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domingo, 14 de novembro de 2021

O campo, a ferramenta e a semente


 O campo, a ferramenta  e a semente

João Marcus (Hermínio Miranda)

Reformador (FEB) Julho 1977  

             Muito se tem escrito e debatido a cerca do problema do problema da responsabilidade inalienável do ser humano na manipulação do seu arbítrio. De certa forma, a controvérsia multisecular entre os partidários da livre escolha e os do determinismo, embora tornada inapelavelmente obsoleta pela Doutrina dos Espíritos, sobrevive na discussão acadêmica entre filósofos e teólogos dos mais variados matizes.  A terminologia pode ser mais sofisticada e a semântica bem mais elaborada, mas são muitos os que prosseguem discutindo baicamente os mesmos conceitos que atormentaram os pensadores do passado e incendiaram debates apaixonados.

            A doutrina reformista da predestinação, decorrente de uma interpretação inadequada da teologia de Paulo, não passa de uma aplicação dogmática do conceito do determinismo. Segundo essa escola de pensamento, a criatura humana nasce – supostamente para viver uma existência na carne – já predestinada por Deus a slvar-se ou a ser condenada às penas eternas, sem nenhum apelo, qualquer que seja o seu procedimento. As contradiçõe que esta exdrúxula doutrina criou n contexto do pensamento teológico são insuperáveis, por mais que se  apliquem os eruditos teólogos para explicá-las. O extraordinário, contudo, é que tantos desses brilhantes pensadore não tenham ainda percebido que o problema da responsabilidade pessoal não se resolve, de maneira simplist, com a elaboração de uns poucos dogmas ou frases engenhosas. Não se apercebem, esses autore, de que é precisamente o dogma que está obstruindo a visão mais ampla, que os levaria à essência do problema.

            Não queremos, com isso, dizer que o Espiritismo é o dono da verdade, como ninguém é dono do ar que respira, ou da luz solar, que ilumina e aquece a todos por igual. É certo, porém, que a aceitação das verdades contidas no Espiritismo um dia há de fecundar todo o pensamento humano, nos aspectos mais vastos que pudermos conceber: ciência, filosofia, teologia, ética. Como também é certo que os formuladores da Doutrina Espírita não inventaram conceitos novos nem fantasiaram o que ainda não era oportuno revelar. Ao contrário, sempre nos advertiram a cerca do caráter gradualístico da revelação, que se desdobra por etapas no curso dos séculos, apoiada sempre em alguns conceitos básicos intemporais que vão sendo dosados segundo a capacidade de apreensão dos homens, o que vale dizer, conforme sua posição evolutiva. Antes que ele esteja pronto, o ensina de verdade superior seria prematuro  e até pejudicial, o que se evidencia agora mais do que nunca, quando presenciamos o descalabro em que mergulharam as comunidades humanas em virtude da posse de conhecimento avançados totalmente inoportunos ante a generalizada imaturidade moral.

            No entanto, jamais faltou a advertência amiga e o severo chamado à responsabilidade pessoal. A despeito de tudo, o homem sempre achou que podia burlar ou ignorar a li inescrita de Deus ou negociar com o Pai uma cordo, mediante propiciações mais ou menos infantis, com as quais tenta-se “comprar” a boa-vontade do Senhor e o seu perdão. É claro que o perdão está implícito na natureza divina, pois é da própria essencia do amor, mas é preciso também entender que o perdão não nos exime da reparação  do erro cometido. Daí o lamentável equívoco que se incorporou ao “sacramento da penitência” dos nossos irmão católicos, que se julgam limpos de seus pecados depois de confessá-los ao sacerdote e proceder a um pequeno ritual apropriado. Não é assim, pois a responsabilidade pelo erro continuará ali, viva e atuante. Resultado de uma falha na utilização do livre-arbítrio relativo, que as leis divinas nos conferem, o erro cria para todos nós, indistintamente, quaisquer que sejam as nossas crenças ou descrenças, o determinismo intransferível do resgate, e quanto mais erramos mais se aperta o círculo de ferro em torno de nós, até que a própria lei interfere em favor do pobre transviado para que não se prejudique ainda e indefinidamente. Mecanismo sete, aliás, etremamente sutil, que trás em sai uma aparente contradição, mas que nada tem de contraditório: a lei suspende temporariamente o exercício do livre-arbítrio precisamente para preservar na criatura o seu direito a ele. De fato, se a persistência no erro não reduzisse progressivamente nossa faixa de livre escolha, é fácil imaginar, por projeção, que chegaríamos a um ponto em que toda a nossa liberdde estaria extinta, cassada por nós mesmos. É disso que nos protege a lei.

            Tudo isso, porém, são exrecícios teóricos da faculdade de cogitar que é própria do homem. “Cogito, ergo sum”, dizia Descartes e esta foi a sua primeira certeza. Muitos são, porém, aqueles que não possuem nem o gosto nem o preparo para esse tipo de especulação, mesmo porque o Cristo nos ensinou que a Verdade se revela com mais facilidade ao simples do que ao erudito, certamente porque este se perde no labirinto das suas especulações e como que se deixa fascinar pela música das suas próprias palavras.

            A erudição balofa e complexa inexiste no pensamento de Jesus. Sua mensagem é pura, simples, clar, concisa e se coloca ao alcance de todas as inteligências e culturas, em toos os tempos, sob todas as condições. Quantas vezes, aqui e no passado distante, temos ouvido essas verdades elementares? Quantas vezes nós mesmos as ensinamos, nem sempre convictos da sua autenticidade? Pois, agora, informados pela Doutrina Espírita, é mais que tempo de as entendermos em toda a sua profundidade e significado, dado que vamos encontrar, no mesmo Evangelho que estudamos e pregamos durante quase dois milênios, em tantas e tantas vidas, o foco irradiante da luz que ilumina as estruturas do Espiritismo. Em outras palavras: levantando os fios luminosos com os quais foi tecida a Doutrina dos Espíritos veremos que eles vão dar todos, lá naquele núcleo abençoado de pensamento criador no Mestre Nazareno.

            Tomemos um só exemplo: a parábola do rico e de Lázaro.

            Não faltavam ao rico: boas roupas, mesa farta, amigos, vida livre e, segundo os padrões humanos, extrema felicidade. Enquanto isso, Lázaro, um mendigo coberto de chagas e andrajos, ansiava pelas migalhas que sobravam da mesa rica. Com a morte, Lásaro libertou-se de suas aflições e partiu para o seio de Abraão, enquanto o rico ficou a penar no umbral. Foi daí que ele teve a visão de Lásaro junto de Abraão e gritou:

            - Pai Abraão, tem pena de mim e manda Lásaro, para que molhe em água a ponta de seu dedo, a fim de me refrescar a língua, pois estou atormentado nestas chamas.

