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sábado, 13 de abril de 2019

O Conde de Rochester - A aventura, a tragédia, o remorso...



O Conde de Rochester
- A aventura, a tragédia, o remorso...
por Hermínio C. Miranda
Reformador (FEB) Fevereiro 1976

            Em meados de 1680, um nobre inglês de 33 anos de Idade morria lentamente de velhice, numa longa e dolorosa agonia física e espiritual. Chamava-se John Wilmot, Conde de Rochester.

            No dia 19 de junho, ditou um documento pungente de remorso e, mágoa ante o tempo perdido, a inutilidade de uma preciosa existência consumida em loucuras inomináveis, e de um talento desperdiçado tão abundantemente na elaboração do verso genial, mas corrupto.

            Esse testamento espiritual, escrito "em benefício daqueles que possam ter sido arrastados ao pecado pelo meu exemplo e estimulo", foi assinado na presença da velha mãe e da jovem esposa. Por desejo expresso de seu signatário, deveria ser lido a toda a criadagem, "até ao tratador de porcos". Dizia, em suma, que "do fundo de minha alma, detesto e abomino todo o curso de minha vida iníqua".

            A 25 do mesmo mês, em carta ditada ao Reverendo Gllbert Burnet, seria ainda mais explícito:

            - "Meu ânimo e meu corpo definham tão juntamente que lhe escreverei uma carta tão fraca como me sinto. Começo por dizer que coloco os sacerdotes acima de todas as criaturas no mundo e o senhor acima de todos os sacerdotes que conheço." 

            O fim chegava lento, penoso e inexorável. De há muito estava minado seu vigoroso organismo.

            Em abril de 1678, dois anos antes, circulara mesmo a notícia de sua morte. A
informação, que Anthony Wood registrara em seu diário, era falsa, mas não as suas mazelas, pois estivera mesmo "at the gates of death", às portas da morte... Já em 1669, no entanto, frequentava ele os "banhos" da Sra. Fourcard, em busca de alívio para a depredação que as doenças venéreas estavam causando em seu corpo. Aos 24 anos de idade, segundo ele próprio declarou por escrito - seus olhos não suportavam mais vinho nem água.

            - "Se abandonasse o vinho e as mulheres - escreve Graham Greene, no seu estupendo livro - poderia ter sido salvo, mas não tinha força de vontade para isso, mesmo que o quisesse."

            Levado pela paixão desesperada pela vida, consumira-a de um só trago, "queimando a vela pelas duas pontas", como diz a expressão inglesa. Tornara-se, agora, a sombra do que fora, enquanto jazia atormentado pelas dores físicas e morais, no leito da agonia, úlceras atrozes consumiam--lhe a bexiga, que era expelida aos pedaços, em crises insuportáveis, segundo relato de Burnet, o anjo bom dos seus últimos dias. Não obstante, dessa ruína física emergiam os clarões de decisões importantes para a vida daquele Espírito tão bem dotado.

            - "Quando seu moral estava tão baixo e exausto que ele não podia nem andar ou mover-se - escreve Burnet -, e pensava não viver mais que uma hora, disse ele que sua razão e sua capacidade de julgamento estavam tão claras e fortes que, daquele momento em diante, estaria totalmente convencido de que a morte não significa o desaparecimento ou a dissolução da alma, mas apenas sua separação da matéria. Sentia, durante a doença, grandes remorsos ante sua vida pregressa, mas como me disse, depois, tais remorsos eram mais da natureza de horrores generalizados e trevosos do que uma convicção de que ele tivesse pecado contra Deus. Lamentava que tivesse vivido de modo a dissipar as suas energias tão cedo, e criado tão má reputação em torno de si mesmo; sua mente estava de tal modo agoniada que ele nem sabia como se expressar.

            Não foram poucos os que duvidaram desse arrependimento de última hora. É difícil aos companheiros da libertinagem e do erro admitirem que um deles, de repente, saltou a cerca espinhos da dor e caiu, ofuscado e atônito, do lado claro da verdade. William Fanshawe foi um desses.

            Em carta de 19 de junho à sua irmã, Lady Rochester, mãe do doente, narra a cena do reencontro dos dois amigos, um ainda preso ao desespero de viver todos os prazeres e outro atirado ao leito, à espera da morte, exatamente porque tentara também  fruí-los todos.

            - Mr. Fanshawe, seu grande amigo, escreve Lady Rochester -, esteve aqui para
vê-lo e, enquanto, em pé, ao lado da cama de meu filho, este olhou-o intensamente e disse  "Fanshawe, pense em Deus, deixe-me dar-lhe este conselho, e arrependa-se de sua vida passada, e se emende. Acredite no que eu digo: Deus existe, um Deus poderoso, um Deus terrivel para os pecadores impenitentes. Está chegando a hora do julgamento, com grande terror para os maus; por isso, não adie o seu arrependimento: o desagrado de Deus desabará sobre você, se você não o fizer. Você e eu somos antigos companheiros, e praticamos juntos muitos erros. Amo a criatura humana e lhe falo diretamente de minha consciência, para o bem de sua alma."

            Segundo Lady Rochester, Fanshawe ficou ali em pé por alguns minutos mais, sem dizer uma. palavra; pouco depois, "stole away out of the room", ou seja, retirou-se de mansinho do quarto. Quando Rochester percebeu que ele havia saido, perguntou só para confirmar:

            - "Ele foi embora? Coitado. Temo que seu coração esteja muito endurecido."

            O antigo companheiro de farras memoráveis estava convencido de que o amigo tinha ficado doído, e não fez segredo algum de sua convicção, porque a notícia chegou ao conhecimento de Lady Roehester, que se queixa disso em nova carta de 26 de junho. Foi depois da visita de Fanshawe que Rochester ditou o seu testamento espiritual, mas não foram poucos os que continuaram a duvidar da sinceridade da contrição de um jovem muito brilhante que envelhecera e envilecera na devassidão.

            Um dia se escreverá a história de como John WiIlmot, Conde de Rochester, se transformou em J. W. Rochester, autor espiritual das extraordinárias narrativas histórlcas escritas com a dócil mão de Wera Krijanowski. Enquanto não temos essa história, que só ele mesmo poderá contar, vejamos como foi que o ex-faraó Mernephtah e o ex-beneditino da tenebrosa Abadia do século 13 se tornou John Willmot, Conde de Rochester.

*

            O livro que conta essa história chama-se "Lord Rochester's Monkey" ("O Macaco de Lord Rochester"), edição da Bodley Head, Londres, de autoria do escritor inglês Graham Greene. 

            O autor informa, no prefácio, que o livro foI escrito entre 1931 e 1934, mas foi então recusado pelo seu editor, Heinemann, o que o deixou tão desapontado que ele não teve coragem de oferecê-lo alhures. Greene supõe que a editora ficou temerosa de enfrentar a opinião pública, pois o livro era considerado obsceno, principalmente em vista da reprodução de vários poemas de Rochester. Graham Greene, não obstante, não perdeu o interesse pelo seu tema, pois julga, com muita razão, que Rochester foi um poeta genial, dos maiores da língua inglesa. De qualquer forma, os originais de seu livro magistral dormiram quarenta anos nos arquivos da Universidade do Texas que, permitindo fossem copiados, possibilitou a publicação, em 1974.

            Trata-se de um volume de 231 páginas, primorosamente elaborado, tanto do ponto de vista literário/como gráfico. Impresso em papel excelente, contém Inúmeras ilustrações em preto e branco, e maravilhosas reproduções a cores, Inclusive retratos e autógrafos de Rochester. O título, aliás, foi inspirado num quadro a óleo, que mostra Rochester, com um ar algo sarcástico, colocando uma coroa de louros na cabeça de um macaco que, sentado sobre dois livros, estraçalha um terceiro com um ar de deboche. Rochester segura, na outra mão, esquerda, originais manuscritos de alguns poemas.

*

            Rochester nasceu em 1617 - há dúvidas quanto à data precisa, que seria 1º ou 10 de abril -, num período difícil da história da Inglaterra. Duas das mais fortes paixões humanas - religião e política -- haviam concorrido para criar um clima de tensões violentas, que precipitaram o país em crises e lutas sangrentas. Nem mesmo a execução do rei Charles I, em 30 de janeiro de 1649, acalmou os ânimos, e, depois de um interlúdio, em que Cromwell governou com vigorosa disciplina, Charles II recuperou o trono, em maio de 1660. Governaria o pais, a seu modo, até 1685. Nascera em 1630, sendo, portanto, cerca de 17 anos mais velho que Rochester, e foi o rei do poeta, que o serviu em várias condições, como veremos.

            A Enciclopédia Britânica diz que ele era "demasiado preguiçoso e amante dos prazeres para se dedicar com firmeza às suas funções, mas às vezes enérgico, e sempre inteligente".

            Não teve filhos legítimos, mas uma meia dúzia de bastardos, os quais agraciou com títulos de nobreza. Queixa-se a Britânica de que os que denunciam sua moral demoram-se nos seus vícios, esquecidos de seus talentos.

