora.   

            A netinha apertou mais o braço do vovô e o instigou:

            - Conta mais, conta, vovô.

            - Ainda não acabei. Aquela mulher bonita, que só vivia para sua beleza, começou a sofrer quando percebeu que de nada adiantavam os tratamentos a que se submetia para retardar os insultos da velhice que se aproximava. As rugas começaram a marcar lhe o rosto belo: o olhar foi perdendo aquele viço singular. Ela, então, redobrou em cuidados com a sua pessoa. Os filhos continuavam crescendo sem a sua assistência permanente, deseducados, hostis e inconvenientes. Seu lar, que era suportável enquanto eles eram pequenos, já mostrava uma diferença sensível para pior. Os filhos não tinham disciplina, eram exigentes e malcriados. Não respeitavam o pai nem a mãe e às vezes até, no auge de discussões inúteis, a destratavam. A rosa ia perdendo as pétalas e os espinhos se tornavam mais presentes do que nunca.

            Então, ela começou a pensar um pouco mais claramente. Abdicara há muito tempo do domínio do lar, porque nele quase não permanecia e, mesmo quando se achava presente, era como se estivesse longe, muito longe, omissa, alheia ao que se passava, ao que faziam os filhos, ao que se passava, ao que faziam os filhos, ao que acontecia com os filhos.

            Certa noite, indisposta, perguntou a si mesma porque tinha filhos tão ingratos. E uma voz lhe chegou aos ouvidos.  

            - A ingratidão não é dos teus filhos, mas de ti. Segundo a Lei, todos colhem o que semeiam. Todavia, lembra-te do Evangelho. Lá está escrito: “Bem-aventurados os que choram, pois que serão consolados.” Ainda terás muito tempo diante de ti. Aproveita-o corajosamente para o resgate de teus erros. Ninguém te libertará dos sofrimentos que te esperam, mas está em ti transformar esses sofrimentos em degraus para a reabilitação.

            Suas lágrimas se multiplicaram. Chorou compulsivamente. Foi quando novamente pareceu ouvir uma voz impressionantemente nítida que lhe dizia:

            - Será muito difícil, agora, retomares a autoridade que perdeste sobre os teus filhos. Eles são o que o teu descaso criou. Foram modelados conforme a tua indiferença por eles. O dever da mãe é sagrado. Nenhuma mulher é mãe apenas por imposição biológica. Cada uma traz um compromisso sério. Tem que educar e orientar os seres que põe no mundo. Nada é mais sério do que isso. Negligenciaste, presa da vaidade. Agora, que deverias ter em torno de si o carinho e a solicitude dos filhos, encontras neles frieza e alheamento. Fazem contigo o que com eles fizeste. É a lei de “Causa e Efeito” em pleno vigor.

            Entretanto, deves reagir e provar que estás disposto a ressarcir, desde já, os débitos que contraíste com a vida terrena e com a Lei. Se o fizeres, sem desânimo nem desespero, mas com humildade e convicção, transformarás os espinhos que agora te ferem em rosas ainda mais belas e perfumosas, porque terão as bênçãos do Alto. Chora, mulher! Tira o peso do teu coração arrependido! Faze, porém, que essas lágrimas adubem o roseiral da tua redenção, para que possas merecer a consolação anunciada no Evangelho!

***

            Voltando-se para a netinha, observou o vovô:

            - Que tens menina? Ficaste emocionada? Não chores. Vou te contar o fim da história.

            Essa mulher, que em sua mocidade fora tão fútil e vaidosa, compreendeu o erro praticado. Suportou estoicamente mil agonias criadas pelos filhos. Pode, no entanto, recuperá-los também. Eles, submetidos a atenções que nuca haviam tido, experimentaram uma mudança salutar. Quando a mamãe, velhinha e já vovó, fechou os olhos materiais e despertou para a vida na Espiritualidade, estava cercada de todos os filhos e netos. O que ela não fizera com aqueles, quando pequenos, pudera realizar com estes últimos. E o efeito do seu trabalho, cheio de amor e sacrifício, reconquistou para ela a ternura dos filhos. Todos eles, contritos, cercava, o seu leito de agonia, cheios de cuidados com o corpo frio e inanimado, e seu Espírito, liberto da carne, se rejubilava, confortando-os. A luz dos círios fora ofuscada pela aura brilhante que envolvia aquele Espírito redimido...

            Bem-aventurados os que choram, pois que serão consolados.”


sexta-feira, 1 de janeiro de 2021

Temas para reflexão

 

Temas para reflexão

José Brígido (Indalício Mendes)    Reformador (FEB) Junho 1963

 

            O objetivo do Espiritismo não é fazer santos mas homens retos e conscientes de seus deveres e responsabilidades terrenas e espirituais.

 *

             Essa tarefa exige coragem, pertinácia e espírito de renúncia. Antes de cada triunfo, o homem falha, cai e se desdiz. É preciso que não pare. A cada queda deve seguir-se um esforço maior pelo reerguimento; a cada falha, o propósito honesto e firme de não reincidir no mesmo erro, a cada incoerência a decisão segura de estabelecer um critério singular e inalterável em prol da própria reabilitação.

 *

             O Espiritismo não promete, como pensam os que lhe desconhecem a Doutrina, o paraíso, a felicidade no Além-Túmulo. Ele ensina que, aprimorando a nossa conduta quando ainda nos encontramos na experiência terrena, encontraremos maior facilidade  de ação no próprio mundo espiritual. Quer o Espiritismo que o homem comece a ser feliz na Terra e que por seu, comportamento quando encarnado, continue a ser feliz no Além.

 *

            A criatura humana precisa saber porque nasce, porque morre e renasce. Deve aprender que a Dor tem uma função retificadora. Muitas vezes ela abre horizontes novos e mais amplos ao entendimento humano, fazendo, por seus efeitos, o que doutrina alguma conseguiria alcançar sobre determinados homens.

 *

            Conhecer a razão da Dor na existência humana e entender a multiforme linguagem do Amor conduzem o homem a uma compreensão perfeita da Lei Áurea: “não fazer a outrem o que não desejar para si” e “fazer a outrem o que quiser para si”. Quando a compreensão é real, a exemplificação a acompanha.

 *

            O Espiritismo sabe que a mente humana é fonte inesgotável de efeitos que têm com causa o pensamento. Portanto, se mentalizarmos coisas boas, elevadas, dignas, a nossa alma fará coisas boas, superiores e dignas. O trabalho mental, isto é, os pensamentos, configuram a verdadeira natureza moral de cada indivíduo.

 *

            O Espiritismo educa e reeduca moralmente aqueles que aceitam a sua disciplina. Mas essa tarefa é difícil e demorada. Nem sempre se conclui numa encarnação. Por isto? a Inteligência suprema facilita ao Espírito em evolução a volta à Terra, em corpo carnal, tantas vezes quantas se façam necessárias ao seu aprimoramento.