            - Filho – respondeu Abraão, com firmeza – lembra-te de que recebeste teus bens em vida, enquanto Lázaro, somente males; por isso, ele agora é consolado e tu atormentado. Além de tudo, há entre nósum grande abismo, de modo que nem os daqui podem ir a ti, nem tu podes vir a nós.

            Rogo-te, contudo pai Abraão – insistiu o rico – que o envies à casa de meu pai, pois tenho cinco irmãos, para que os avise, a fim de que não venham eles também para este lugar de tormento.

            - Eles tem lá Moisés e os profetas. Que os ouçam! -retrucou Abraão, inflexível.

            Não, pai Abraão – ainda falou o rico -, se for a eles algum dos mortos, eles se arrependerão.

            - Se não ouviram a Moisés e aos profetas – disse afinal Abraão, para encerrar -, tampouco se convencerão, ainda que um morto ressuscite.

 *

             Analisemos com um pouco mais de profundidade essa pequenina peça filosófica-moral, à luz da Doutrina dos Espíritos: ali estãoa transitoriedade dos bens mundanos que nos são apenas emprestados, pela sabedoria divina, para os testes destinados a avaliar o progresso realizado; a anestesiante influência desse poder efêmero sobre o sentido da solidariedade humana; o esquecimento dos compromissos; o resgate pela dor; a responsabilidade pessoal de cada um pelos seus atos, tanto quanto o mérito pelas realizações positivas; o conceito da sobrevivência do Espírito, que enfrenta no mundo póstumo as consequencias do que realizou ou deixou de realizar; a possibilidade de entenderem-se Espíritos desencarnados e encarnados; a firmeza da lei que nos confirma o duro determinismo do resgate, par corrigir os erros praticados em decorrência dos desvios do livre-arbítrio; a presença constante de advertências amorosas, que insistimos em ignorar (eles tem Moisés e os profetas!); a descrença com a qual sempre foi acolhida a manifestação dos seres desencarnados; e, finalmente, a necessidade incontornável de um longo e penoso trabalho pessoal de recuperação, de reconstrução, de pacificação interior.

            Entre Lázaro redimido na dor e o rico que ainda estava no caminho de ida, nos seus desenganos, há um abismo de tempo a vencer. Encontram-se em níveis espirituais que os separam, não por força de um privilégio, mas em decorr~encia de um dispositivo automático que classifica as criaturas segundo seu peso específico que, por sua vez, está na dependência de suas conquistas espiriuais, de seu trabalho de purificação, de renúncia, de sabedoria, de fraternidade. O abismo de que fala Abraão nada te de físico; ele é moral, é uma questão de gradação numa vastíssima escala de valores. Um dia o rico também estará redimido, junto de Lázaro, sob as vistas de Abraão, mas é preiso que ele realize em si mesmo a tarefa indelegável do reajuste perante as leis desrespeitadas pelo seu livre-arbítrio.

            Há mais, porém, a observar com relação à parábola. É na sua aplicação a nós mesmos, à nossa condição tual. Ela nos convoca a um reexame contínuo de posições. Não estaremos mergulhados na inconsciencia do rico a malbaratar bens materiais, espirituais e culturais? Não estaremos esquecidos do dever de servir, onde estivermos, àqueles que a misericórdia divina colocou junto à nossa mesa farta? Não estaremos a insistir que nos enviem mais testemunhos quando já temos diante de nós o exemplo dos que trilharam antes os caminhos que ora percorremos? Não estaremos a pedir a constante presença dos “mortos”, com as suas exortações, quando contamos, de há muito, com os claros postulados da Doutrina?

            A misericórdia do Senhor cedeu-nos o campo, a ferramenta e a semente. Faz o sol aquecer a terra e envia a chuva a regá-la. A nós apenas competem as tarefas de arar e semear. O que estamos esperando? A agonia e o remorso, a impotência e o desespero da dor ante o abismo que nos separa daqueles que já se encontram no “seio de Abraão”?


sábado, 9 de janeiro de 2021

Além do inconsciente

 


“Além do Inconsciente”

por Hermínio C. Miranda

Reformador (FEB) Janeiro 1969

               A pesquisa psíquica parece, às vezes, o ramo enjeitado da ciência. O interesse dos cientistas pelos fenômenos de natureza espiritual tem sido, na melhor das hipóteses, espasmódico, quase sempre desconfiado, meio tímido e, não raras vezes, eivado de manifesta má vontade e de ideias preconcebidas de difícil modificação ou remoção. Outra coisa curiosa: está sempre começando, como se os estudos anteriores fossem totalmente desprovidos de fé pública e tidos mesmo como conduzidos sob condições de insegurança ou precariedade. Pouco tem adiantado o depoimento de homens como William Barratt, Crookes, Lodge, Conan Doyle, Aksakof; Flammarion, Geley, Bozzano, Morselli, Osty, Zõllner e tantos outros. Cada cientista, que retoma o assunto, deseja fazer tudo de novo, sob novas técnicas, novas condições de segurança, com a ajuda de novos aparelhos que as outras ciências, mais felizes, vão descobrindo ou aperfeiçoando. Vejam, por exemplo, a eletrônica. Não faz muitos anos, essa palavra, nem figurava nos dicionários; hoje, literalmente domina a vida da sociedade civilizada. Os computadores, que ainda há 15 anos engatinhavam, - tive a satisfação de os ver quase no nascedouro, em andanças pelos Estados Unidos –são hoje um poderoso instrumento de trabalho e de pesquisa, cujas possibilidades se projetam no imprevisível e cujos recursos ninguém sabe onde vão parar.

            No que toca ao mecanismo do espírito humano, porém, continuam os cientistas a tatear em plena luz do dia, como se estivessem mergulhados na escuridão. Bom seria que um grupo de pesquisadores mais corajosos e de desinibidos, despreocupados de críticas e de ideias preconcebidas, partissem logo da hipóteses da existência do espírito para os estudos subsequentes, a fim de que, paralelamente ao fabuloso desenvolvimento do ramo estritamente materialista da ciência, fosse possível vitalizar o ramo espiritual. É pois, com grande alegria que saudamos o aparecimento de um estudo sério como esse do Dr. Jayme Cerviño, que, sob o título de “Além do Inconsciente”, acaba de publicar a Federação Espírita Brasileira.