            Rochester era filho de Henry Wilmot e de Anne, filha de Sir John St. John, viúva de Sir Francis Henry Lee, com quem esteve casada apenas dois anos. Este casamento deixou--lhe dois filhos e uma propriedade em Ditchley. Casou-se com Lord Wilmot, em 1644. Era, segundo Greene, mulher obstinada, impulsiva, cheia de preconceitos, e sobreviveu ao marido, ao filho e ao neto, bem como à nora. Anthony Wood ouvira dizer, conforme escreveu em seu diário, que John Wllmot, o segundo Conde de Rochester, seria filho ilegítimo de Sir Allen Apsley, mas Greene não endossa o registro, atribuindo-o à malícia . daqueles tempos socialmente tumultuados, pois a virtude de Lady Rochester jamais foi questionada, a despeito de seu temperamento desabrido.

            Além do mais, ele se parecia com o pai, não apenas fisicamente, como até no gênio aventuroso e folgazão; Henry Wilmot era ambicioso, orgulhoso e incapaz de se contentar com o que quer que fosse. Bebia abundantemente e tinha temperamento dominador, "suportando com impaciência a contradição"; sem escrúpulos religiosos, entregou-se à devassidão.

            - "Era bem o pai do homem que, segundo disse a Gilbert Burnet, o historiador, durante cinco anos consecutivos se manteve embriagado..." - escreve Greene.

            Devido ao importante papel que desempenhou na fuga do rei Charles I, Henry Wilmot teve de deixar a Inglaterra. Entre 1653 e 1654, Lady Wilmot esteve em Paris com seus filhos - dois do primeiro matrimônio, e o pequeno John, então com seis para sete anos - em busca do marido aventureiro que, aliás, se encontrava na Alemanha, tentando levantar dinheiro para ajudar a causa do rei, seu amigo e senhor. A essa altura, Henry Wilmot já havIa sido distinguido com o titulo de Conde - "Earl", em inglês, e empenhava-se, no continente, no esforço de repor seu rei no trono e, certamente, garantir para si próprio uma fatia de poder. Lady Rochester, porém, não tinha paciência nem gosto pela vida na Corte; muito menos, a de um rei pobre e destronado, ocupado com a sua décima sétima amante.       

            Henry Wilmot morreu em Sluts, em 1658, e foi enterrado temporariamente em Bruges, na Bélgica, deixando ao segundo Conde de Rochester, então com 11 anos, pouca “herança além das honrarias e do titulo". Desde que deixara Paris, em 1656, de volta a Ditchley, que herdara de seu primeiro marido, até a morte do segundo em 1658, Lady Rochester tivera oportunidade de estar com Henry apenas uma vez.

            Daí em diante, ao se referir ao Conde de Rochester, o livro quer dizer o segundo, ou seja, John Wilmot, que se tornaria tão popular ao público brasileiro de nossos dias sob o nome de J. W. Rochester, autor de tantos livros, fascinantes, como "Romance de uma Rainha”, "Herculanum”, "O Sinal da Vitória", "O Chanceler de Ferro", "A Vingança do Judeu" e outros.

            Enquanto seu pai vivia seus derradeiros anos de aventura, o jovem John Wilmot crescia em Ditchley, que nunca foi suplantada na sua preferência, nem mesmo pelas atrações e prazeres que mais tarde teria em Londres, nos meios aristocráticos.

            - "A cidade - escreve Graham Greene - seria o divertimento nublado pela bebida, as intrigas do teatro, as amizades artificiais com os poetas profissionais, os casos de amor e luxúria, as disputas na Corte, a amizade do rei a quem ele desprezava, os bordéis de Whetstone Park, as doenças e os remédios, os "banhos" da Sra. Fourcard. O interior seria a paz, uma espécie de pureza mesmo, e, finalmente, o lugar para morrer."

            Essa a perspectiva da vida do menino que, aos 11 anos, carregava os títulos pomposos de Conde de Rochester, Barão Wilmot de Adderbury, na Inglaterra, e Visconde Wilmot de Athlone, na Irlanda.

            Na Escola primária de Burford, o jovem Conde foi aluno exemplar. Era disciplinado e aprendia com facilidade. Há depoimentos escritos de seus professores, atestando sua natureza virtuosa, boa e sempre pronta a acolher um conselho aproveitável; enfim, como disse Gifford, seu tutor doméstico, "a very hopeful youth", ou seja, "um jovem que muito prometia."

            Gifford, no entanto, não o acompanhou a Oxford, como esperava, e, mais tarde, diria que a vída do Conde teria sido muito diferente se ele o tivesse seguido mais além, em seus dias de formação. No que, acredita-se, ele não deixou de ter alguma razão, pois era homem austero e disciplinador, e, ao que tudo Indica, Rochester respeitava-o.

            A cultura do jovem Conde foi bastante ampla para a época. Manejava com facilidade o latim e o grego, e era versado nos clássicos dessas línguas. Nos seus versos, mais tarde, apareceriam adaptações de Lucrécio. Ovídio ou Sêneca, a despeito dos resmungos de Gifford, que, enciumado dos progressos de seu antigo pupilo, dizia que ele pouco sabia de latim, e multo menos de grego.

            Na realidade, o ressentimento era profundo. Certa vez em que Rochester reclamou que o velho não vinha vê-Io com mais frequência. Gilford respondeu com azedume e mágoa: - "My lord, sou um sacerdote. Vossa Graça tem o péssimo caráter do devasso e do ateu, e não ficará bem para mim estar em companhia de Vossa Graça, enquanto esse procedimento durar, enquanto o senhor continuar nessa vIda."

            E, assim, em 1660, sem Gifford, Rochester partiu para o Wadham couege, em Oxford. Não completara 13 anos, e não estava ainda suficientemente amadurecido para experimentar a vida livre de um grande colégio, nem suportar o assédio da malícia e da irresponsabilidade de um ou outro companheiro mais impetuoso.

            Quando um mestre mais impertinente tentou coibir o uso da cerveja, e chamou os alunos para uma conversa a sério, os estudantes disseram que os homens do Vice-Chanceler da Faculdade também tornavam das suas na Taverna da "Split Cow". O Mestre foi ao Více--Chanceler que, por sua vez, não sendo indiferente às atrações da cerveja, deu de ombros, dizendo que não via mal no que o Mestre rotulava de "aquele licor infernal que se chama cerveja". Diante disso, o Mestre tornou a reunir os jovens e deu-lhes permissão para beber, "de modo que pudessem ser beberrões autorizados", e não clandestinos. Esse era o ambiente de Oxford, de onde Rochester saiu em 9 de setembro de 1661, com 14 anos de idade, levando o título de "Master or Arts". Em novembro, ele partiu para o Continente, em companhia de Sir Andrew Ballour, conhecido botânico e homem integro. A viagem seria principalmente à França e à Itálla.

            Ao regressar, a doce vida estava aberta diante dele. Um relato da época descreve-o como um jovem gracioso, alto e esguio, de feições extremamente atraentes, inteligente, irresistivelmente charmoso ("charms not to be withstood"}, brilhante, sutil, sublime, muito bem educado, e "adornado com uma natural modéstia que o tornava encantador". Além do latim e do grego, já referidos, dominava perfeitamente o francês e, o italiano, estando familiarizado com autores clássicos e modernos nessas línguas, sem contar o inglês. Era, pois, uma figura encantadora, com todos os atributos para conquistar a frívola sociedade de seu tempo; e até mesmo admirações autênticas.

            Cedo, pois, estava ele profundamente engajado nas intrigas da corte de Charles II, de quem passou a desfrutar amizade e confiança. Em carta de 26 de dezembro de 1664, o rei escrevia à sua querida irmã, casada com o Duque de Orléans: "Somente ontem recebi sua carta, por intermédio de Lord Rochester." O Lord tinha apenas 17 anos...

            No ano seguinte, raptou Elizabeth Mallet, herdeira de propriedades que rendiam 2.000 libras por ano, o que não era de se desprezar para um Conde bonito e talentoso, mas empobrecido.

            Era a noite de 26 de maio. A moça havia ceado em White Hall, em companhia de seu avô, com Frances Stewart, uma das Damas de Honra da corte. Achava-se a caminho de casa, com Lord Hawley, quando um grupo de homens armados. sob o comando de Rochester, fez parar a carruagem em Charing Cross. Puseram-na em outra condução e levaram-na para fora de Londres, a um lugar secreto, onde duas mulheres à esperavam. A noticia circulou, e Lord Rochester foi capturado em Uxbridge, sem Elizabeth. O rei, que havia, tentado arranjar o casamento de ambos, ficou furioso. Em, 27 de maio, foi expedida uma ordem de prisão; e Rochester recolhido à Torre. Elizabeth, resgatada, voltou aos seus. Mais tarde precisamente em 29 de Janeiro de 1667, ao cabo de inúmeras peripécias, ela se casaria com Rochester, "contrariamente à expectativa de todos os seus amigos", segundo a velha Senhora Rochester.

            Antes, porém, viveu ele a aventura do mar, no combate à marinha holandesa, no que se saiu com valor, embora sem atingir o posto de almirante, como alguns acreditaram e divulgaram. Atribui-se, no entanto, sua admissão à Câmara dos Lordes (Parlamento), antes dos 21 anos de idade, à sua atuação na campanha. Foi nessa oportunidade que Rochester, assediado por premonições de morte, celebrou com seu amigo e companheiro Wyndham um pacto formal, com aspectos de cerimônia religiosa, segundo o qual aquele que morresse primeiro prometia aparecer ao outro, para dar notícia do futuro estado, se é que existia um futuro estado. Um terceiro amigo, um certo Edward Montagne, recusou-se terminantemente a fazer parte do acordo.