 *

             O Espiritismo liberta o homem interiormente, através da prática da sua Doutrina. Quanto mais cedo ele se libertar dos maus hábitos mentais, das influências inferiores, dos atos e pensamentos desfraternos, mais cedo começará a colher os resultados da sua melhoria moral. Isto poderá mesmo acontecer, e acontece com frequência, ainda no curso da encarnação em que inicia esse trabalho de recuperação. Somente é livre aquele que já se desligou de maus impulsos, de preconceitos e ideias egoísticas; aquele que já faz alguma coisa em benefício de outrem, sem pensar primeiro em si.

 *

            Quem não cultiva as boas relações e a convivência fraterna com os seus semelhantes, falha num dos mais importantes preceitos da Doutrina Espírita, que é a fraternidade.

 *

             Não constitui preocupação espírita a catequese de novos prosélitos, mas o esclarecimento oportuno e o auxílio indispensável à compreensão da Doutrina. O Espiritismo segue a réstia de luz evangélica que promana do Evangelho do Cristo. Devemos respeitar o livre-arbítrio de cada um, quando esgotado o nosso argumento em favor da Paz, do Amor e da Caridade. O livre--arbítrio é que define o rumo que queremos tomar.

 *

             Vencer na vida terrena não é adquirir riquezas, poder político, posição social elevada. Vencer na vida é despojar-se de tudo quanto concorre para o mal e acumular tudo quanto possa ser um bem para todos. O legítimo valor da criatura humana está, não no dinheiro ou bens que possua, nos poderes que enfeixa nas mãos, na autoridade arbitrária que exerça, nas roupas luxuosas que veste, mas, exclusivamente, na pureza do coração, na nobreza de sentimentos, no espírito justo de humildade e na capacidade progressivamente maior de ser útil e prestante, sem discriminações.

 *

             Para exercitar a Caridade, devemos pelo menos realizar diariamente uma boa ação, evitando que esta seja comprometida por pensamentos ou atos negativos. Estará no rumo certo aquele que consegue, a pouco e pouco, aumentar o número das boas ações cotidianas. Não nos esqueçamos de que “sem Caridade não há salvação”.

 *

            Provérbio árabe: “Aquele que conhece os outros, é sábio; aquele que se conhece a si mesmo é verdadeiramente esclarecido. O que pode vencer os outros é forte, mas quem consegue vencer a si mesmo é muito mais possante.”


quinta-feira, 31 de dezembro de 2020

A partir de agora...

 

A partir de agora...

José Brígido (Indalício Mendes)     

Reformador (FEB) Novembro 1963

             Eles se encontravam na vida terrena e por qualquer coisa se desentenderam. Eram quase amigos quando influências alheias cortaram o vínculo de fraternidade que começava a crescer. No entanto, ambos de algum modo se respeitavam, embora não soubessem conter os efeitos da dissociação afetiva que se ia consumando. Acabaram por atritar-se e daí nasceu uma separação isenta de ódio, é verdade, mas com suficiente fermento de inimizade. Acontece, entretanto, que a vida humana se projeta também no plano espiritual. E daí...

            Certa vez, quando se achavam estremecidas as relações entre os dois homens, os mentores espirituais fizerem que seus Espíritos se encontrassem, durante o sono, no mundo invisível. Foi, então, fixado o seguinte diálogo:

            - Temos tanta necessidade de ser humildes quanto de respirar para sobreviver. Talvez até necessitemos mais da humildade... No entanto, ainda somos manejados por hábitos e preconceitos seculares, fortalecidos por uma educação moral defeituosa e mal dirigida. A verdade é que eu e você somos iguais: temos vaidade e orgulho, não gostamos que nos mostrem falhas, principalmente nos assuntos em que nos consideramos seguros.

            - Pensando bem, é isso mesmo. Mas você...

            - Sim, eu... Sei o que você está pensando. Não diga mais "você"; diga nós... Compreendo ser também assim, embora, às vezes, pense estar liberto dessas imperfeições.

            - Curioso: lá embaixo o orgulho não nos deixa ficar juntos e conversar assim, com sinceridade, como estamos conversando aqui. Você me evita, eu evito você... Como as coisas mudam, não é?

            - Sem dúvida. Ainda somos felizes por poder verificar essa diferença. Tudo também pode depender, até certo ponto, do ambiente em que vivemos. Na realidade, todos somos excessivamente individualistas. Egoístas, diria melhor. .Julgamos sempre valer mais do que realmente valemos. Ai está o mal.

            - Agrada-me que você pense assim, tão superiormente. Se disto nos lembrarmos quando regressarmos ao corpo que nos espera, poderemos fazer as pazes e voltar a ser amigos.

            - Se não nos lembrarmos de tudo, haveremos de guardar alguma coisa e esse nada nos ajudará a desbastar as arestas dessa desafeição idiota em que nos achamos na Terra. Se somos compreensivos agora, poderemos ser compreensivos também na Terra. Sabemos que nos falta humildade. Sabemos aqui, mas lá não nos lembramos de socalcar a nossa vaidade e dominá-la.

            Nessa ocasião, uma luminosa entidade se aproximou de ambos e entrou na conversa. A voz mansa, mas firme, denotava experiência:

            - Você tem maior responsabilidade - disse para o primeiro dos interlocutores - porque está no Espiritismo, conhece a Doutrina Espírita e o Evangelho. Não deveria incorrer nos erros em que às vezes se afunda como um nadador desatento.

            Voltando-se para o outro, ajuntou:

            - Mas nem por isso você é menos responsável, embora não aceite o Espiritismo e não conheça a Doutrina Espirita. Já possui uma preparação mental capaz de lhe dar a medida da responsabilidade de cada ser humano em face de um seu semelhante. A sua experiência já lhe permite distinguir o bem e o mal. Portanto, não se considere isento de culpa, mesmo porque o seu passado espiritual lhe aconselha mais vigilância nos atos e nas palavras. Os deveres que cada uma das criaturas humanas traz ao encarnar não são diferentes só porque um professa esta religião e outro professa religião diferente. Nada disso. Todo homem tem um programa a cumprir, uma obrigação a realizar, quando deixa o mundo espiritual e penetra no mundo terreno. Todos carregam o seu fardo cármico, com as suas responsabilidades, as suas aflições, as suas dores. Todos são devidamente instruídos ao deixarem o plano espacial e nenhum pode alegar ter sido lançado à Terra sem prévia advertência dos mentores que trabalham pela redenção de cada um. Além disso, nenhum anda SÓ. Todos têm um acompanhante fiel, que procura alertá-lo, ajuda-lo nos momentos cruciais da vida. Mas nenhum acompanhante pode agir em detrimento do livre-arbítrio daquele que lhe cumpre seguir. Se a sua responsabilidade é menor em face deste seu companheiro de jornada terrena, nem por isso lhe isenta de culpa. Todos os que quebram ou favorecem a quebra dos laços de fraternidade, sejam quais forem os pretextos, são corresponsáveis pela desarmonia. Quem o diz não sou eu, mas o espelho cármico que todos possuímos, no qual se refletem as nossas virtudes e as nossas imperfeições morais.