            O Dr. Cervino é um médico ainda jovem, profundo conhecedor da nobre ciência que escolheu e que não se limita, como tantos colegas seus, a encarar o homem como um simples mecanismo cibernético produzido no campo da biologia. Ele acha que o homem tem alma e, mais do que isso, não receia proclamar o seu pensamento, e não apenas isso - ele se propõe à tarefa de conciliar as teorias e doutrinas sobre a psique humana, eliminando, naturalmente, tudo aquilo que o conhecimento atual já considerou superado. Não obstante, não hesita ele em declarar-se desassombradamente disposto a readmitir a ridicularizada doutrina fluídista de Mesmer.”Das quatro principais teorias da hipnose - diz ele, à. página 57 -. fluidista (Mesmer), patológica (Charcot), psicológica (Bernheim), reflexológica (Pavlov) – a patológica está definitivamente superada, a psicológica e a  reflexológica não se excluem e a fluidista parece ressurgir numa forma atualizada (energia não física ou psíquica de Rhine. 

            Já à página 25 escrevera sobre a validade do fluidismo, que parece reemergir de algumas experiências modernas de Rhine. “Os mesmeristas - diz ele - admitiam um fluido, a se irradiar do corpo humano, que seria o agente dos fenômenos hipnóticos, ditos outrora magnéticos. A hipótese fluidista foi abandonada pela ciência, mas os experimentos de Rhine e sua escola sobre a percepção extra-sensorial e a psicocinesia (ação direta da mente sobre a matéria), que implicam na existência de uma energia “não-física” (psíquica), estabelecem, possivelmente, um substratum para a sugestão e, dentro de certo limites, reabilitam Mesmer e os magnetizadores do passado.”

            O leitor não terá dificuldade em identificar com clareza a posição do Dr. Cerviño; ele a proclama honestamente, com palavras inequívocas. “No presente trabalho (pág. 16) adotamos um critério eclético. Ousamos misturar, no mesmo frasco, Allan Kardec, Richet e Rhine com um pouco de Freud e Pavlov. Sua linguagem, com o mínimo possível de tecnicismo, é acessível ao leitor leigo inteligente sem sacrificar a precisão terminológica exigida num ensaio científico. O frasco que o autor no oferece resultou em harmoniosa conciliação entre os princípios doutrinários do Espiritismo kardequiano com as modernas correntes parapsicológicas e reflexológicas, no que tem estas de aproveitável ao contexto da sua concepção. A procedência e o pioneirismo de Kardec são francamente reconhecidos, sem nenhum conflito com a doutrina pavloviana dos reflexos condicionados; pelo contrário, apoiando-se nela.

            Algumas ideias novas são igualmente levantadas para estudo, a título de sugestão para futuras pesquisas. Por exemplo: “É possível que o Bromo, existente no organismo, tenha alguma importância na indução do transe, condição diferente do sono, mas que resulta igualmente dos processos cerebrais de inibição.” (página 55). 

            Outra. “A serotonina, substância existente no cérebro e noutras partes do organismo, talvez não seja estranha ao mecanismo do transe. Produz no eletroencefalograma alterações do tipo sono e, possivelmente, diminui a ação do sistema reticular ativador sobre o córtex.” (pág. 55).

            Ou ainda: “Talvez o “inconsciente coletivo” que Jung converteu em ente metafísico,  preternatural, seja apenas a experiência comum e primeira de nossas consciências individuais em seus múltiplos avatares...”  (página 79). Mais uma sugestão: “Outro ponto merece destaque: conforme os dados da atual parapsicologia, sugerimos uma interpretação unívoca para os efeitos intelectuais (córtex) e físicos (subcórtex). ESP e PK coexistem em todo o fenômeno mediúnico de conteúdo paranormal. Quando predomina o primeiro aspecto, o efeito é intelectual, em caso contrário, físico.” (página 102).

            Respondendo com serenidade aos que ainda pregam a desmoralizada doutrina de que o Espiritismo produz loucos, o Dr. Cerviño lembra que, ao contrário, “o que chamamos genericamente de mediumopatia, uma forma mórbida de mediunismo, muitas vezes incipiente, ... tende a normalizar-se pelo exercício ponderado e autocontratado da própria “faculdade””. (pág. 110).

            Ademais, ninguém com maior autoridade e clareza do que o próprio Kardec advertiu sobre a prática tumultuada da mediunidade. Para isso, o Dr. Cerviño cita “0 Livro dos Médiuns” onde Kardec escreveu: “Há pessoas relativamente às quais se devem evitar todas as causas de sobre excitação reflexão e o exercício da mediunidade é uma delas.”

            E mais adiante: “A mediunidade não produzirá a loucura quando esta já não exista em gérmen, porém, existindo este, o bom-senso está a dizer que se deve usar de cautela, sob todos os pontos de vista, porquanto qualquer abalo pode ser prejudicial.”

            O comentário do Dr. Cerviño é este: “Há mais de um século, o sistematizador do Espiritismo referia-se à monomania espírita, que na linguagem psiquiátrica da época correspondia ao que hoje se denomina delírio espírita. “A classificação proposta pelo autor para as diversas formas de mediunidade consta do quadro que reproduz à página 125, no qual resume, com rara felicidade, a nosso ver, a metodologia parapsicológica, a reflexológica e a essencialmente espírita. Por exemplo: a mediunidade psicofônica (palavra espírita que a ciência moderna está aceitando) estaria classificada como efeito intelectual (médiuns do 2º sistema) do grupo parapsicológico psi-gama ou ESP, que, por sua vez, se enquadra como mediunidade de expressão cortical, ou de efeitos psíquicos. Classificação simétrica, nos efeitos físicos (expressão subcortical), é proposta para as mediunidades do grupo psi-kappa. Inúmeras são as contribuições do autor para situar melhor o fenômeno mediúnico no esquema da moderna ciência da natureza humana. Não que tenha ele ilusões de que o problema esteja perfeitamente equacionado; ao contrário:  “Evidentemente - diz ele à pág. 113 - não podemos ter qualquer ilusão no que tange aos fatos mediúnicos.

            Estamos longe de conhecer as leis fundamentais que vigem nesse setor de pesquisas. Os estudiosos ainda não concordaram sequer sobre os fenômenos que existem realmente e os que resultam de observações mais ou menos apressadas e inidôneas.