            Rochester regressou são e salvo à Inglaterra para encontrar seu país sacudido por urna das grandes pragas que dizimavam populações inteiras naquela época; mas a vida seguia seu curso entre o pavor da morte e o aceno dos divertimentos.

            Em reconhecimento por seus serviços, o rei atribuiu a Rochester um prêmio de 750 libras que devem ter sido utilizadas para aliviar a pressão de seus credores.

            Em fevereiro de 1666, a Corte retornou a Londres, de onde fugira espavorida, e, em março, Rochester foi nomeado "Gentleman of the King's Bedchamber", ou seja Camareiro do Rei, posto honorífico que o monarca reservava aos seus íntimos amigos, e que rendia os vencimentos nada desprezíveis de 1.000 libras por ano. A principal função do Camareiro era apresentar ao rei, todas as manhãs, a sua primeira peça de roupa, uma espécie de camisa com a qual o vestia. Além disso, supervisionava a ordem dos aposentos reais; vendo que nada faltasse ao conforto de Sua Majestade.

            O jovem Conde preferia, no entanto, a aventura, e, no verão de 1666, fez-se ao mar novamente, em companhia de Sir Edward Spragge, para novas lutas com os holandeses, e desta vez para derrotas humilhantes.

            Ao se casar com Elizabeth Mallet, Rochester não completara ainda 20 anos, e Graham Greene queixa-se de que os 13 anos restantes de sua vida são difíceis para o biógrafo, pelas fantásticas histórias que circulam a respeito, as aventuras amorosas com várias cortesãs e senhoras da sociedade, suas amizades literárias, suas disputas, algumas das quais resultaram em duelos mais ou menos românticos, suas desavenças com o rei, seu papel de charlatão, quando resolveu ser médico, "como se todos esses anos - escreve Greene - fossem nublados pelos vapores da bebida".

            Suas visitas à esposa, que permanecera na propriedade rural, eram intermitentes e espaçadas. Desse período aventuroso e vago, somente se conhecem com precisão as datas do batismo de seus filhos: Anne, em 30 de agosto de 1669; Charles, o único filho varão, em 2 de janeiro de 1671; Elizabeth, em 13 de julho de 1674 e, em 6 de janeiro de 1615, sua última filha legítima, Mallet, pois teve ainda uma filha com a atriz Elizabeth Barry, em Londres, em 1677.

            Em suma: a vida era uma enorme “chatice" que, no entanto, precisava ser vivida, e
"Rochester bebia para torná-la suportável"

            Piores momentos viriam, porém.

            - "A paixão do ódio começou cedo, escreve Graham Greene. Atrelada, como estava, à ingratidão, suspeita-se de que a bebida tenha começado a afetar o caráter de Rochester aí pelo fim de 1667, dez meses depois de seu casamento."

            O ódio era difuso e impessoal, mais pela sociedade, suas hipocrisias e falsidades, pois, na palavra repetida de seu biógrafo, "odiava a imoralidade... nos outros", enquanto se permitia todos os desatinos. É essa a imagem que, provavelmente, tentou retratar o pintor que o figurou coroando um macaco que destrói livros. A 5 de outubro, foi convocado para a Câmara dos Lordes, com 21 anos incompletos, o que provocou alguns protestos veementes; mas, o rei manteve sua decisão. Estava "de bem" com Rochester. De outras vezes, expulsá-lo da Corte, dado que o poeta não poupava nem mesmo o seu real amigo nos seus terríveis epigramas,  às vezes em versos pornográficos irreproduzíveis, como os que constavam da sua "The History of the Insipids".

            Com outro rei mais impulsivo, a carreira de Rochester estaria para sempre encerrada, e, talvez, a sua vida; mas, Charles acabava por readmiti-lo na sua intimidade, e até conferiu a ele cargos e bens. Além da posição de Camareiro, que Rochester abandonou, o rei designou-o para a Câmara dos Lordes, como vimos. Em fevereiro de 1668, foi nomeado Guardião da Caça Real, em Oxford, e, em abril, Rochester fez uma petição solicitando quatro distritos em Whitthewood Forest. Em 1673, foi-lhe atribuído, em comum com Laurence Hyde, o domínio de uma propriedade da coroa, em Bestwood, o quatro carregamentos de feno de Lenton Mead, tudo Isso a troco de um aluguel nominal de 5 libras por ano. Em 1674, Rochester foi nomeado Guardião de outra propriedade, chamada Woodstock Park. Em abril do ano seguinte, nova nomeação para um cargo honorífico, e, em junho, o usufruto de algumas propriedades. Três dias depois da nomeação, ele quebrou um raríssimo relógio de sol, no jardim do palácio, na inconsciência da embriaguez.

            Graham Greene não pode deixar de observar o estranho relacionamento entre Rochester e seu rei, que, tão pacientemente, suportou suas loucuras e Impertinências. "Talvez, acrescenta o biógrafo, somente no abismal cinismo do rei se poderia encontrar a explicação." Ou, diríamos nós, numa amizade sincera, que resistia aos mais duros embates da provocação e do ridículo em que o poeta às vezes o colocava perante a Corte e a nação, em versos que circulavam por toda parte.

            Numa dessas expulsões da Corte, Rochester e seu amigo Buckingham adquiriram uma estalagem na Newmarket Road, onde se esmeravam em tratar tão bem os clientes que os homens passaram a trazer também as esposas. Enquanto os maridos bebiam, Rochestcr e amigo cortejavam as esposas. Uma delas, particularmente difícil, porque o marido teimava em mantê-la em casa, aos cuidados de uma irmã, Rochestcr conquistou com um artifício: enquanto o amigo embebedava o marido, o poeta vestiu-se de mulher e conseguiu insinuar-se, colocando a tia-guardiã fora de combate com uma dose de ópio, habilmente ministrada.

            Daí em diante, as loucuras desatam-se mesmo, constituindo, às vezes, incidentes sérios, como o de Epson, em que Rochester só por milagre não foi levado à Justiça para responder por crime de morte. Andou foragido, por algum tempo, e, depois, reapareceu na Corte. O rei o havia perdoado novamente...

            Depois disso, foi a aventura como "médico", especialmente de senhoras, e corno astrólogo. Os anúncios que então publicou foram preservados.

            - "Quanto às previsões astrológicas - dizia um texto "publicitário" - fisiognomonia, adivinhação por meio de sonhos e outras (na quiromancia não acredito, porque não possui a base invocada em seu suporte), minha própria experiência me convenceu dos seus consideráveis efeitos e maravilhosas operações, principalmente no sentido dos acontecimentos futuros, na preservação de perigos ameaçadores e na utilização de vantagens. que se possam oferecer. Afirmo que minha prática me convenceu mais dessa verdade do que todos os eruditos e sábios escritos existentes sobre a matéria: porque isto posso dizer por mim (sem nenhuma ostentação): que raras vezes tenho falhado nas minhas predições, e com frequência tenho sido muito útil em meus conselhos. Até onde posso ir neste assunto, estou certo de que não poderia dizê-lo por escrito."

            Com um "anúncio" desses, quem deixaria de procurar o jovem astrólogo, além de tudo muito simpático, inteligente e bonitão? Especialmente mulheres românticas e ambiciosas, ou ingênuas.     .

            É certo, porém, que ele não acreditava no produto que anunciava, mesmo porque o Espírito de seu amigo Wyndham - aquele do pacto de morte - não voltara para dizer se havia ou não vida póstuma. No entanto, outro episódio de premonição impressionara-o bastante para merecer um relato a Burnet.

            Um capelão que frequentava a casa de Lady Warren, sua sogra, sonhara que em tal dia morreria; mas, como trataram de dissuadi-lo da ideia, ele acabou por esquecer o sonho. Uma noite, porém, jantavam 13 pessoas em torno da mesa e, segundo antiga superstição, uma deveria morrer breve. Uma jovem presente apontou o capelão como candidato à desencarnação, o que trouxe de volta à sua mente a lembrança do sonho, e o deixou perturbado. Lady Warren repreendeu-o pela sua preocupação com a crendice, mas o certo é que o homem, em perfeitas condições de saúde, amanheceu morto no seu aposento.

            Isso, porém, somente iria fazer algum sentido para Rochester quando ele próprio se avizinhava da hora final. Enquanto essa hora não chegava, a vida tinha de ser vivida, e o mais intensamente possível.

            Na sua aventura como charlatão da Medicina, seu interesse mais uma vez se focalizou na clientela feminina, à qual prometia maravilhas de restauração e conservação da beleza física, segundo técnicas que teria aprendido na Itália, onde "mulheres de 40 anos têm a mesma aparência das de 15". Lá não se distinguia a idade pelo rosto, "enquanto na Inglaterra, ao olhar um cavalo na boca e uma mulher na face, sabe-se com precisão suas idades". Para remediar tal situação vexatória, lá estava o Dr. Rochester, com seus remédios miraculosos que limpavam a pele, clareavam os dentes, tornando-os "brancos e redondos como pérolas, fixando os que estivessem' frouxos". Enquanto isso, as gengivas ficariam vermelhas como coral, e os lábios da mesma cor "e macios como você os desejar para os beijos lícitos" ("lawfull kisses")', pois o jovem médico não poderia fazer mau juízo de suas clientes", Além do mais, eliminaria gorduras indesejáveis, ou poria carnes onde necessário, sem nenhum prejuízo para a saúde, E concluía:

            - "Mesmo que o próprio Galeno desse uma espiada de sua sepultura e me dissesse que isto tudo fossem recursos indignos da profissão médica, eu lhe diria, friamente, que, com muito mais glória, preservo a imagem de Deus na sua beleza imaculada, numa boa face, do que o faria remendando todas as decadentes carcaças do mundo."