            Depois de observar o efeito de suas palavras sobre os dois Espíritos que, temporariamente divorciados da Terra, aquiesciam em trocar ideias no Espaço, a entidade recomeçou a falar:

            - Vocês estão vendo esses dois amigos que lhes estão próximos? Não? E agora, conseguem vê-los? Bem. São os seus Espíritos-guias. Os seus “anjos da guarda”, como costumam dizer lá em baixo. A neblina materialista impede que vocês os vejam, mas eles estão sempre presentes em sua vida, na hora alegre e na hora triste. Exercem a fidelidade como um sacerdócio sacrossanto. Têm muito trabalho para evitar que vocês se desviem do bom caminho e sofrem extraordinariamente quando falham, menos por eles do que pela impertinência de vocês. Felizmente, dizem-me eles, vocês não são muito rebeldes. Isto já representa alguma coisa.

            Num tom ainda mais amistoso, a entidade prosseguiu:

            - Vamos conversar um pouco mais intimamente, porque o raiar do dia se aproxima e vocês terão de iniciar suas tarefas terrenas logo que regressarem à Terra. Não pensem que sou um santo. Já fui também como vocês. Até bem pior. Não gostava de ser contrariado, procurava fazer valer as minhas opiniões, ainda que absurdas. Irritava-me por qualquer coisa, não admitia discordâncias. Como sofri! Eu mesmo criava em torno de mim uma atmosfera desfavorável, fluidos que impressionavam desagradavelmente a quantos de mim se acercavam. Em lugar de compreender que eu era o causador desse ambiente inferior, queixava-me de todos. Ninguém servia para mim, todos, por melhor que fossem, tinham um defeitozinho... A questão era observar. Em vez de me contentar com as qualidades das pessoas, eu procurava, com a tenacidade de um garimpeiro, descobrir lhes as deficiências. E, ao apontá-las, nunca me ocorria que eu as tinha duplicadamente... Sofri muito!

            Suspirou com certa tristeza, recomeçando logo:

            - O sofrimento exerceu sobre mim, paulatinamente, uma ação retificadora. Foi dando polimento ao meu estado moral. Reencarnei diversas vezes sem melhorar muito até que, numa dessas reencarnações, apesar da descrença que me dominava a respeito de religiões, encontrei no Espiritismo a bússola que me irá fazer reencontrar o rumo perdido, o caminho da minha educação. Não foi fácil. Os princípios da Doutrina Espírita nos ensinam a arte do bem viver na Terra e os meios de cultivar a amizade e a simpatia dos nossos semelhantes, a fim de que, ao voltarmos ao mundo espiritual, achemos a subida menos difícil. Mas, tudo custou muito. Eu lia muito, frequentava muitos Centros, ouvia palestras, porém não conseguia reter os belos ensinamentos para cumpri-los sem defecção. Falhei muito, vendo malogradas inúmeras tentativas de exemplificação, porque o meu Espiritismo era para uso externo. Eu aconselhava a Doutrina a outros irmãos, mas não a seguia. Citava passagens do Evangelho, sem, contudo, delas me recordar quando precisava dar o exemplo. Semelhante procedimento fez que eu sofresse ainda mais. Lutei, perseverei, vendo magníficas oportunidades perdidas. Sinto-me agora menos inseguro e mais animado para continuar o meu trabalho de auto aperfeiçoamento. A dor causada pela falta de exemplificação, pela oportunidade que nos é oferecida e não a aproveitamos, é indescritível. É uma dor moral profunda, meus amigos. Mais vale sofrer por fidelidade à Doutrina do que por apego a hábitos e costumes que a contrariam. Ninguém pode exemplificar bem a Doutrina sem exercer a humildade legitima.

            Ouvimos em silêncio todas as palavras do mentor esclarecido. Que poderíamos dizer, se o nosso nível espiritual não nos permitia sequer sentir sem abalo a forte vibração fluídica desse amigo? É fácil conquistar a humildade? Ele sentiu a nossa pergunta e respondeu:

            - Não, é difícil, muito difícil. Ela tem de ser conseguida através da renúncia diária ao que presumimos ser indispensável à importância da nossa vida terrena, moralmente falando. A sua conquista pode ser fácil quando o passado cármico não é demasiadamente denso. Caso contrário, não será trabalho de um dia. Pode levar anos. Para ser sólida, precisa de cultivo permanente, de todos os instantes, cotidianamente. É fruto de ação pertinaz e indefectível. Não é humildade o sentimento que se exerce esporadicamente. Exige a reforma do sentimento íntimo. Não é tarefa difícil de realizar, mas a sua conquista constituí a maior vitória do Espírito. Mas não confundam humildade com subserviência. A humildade dignifica o Espírito; a subserviência o rebaixa. Ninguém deve renunciar ao esforço reconstrutivo quando fracassar. A cada queda, nova tentativa, novo esforço para não cair, até que consiga manter-se de pé e, com alegria, verificar a vitória obtida sobre si mesmo. A reeducação espiritual é trabalho tão precioso na Terra quanto o da alimentação cotidiana a que vocês estão sujeitos na vida material. Mas cuida-se pouco do Espírito. Não é só frequentar Centros Espíritas e igrejas que promove o apuramento da alma. É mister seguir o itinerário espiritual com coragem e persistência para obter benefícios. Esses benefícios serão tanto maiores quanto maior for o interesse que tomarmos pelos nossos semelhantes. Há muitas formas de ajudar, muitas maneiras de fazer o bem. O exercício da caridade é o caminho mais curto da salvação, diz “O Evangelho segundo o Espiritismo”.

            Ditas essas palavras, a entidade espiritual se despediu, deixando nos dois ouvintes inefável sensação de paz. Eles, então, se abraçaram e se desculparam mutuamente dos agravos que haviam trocado.

            - A partir de agora, seremos mesmo amigos. Os laços da amizade que tecíamos estavam fracos. Os incidentes em que nos vimos envolvidos serviram para nos tornar mais lúcidos em relação aos deveres que temos com os outros, na vida de relação. Portanto, a partir de agora ...

            A verdade é que os dois homens despertaram mais humanos, mais fraternos. Não se lembraram do que havia ocorrido durante o sono do corpo, mas sentiam estar predispostos a olhar os semelhantes com maior boa-vontade e tolerância. E quando se encontraram, em vez de passarem silenciosamente, cumprimentaram-se, a princípio discretamente e mais tarde com menor reserva. Até que o dia de conversarem amistosamente chegou e se abraçaram.

            Esta é uma lição verídica e demonstra quanto podem fazer os Espíritos esclarecidos acerca do cultivo da fraternidade na Terra.

            Vocês que leram esta história, se tiverem algum caso a resolver, tomem uma decisão, prefiram ter a iniciativa da reconciliação, porque isso será importante para o futuro espiritual de cada um, encarnado ou desencarnado. Portanto, decida, pondo de lado preconceitos e temores, vaidade e orgulho. Diga como aqueles dois amigos o fizeram:

            - A partir de agora...