            Para ampliar o campo de pesquisa e fornecer novos “approachs” aos problemas envolvidos, ele oferece as suas sugestões e monta o seu esquema classificador complementando, onde necessário, as pesquisas já feitas. Propõe, assim, um terceiro tipo de “atividade nervosa superior”, somando-se aos dois admitidos por Pavlov. Descobre, depois, que os três tipos “coincidem” com a teoria das “almas parciais” de Platão (razão, sentimento e instinto) e ainda com os três aspectos da alma imaginados por Aristóteles: alma intelectiva (segundo sistema de Pavlov), alma sensitiva (primeiro sistema) e alma vegetativa (sistema subcortical-hipotálamo).

            É difícil, porém, senão impraticável, dar, numa breve noticia como esta, a ideia exata de todo o conteúdo e importância de um livro tão denso de ideias como este. Às vezes, desejaríamos que o autor tivesse tido oportunidade de expandir mais alguns conceitos que apresenta de forma meramente esquemática, para economizar tempo e espaço. Deve ter tido suas razões para Isso, É provável que um trabalho de detalhamento de toda a sua concepção científica acarretasse uma certa diluição, um pouco de perda da visão do conjunto que a sua obra nos oferece de maneira tão acessível e apaixonante. Sua linguagem é, ao mesmo tempo singela e agradável, sem artificialismos de fácil efeito literário - é o falar do cientista: preciso, sem, no entanto, cair na secura dos relatórios. Não é, porém, obra que se leia como um romance, porque exige atenção concentrada e meditação progressiva.. Sem ser um livro difícil, é “maciço como um marfim”, na feliz expressão do meu caro Eng. Hernani Guimarães Andrade, ao se referir à “Teoria do Conhecimento” de Jahannes Hessen.  

            A palavra final é a seguinte:Além do inconsciente existe um mundo novo. O próprio

Freud percebeu-o, mas intimidou-se ante “a maré negra do ocultismo”» (Jung) e encastelou-se na teoria do sexo. Mas não há terreno interdito à pesquisa. Enquanto a tecnologia das ciências físicas vence a gravitação terrestre e invade o espaço sideral, os pioneiros do espírito, de Kardec a Rhine, superam o próprio espaço-tempo e devassam, além, além das complexidades subliminais, a realidade maior, a “grande esperança” de todos nós.”

            A nossa grande esperança, no momento, é a de que o Dr. Jayme Cerviño continue a aprofundar o seu pensamento e as suas pesquisas e não se intimide jamais diante do que Freud atirou fora por que tinha o rótulo de ocultismo.

            A área científica do Espiritismo fica a dever um grande favor ao Dr. Jayme Cerviño e este, por sua vez, assume, com o seu livro, um compromisso moral de nos trazer outras contribuições, tão sérias como esta.

            Excelente livro para ler, meditar e presentear amigos médicos.


sábado, 7 de novembro de 2020

Vale a pena suicidar-se?

 


Vale a pena suicidar-se?

 João Marcus (Hermínio Miranda)

Reformador (FEB) Março 1963

             É impressionante o número de suicídios que encontramos relatados nos jornais. Porque tanto se matam as criaturas, especialmente agora nesta época de dificuldades e incertezas? Deixemos de lado as causas imediatas, como problemas financeiros, amorosos ou de consciência. Isso é apenas a gota d’água que fez transbordar o cálice, toque final que acabou por romper o precário equilíbrio emocional do ser, desatando seu impulso destrutivo numa ânsia de libertação. São secundárias essas causas, embora tenham sido o fato precipitador da tragédia. Secundárias e relativas, porque um motivo, que poderia ser extremamente fútil para um, assume proporções alarmantes para outrem. Além disso, vemos o mesmo indivíduo suportar, às vezes, golpes muito mais graves e sucumbir, depois, diante de questões que um pouco mais de tolerância ou paciência teriam colocado em sua verdadeira perspectiva. Muito depende pois do seu estado emocional no momento em que lhe surge o problema pela frente.

            Quando penso nisso, lembro-me sempre de uma advertência que encontrei no guichê de uma loja em Nova lorque, dizia assim: “Que diferença fará isso daqui a 99 anos? ” Aquilo que agora nos parece uma calamidade insuportável, reduz-se às proporções de mero incidente daqui a poucas horas, alguns dias ou uns escassos meses. É fácil demonstrar a veracidade da afirmação: quais foram as mágoas que nos atingiram tão fundo no ano passado? Ou há 3 anos? Mesmo que nos lembremos de algumas delas - as que nos pareceram mais graves -, já não nos ferem como então. Com o decorrer de pouco mais de tempo, lembrar-nos-emos delas até mesmo com certo sorriso indulgente e pensaremos: “Veja só! Isso me deu tanto aborrecimento e, afinal, nem valeu a pena...” De outras vezes, aquilo que nos atormentou, nem sequer teve existência real; foi produto de uma imaginação exaltada, momentaneamente obscurecida pelo cansaço, pelas paixões ou pelo simples desconhecimento dos fatos. Logo a seguir, o que nos parecia tão alarmante, verificamos ser simples suspeita com aparência de realidade.

            Por isso, não é necessário pesquisar as causas imediatas, que desencadeiam a tragédia do suicídio, examinemos as origens profundas do fenômeno.

            Porque se mata a criatura humana? Mata-se o pobre, o aleijado, o doente, como também se mata o rico, o belo, o saudável. Porquê? Na verdade, o suicídio é, basicamente, uma fuga. O suicida quer fugir de situações embaraçosas, de desgostos, de pessoas que detesta, de mágoas que não se sente com forças para suportar, deseja, afinal de contas, fugir de si mesmo. É aí que está a gênese do seu fatal desengano: não podemos, de maneira alguma, fugir de nós próprios. Para que isto ocorresse, seria necessário que tudo se acabasse com a morte; seria preciso que, ao cortar o fio da existência, tudo o que somos se dissolvesse num instante, em nada. E não é assim que acontece; absolutamente não. Vemos, então, que o fundamento da ilusão suicida está na total ignorância do homem diante de sua própria natureza espiritual.

            Há de chegar o dia em que todos compreenderão que somos Espíritos encarnados e não simples conglomerado de células materiais; que o corpo físico é um mero instrumento de trabalho e aperfeiçoamento do Espírito; acessório e não principal, na estrutura da personalidade humana.