            E assim segue a vida, esquecida de si mesma, atordoada em loucuras, desinteressada do futuro. Se ao menos o amigo Wyndham tivesse voltado para continuar a vida póstuma... 

            Aos 30 anos, tem notícia do nascimento de sua filha ilegítima com Elizabeth Barry, em Londres. Rochester estava doente, já prematuramente desgastado, numa de suas propriedades rurais. Em carta ao seu amigo Saville - outro companheiro de desatinos - escreve que está "quase cego, completamente coxo e com remotas esperanças de ver Londres outra vez". Mas, ainda se recuperaria para voltar a Londres e à vida tresloucada, com entreatos em sua propriedade em Woodstock, onde promovia bacanais memoráveis e distúrbios inenarráveis na vizinhança, com inocentes criaturas. 

            Enquanto isso, Lady Rochester, a jovem esposa, vivia por ali mesmo, a cerca de 15 milhas, em Adderbury, com os filhos, uma existência pacata, recolhida e sem horizontes.

            E, por estranho que pareça, Rochester amava-a, à sua maneira, é claro, e respeitava-a. Ademais, adorava os filhos, e todos gostavam muito dele. Suas rápidas passagens pelo lar devem ter sido sempre momentos de alegria e descontração, pelo seu gênio alegre e pelas histórias que deveria contar, não as escabrosas, mas as que pudessem passar pelo crivo da moral. Nos seus filhos, segundo Graham Greene, ele via a única forma de imortalidade em que podia acreditar: a continuidade da vida nos descendentes.

            Uma de suas cartas ao seu filho Charles preservou-se, com sérias recomendações sobre o bom procedimento e o amor a Deus. Greene comenta, depois de transcrevê-la, que não se trata do documento de um hipócrita. Ele realmente desejava para o filho uma vida diferente da sua, queria que o menino crescesse crendo em Deus e "não imitasse seu pai a caminhar no frio de um universo ateu". Diria, mais tarde, a Burnet que considerava muito felizes aqueles que tinham fé, "dado que isso não estava ao alcance de toda agente".

            É certo, porém, que, para um homem de seu talento e de suas inclinações para a vida libertina, as religiões predominantes na época não tinham muito a oferecer, ainda mais que disputavam ferozmente entre si não a supremacia dos corações e das consciências, mas a do poder temporal. É óbvio, também, que, mesmo na tormenta da sua vida Inconsequente, ele ouvia em si a voz de Deus a chamá-la. Mas, chamá-lo para onde? Para o Catolicismo? Para o Protestantismo?

            Num poema intitulado "On Rome's Pardons" ("00 Perdão de -Roma"), dizia que  “se Roma pode perdoar pecados, como diz, e se tais perdões podem ser comprados e vendidos, não seria pecado adorar e venerar o ouro. Quando surgiu esse artifício, ou quando começou? Quem é o seu autor? Quem o trouxe? Teria o Cristo criado uma alfândega para o pecado?"

            Seja como for, ele deve ter encontrado mais lógica na doutrina reformista, pois conseguiu, já no final, converter sua mulher do Catolicismo para o Protestantismo anglicano.            

            Pouco depois, com o corpo devastado pelas doenças, e com o Espírito ansioso, amargurado e cheio de remorsos, iniciaria, ao lado de Gilbert Burnet, a última aventura: a busca de Deus e da verdade escondida atrás do mistério da vida.

            Esse dedicado sacerdote passou horas e horas ao lado do Jovem Conde agonizante, e, meses depois da morte de Rochester, publicou, ainda em 1680, um precioso livro sobre a vida do malogrado amigo: "Algumas passagens sobre a vida e a morte do nobre John, Conde de Rochester, morto em 26 de julho de 1680."

            Muito gostaríamos de ter em mãos esse livro raríssimo, pois é ele o verdadeiro testamento moral de um Espírito extremamente bem dotado, mas mergulhado numa crise terrível de insatisfação consigo mesmo, sua vida e seus atos, diluído tudo numa loucura que durou umas poucas décadas, e que acabou em agonias penosíssimas.

            Seria preciso, também, percorrer os seus versos geniais, para ver faiscar na lama escura da obscenidade a pedra cintilante das suas intuições, como, para citar um só exemplo, a intuição da reencarnação, colocada num verso que, de tão pornográfico, se torna irreproduzível.

            Burnet foi o confidente da hora última, dia após dia, até o amargo fim, desde outubro de 1679, quando Rochester mandou buscá-lo. Depois dos primeiros encontros, "ele adquiriu confiança em mim - escreve Burnet - e abriu para mim todos os seus pensamentos, tanto em religião como em moral, proporcionando-me uma visão completa de tua vida, e não parecia aborrecer-se com minhas frequentes visitas".

            É claro que, a princípio, o depoimento de Burnet foi considerado apócrifo, especialmente pelos amigos de Rochester, que não podiam aceitar a conversão, naqueles termos tão dramáticos, de quem realmente busca, aturdido e contrito, o sentido da vida, afinal revelado nas últimas horas. A passagem do tempo, no entanto, confirmou a autenticidade do livro, porque as pesquisas realizadas em dois séculos e meio em torno de Rochester deram credibilidade ao que o bom sacerdote documentou de maneira tão comovente.

            Burnet foi o grande doutrinador junto de Rochester. Só que, em vez de doutrinar um Espírito já desfigurado, esforçava-se por levar uma parcela de luz e de esperança ao coração de um que partia e se preparava para enfrentar a realidade póstuma. Seu mérito é ainda maior, quando nos lembramos de que ele dispunha apenas da precária teologia dogmática que a sua intuição e sua sabedoria devem ter suprido na extensão suficiente e necessária para acordar aquele Espírito ainda na carne.

            Rochester estava, afinal, disposto n ouvir: o debate à beira do túmulo contém 302 linhas atribuídas a Rochester, e 1671 a Burnet. Mesmo assim, não deve ter sido fácil a tarefa para o virtuoso e culto sacerdote, pois seu oponente desejava uma realidade que pudesse admitir com apoio na lógica, e não uma crença que teria de aceitar à base da fé sem especulação intelectual.

            Achava o Conde que nossa concepção da ideia de Deus era tão insignificante que seria mera presunção pensar muito nele. Era melhor adorá-lo independentemente de qualquer culto religioso, mas com uma celebração genérica, como, por exemplo, com um hino.

            Quanto à vida depois da morte, "apesar de achar que a alma não se dissolve com a morte, duvidava muito das recompensas, tanto quanto das punições: as primeiras, por achá-las muito elevadas para que as alcançássemos com os nossos minúsculos serviços, e as outras demasiadamente excessivas para serem impostas ao pecado".

            Em suma: não podia aceitar céu nem inferno. Portanto, admitia claramente que deveria haver outras formas de ajustar a alma ao bem, dado que ela sobrevivia à morte do corpo físico.

            Desse ajustamento, também teve intuições maravilhosas, não apenas no verso pornográfico há pouco lembrado. Certa vez interrompeu Burnet para dizer o que pensava disso:

            - "Pensava ele - escreve o sacerdote-biógrafo - que o mais certo é que a alma
começar de novo, e que a lembrança do que ela fez neste corpo, registrada nos desenhos do cérebro, tão logo ela é desalojada, tudo desaparece, e a alma é levada a algum novo estado para começar um novo ciclo" (destaques desta transcrição). 

            Ninguém poderia ter figurado melhor a ideia da reencarnação, há quase 300 anos! O único reparo que cabe fazer na suposição de Rochester é o de que as lembranças, embora gravadas no cérebro físico enquanto o Espírito está encarnado, apagam-se realmente deste, mas permanecem nos registros perispirituais, e quando a alma começa de novo, com um novo cérebro físico, ela se esquece por sua própria conveniência, mas apenas temporariamente, porque nenhuma lembrança se perde.

            John Wilmot, Conde de Rochester, voltaria mais tarde para documentar, com narrativas realmente históricas, as doutrinas que confusamente sentia e que não tinha como expressar naqueles meses agoniados em que sua vida física se extinguia lentamente. Afinal de contas, como dissera George Etherege do jovem Conde: "Sei que ele é um demônio, mas ele tem algo do anjo que ainda não se apagou nele." Ou seria o contrário: um anjo em potencial, no qual a face do demônio ainda não se apagara de todo?

            Num verso inteligente e brejeiro, Sir Francis Fane parece ter tido não apenas a intuição da verdade, mas também a premonição do traçado futuro da vida de Rochester. Para ele, Rochester foi um alegre emissário do Demônio que, de repente, para grande confusão do Maligno, mudou o rumo da sua nau, e, em vez de liderar para o caos as almas perdidas, enfunou as velas na direção das regiões da felicidade eterna.