Como é bom ser bom

             

Como é bom ser bom

José Brígido (Indalício Mendes)   Reformador (FEB) Junho 1963

             - Deixe disso, Tiago, deixe disso. Tenho tanto que fazer e você ainda quer que eu vá perder a noite para ajudar a quem não conheço?

            - Não vejo nada demais nisso. Eu também trabalho muito e sempre que posso “dou uma mãozinha” a quem precisa mais do que eu.

            Depois de curto diálogo, Macário ficou pensativo. As palavras do seu amigo Tiago lhe ficaram dançando no cérebro, o dia todo.

            Afinal - monologava -, que ganharei com isso? Tempo é dinheiro. A gente faz o bem e recebe o quê? A vida está difícil, tenho de “dar duro”, porque, se eu não ganhar dinheiro, ninguém terá pena de mim...

            Dizendo isto, de si para consigo, Macário decidiu definitivamente esquecer o apelo de Tiago. E os dias se passaram.

            Por outro lado, o amigo, que se esfalfava no trabalho diário pelo pão da família, ainda se dispunha, nas horas de folga, a ajudar um pouco aos que necessitavam mais do que ele. Se não podia dar dinheiro, dava cooperação, procurando com outras pessoas, melhor arrumadas na vida, um meio de auxiliar os infelizes.

* * *

            Alguns anos se passam sem alteração no ritmo da vida dos dois amigos. Tiago, humilde e prestante; Macário, ativo, ambicioso e egoísta, seguiam paralelamente o seu destino. O primeiro, modesto, progredira o suficiente para dar à família um pouco mais de conforto; o segundo, entretanto, alçara altos postos no comércio e já estava em situação magnifica, morando em apartamento luxuoso, no Leblon, com três automóveis, lancha a gasolina, casa de campo ampla e vistosa em Nova Friburgo. Ganhara notoriedade e de quando em quando seu nome surgia com elogios nos Jornais e o Rádio e a TV disputavam a sua palavra sobre questões de economia e finanças.

            Tanta felicidade, tanta grandeza, tanta projeção: entretanto, não duraram muito tempo. Certa vez Macário, ao regressar longa visita ao estrangeiro, encontrou o filho gravemente enfermo. Isto não o preocupou muito tempo, porque tinha dinheiro e com dinheiro seria fácil convocar luminares da Medicina para debelarem o mal que ameaçava a vida do menino.

            0s dias, porém, foram-se passando e os luminares não conseguiram positivar a origem da moléstia que entristecera o lar de Macário. Não desanimando, ele fez vir dos Estados Unidos vários especialistas, que, tanto quanto os médicos nacionais e europeus, se mostraram incapazes de uma ação realmente efetiva.

            Enquanto isto ocorria, a mulher de Macário, dona Mirtes, se acabava de sofrimento. Não largava a cabeceira do filho. Ainda que corajosa, percebia que o filho morreria dentro de alguns meses. A alegria que, antes, morava naquele lar, desertara. Poucos amigos acompanhavam com sincero interesse a doença de Silvio. Muitos e muitos, entretanto, faziam visitas convencionais, porque não podiam deixar de agradar a Macário, de quem dependiam. Como negócios são negócios, era mister dar presença em casa de Macário, telefonar-lhe, mostrar, enfim, que estavam também preocupados com a moléstia do menino.

            E tudo corria assim, num ambiente de hipocrisia, porque eles precisavam da influência do prestigioso homem de negócios. Só uns poucos amigos acompanhavam os desvelos de dona Mirtes e a ajudavam, permitindo pudesse ela repousar alguns instantes, sem comprometer o horário da medicação prescrita pelos médicos.

            Macário não tinha muito tempo para estar com o doente. Os negócios o absorviam. Só à noite, quando chegava, bastante fatigado, ia vê-lo e sentir, então, mais de perto, a dor que realmente o acabrunhava, mas que a febre dos negócios atenuava nas agitadíssimas horas de todo o dia.

***

            Mas, vejam vocês como as coisas acontecem nesta vida. Macário só andava de automóvel. Uma tarde, no entanto, bem próximo da estrada de Tairetá, zona de trabalho de Tiago, eles se encontram, quando o automóvel de Macário enguiçou.

            Macário não pareceu lembrar-se logo do antigo amigo. Subira tanto, tanto, que as antigas amizades humildes pareciam ter-se apequenado a ponto de desaparecerem da sua lembrança. Como acontece quando se sobe num avião. A princípio, tudo é visto em suas normais proporções. Depois, à medida que o avião se eleva no espaço, tudo vai diminuindo, diminuindo, que acaba por se sumir à nossa visão limitada. Os campos, as casas e as pessoas vão ficando reduzidas, parecem brinquedos infantis, de tão pequenos, e logo após se apagam à nossa vista.

            - O Macário! Há quanto tempo não vejo você! - exclamou, alegre e feliz, o modesto o Tiago.

            No primeiro instante, Macário olhou com indiferença o homem que a ele se dirigiu com tanto entusiasmo e maior intimidade. Como é que se julgava com o direito de lhe falar daquele jeito? Depois, a memória lhe permitiu identificar Tiago e, então, discreto, respondeu:

            - Ah, Tiago! Como vai?

            - Na boa luta de sempre ... E você?

            - Sempre muito ocupado e preocupado. Tenho um filho, o Silvio, que está muito doente...

            Na sua simplicidade, Tiago o interrompeu:

            - Sinto que posso ajudar-lhe, Macário. Permite-me que o vá ver?

            - Muito obrigado. Agora, não. Ele está em mãos de médicos excelentes. Muito obrigado.

            Tiago percebeu a distância que os separava. Assim mesmo, cedendo a um impulso íntimo, ofereceu-lhe a casa:

            - Olhe, Macário. Eu moro ali, naquela casinha branca e de grades azuis. Quando passar por aqui e nos quiser dar a honra de tomar um cafezinho feito na hora...

            - Obrigado, Tiago. Raramente passo por aqui. Meu automóvel “afogou” e por isso tivemos a oportunidade deste encontro. Se precisar de alguma coisa, procure-me. Tiago, no Pa1âcio do Comércio, na Esplanada do Castelo.

            E se separaram.

            Macário depressa se esqueceu do encontro. Preocupava-o a conclusão de importante negócio entabulado com capitalistas norte-americanos. Não queria atrasar-se, porque tempo é dinheiro.

            Tiago, porém, ficou parado na estrada, vendo o carro sumir-se na poeira do caminho. Sorria um sorriso tímido e melancólico, pensando consigo mesmo: - Pobre amigo: sempre preocupado em ganhar tempo...

***

            Naquela noite, no humilde centro espírita que dirigia, Tiago consultou o Guia a respeito do estado e saúde do menino.