            Nesse dia não haverá mais suicidas. Suicidar para quê? Se apenas o organismo físico se destrói, ao passo que o princípio espiritual sobrevive? Abandonado pelo Espírito, o corpo não é mais que um amontoado de matéria. E, como tal, volta para a sua origem, isto é, a terra, O Espírito, a seu turno, também regressa para o lugar donde veio; aquilo a que o Dr. Hernani G. Andrade chama hiperespaço. Com o espírito é que pensamos e sentimos; nunca com o corpo físico, mera ferramenta. Para certificar-se disso, basta ver um cadáver. Que é que falta à criatura que acaba de Morrer? Tem ainda os músculos, a mesma cor dos olhos, o cérebro. Os órgãos internos. Porque não se mexe mais não anda, não fala, não vive? Porque sua carne entra logo em decomposição e seu corpo começa a ruir como uma casa abandonada? A resposta é simples: é porque algo muito importante deixou aquele corpo para sempre. Esse algo, princípio imaterial do ser, é o Espírito, órgão diretor e coordenador, sem o que tudo se desorganiza e se desintegra. A parte que fica é inerte sem vida própria, não sente dor, nem outra qualquer sensação - é só matéria. A consciência está no Espírito que parte. Por conseguinte, quando deixamos o corpo material, levamos nossas lembranças, sentimentos, paixões, alegrias, tristezas, esperanças, temores, angústias e sofrimentos, tal como os experimentávamos aqui na carne. O corpo não é mais que uma vestimenta perecível do Espírito imortal. E se sofríamos aqui, sofreremos muito mais do lado de lá da vida, se praticarmos a violência do suicídio. Não só porque nossas mágoas terrenas persistem, mas porque descobrimos, surpresos, envergonhados e terrivelmente arrependidos, que continuamos vivos, com as mesmas ideias que tínhamos, e ainda sofrendo dores muito mais agudas, porque só então nos assalta, num tremendo impacto, a amarga compreensão da loucura que praticamos.

            Para os espíritas, familiarizados com a literatura mediúnica, isso não é novidade. Temos inúmeros depoimentos de Espíritos que provocaram a destruição de seu corpo físico, na trágica ilusão de que dessa forma se libertariam para sempre de seus problemas.  E vêm confessar, amargurados, que o portão da morte não se abre para a escuridão vazia do nada; que a vida continua, com o corpo físico ou sem ele; e aquilo a que chamamos morte é uma simples transição - seus portões no levam a uma outra forma de vida e não ao aniquilamento. E então aquele que destruiu voluntariamente seu envoltório material chega à dolorosa conclusão de que apenas conseguiu agravar enormemente seus problemas íntimos, sem libertar-se de nenhuma de suas dificuldades. E descobre, ainda mais, que terá de voltar à carne em outras condições, talvez ainda mais penosas e precárias, tantas vezes quantas forem necessárias – para corrigir, refazer e pacificar.

            Assistimos, então, ao funcionamento inapelável da lei cármica de causa e efeito, ajudando o pobre ser derrotado e doente a tomar o amargo remédio da recuperação. E aquele que arrebentou seus próprios ouvidos, com um tiro assassino renasce com o mecanismo da audição destruído; não podendo ouvir, não aprende a falar. E daí atravessar uma existência inteira, isolado na solidão forçada, a fim de que seu Espírito compreenda, no silêncio, o verdadeiro sentido da vida e o valor inestimável dos dons que recebem ao nascer. O que tomou venenos corrosivos, volta à carne com as vísceras deficientes, sujeitas a misteriosas e incuráveis mazelas.

            Tudo isso porque não podemos ir adiante sem pagar o que devemos, e, sendo a justiça de Deus tão perfeita, não pagamos senão o que devemos, segundo diz a Lei. Logo, o suicídio é o maior, o mais trágico e lamentável equívoco que o ser humano pode cometer. Para não suportar uma dor que deveria durar alguns instantes, buscamos, precipitadamente, outra que pode durar tanto quanto uma nova existência de aflições.

            Certamente Deus nos dá os recursos necessários à recuperação, mas o esforço da subida tem que ser nosso, para que dele decorra o mérito da ação.

            Isso de dores, mágoas, sofrimentos e aflições é tudo condição transitória de seres em reajuste moral. No fundo de si mesmo, o Espírito esclarecido sabe, intuitivamente, a razão da sua dor e se rejubila com ela, porque somente pagando o que deve poderá prosseguir para o Alto. E sabe mais: certo da perfeição da Lei, na qual não há injustiças, compreende que, se sofre, é porque deve; a Justiça Divina não cobra multas a quem não cometeu infrações: ela é infinitamente mais perfeita que a dos homens.

            Dessa forma, interferindo violentamente no mecanismo das leis supremas, o suicídio agrava os problemas, em vez de resolvê-los.  

            A ordem é esperar com paciência, resignação e confiança, aguardando serenamente a libertação, Acima de toda mágoa, o Espírito pode pairar serenamente e até mesmo embalado por secreta alegria, pois tem a certeza de que está resgatando com a única moeda válida - a do sofrimento - compromissos que ainda o prendem a um passado faltoso.


quarta-feira, 28 de outubro de 2020

A lição da água poluída

 

A lição da água poluída

João Marcus (Hermínio Miranda)     Reformador (FEB) Janeiro 1967

 

            Antes de alcançar o quilômetro zero da Rodovia Presidente Dutra, a Avenida Brasil atravessa na altura de Manguinhos, um canal de águas poluídas que escorrem preguiçosamente para o mar. Aquela água fétida me ensinou uma lição que talvez valha a pena transmitir ao leitor.

            Aquela água, pensava eu, não foi sempre suja. Estou certo de que, se remontarmos às suas nascentes, a encontraremos pura e fresca como a inocência. Foi no seu curso, rio abaixo, que a contaminaram com detritos, lixo e podridão.

            Também nós, espíritos, somos criados puros, como diz a boa doutrina, e seguimos o nosso curso. Se não nos defendermos e não nos preservarmos, vamo-nos contaminando com os detritos espirituais, colhidos ao longo do nosso caminho. Insensivelmente, vamo-nos tornando imprestáveis para nós mesmos e para o nosso semelhante. Passamos a ser meros veículos de poluição. Não fomos sempre assim: as fontes das quais emanamos são puras e nobres, mas, se não escolhemos os caminhos por onde andamos, a cristalina beleza, que nos foi dada, no início, se tolda na impureza das nossas paixões, no ímpeto das nossas vaidades.