*

            E assim tivemos a história sumária de John Wilmot, segundo Conde de Rochester, um Espírito que acabou por se encontrar a si mesmo, a despeito do alarido de suas paixões desencadeadas. Não apenas Isso. De regresso ao mundo espiritual, depois de pelo menos mais uma vida na carne, resolveu escrever, através de sua amiga Wera Krijanowski, a mais bela mensagem do mundo: a de que o Espírito sobrevive e se reencarna - tantas vezes quantas necessárias ao seu reajuste perante as leis de Deus, insistentemente desobedecidas ao longo do tempo imemorial. Nada se esquece, nada se perde, tudo serve para a reconstrução do nosso mundo íntimo, até mesmo as nossas loucuras, porque também com elas aprendemos a dura lição da vida, que não precisava ser dura se o quiséssemos.

            São muito populares no Brasil as obras mediúnicas ditadas por Rochester, mas uma parte considerável da sua produção histórico-literária ainda é desconhecida, segundo referências que colhemos no prefácio de "A Vingança do Judeu", edição da FEB, 1966. (1)

            Das obras já traduzidas, além da retrocitada, são mencionadas as seguintes, cujos títulos darei em português:
Tibério
A Abadia dos Beneditinos
O Faraó Mernephtah
O Sinal da Vitória
Romance de uma Rainha
O Chanceler de Ferro
 Herculanum
Naêma, a Bruxa (lenda do século XV)
A Lenda do Castelo do Conde de Montinhoso

                (1) A FEB lançará, em 1976, novas edições de "O Chanceler de Ferro", "Herculanum" e " Vingança
do Judeu".

            Entre as que ainda aguardam divulgação, citam-se os seguintes títulos em francês, neste trabalho traduzidos:

O Festim de Baltasar
Saul, Primeiro Rei dos Judeus
O Sacerdote de Baal
Um Grego Vingativo
Fraquezas de um Grande Herói
O Barão Ralph de Derblay
Diana de Saurmout
Dolores
O Judas Moderno
Narrativas Ocultas

            Só a leitura desses títulos nos aguça a curiosidade pelo mundo de revelações históricas que devem conter essas obras e as trajetórias de tantos Espíritos notáveis, no bem e no mal. Em "Dolores", por exemplo, o autor espiritual narra acontecimentos ocorridos na Espanha e em Cuba, no século 18, quando teria vivido sua mais recente encarnação. (2)

            (2) Sabe o leitor desses Iívros perdidos de Rochester? Possui alguém exemplares de alguns deles, em francês, Inglês ou qualquer língua viva? Quem tiver alguma informação, queira, por favor, transmiti-la à Redação de "Reformador".

            Há mais, porém: Rochester teria prometido aos amigos encarnados que compunham o círculo onde se manifestava, escrever "As Memórias de um Espírito" que, no dizer do prefaciador de "A Vingança do Judeu", seria "o seu trabalho capital". Teria escrito essa obra? Se não o fez, sempre haverá tempo de fazê-lo, porque a vida se desdobra pelo infinito, as memórias permanecem indeléveis no substrato do Espírito, e o ser caminha para a realização do amor que marca o nosso retorno a Deus.  







Antigos Desterrados





Antigos Desterrados
J.W. Rochester 
por Hernani T. de Sant’Anna
Reformador (FEB) Dezembro 1978

            Para nós, Espíritos que ainda não irradiam de si mesmos as luzes divinas e definitivas da Redenção, é inútil que o tempo lance sobre o passado os véus do esquecimento. Permanecendo ligados ao que fomos, os nossos Espíritos sentem, nas claridades bruxuleantes e indecisas do presente, a força de ação e de atração do que éramos e ainda somos. O pretérito, atuando sobre nós, sob a forma de impulsos atávicos, na ordem cármica das causas e dos efeitos, faz com que a nossa memória profunda recapitule e reviva o que muitas vezes a nossa consciência desperta já não aceita mais.

            Vem, aliás, de muito longe a nossa rebeldia, nascida e alimentada dos tormentosos conflitos entre a nossa razão e os nossos ímpetos, os nossos sentimentos e os nossos desejos.

            Desterrados neste orbe, ao qual ainda não sabíamos amar, construímos, no orgulho da nossa saudade e dos nossos conhecimentos infusos, uma civilização brilhante, mas sem amor.

            De desastre em desastre, apesar das virtudes que começávamos a cultivar e dos sofrimentos que amargávamos, tivemos de peregrinar constantemente, acossados pela força das ordenações maiores, em busca da nossa própria reformulação, sempre difícil.

            Do Delta, passamos ao Vale do Pó, às Gálias, às Ilhas Britânicas, à Germânia. E quando pudemos regressar ao Norte da África, nossa inquietação guerreira nos colocou à frente das hostes iconoclastas de Maomé.

            Por isso, tivemos de amargar duríssimos reveses e só após muitas tempestades de dor fomos de novo agraciados com o sol da França e com essa paisagem doce e bendita da Terra de Santa Cruz.

            É que, se coube aos Filhos de Sion o privilégio da escolha para serem os depositários das duas primeiras Grandes Revelações do Céu, foi a nós que a Misericórdia do Cordeiro elegeu para o trabalho de recebimento e de divulgação da Mensagem do Espírito da Verdade, nas luzes do Consolador Prometido.

            Nenhuma gente, sobre a face da Terra, teria melhores condições do que a nossa para essa sublime tarefa, para a qual nos preparamos desde os tempos remotos do nosso velho e sempre querido Egito.

            Mas, ah!.. As serpentes! As serpentes do Nilo!.. Elas ainda moram conosco, em nossas mãos, em nossos corações, em nossos hábitos, e nos picam, e nos ferem, e nos envenenam, porque os nossos Mistérios - ó Deus Altíssimo! - não eram apenas, infelizmente, mistérios de amor - eram também mistérios de morte!

            Vamos, porém, em frente, já que a Bondade divina, apesar de tudo, nos sustenta e nas abre ainda os créditos de sua Infinita dadivosidade!

            O presente ainda é nosso e, se Deus quiser, o futuro também há de sê-lo!

            Adiante, com o Senhor Jesus e com o Excelso Espírito do Anjo que nos assiste e ampara.

            A paz seja convosco.

sexta-feira, 6 de novembro de 2015

O Grande dia do Calvário


De um pequeno grupo de toscos abrigos numa encruzilhada, Roma galgou as culminâncias do poder temporal, ao conquistar todo o mundo conhecido, que manteve durante dois séculos subjugado à sua espada, mas pacificado e em segurança. Depois, lenta e inapelavelmente, entrou em decadência, até o colapso final, derrotada mais pelas fraquezas de seus próprios líderes do que pela força dos inimigos externos. Will Durant, no terceiro volume da sua História da Civilização, diz que esse é "seguramente o maior drama jamais representado pelo homem" e acrescenta: "A não ser aquele outro drama que começou quando César e Cristo colocaram-se face a face no tribunal de Pilatos, e
continuou até que um punhado de cristãos perseguidos cresceu pacientemente no tempo enfrentando perseguições e terror, para serem primeiro os aliados, depois, os mestres e, afinal, os herdeiros do maior império da História."

            O método de trabalho de Will Durant é o da história total, a que ele chama sintética, segundo o qual, selecionado o período para exame, coloca num só painel todos os fatos e inferências que emergem daquele período. Em contraposição ao seu método, há a história analítica, que destaca um tema como a arte, a religião ou a política e o estuda através dos tempos. Durant reconhece que ambos os processos têm méritos próprios, tanto quanto limitações.

            No terceiro volume da sua história, o tema é o da civilização romana e do Cristianismo, desde o ano 800 antes do Cristo até o ano 325 da nossa era. Escolheu um titulo sugestivo para rotular essa fatia da História: "César e Cristo".

            Na verdade, o momento em que Jesus se coloca diante de Pilatos marca um ponto em que duas épocas se encontram, duas filosofias se medem, duas visões diferentes do mundo se revelam. Sobre esse tema fascinante muito se tem escrito, pois não escapou aos espíritos mais argutos a tremenda importância daquele simbolismo: César e Cristo. As lições que o episódio contém conservaram intacto o transcendental poder de sugestão, oferecendo continuamente material para meditação, do qual diretrizes sempre renovadas podem surgir se as buscamos com espírito de humildade e os olhos de ver de que nos falam os Evangelhos.

            Will Durant não desce, no seu exame do encontro, às profundezas das razões motivadoras.  Se o fizesse, estaria realizando história analítica, que não é a sua província. Diz, no entanto, o suficiente para a compreensão do drama. Esclarece que o Sinédrio declarou Jesus culpado de blasfêmia - crime então considerado capital - e decidiu levá-lo ao Procurador romano.

            É evidente que poderia ter executado o condenado. Poucos anos depois, pelo mesmo "crime", concederia a Saulo de Tarso a penalidade capital por apedrejamento, solicitada para Estêvão.

            No caso de Jesus, no entanto, o Sinédrio mostrava-se mais cauteloso, porque a figura pública do Cristo assumira proporções muito grandes e era melhor inventar conotações políticas e deixá-lo entregue aos romanos, que arcariam com o ônus da execução.

            O papel de Pilatos é bem conhecido na História, mas a sua psicologia não ficou muito bem definida. Durant diz que foi um homem duro, que mais tarde foi chamado a Roma para responder a acusações de extorsão e crueldade, sendo então exonerado de suas funções. Não viu, porém, em Jesus, o perigo que desejavam que ele visse.