            - Não é bom. Até agora os médicos, apesar de competentes e dedicados, não acertaram com o diagnóstico. O que ele tem é menos material do que espiritual. Mas o organismo está sendo minado por um obsessor. Nada poderemos fazer de longe.

Precisamos penetrar o ambiente em que vive a família, para melhor realizarmos a tarefa. Ele, além das responsabilidades que trouxe da reencarnação anterior, sofre os efeitos do materialismo do pai; cuja frieza tem causado muitos males e desapontamentos, atraindo sobre ele as mais negativas vibrações.

            - Desconfio, entretanto, que não poderemos ser úteis, pois a família não nos dará acesso, quando souber que somos espíritas.

            - Tente, Tiago. Há lá uma criatura boníssima, que sofre muito. É católica, mas não intolerante. Procure falar-lhe. Quem sabe se não concordará em nos auxiliar em favor do filho? O amor de mãe pode tudo, Tiago.

***

            Já no dia imediato, Tiago, depois de haver conseguido localizar a residência de Macário, o que não foi difícil, dada a sua projeção na sociedade, bateu à porta.

            - Desejo falar à senhora do Dr. Macário.

            - A quem devo anunciar? - perguntou o criado.

            - Peço dizer que Tiago Vilares deseja falar-lhe a respeito do menino Sílvio.

            Depois de admitido à sala de visitas luxuosa e confortável, Tiago compreendeu a situação de ampla prosperidade do amigo. Imediatamente, apareceu dona Mirtes, simples, distinta, bastante abatida, mas de olhar brilhante.

            - Sim, senhor... Tiago. A que devo sua visita?

            - Minha senhora: durante muitos anos fui amigo do seu marido, o Macário. Há dias o vi e soube do estado de saúde do seu filho, Se me permitir, procurarei ajudá-la.

            - O senhor é médico?

            - Não, minha senhora. Sou apenas um espírita entregue ao trabalho de ajudar o próximo no que puder. Soube que os médicos até hoje não lograram desvendar a origem do mal do seu pequeno Silvio. A Medicina não poderá curá-lo, acredite. Se confiar em mim...

            - Nada farei sem autorização do meu marido. O senhor compreende a enorme responsabilidade que eu teria de assumir. Falarei com ele.

            - Está bem, minha senhora, está bem. Devo adiantar-lhe que o seu filho está envolto em pesadas influências espirituais. Temos de andar depressa para salvá-lo. Assim, logo que puder, se concordar conosco, queira chamar-nos. Somos obreiros do Cristo. Nada fazemos por nós, que nos constituímos meros instrumentos do Alto.

            Quando Tiago saiu, dona Mirtes ficou pensativa. Não tardou que chorasse muito. Não sabia o que decidir, pois cabia-lhe o dever de dar ciência a Macário do ocorrido.

            Quando este chegou, ao anoitecer, e soube da visita de Tiago, teve um impulso de raiva:

            - Era só o que faltava; deixar de lado médicos eminentes para dar crédito a um bobalhão desses metido em bruxarias. Não, Mirtes, nada disso. Você acha que um sujeito de poucas letras, sem posição relevante no mundo social, pode, por meio de mágicas, restituir a saúde do nosso filho? Não! Não acredito nessas asneiras.

            E tudo ficou como estava.

            No Centro espírita, Tiago não deixava de trabalhar por Silvio, por meio de irradiações frequentes. Isto, no entanto, não poderia curá-lo. Apenas lhe dava um certo alívio porque os bons Espíritos buscavam animá-lo para que pudesse resistir galhardamente à prova a que estava sendo submetido por um obsessor poderoso, contra o qual nada podiam fazer sem que tivessem a ajuda dos familiares do menino.

            Um mês depois, o estado de Silvio se agravou muito. Os médicos foram francos, desenganando-o. Dona Mirtes definhava cada vez mais, suportando mal a tortura que era para ela o sofrimento do filho amado. O próprio Macário chegara a ponto de renunciar a todos os sérios compromissos que o prendiam à vida dos negócios para ficar ao lado do filho.

            Certa noite, Jogo após uma crise de Sílvio, dona Mirtes desfaleceu. Foi um reboliço em casa. Todos ficaram atarantados com a situação. E Macário, tão hábil em sua especialidade, estava apalermado. Enchera a casa de médicos, mas estes não chegavam a um acordo acerca do estado de Silvio. Quando dona Mirtes recuperou os sentidos, mandou chamar Macário:

            - Ouça, Macário: tudo está perdido?

            - Sim, Mirtes. Pelo que afirmam os médicos os dias de Sílvio estão contados...

            - Se assim é, quero que chames aquele teu antigo amigo Tiago, com urgência, para tentar alguma coisa em favor do nosso filho.

            - Mas, como?! Você é católica fervorosa, não pode meter-se com essas bruxarias de espiritismo, não pode ombrear com macumbeiros, Mirtes! Que dirá o padre Alexandre? Em que situação ficarei diante do arcebispo e do cardeal? Você sabe que preciso da simpatia deles para conservar o alto nível das minhas relações profissionais com influentes homens de negócio e com o Governo. Que pretende você fazer?

            - Estou resolvida a tudo, Macário. A vida do meu filho vale mais do que tudo isto. Prefiro ser pobre e viver feliz na mais estrita modéstia, a continuar mergulhada no fausto e trazer o coração despedaçado pela dúvida e pela dor. Além disso, antes de ser católica, sou mãe, Macário. Se a religião me impõe uma atitude de preconceito e intolerância, romperei com ela. Já fiz inúmeras promessas, desde que Sílvio adoeceu. Nada alcancei, não obstante a minha sinceridade e tudo quanto tenho feito pela Igreja. Se tudo está perdido, na opinião do Ciência, deixa-me, agora, fazer eu mesma a minha última tentativa.

            Acabrunhado, Macário, que amava intensamente o filho, acabou concordando. Meteu-se num automóvel e partiu, na noite escura e quente, em busca de Tiago. Este se achava no Centro, em pleno trabalho.

            Quando Macário chegou, disseram-lhe:

            - Faz favor de esperar um pouco, aqui. “Seu” Tiago está falando com o Guia. Vou avisá-lo.

            Nessa mesma ocasião, já o Guia havia prevenido Tiago:

            - Vá; há visita para você, meu irmão. Traga-o cá.

            Para encurtar razões, diremos logo que Macário, muito sem jeito, sentindo-se mal em ambiente tão humilde, se aproximou do Guia, que o recebeu cordialmente.

            - Quanto a você, procure também um médico, antes que seja tarde. O seu caso pode ser resolvido pela Medicina da Terra. Não se descuide. Seu filho ficará bom. Vai custar um pouco, porque demoraram muito. Mas tudo terá de melhorar. Há coisas na vida que valem mais do que dinheiro. Reduza as suas preocupações com os negócios e devote algum tempo aos problemas da alma. Pense um pouco em Cristo meu amigo. Há muita gente que passa fome, que não tom roupa que substitua os farrapos que veste! Há tanta criança precisando de assistência, tantos pais reclamando um emprego para não permitir que os filhos se estingam de inanição! E você sentirá a vida melhor, meu amigo, quando compreender que a vida não tem por finalidade o luxo e que o dinheiro não é o objetivo da nossa vinda à Terra.