            Isso, aliás, acontece também com quase todas as grandes doutrinas que nos legaram eminentes espíritos. De tempos em tempos, vem das alturas um grande vulto espiritual trazer-nos a sua contribuição para o progresso da Humanidade. Aquilo que prega aos que têm a ventura de ouvi-lo, em primeira mão, é belo e simples corno a verdade, mas o que se transmite depois, por tradição oral ou escrita, começa logo a se mutilar e contaminar-se de ideias impuras; o que era amor se transforma, pouco a pouco, em ódio; o que era caridade turva-se pela intolerância; o que era fraternidade, mancha-se de rivalidade. E enquanto o rio, como o tempo, segue o seu curso implacável, os sedentos que buscam nas águas um refrigério encontram-na maculada, conspurcada, imprestável para aplacar a sede da alma que sonha com a paz divina.

            Tal como os rios, porém, as doutrinas poluídas podem ser alcançadas, ainda puras e frescas, nas suas origens. A água pode estar suja aqui, mas é límpida e cristalina, lá, onde nasceu e onde continua a jorrar generosamente, incessantemente. A impureza não lhe é própria - é estranha, espúria, provêm de detritos que lhe atiraram ao longo do curso. A água que escorre pejas matas, onde ainda não chegou a “civilização”, chega pura ao seu destino. Nela vivem multidões de peixes e de seres. Nela se dessedentam todos os animais da criação, Nela se mira a face tranquila da Lua e nela acende o Sol fulgores inesperados. Ela canta entre as pedras, aprofunda-se nas represas, espadana-se nas cachoeiras irisadas, É difícil, porém, senão impossível ao mais modesto riacho, atravessar uma cidade, ou mesmo um lugarejo, e continuar puro como entrou. Impiedosamente, retiramos a sua água limpa e lha devolvemos maculada.

            Nem por isso, no entanto, elas deixarão de seguir o seu destino e prestar o seu serviço.

            Há outras lições, porém, nas águas que escorrem inexoráveis. É que elas também renascem. Uma boa parte se evapora, numa imitação de espiritualização e sobe para o céu, de onde desaba transmutada em chuva generosa sobre a terra. Vai impulsionar a germinação e o crescimento das plantas, vai ajudar um novo ciclo de vida. Vai infiltrar-se pelo chão a dentro e renascer alhures, purificada nos imensos filtros da Natureza.

            Lição prodigiosa essa, que precisaria, para explaná-la, a erudição e a oratória de um Vieira renascido. Diria ele, na riqueza das suas imagens e na pureza do seu verbo, que a água renascida é água purificada; é água que veio servir de novo, na humildade do seu mister; é água que se recuperou às angústias da podridão e recomeçou a sua tarefa, incansável; é água que não teme atravessar cidades e não teme receber detritos, porque a mão invisível de Deus a conduz e a faz filtrar-se e renascer tão pura e fresca como dantes; é água que mata a sede; é água que banha; é água que limpa; é água que recebe fluidos espirituais e se transforma em veículo da recuperação; é água sobre a qual flutuam embarcações, fatores de comunicação, entendimento e comércio entre os homens; é água que serve sem queixas, sem mágoas, sem ressentimentos, sem angústias, ao bom e ao que ainda não descobriu a bondade: é água que, à semelhança do Sol, nasce para o justo e para o injusto, como diz o Livro.

            Depois dessa inesperada meditação, não mais tive desgosto ao contemplar as escuras águas do canal, em Manguinhos. Sei que, nas suas origens, continua virginal; sei que, mesmo impura, contínua a servir, arrastando para longe os detritos que atiraram à sua face, sei que o seu destino é purificar-se novamente para novamente servir.


terça-feira, 7 de julho de 2020

Libertação espiritual


Libertação Espiritual
João Marcus (Hermínio Miranda)
 Reformador (FEB) Janeiro 1967

            Às vezes me preocupava o mecanismo das leis cármicas. Pensava eu que a série de ações e reações se estendesse em espirais infinitas pelo tempo a fora. E isso me parecia contrário à ideia que sempre formulei da justiça divina.
            Se ontem, num momento infeliz de desvario, estrangulei um irmão, alguém teria que me estrangular no futuro, para que se cumprisse a lei. Mas, o novo crime haveria de gerar, fatalmente, uma nova reação, abrindo outro ciclo e assim por diante, “ad infinitum”. De mais a mais, não havia, também, a dureza do “o por olho, dente por dente”?
            Acontece, porém, que as leis divinas são muito mais sábias e perfeitas do que sonhamos. Ao descer até nós, vindo das mais elevadas esferas espirituais, o Divino Mestre nos trouxe a mensagem da verdade suprema da vida - o amor. E como ele próprio dizia, não vinha destruir a lei mas faze-la cumprir. Não se alterava a substância dos postulados cármicos: ficavam eles, porém, esvaziados do seu conteúdo de inexorabilidade, para adquirirem o suave colorido da reparação.
            Ensinava o Amigo Sublime que só uma atitude poderia quebrar o círculo vicioso: o amor" Na verdade, colocou tão alto o conceito e a prática do amor entre as criaturas. que fêz disso a nota dominante, o tema, o “leit motiv” (motivo condutor) de toda a sua insuperável pregação. A certa altura da vida, com o poder de síntese e de acuidade de que era dotado, no mais alto grau, como se quisesse deixar, numa só ideia, toda a sabedoria da Vida - disse simplesmente: “Amai-vos uns aos outros, como eu vos amei”. Já meditou o amigo leitor, com seriedade, na beleza e na profundidade daquela simples frase? Ela contém, não somente o mandamento supremo da lei - que séculos antes havia sido transmitido a Moisés -, como, também, a afirmação de que ele, o Cristo, viera demonstrar e praticar a verdade do amor e não somente pregá-la. Aqueles que vivessem tal filosofia da vida estariam cumprindo a lei e seguindo os ensinos revelados pelos profetas através das idades.
            Estava o Mestre oferecendo, a cada um de nós, os recursos necessários para que nós mesmos nos libertássemos das imposições do “olho por olho”.
            Bastava amar. Quando nos pedissem para caminhar mil passos, caminhássemos mais dois mil por nossa conta. Se nos batessem em uma face, oferecêssemos a outra. Era lícito perdoar sete vezes? perguntaram lhe. Não sete, mas setenta vezes sete, foi a resposta.
            Aí está o ponto onde se quebra a corrente cármica, se o desejarmos: na prática do amor e do perdão. Bem sabemos que é mais fácil falar que praticar, enquanto estivermos contidos pela nossa imperfeição, mas se perdoamos aquele que em nós feriu a lei e o ajudamos a recuperar-se. estaremos, por nossas próprias mãos, partindo o círculo de ferro. Se ainda não atingimos a perfeição moral de oferecer a outra face, caminhemos pelo menos a outra milha, os outros dois mil passos, para oferecer a nossa prece em favor daquele que nos ofendeu. Esse gesto talvez represente, nas telas infinitas do tempo, o progresso e a libertação de irmãos aos quais provavelmente devemos tantas outras reparações.
            Graças a Deus, a despeito dos desacertos da época em que vivemos, há bastante beleza moral neste mundo. Muitos espíritos se deixaram impregnar de tal forma por esse perfume de amor e perdão, que imprimiram a marca de sua passagem na História.
            Francisco de Assis, num transbordamento de amor incontido, pregava tanto aos homens corno aos humildes seres da Criação, procurando atrair todos para a luz. Tereza d'Ávila, em transportes de amor sublimado pelo Mestre, vivia entre este mundo e o outro. Joana d'Arc, sob a pressão desencadeada do poder terreno, não cessou de amar e perdoar. Ghandi, na fragilidade física, era um gigante de força espiritual e moral no seu amor pacifista pelos irmãos deserdados. Albert Schweitzer, mergulhado no coração da selva afrícana, cura, ensina, educa, ampara sem outra paga que a satisfação de exercer o amor pelo ser humano.
            Conhecemos, pois, o caminho da recuperação, aquele que leva para o Alto. É preciso rogar forças para que saibamos segui-lo; pedir a Jesus que nos amplie a capacidade de amar e compreender. Não que essa atitude seja de passividade inútil. Não. Amar, no mais puro sentido, é um programa de ação, é um roteiro de lutas, porque implica, em primeiro lugar, o combate ao nosso comodismo e às tendências egoísticas, incrustadas em nosso espírito através dos milênios. Esse egoísmo cego talvez fosse necessário quando, na meia luz da consciência que despontava em nosso ser, nos distantes períodos encarnatórios, ainda não sabíamos que a vida continua depois da morte, Vivíamos, então, agarrados ferozmente ao corpo físico e às coisas da matéria, e por ela lutávamos, matávamos e roubávamos. Hoje não. Iluminados pela verdade superior, sabemos que o corpo é mero instrumento - e dos mais nobres - de trabalho e de evolução e, por estranho que pareça, quanto mais trabalhamos para os outros, mais realizamos para nós mesmos. Vemos, assim, que o egoísmo se sublimou numa forma superior de sentimento, pois que, por amor a nós mesmos e ao nosso progresso espiritual, somos levados a amar os outros. Então, isto tudo não é belo e maravilhosamente perfeito?
            E quando dizemos que o amor é um programa de trabalho e de luta é porque temos que exercê-lo ativamente, esclarecendo, pelejando contra o erro, ajudando aos que precisam de ajuda, tolerando, enfim, porque essa é a lei que nos oferece a chave da libertação.