            A Enciclopédia Britânica informa que ele governou a Judeia desde o ano 26 até 36 da nossa era. Conservou a província em ordem, mas não revelou boa compreensão acerca do povo judeu, segundo depoimento de Josefo e Fílon. Chegou mesmo a provocar um distúrbio popular, ao utilizar-se de recursos do templo para construir um aqueduto. Lucas também se refere ao massacre de galileus indefesos que faziam sacrifícios. Era, porém, um cargo difícil aquele e, sem dúvida, Pilatos não se saiu muito mal dos pontos de vista administrativo e político, dado que permaneceu no posto 10 anos. Talvez sua figura tenha sido algo distorcida pelos primeiros historiadores, que apenas viam nele o homem que condenou Jesus. Muitas lendas se ligaram a ele posteriormente. Houve quem dissesse que ele se tornou cristão. Outros dizem que se suicidou. A Britânica informa que ele foi canonizado pela igreja abissínia e, sua esposa Prócula, igualmente canonizada pela igreja grega.

            Do ponto de vista meramente histórico é uma importante figura do grande dia. Há outras menores: Anás, Caifás, Herodes, Prócula, Barrabás. Há algumas coletivas, como o povo enfurecido que pedia sangue. Dentre todas avulta, naturalmente, a de Jesus. O mundo espiritual nos revelaria mais tarde outras personagens do imenso drama, pois, naquela encruzilhada da História, não apenas se julgava o Messias Nazareno, mas defrontavam-se duas correntes do pensamento humano: a força e a justiça. Eram dois esquemas diferentes, duas sínteses cujos choques constantes ecoam e se repetem através da lenta evolução humana. Tanto uma como outra tem sido abastardada e aviltada. A força inúmeras vezes tem degenerado em opressão e a justiça em vingança. Na realidade, poderiam conviver, buscando um ponto de equilíbrio e harmonia, ou até mesmo se fundirem num só conceito: a força da justiça. Lá chegaremos, por certo, quando a força recuar da posição de ato à de potência e quando a justiça lavar-se das manchas e mazelas que a imperfeição humana lhe emprestou.

            Não podemos nos esquecer de que força e justiça não existem por si mesmas; são resultantes do procedimento humano e como poderemos ter o equilíbrio da força expectante, potencial, como qualidade intrínseca, ou a justiça purificada, dinâmica, antes que o próprio homem alcance estágios mais equilibrados na sua rota evolutiva? Enquanto isso, o direito que emana do poder e se ministra através da justiça, também é falho e imperfeito. Ao julgar o Cristo, o representante de César era praticamente forçado a condená-lo, ainda que nele não visse crime algum. Estava investido da força do poder e sob a pressão da justiça vingativa. Era a justiça aviltada que exigia da força corrompida a eliminação do justo, para que triunfasse a injustiça. O equilíbrio entre a força e a justiça andava por aqueles tempos em baixíssimos níveis. Era preciso mantê-lo assim, para que a imperfeição humana continuasse a exercer a força e o arremedo de justiça.

            Will Durant informa que Pilatos não tinha alternativa senão condenar o Cristo, depois que o próprio acusado admitiu ser o rei dos judeus, pois tinha vindo ao mundo, segundo João, para "dar testemunho da verdade". Pilatos aproveitou a oportunidade para perguntar o que é a Verdade.

            Embora suspeitando de que a pergunta seja mais devida às tonalidades metafísicas do Quarto Evangelho, Durant reconhece que ela revela nitidamente "o abismo entre a cultura sofisticada e cínica do romano e o idealismo humanitário e confiante do judeu".

            No fundo mesmo, o que vamos encontrar nesse episódio é o confronto da força com o amor, porque a justiça sem amor é fria e implacável, e a força sem o amor é cruel e desastrosa. O encontro do Cristo e César é bem mais que um simbolismo; é um teste para saber até que ponto os representantes do poder estariam preparados para reconhecer o poder da justiça pura. Não estavam.

            César é o passado que persiste, Cristo é o futuro que se anuncia; um se apoia na matéria transitória, outro representa o espírito que fica e sobrevive. É clara a opção, nítida a solução na perspectiva que proclama há milênios a vitória do espírito sobre a matéria, sobre a carne, sobre os vícios e mazelas que se alojarão no espírito somente enquanto este insistir em ficar voltado para a matéria.

            Jesus desejou mostrar que o próprio homem dispõe de recursos para promover o seu auto aperfeiçoamento e, por conseguinte, o aperfeiçoamento da sociedade em que vive. Essa, a sua verdade, mas de que lhe servia, ali, naquele momento, explicar a Pilatos o que era a Verdade? Diante do abismo que separa os dois sistemas - o da força e o da justiça - nada mais restava fazer senão esperar, porque a Verdade exige de quem a contempla um grau mínimo de maturidade espiritual; ao contrário, nem será percebida, da mesma forma que os Espíritos ainda presos às suas inferioridades também não percebem a presença daqueles que estão colocados em planos superiores de evolução. E assim, do ponto de vista humano, naquele momento, parecia que o Cristo se retirava derrotado. Teria sido prematuro o confronto? Podemos responder, enfaticamente, que não. Jesus trouxe a sua mensagem no tempo certo. O homem caminha muito lentamente ao longo da escala evolutiva. Para que ele alcance um dia um patamar de equilíbrio entre conhecimento e moral, a fim de utilizar-se inteligentemente da força e da justiça, ou antes da força da justiça pura, a meta terá de ser mostrada a ele com antecedência de milênios. O Cristo sabia, diante de Pilatos, que não importava a profundidade escura do abismo que separava os dois sistemas; o importante ali é que os homens um dia haveriam de reconhecer a existência do abismo. Como poderiam atravessá-lo sem antes identificá-lo? Como poderiam galgar o equilíbrio e o amor se não viesse alguém - e veio o próprio Jesus - mostrar que havia uma meta a ser alcançada, um dia... um dia...

            Para chegar àquele momento em que a sua mensagem seria pelo menos entendida, já não se diz praticada, teria ele de viver o grande dia do calvário.

            Como é que o mundo espiritual nos conta o drama daquele dia inesquecível?


* * *

            Em "Herculanum", o Espírito Conde de Rochester, utilizando-se da mediunidade da Sra. Krijanowsky, narra episódio que oferece uma faceta do drama.

            Fugindo da terrível erupção do Vesúvio, Caius, ferido, é recolhido por um eremita que lhe conta a participação que teve no grande dia.

            Fora, naquele tempo, um centurião a serviço de César, na Palestina. Chamava-se Quirilius Cornelius e seu primeiro contato com o Cristo resultou de uma tarefa que lhe foi solicitada pelo seu comandante. Há dois anos um homem andava pela Galiléia pregando estranha doutrina. Cornelius deveria segui-lo secretamente para ver se havia fundamento na denúncia do Sumo Pontífice dos judeus de que o homem tinha ambições políticas.

            Cornelius, que aprendera a língua nativa para poder entender-se melhor com Abigail, sua amada, partiu, observou o Mestre, acompanhou-o por algum tempo, ouviu-lhe a palavra, assistiu aos seus milagres e voltou para dizer que nada via nele que pusesse em risco a paz e a segurança do Estado.

            Uma noite, ao entrar em casa de Abigail, percebeu grande agitação e angústia. Perigo iminente ameaçava o bom profeta galileu, a cuja doutrina a jovem se convertera. Davi, seu irmão, viera avisá-la, na esperança de que alguém pudesse chegar até o Mestre e preveni-lo, a fim de que ele fugisse para longe de Jerusalém.

            Cornelius não conseguiu dormir naquela noite. Logo cedo, na manhã seguinte, localizou Davi, que o informou que Jesus já se encontrava a caminho do palácio de Pilatos, Muitas forças se punham em ação naquele momento para salvar Jesus. Cornelius, porém, informa que eram decretos da Providência. Inútil lutar. Até o procônsul tentou salvá-lo, sem êxito.

            Pronunciada, afinal, a sentença, Jesus foi confiado à guarda do próprio Cornelius,  que teve um gesto de extraordinária renúncia e dedicação. Postou-se pessoalmente à porta do cubículo, ao qual Jesus havia sido recolhido e, ao conseguir uma oportunidade para estar a sós com ele, fez-lhe uma proposta: poderia escapar para a liberdade e a vida. Trocariam de roupa e o centurião entregaria a sua vida pela do Mestre.

            - Deixa-me morrer em teu lugar, porque a vida de um soldado obscuro não vale a de que, como tu, é providencial e benéfica aos enfermos e desgraçados.

            Jesus agradeceu comovido, mas não podia aceitar. "Seu rosto, diz a narrativa mediúnica, transpirava uma calma celeste... Olhava-me com velado olhar de melancólica doçura ... "

            Agradeceu e falou ao romano do sacrifício de permanecer no mundo em que lhe era tão difícil praticar o bem. Quanto à morte, não o assustava, por mais infamante que fosse. Confessava-se pastor de todo o rebanho: "Desde o dia da criação deste mundo expiatório, a mim me compete esclarece-lo e selar com o próprio sangue as verdades que predico. Tal é a vontade do Pai."

            Nesse ponto, ouviram-se vozes no corredor. Uma mulher estava diante dos soldados em evidente estado de aflição. Queria ver o prisioneiro, seu filho. Cornelius deixou-a entrar e assistiu à entrevista dolorosa. Ante a angústia de sua mãe, Jesus lembrou-lhe carinhosamente de que ela fora preparada por ele mesmo para aquele momento supremo. Ela que o entendera e acreditara nele, agora chorava e sofria? Será que a morte a apavorava? Não sabia que a separação era apenas temporária? Teria perdido a fé? Maria reagiu prontamente. Beijou-lhe a mão e prometeu mostrar-se digna do filho que tinha. Até o fim.