***

            Após dois meses de trabalho exaustivo, Tiago e seus companheiros foram recompensados. Silvio ficara salvo. Seu obsessor, devidamente instruído pelos doutrinadores espíritas, acabou por se arrepender do mal que praticava e se mostrou mesmo inclinado a renunciar para sempre à ideia de vingança, incorporando-se aos obreiros do bem que colaboravam com o modesto Centro Espírita dirigido por Tiago.

            De uns anos a esta parte, o nome de Macário não anda nas páginas dedicadas aos altos negócios, nos jornais importantes. Mas é comum vê-lo entre aqueles que, por seu espírito caritativo, concorrem para aliviar as dores do mundo. O homem frio e interesseiro desapareceu. Surgiu nele um outro, mais humano porque mais compreensivo e mais generoso.

            Por isto, com lágrimas nos olhos, abraçado a Tiago, ele confessou com deliciosa humildade:

            - Meu querido amigo Tiago: Como é bom ser bom!




sexta-feira, 25 de dezembro de 2020

Os dois cegos

 

Os dois cegos

José Brígido (Indalício Mendes)

Reformador (FEB) Dezembro 1963

             Satisfeito por haver depositado no Banco mais alguns milhares de cruzeiros ganhos em feliz transação comercial, o Medeiros, depois de passar indiferentemente por mendigos estropiados e mulheres com pequenos filhos famintos, parou diante de um cego, que tocava um violino, a fim de ganhar algo para comer.

            Vários transeuntes se achavam em redor do pobre músico, ouvindo-lhe as melodias que os dedos ágeis faziam nascer das cordas tensas do instrumento. Feliz, Medeiros parou, sorridente, só para olhar. E, depois de ouvir por alguns momentos os sons mágicos do violino, ele, voltando-se para um rapaz que se achava a seu lado, disse-lhe:

            - Bem, Isto está muito agradável, mas tenho bastante que fazer...

            Foi nesse instante que o cego, interrompendo, falou: 

            - Perdoe-me, amigo. Não se vá agora. Espere que eu acabe o que estou tocando...

            - Não, não posso, tenho pressa - retrucou Medeiros. - Você está sempre por aqui, não está?

            - Sim, respondeu o cego, acrescentando:

            - Não é pelo dinheiro, é ...

            - Qualquer dia pararei por aqui para lhe falar. Até logo...

            - Sim, senhor. Mas não se demore. É para o seu próprio bem.

            E Medeiros partiu sem deixar sequer uma insignificante moeda para o infeliz.

            Vários dias se passaram, até que, numa tarde fria, passava o Medeiros pelo mesmo local, quando avistou o cego. Tocava ele, por admirável coincidência, a mesmíssima melodia que Medeiros ouvira pouco antes de se retirar, da outra vez.

            Parou e se dirigiu ao violinista, que estava só, arroxeado de frio.

            - Como vai você? Sou aquela pessoa a quem você pediu que voltasse. Como disse que é para o meu próprio bem, aqui estou. Não me assustei. Tenho saúde, dinheiro, sou feliz nos amores, gozo de prestígio e popularidade no meu ambiente. Que me falta, então?

            - A visão... - respondeu o cego.

            - O que, a visão? - respondeu, perguntando, o Medeiros, com uma gargalhada. - Você se esquece de que o cego é você e não eu? Essa é boa!

            - Se o senhor tivesse alguns minutos a perder comigo, para que pudéssemos conversar sossegadamente, compreenderia porque digo isso... - retrucou enigmaticamente o cego.

            - Está bem, embora não me interesse muito por assuntos misteriosos. Se é dinheiro que você quer, posso dar-lhe algum. O meu tempo vale mais.

            - Guarde o seu dinheiro. Não preciso dele. Preciso do seu tempo para melhor lhe abrir os olhos, porque o senhor é mais cego do que eu...

            Medeiros, orgulhoso, quis retirar-se logo, mas, por curiosidade, resolveu continuar, pois o cego lhe aumentara a curiosidade. Levou-o ao seu escritório que ficava a poucos metros de distância.

            Lá, depois de sentados, a conversa recomeçou.

            - Como se chama o senhor?

            - Norberto de Medeiros. E você?

            - Isaias Machado. Não sou cego de nascença. Sofri um desastre e fiquei cego, há cerca de quinze anos.

            - Que infelicidade! - exclamou Medeiros.  

            - Nem tanto, Sr. Medeiros. Pensando bem, que felicidade! Eu era assim como o senhor confesso; feliz e despreocupado, pensando só em mim e fazendo do resto do mundo um trampolim para a realização das minhas ambições. Tive dinheiro, tive tudo que um homem normal pode ter na vida, até que sobreveio a cegueira.

            - Mas você me fez traze-lo aqui para me contar a sua história? Saiba que ela não me interessa de maneira nenhuma - retrucou com aspereza Medeiros.

            - Perdoe-me, Sr. Medeiros. Suporte a minha enfadonha história, que é muito curta. Apesar disto, procurarei reduzi-la ainda mais. Ouça-me com paciência. Um amigo, quando viu que eu não conseguia curar-me e já havia gasto tudo quanto possuía com especialistas famosos, convidou-me para ir falar com certo conhecido. Fui...

            - ... e continuou cego - atalhou sarcasticamente Medeiros.

            - ... e continuei cego apenas dos olhos físicos, porque adquiri a vista espiritual que me tem sido de imensa utilidade até hoje. Mas isso demorou. Quando me foi dito lá que eu jamais poderia recobrar a visão, não me surpreendi, porque antes não me havia Iludido com uma esperança impossível. Entretanto, passei a frequentar um Centro espírita, até que comecei a notar coisas que me davam perfeitamente a impressão de não ter, em determinados instantes, cegueira alguma. Era uma mediunidade latente que brotava, vitoriosa, Eu era médium vidente...  

            - Olhe - interrompeu Medeiros -, não sou espírita, não tenho religião nenhuma, não gosto de macumbeiros e tenho mais o que fazer. Vou levá-lo ao ponto em que o apanhei e não m aborreça mais com isso, ouviu? - foram as palavras duras, grosseiras e cruéis que proferiu.

            O cego empalidecera. Ouviu tudo isso sem se perturbar. Humildemente. Em seguida, com a voz serena e persuasiva, ponderou;

            - O senhor concordara em me ouvir, Tenha paciência. Não me demorarei mais do que uns quinze minutos. Quaisquer que sejam as minhas palavras, porém, não se irrite. Quando eu acabar, então tome a sua decisão. Acatá-la-ei, seja qual for.

            - Então, vá! - tornou Medeiros, mal-humorado.