quinta-feira, 11 de junho de 2020

Somos da verdade?



Somos da verdade?  
por João Marcus  (Hermínio Miranda) 
Reformador (FEB) Outubro 1975

            Da casa de Caifás, conta João (18:28), levaram Jesus ao pretório. Era já madrugada. Os judeus não entraram para não se contaminarem, pois ainda tencionavam comer o cordeiro pascal. Pilatos veio. A cena que se desdobra ê majestosa, e os diálogos têm uma riqueza intemporal.
            - Que acusações trazem contra este homem? pergunta Pilatos.
            - Se não fosse um malfeitor não o teríamos trazido a ti.
            - Levai-o e julgai-o vós mesmos, segundo a vossa Lei.
            - Não podemos matar ninguém.
            Pilatos retomou ao pretório e se dirigiu ao acusado:
            - És tu o rei dos judeus?
            - Dizes isso por ti mesmo ou o que os outros disseram de mim?
            - Por acaso sou judeu? Teu povo e os sacerdotes entregaram-te a mim. Que fizeste?
            - Meu reino não é deste mundo. Se meu reino fosse deste mundo, minha gente teria lutado para que eu não fosse entregue aos judeus, mas meu reino não é daqui.
            - Quer dizer que tu és rei?
            - Sim. Tu o dizes, sou rei. Para isto nasci e para isto vim ao mundo, para dar testemunho da verdade. Todo aquele que é da verdade ouve a minha voz.
            E Pilatos, sem esperar resposta, e como se falasse consigo mesmo, perguntou:
            - Que é a verdade?
            E voltando aos judeus, declarou que não via crime naquele homem.