            Voltando-se para o centurião, pediu-lhe que a deixasse acompanhá-lo até o lugar do suplício.  Se o povo tinha esse direito, por que não ela? Cornelius concordou.

            Chegado o momento, Cornelius deu as ordens necessárias à crucificação, mas desviava o olhar porque as marteladas lúgubres ecoavam dolorosamente no seu coração.

            Tentara, mas não conseguira salvar o Cristo. Em compensação, o Cristo salvou-o, porque ele guardou até o fim daquela existência, e as levou para o futuro, as visões inesquecíveis do grande dia. Segundo se observa em nota de rodapé, à pág. 192, da 4ª edição da FEB, no entender do Conde de Rochester, autor do romance, Quirilius Cornelius seria, séculos mais tarde, João Huss, o reformador queimado em Constança, em 1415.

* * *

            Quem mais teria estado presente aos acontecimentos daquele dia memorável?

            Vimos alguém que tentou impedir o sacrifício do justo, esmagado pela força. Vejamos agora alguém que atiçou os ânimos para que a força se desatasse contra o justo. Esse depoimento dramático está contido em "Memórias de um Suicida", obra mediúnica de responsabilidade da querida irmã Yvonne A. Pereira (4ª edição, da FEB).

            Ajudado pelo Espírito Léon Denis, Camillo Cândido Botelho descreve uma sessão de regressão de memória realizada no mundo espiritual, durante a qual seu Espírito endividado mergulha fundo no passado que sempre explica as nossas dores e as nossas humildes conquistas.

            Sob o império da vontade de um amigo espiritual, começou a sentir-se envolvido por "singular entorpecimento, como se tudo ao meu redor rodopiasse vertiginosamente". Já não distinguia mais a figura daquele que dirigia os trabalhos; "sequer o conhecia, e nem me recordava de meus companheiros de infortúnio ... Todavia, eu não adormecera! Continuava lúcido e raciocinava, refletia, pensava, agia, o que indica que me encontrava na posse absoluta de mim mesmo ... embora retrocedesse na escala das recordações acumuladas durante os séculos! . .. Perdi, pois, a lembrança do presente e mergulhei a Consciência no passado ..."

            Viu-se, então, no ano 33 da era Cristã, na velha cidade de Jerusalém. Não estava simplesmente se recordando - vivia a época e estava nela, como realmente esteve.

            Toda a cidade agitava-se desde a manhã, naquele dia ensolarado e quente. Sentia-se possuído de uma "alegria satânica", enquanto perambulava pelas ruas cheias de gente de toda parte. Promovia arruaças, soprava intrigas, espalhava boatos, incentivava desordens, "pois estávamos no grande dia do Calvário", Um certo revolucionário, chamado Jesus acabara de ser condenado à crucificação. Foi ao Pretório, pois sabia que dali sairia ele para a execução. Não queria perder o espetáculo.

            - Eu era miserável, pobre e mau. Devia favores a muitos judeus de Jerusalém. Comia sobejos de suas mesas. Vestia-me dos trapos que me davam.

            A narrativa é intensa e preserva para o leitor moderno todas as cores de sua dramaticidade. Ali estava ele afinado com os ódios que se desatavam incontroláveis sobre o jovem pregador de Nazaré, Aplaudiu a "figura hirsuta e torpe de Barrabás", mas não perdoava a tentativa de Pilatos para salvar o Mestre. Ao contrário, pediu "a execução deste em estertores de demônio enfurecido, pois aprazia-me assistir a tragédias, embebedar-me no sangue alheio, contemplar a desgraça ferindo indefesos e inocentes, aos quais desprezava, considerando-os pusilânimes"...

            E acrescenta:

            - E presenciar aquele delicado jovem, tão belo quanto modesto, galgando pacientemente a encosta pedregosa sob a ardência inclemente do Sol, madeiro pesado aos ombros, atingido pelos açoites dos rudes soldados de Roma contrariados ante o dever de se exporem a subida tão árdua em pleno calor do meio-dia, era espetáculo que me saberia bem à maldade do caráter e a que, de qualquer forma, não poderia deixar de assistir!..

            No entanto, ao contemplar esse passado, ainda que vivendo-o de novo, pode conservar alguma coisa das modestas conquistas espirituais que, apesar de tudo, havia conseguido, pois um movimento inexorável de remorso tomou-lhe todo o ser. Era ainda aquela figura hedionda que se comprazia no espetáculo criminoso do sacrifício de um inocente, ao mesmo tempo em que percebia, agora, toda a angústia da sua baixeza e bradava perdão, num grito que "ecoava por todos os recôncavos do meu Espírito".

            Continuava, não obstante, a assistir novamente ao doloroso espetáculo até o amargo fim. Via-se em frente ao Pretório, sempre hostil e desprezível.

            - Não houve insulto que minha palavra ferina deixasse de verberar contra o Nazareno. Feroz na minha pertinácia, acompanhei-o na jornada dolorosa gritando apupos e chalaças soezes; e confesso que só não o agredi a pedradas ou mesmo à força do meu braço assassino, por ser severo o policiamento em torno dele. É que eu me sentia inferior e mesquinho em toda parte onde me levavam as aventuras. Nutria inveja e ódio a tudo o que soubesse ou considerasse superior a mim! Feio, hirsuto, ignóbil, mutilado, pois faltava-me um braço, degenerado, ambicioso, de meu coração destilava o vírus da maldade. Eu maldizia e perseguia tudo, tudo o que reconhecesse belo e nobre, cônscio da minha impossibilidade de alcançá-lo!

            Sempre no cortejo tumultuado, insultou a figura humilde e aflita de Maria, berrando-lhe difamações. E agora, enquanto mergulhava nas memórias terríveis daquele passado tenebroso, abrigava-se numa instituição espiritual que funcionava exatamente sob a direção suprema de Maria, aquele mesmo ser angelical que ele próprio procurara aviltar no caminho do Calvário.

            A sanha demolidora continuou depois. Denunciou cristãos, perseguiu, espionou, maltratou pessoalmente aqueles que podia, ajudou a apedrejar Estêvão, praticou todas as infâmias que lhe ocorreram à mente deformada.

            Foi naquele grande dia do Calvário, o miserável instrumento da força divorciada da justiça. Recolhia agora as bênçãos do amor, através das quais a própria Maria lhe mostrava os diferentes caminhos que perlustra a justiça contida nas leis de Deus.

* * *

            No capítulo VIII de "Há Dois Mil Anos" (edição da FEB), Emmanuel apresenta o seu depoimento sobre o grande dia.

            Pouco antes, surpreendera Lívia, a esposa, em trajes plebeus, regressando de um encontro que tivera com o Mestre, em companhia de Ana, sua serva, e Simeão, tio de Ana. Lívia tivera a feliz oportunidade de ouvir do próprio Jesus os ensinamentos que passaram à História com o nome de Sermão do Monte e de assistir e participar do chamado milagre da multiplicação dos pães.

            Ao aproximar-se a Páscoa do ano 33, a família do senador Públio Lentulus deslocou-se para Jerusalém, na esperança de que, na turba que então procurava a cidade sagrada, descobrisse Marcus, o filho raptado.

            Foi Ana quem comunicou à senhora que Jesus chegara a Jerusalém e que Simeão também, a despeito de sua avançada idade, viera na multidão que o acompanhava.

            Nessa altura, envenenado por suspeitas e intrigas, o senador e a esposa viviam sob o mesmo teto, mas como estranhos que a calúnia separara dolorosamente.

            Um dia, pela manhã, Ana comunicou à senhora que Jesus havia sido preso. Se outras fossem as condições, Lívia recorreria ao prestígio do marido para tentar salvar o Mestre, mas agora tudo se lhe tornara difícil, de vez que ele nem sequer lhe concedia a oportunidade de dirigir-lhe a palavra. Mesmo assim, tentou aproximar-se do marido, esperando-o no compartimento contíguo do seu gabinete de trabalho. Logo, porém, surgiu Sulpício Tarquinius que, da parte de Pôncio Pilatos, vinha solicitar a presença do senador no palácio do governo.

            Públio partiu imediatamente, sendo recebido pelo procurador num salão amplo, onde já se encontravam alguns patrícios mais destacados, o pretor Sálvio, militares graduados e uns poucos romanos civis de posição.

            Pilatos desejava aconselhar-se com Públio Lentulus que, como senador, representava a autoridade máxima nas províncias por onde transitava. O problema em foco era o julgamento de Jesus. O procurador não via nele nenhuma culpa, "senão a de ardente visionário de coisas que não posso ou não sei compreender". Estava, no entanto, impressionado com seu penoso estado de pobreza. Além do mais naquela mesma noite, Cláudia, sua mulher, sonhara que uma voz recomendava que ele não deveria arriscar sua responsabilidade no julgamento daquele homem justo. Resolvera agir com toda prudência e por isso reunira os romanos mais eminentes em Jerusalém para ouvir seus conselhos e sugestões. Era evidente, pois, que naquele pequeno grupo não poderia faltar Públio Lentulus, a maior autoridade romana naquelas paragens, no momento.