            - Acredite ou não no que já lhe disse e no que ainda lhe vou dizer, Sr. Medeiros, a verdade é que o senhor é mais cego do que eu. O senhor não enxerga as coisas espirituais, eu não vejo as coisas materiais...

            - Vivo num mundo material. Interessa—me, portanto, exclusivamente, o que diz respeito à vida deste mundo. O resto, o que vocês prometem para depois, não interessa. Sou homem prático, objetivo, ouviu?

            - Sim, senhor. Quando o senhor parou, naquele dia, para me ouvir tocar, percebi a seu lado uma entidade estranha, com vibrações escuras, inferiores. Compreendi que o senhor não estava bem acompanhado e me preocupei. Da segunda vez eram duas entidades a seu lado, como agora as vejo nitidamente com os olhos espirituais...

            - Qual! Você está louco. Não acredito nisso. Continue, continue.

            - Esses companheiros não lhe permitem ver o lado certo da vida. O senhor está ficando obcecado pelo dinheiro e pelos prazeres dos sentidos. Mude de rumo, para seu bem, do contrário, quando menos o esperar, sua vida ficará modificada para pior. Abandone a cegueira em que se encontra. Reflita, exercite a caridade, faça alguma coisa pelos que sofrem, pelos que não têm nem o que comer... Pense em si mesmo, pensando nos outros.

            - Esses são os bons conselhos? Então, você quer que eu trabalhe e produza, que use a minha inteligência e a minha energia em favor daqueles que não tem a mesma capacidade que eu e por isto não podem progredir como eu progrido? Isso é ideia que se apresente? Era o que faltava, eu me matar pelos outros, quando ninguém se mata por mim... Não gosto de sermões.

            - Agora. - atalhou -, se o senhor me permite, vou sair. Não tenho mais nada a fazer aqui. Tomara que o senhor não seja um dia obrigado a compreender tarde demais a razão dos que dizem que “o pior cego é o que não quer ver”. Deus lhe ajude!

            Gracejando com ar de superioridade, o Medeiros bateu no ombro de Isaias, soltando-lhe a piada irreverente:

            - Bem dito: você que tem prestígio com Ele, vê se me dá uma mãozinha... Tenho um negócio difícil a decidir. Se Deus me ajudar, você ganhará parte da comissão que a ele couber...

            O cego permaneceu sério e silencioso. Tateando, procurou a porta. Medeiros, segurando-lhe o braço, deixou-o na rua e voltou ao escritório. Pouco depois, o telefone tilintava e ele era chamado a um encontro galante.

 ***

             Seis meses após essa conversa de Isaias e Medeiros, no escritório deste, os jornais noticiavam a queda de um avião na capital paulista. Entre os sobreviventes se achava um Norberto de Medeiros, negociante no Rio. Seu estado era grave. Achava-se no Hospital de Clínicas, da capital bandeirante, correndo risco de morte. Isaias teve conhecimento do fato pelo rádio portátil que possuía. Procurou acompanhar o noticiário, principalmente interessado pelo estado de saúde de Medeiros. Depois, nada mais ouviu, pois, com o correr dos dias, nem os jornais nem o rádio se preocuparam com os sobreviventes. a não ser para divulgar o falecimento de algum deles ou a alta dos mais afortunados.

            Medeiros sofreu várias operações cirúrgicas. Após quatro meses de internamento, pode sair e voltar ao Rio. Estava outro homem. Uma perna defeituosa não lhe permitia caminhar direito. Além disso, enorme cicatriz lhe marcava a face direita. Toda a beleza física, de que tanto se orgulhava, desaparecera. A própria voz não tinha o tom agradável de antigamente. Ficara um pouco fanhosa, em consequência do ferimento que lhe atingira o nariz.

            Os sofrimentos haviam influído profundamente no seu caráter. Ele, tão materialista, tão sarcástico e irreverente, agora se punha a pensar na possibilidade de haver algo imponderável e inteligente por detrás do panorama físico da vida. Mas, que seria? No isolamento do seu quarto de hotel, Medeiros refletia, às vezes mal-humorado, contra a má sorte, assim dizia, que o acometera quando tudo lhe sorria e tudo lhe era favorável. Diversas vezes chegou a ter acessos de fúria, inconformado com as circunstâncias que lhe haviam alterado o curso da vida e marcado o seu corpo de deformações e cicatrizes. Foi durante uma dessas crises que se lembrou do cego Isaías.

            - Que fim terá levado aquele homem? Teria feito um “despacho” para mim?

            Trêmulo, tocou a campainha, chamando um serviçal. Quando este chegou, Medeiros pediu-lhe com empenho:

            - Antônio: preciso muito que você vá à rua do Crescente, aqui perto...

            - Sei onde é, Sr. Medeiros - atalhou o empregado.

            - ... e procure um cego que costumava fazer “ponto” ali. Se o encontrar, traga-o aqui, rapaz. Tenho muita necessidade de falar com ele. Você não perderá o seu tempo. Olhe, tome já, de saída, este dinheiro.

            - Ora, Sr. Medeiros, não é preciso. Vou falar com o gerente e não demoro. Já que o senhor insiste... obrigado!

            E embolsou o dinheiro, retirando-se.

 ***

             Meia hora depois, o cego Isaías, acompanhado do empregado do hotel, dava entrada no quarto de Medeiros,

            - Como vai o senhor? Sente-se melhor? - indagou Isaías.

            - Não sei.. Não sei se vou bem ou se vou mal. Você fez algum “serviço” contra mim? Sinto--me perdido na vida. Tão cedo não poderei trabalhar e ignoro se, do jeito em que fiquei, me será possível conduzir meus negócios como anteriormente. Você foi tão franco comigo, da outra vez, que, agora, me sinto à vontade para perguntar-lhe: que deverei fazer?

            - Se o senhor pede minha opinião, dá-me o direito de externá-la com sinceridade, qualquer que seja o efeito que tiver, não é assim?

            - Certamente. Quase estou começando a acreditar nas suas bruxarias...

            - Não faço bruxarias, não sou de macumbas, Sr. Medeiros. Tenho, graças a Deus, uma noção perfeita da vida terrena. Sei que somos sujeitos a leis sábias, mas inflexíveis, que nos impelem para o bem, embora, não raro, não as compreendamos e mudemos de roteiro, na persuasão de que o verdadeiro caminho é o que querem os nossos interesses imediatos. O senhor continua cercado de entidades sombrias: elas, porém, já não se mostram tão seguras quanto da última vez que estivemos juntos. Dependerá do senhor, exclusivamente, livrar-se delas e encarreirar-se por uma senda melhor. Vejo coisas que não lhe posso revelar... por enquanto.

            - Como pode ver, se é cego? E eu, que tenho vista, porque não vejo nada?

            - Porque, como já lhe disse certa vez, o senhor é mais cego do que eu. Todavia, como a sua cegueira é espiritual, poderá curar-se. A minha, cegueira física irremediável, não tem mais jeito. Nem me importo com isso. Talvez eu, se enxergasse com os olhos materiais, não me sentisse tão feliz quanto me sinto vendo apenas espiritualmente...

            - Está muito bem. Mas, que devo fazer? Quero experimentar.

            - Sentir, como suas, as dores alheias. Comover-se com os padecimentos dos seus semelhantes, interessar-se pelo bem de alguma pessoa, esquecer-se, involuntariamente, de si. Ser um pouco menos

seu, compreende? Nada é mais difícil de erradicar do que o egoísmo, Sr. Medeiros. E o senhor ainda é muito egoísta. No fundo, o senhor não pretende senão desabafar-se por haver perdido a boa aparência física, por não ter mais aquela voz sonora, que lhe permitia dar boas gargalhadas, ainda quando fosse inoportuno rir estrepitosamente...

            - Ora, você está se excedendo - disse Medeiros, um tanto agastado.

            - Não, senhor: estou na justa medida. O senhor poderá vir a ser muito mais feliz do que antes de se acidentar. Terá, entretanto, que impor a si mesmo uma disciplina férrea, a começar por não mais repisar as aflições que as consequências do desastre lhe trouxeram. Lembre-se de que há no mundo muita gente que, tendo mais merecimento do que o senhor, está sofrendo muito mais...

            - Que deverei fazer? Sem compromisso, sem compromisso... Uma experiência apenas.

            - Voltarei aqui com aquele amigo meu, de que já lhe falei, dirigente de um humilde Centro espírita. Virá conversar um pouco, trocar ideias e, se necessário, dizer-lhe algo que lhe venha a ser útil.

            - Está bem. Quanto mais cedo melhor mas não quero rezas...

            - Está certo. Fique em paz.

            Depois que Isaías se retirou, Medeiros, só, no quarto silencioso, sentiu pela primeira vez, vontade de chorar. Esforçou-se para evitar isso, mas não pode sopitar as lágrimas. Havia anos que não se recordava dos pais, desencarnados há muito tempo. Nesse instante, porém, como se a visse, exclamou: “Minha mãe! Ah, se ela estivesse aqui, eu não sofreria como estou sofrendo!”

            E se pôs a rememorar a infância, os tempos de rapaz, as preocupações que criava para o pai e a mãe desvelada. Aquele coração, seco a frio, palpitava, enfim. Angustiado, Medeiros suspirou algumas vezes. Assim ficou até a hora do jantar. Nada quis, a não ser uma xícara de chá. Acomodou-se no leito e custou a dormir. Entrementes, pensava. Sim, pensava em Isaías, nos pais, nas relações que fizera nos dias longos de leviandade. Lembrou-se, então, que, de tantos amigos que possuía, poucos eram os que o visitavam. Assim mesmo essas visitas pareciam mais uma obrigação para sustentar a possibilidade de alguns futuros negócios. Somando as relações que possuía, o saldo era tristemente negativo.

            Chorou novamente. Por entre soluços, já tarde da noite, ocultou o rosto no travesseiro, deixando escapar esta frase amarga, porém portadora de uma esperança:

            - Se há um Deus, que ele me perdoe!

 ***

            Dias após, Isaías reapareceu no hotel, acompanhado no amigo.

            Logo ao abrir a porta do quarto, o cego sentiu que alguma coisa de bom havia acontecido, porque, na sua visão espiritual, percebia acharem-se mais afastadas as entidades sombrias que o perseguiam. Estavam como que tomadas de medo. Medeiros, por sua vez, se sentia melhor. A fisionomia mais tranquila revelava progresso.

            Depois das apresentações habituais, o amigo de Isaías, que se chamava Ismael, conversou longamente com Medeiros. Deu-lhe brilhante aula doutrinária, depois do que se retirou, não sem, antes, haver submetido o comerciante a passes precedidos e seguidos de enternecedoras preces.  

            O cego via mediunicamente o ambiente modificar-se. As entidades inferiores tremiam, apavoradas, convencidas de que se formava, em torno de Medeiros, uma cerca fluídica que os impedia de avançar. Durante uns dois meses Medeiros foi visitado por Ismael, até que este, sorridente, lhe disse:

            - Agora... amigo, tudo vai depender exclusivamente do senhor. Compareça, se quiser, ao nosso Centro. Lá, os recursos são maiores e tudo andará mais depressa.

 ***

             Alguns meses se passaram, Medeiros fora exemplarmente assíduo. Melhorou muito. Certas deformações físicas cederam bastante, com o tratamento que lhe fora prescrito, e o seu aspecto mental era outro. Nem se tornava preciso convidá-lo a ir ao Centro. Chovesse ou não, ele era sempre dos primeiros a chegar e dos últimos a sair. Fizera-se um estudante aplicado de “O Evangelho segundo o Espiritismo”. Voltara ao trabalho comercial mas, dessa feita, com outras intenções. Ninguém o via a fazer caridade, porém era evidente que ele estava progredindo muito no campo espiritual. Quantas vezes, sem que soubessem, ele subia morros, visitava hospitais, percorria penitenciárias, devassava favelas perigosas, só para ajudar. A sua chegada era sempre saudada com carinho pelos humildes.

            Certa vez, tarde da noite, bateram-lhe à porta, porque ele morava numa casinha modesta, perto do Centro. Madeiros surpreendeu-se ao ver o cego Isaías, cujos olhos, antes apagados, agora lhe apareciam cheios de vida, brilhantes, magnificamente brilhantes.

            - Ó caro amigo Isaías, entre!

            O cego, entretanto, sem dizer-lhe palavra, apenas sorrindo, abraçou-o com entusiasmo. Medeiros retribuiu-lhe o abraço, surpreendido, pois nunca o vira assim, tão afetivo. Mas, no justo momento em que o abraçava, sentiu os braços vazios. Isaías desaparecera! Já ciente dos fenômenos espíritas, Medeiros não se assustou, embora denotasse ligeiro espanto pelo inesperado acontecimento. Horas depois, Ismael chegava para lhe comunicar a desencarnação do cego.

***

            Quem frequentar, ainda hoje, o Centro a que pertencera Isaias, verá um homem idoso, com larga cicatriz na face, coxo duma perna, que dirige os trabalhos. Querido e respeitado por sua bondade, é como um anjo guardião de todos os necessitados da carne e do espírito.

            Não lhe conhecem o passado. Sabem, porém, que o seu presente é radioso e rendem graças a Deus por haver na Terra uma criatura capaz de seguir tão de perto os passos do Cristo. Chegam a dizer: “Seu Medeiros é um santo!”

            Muita razão assistia ao cego Isaías. Aquele antigo Medeiros, que, tendo olhos sãos, era espiritualmente cego, se redimira. Pode-se até dizer que fizera das imperfeições da sua alma a escada para alcançar a glória de uma redenção merecida.

            E é ele que, doutrinando, esclarecendo almas impuras, adverte sempre com bondade e firmeza:

            - Cuidado, irmão: o pior cego é o que não quer ver.