            O senador recordou intimamente os benefícios que recebera de Jesus e declarou, por fim, ter conhecido de perto o profeta de Nazaré, em Cafarnaum, "onde ninguém o tinha na conta de conspirador ou revolucionário".

            - Suas ações, ali - continuou -, eram as de um homem superior, caridoso e justo, e jamais tive conhecimento de que sua palavra se erguesse contra qualquer instituto social ou político do Império.

            E já que Roma nada tinha de concreto contra ele, por que Pilatos não o remetia ao julgamento de Herodes, que representava, naquele instante, o governo da Galileia em Jerusalém?

            A ideia foi acolhida prontamente, com alívio geral, mas dentro em pouco voltava Jesus, recambiado por Herodes que o fizera cobrir de ridículo e sarcasmo, envolvendo-o num grotesco manto real, coroando-o de espinhos e fazendo-o segurar um cetro de pau. A turba compreendeu o alcance daquele sórdido humor negro e mais excitada ficou ante a figura paciente e melancólica do Cristo.

            Pilatos recebeu-o de volta, mais certo do que nunca de que aquele homem era um justo. No entanto, a pressão psicológica da multidão continuava a aumentar de momento a momento. Polibius, que Emmanuel descreve como homem sensato e honesto, era o elemento de ligação entre o grupo reunido no salão do palácio e a multidão enfurecida, lá fora. Veio avisar que o povo ameaçava invadir o edifício se a sentença do Sinédrio não fosse imediatamente confirmada.

            Pilatos resistia ante o absurdo da situação. Quis saber o que dizia o profeta. O profeta estava sereno e resignado, deixando-se "conduzir pelos seus algozes com a docilidade de um cordeiro", sem nada reclamar. Era a informação de Polibius. Ante a interpelação de Polibius, que lhe acenara com a possibilidade de um apelo a Pilatos, a fim de conseguir um processamento regular do seu caso e provar sua inocência, retrucou que dispensava a proteção política dos homens "para confiar tão-somente numa justiça que diz ser a de seu Pai que está nos céus"!

            Pilatos estava impressionado. Homem extraordinário, aquele.

            Que fazer? Polibius sugeriu que mandasse açoitá-lo, pois assim talvez se saciasse o ódio da multidão. Públio Lentulus, que seguia o diálogo, mostrou-se inquieto ante a perspectiva de mandar castigar tão duramente o acusado, mas Pilatos achou que valia a pena tentar o recurso para salvar a sua vida. E assim, diante do povo tumultuado, Jesus foi impiedosamente castigado, mas parece que a punição, em vez de apagar as chamas do ódio, ainda mais a avivaram, porque continuaram a exigir-lhe a vida.

            Nesse ponto o senador quis ver a vítima de todas aquelas paixões descontroladas. Encontrou-o batido pela adversidade, com o rosto marcado pelo sofrimento, onde lágrimas, sangue e suor se misturavam penosamente; no entanto, seu "olhar profundo saturava-se da mesma beleza inexprimível e misteriosa, revelando amargurada e indefinível melancolia". Por um momento cruzaram-se os olhares: o representante de César do lado da força e o representante do Espírito, do lado da justiça. A força iria vencer o primeiro encontro, mas, curiosamente, tal como nos deixa ver hoje o depoimento de Emmanuel, não foi a força cega do poder incontestável que ditou a sentença cruel, foi a fraqueza mesma que havia naquela força, que não soube resistir aos apelos do ódio insuflado na multidão enfurecida.

            Mais uma vez retorna Polibius a Pilatos para comunicar que nem o açoitamento conseguira aplacar a violência daqueles que queriam mais e não deixavam por menos. Públio Lentulus recomendou o recurso legal de substituir o profeta por algum prisioneiro já condenado. Era evidente que nem ele nem Pilatos desejavam a destruição do jovem profeta. O procurador lembrou-se de Barrabás e mandou oferecer a alternativa ao povo, mas pelos gritos que vinham da rua viu logo que tinha sido também recusada. Queriam mesmo a vida de Jesus intransigentemente, inapelavelmente. Não obstante, ainda hesitava em conceder aquilo que a multidão teimava em exigir-lhe.

            Públio o apoiava, dizendo da impropriedade jurídica de decidir tão precipitadamente caso tão grave quanto era o julgamento de uma vida humana. Tivesse ele no exercício pleno do poder, mandaria dispersar a multidão à pata de cavalo. A decisão, porém, cabia a Pilatos que, com a sua experiência de sete anos na província, conhecia melhor o terreno em que pisava.

            Prosseguiu dizendo que, como homem, se declarava contra aquele povo inconsciente e tudo faria para salvar o acusado; mas como cidadão romano, achava que não deveria interferir nos grandes problemas morais da província que era uma unidade do Império. Deixaria, pois, a responsabilidade daquele crime "exclusivamente a essa turba ignorante e desesperada e aos sacerdotes ambiciosos e egoístas que a dirigem".

            Enquanto Pilatos meditava sobre o sentido dessas palavras, Polibius entrou novamente e trouxe o argumento final que a inventiva do mal havia descoberto para o esforço supremo da pressão psicológica: alguns maldizentes começavam a duvidar da fidelidade de Pilatos aos poderes de César, ante a sua hesitação de esmagar um conspirador. Só então Pilatos tomou sua decisão. Lavaria as mãos daquele crime. Que se regozijasse o povo de Jerusalém. Dirigiu algumas palavras ao condenado e mandou recolhê-lo à prisão, subtraindo-o temporariamente à sanha da massa enfurecida.

            Desde aquele momento até que Jesus partiu para o Gólgota, ninguém o procurou para interceder pelo condenado.

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            Logo, porém, Lívia soube por Ana da sentença injusta e se pôs em campo para tentar salvar o Mestre. Vestiu-se novamente com trajes populares e partiu com Ana e Simeão para o Palácio do Governo. Há uma hora partira o cortejo em direção ao Gólgota. O tempo urgia. Maliciosamente encaminhada para o aposento onde Pilatos recebia suas amantes, Lívia enfrentou com nobreza e coragem o assédio do procurador, que secretamente a desejava. Podemos imaginar a angústia indescritível daquela mulher extraordinária, na qual o sofrimento e a humilhação não apagaram os traços de beleza. Até mesmo naquele momento supremo de aflição, em que vinha implorar ao poderoso representante da força a vida preciosa de Jesus, aquele homem não via nela senão o objeto de suas paixões inferiores.

            Ah, o grande dia do Calvário... quantos dramas menores à sombra da grande tragédia...

            Enquanto isso, Fúlvia manobrava para que Públio visse, ele mesmo, Lívia sair derrotada, enojada e infeliz da câmara secreta de Pilatos. Enquanto isso, Ana e Simeão, na rua, aguardavam em estado de impaciente angústia as gestões de Lívia. Enquanto isso, homens hediondos, como aquele pobre infeliz de um só braço, gritavam impropérios ao condenado. Enquanto isso, Maria seguia heroica e resignada, o cortejo sinistro, pois prometera ser digna do jovem profeta. Enquanto isso, Quirilius Cornelius comandava os soldados que custodiavam o condenado. E, enquanto isso, duas épocas se encontravam, duas filosofias, duas correntes de pensamento, dois símbolos: a luz e a treva. Por enquanto, ganhava a treva vencia o orgulho, dominava o egoísmo, prevalecia a força. Naquela mesma escuridão, porém, havia um prenúncio de alvorada, a semente da luz estava no seu bojo, as lições da humildade ali se continham também e os reflexos do amor não puderam ser de todo sufocados pelo ódio que parecia tudo avassalar. Diante da força, a justiça esperava paciente e confiante, porque aqueles mesmos homens que ali estavam executando as tarefas do ódio desatado voltariam para ajudar a reconstrução da vida sobre os alicerces do amor.

            São muitas, assim, as lições do grande dia do Calvário, mas um aspecto avulta a todos os demais: é o que nos adverte de escolher certo as opções que se nos apresentam nos grandes momentos das nossas vidas. Nossas paixões são más conselheiras, os interesses pessoais nos amarram ao passado lamentável e impiedoso. No jogo entre as posições humanas e os interesses superiores do espírito imortal, tendemos a optar pelos aspectos que nos evidenciam diante dos homens e não por aqueles que nos redimem diante das leis de Deus. Entre o orgulho e a humildade, costumamos ficar com aquele. Entre a oportunidade de servir e amar e o impulso de acomodar-se ao egoísmo, ficamos com este. E nem percebemos que, com nossas atitudes, espalhamos dor, retardamos a marcha evolutiva, não apenas a nossa, mas a de outros espíritos a quem as nossas escolhas influenciaram. Entre a força e a justiça, decidimos quase sempre pela força, na terrível ilusão de que estamos apoiados na justiça.

            A nós que estamos hoje na posse de tão nobres conhecimentos doutrinários, que conhecemos o mecanismo sábio de algumas das mais importantes leis divinas, a nós incumbe não esquecer o vulto das responsabilidades diante das tarefas modestas ou mais importantes. Somos bisonhos depositários de uma verdade maior. Cuidado com ela, para que alguns séculos mais tarde não tenhamos de voltar sobre nossos passos para trocar penosamente os erros cometidos em nome da força, pelos impulsos generosos do amor, apoiados na justiça pura, humanizada, divinizada, iluminada.

O Grande Dia do Calvário
Hermínio C. Miranda

Reformador (FEB) Outubro 1972