*

            O momento é grave e solene. É chegada a hora, e o testemunho supremo se aproxima. Nada mais há a ocultar. Antes, não. Era preciso primeiro pregar a palavra, divulgar a mensagem das alturas, desvendar os mistérios do amor, acender as candeias da esperança, levantar os paralíticos, trazer de volta os próprios mortos, aquecer o coração dos solitários. Agora, tudo estava dito e feito. Mesmo a sua condição de Messias era já conhecida entre os que o seguiam, e a hora chegara de reconhecer, ele próprio e publicamente, a sua condição.
            - Sou rei.
            Viera exatamente para isso: dar testemunho da verdade. E, mais uma vez, o mundo não estava preparado para recebê-la e compreendê-la, porque, como de outras vezes, a verdade contrariava interesses poderosos, punha em risco confortáveis posições de mando, dizia coisas que as consciências anestesiadas não queriam ouvir. A verdade é isso.
            É também nesse episódio que o Cristo não apenas confirma o seu messianato, mas também assegura aos que ainda o duvidassem que não buscava o poder político, como esperavam muitos e temiam outros. Se assim fosse, sua gente teria lutado por ele. Nesse mesmo ponto, transmite ele outra informação preciosa, que precisa ser relembrada insistentemente:
            - Todo aquele que é da verdade ouve a minha voz.
            Os exemplos dessa hora dramática continuam a chamar nossa atenção para os mistérios e segredos da natureza humana. É a fraqueza dos que se julgam fortes e condenam o semelhante à destruição, pensando destruir lhe também as ideias. É a fraqueza dos poderosos que, podendo estender a mão àquele que a turba deseja esmagar, compactuam com a massa inconsciente e concedem a vida preciosa que não lhes pertence. É a fraqueza dos donos da verdade, que açulam multidões e lavam as mãos dos crimes que se cometem por sua inspiração mal a visada.
            Por outro lado, vemos a grandeza daquele que parece esmagado, mas, mesmo assim, confirma sua realeza para informar que não busca esse poder que condena, que destrói, que sufoca, que não recua nem diante do crime. Seu reino é outro, de compreensão, de amor, de renúncias inconcebíveis e anônimas. É a grandeza daquele que marcha para o testemunho, melancólico, por certo, mas sem recuos, sem temores, sem recriminações, porque a hora é chegada. É a grandeza daquele que, dispondo também de forças, não as levantou nem mesmo para defender sua vida, muito menos para o assalto ao poder temporal. É a grandeza sutil daquele que sabe em seu coração que não adianta colher o fruto antes que esteja maduro, pois somente ouvem a sua voz os que também, como ele, longe de serem donos da verdade, colocam-se como seus servidores, embora em planos diferentes e afastados.
            Essas posições humanas reproduzem-se a cada momento, ao longo dos milênios. E, mais uma vez, a Doutrina dos Espíritos repete a lição, informando que seu reino não é deste mundo, que não busca o poder temporal nem a arregimentação descabida, pois somente ouvem a voz da verdade aqueles que estejam ligados a ela.
            Os Espíritos renascem e esquecem. É preciso que alguém lhes venha recordar as belezas da verdade eterna. Não é sem razão que Platão dizia que aprender é recordar. Até mesmo ele, o grego ilustre, precisou recordar-se para que toda a força do seu gênio pudesse desdobrar-se na sublime filosofia do espírito imortal e reencarnante. A esses que vêm marcados pela verdade, não ê preciso gritar em praça pública, nem agarrar pelo braço, nem prometer fatias de poder dentro do movimento, ou posições de brilho e destaque no seio da comunidade: eles estão prontos. Uma só palavra basta, um chamado, um gesto, um artigo, uma singela mensagem, um livro esquecido em cima da mesa, um fenômeno como tantos, a visão esmaecida de um ser que partiu, ou uma doce advertência murmurada com amor através da barreira da “morte”. Só lhes falta aquele pequeno impulso, nada mais, e ei-los a caminho, integrados na equipe do Mestre, como antigos e fiéis trabalhadores. Não importa que no passado tenham errado muito; o que importa é que busquem com sincera emoção e humildade os caminhos, às vezes tão difíceis, da verdade.
            E, assim, nós que tentamos ser da verdade, sigamos atentos e vigilantes e, no entanto, em paz. Prontos para o testemunho, e, ao mesmo tempo, desarmados de rancores, de frustrações e de ambições.
            - Que buscais? perguntava Ele.
            É a paz? Então sigamos pelas trilhas que nos levam à paz. Elas não passam pelo território da mentira, nem da glória pessoal, efêmera e enganadora, nem do êxito fácil; passam, não obstante, pela região da renúncia, do trabalho silencioso, do serviço desinteressado ao companheiro que sofre. Se vamos ser notados ou não, que importa? Ficará o nosso nome na História? Esperamos que não, porque, das outras vezes, aqui e ali, no tempo e no espaço, quando os cronistas da saga humana anotaram o nosso pobre nome, amargamos no Além a dor de muitas angústias, de tenebrosos arrependimentos, de aflições inconcebíveis. Foi por causa de tais enganos que nos voltamos para os nossos maiores e lhes pedimos, com lágrimas de esperança, que nos ajudassem a planejar novas existências de dor que nos levantassem do opróbrio íntimo, pois mesmo aqueles que uma vez contemplaram a face tranquila da verdade volveram aos desenganos cruéis, lá na frente. A conquista maior que nos espera não é a do poder sobre os semelhantes, para que sirvam de pirâmides à nossa glória, ou de pedestal à nossa vaidade, mas sobre nós mesmos, sobre nosso próprio território interior, onde sopram ainda os vendavais de muitas paixões.
            Se somos da verdade, ouçamos a voz daquele que a conhece melhor do que nós. Ele é Rei, sim, mas não deste mundo; se o fosse, Ele o conquistaria pela força bruta e não pela doçura do amor. Se somos da verdade, Ele nos reconhecerá.
            - Sim. Tu o dizes, sou Rei, Para isto nasci e para isto vim ao mundo, para dar testemunho da verdade. Todo aquele que é da verdade ouve a minha voz.
            E nós? Estamos ouvindo a sua voz? Então somos da verdade.  


sábado, 13 de abril de 2019

O Conde de Rochester - A aventura, a tragédia, o remorso...



O Conde de Rochester
- A aventura, a tragédia, o remorso...
por Hermínio C. Miranda
Reformador (FEB) Fevereiro 1976

            Em meados de 1680, um nobre inglês de 33 anos de Idade morria lentamente de velhice, numa longa e dolorosa agonia física e espiritual. Chamava-se John Wilmot, Conde de Rochester.

            No dia 19 de junho, ditou um documento pungente de remorso e, mágoa ante o tempo perdido, a inutilidade de uma preciosa existência consumida em loucuras inomináveis, e de um talento desperdiçado tão abundantemente na elaboração do verso genial, mas corrupto.

            Esse testamento espiritual, escrito "em benefício daqueles que possam ter sido arrastados ao pecado pelo meu exemplo e estimulo", foi assinado na presença da velha mãe e da jovem esposa. Por desejo expresso de seu signatário, deveria ser lido a toda a criadagem, "até ao tratador de porcos". Dizia, em suma, que "do fundo de minha alma, detesto e abomino todo o curso de minha vida iníqua".

            A 25 do mesmo mês, em carta ditada ao Reverendo Gllbert Burnet, seria ainda mais explícito:

            - "Meu ânimo e meu corpo definham tão juntamente que lhe escreverei uma carta tão fraca como me sinto. Começo por dizer que coloco os sacerdotes acima de todas as criaturas no mundo e o senhor acima de todos os sacerdotes que conheço." 

            O fim chegava lento, penoso e inexorável. De há muito estava minado seu vigoroso organismo.

            Em abril de 1678, dois anos antes, circulara mesmo a notícia de sua morte. A
informação, que Anthony Wood registrara em seu diário, era falsa, mas não as suas mazelas, pois estivera mesmo "at the gates of death", às portas da morte... Já em 1669, no entanto, frequentava ele os "banhos" da Sra. Fourcard, em busca de alívio para a depredação que as doenças venéreas estavam causando em seu corpo. Aos 24 anos de idade, segundo ele próprio declarou por escrito - seus olhos não suportavam mais vinho nem água.

            - "Se abandonasse o vinho e as mulheres - escreve Graham Greene, no seu estupendo livro - poderia ter sido salvo, mas não tinha força de vontade para isso, mesmo que o quisesse."

            Levado pela paixão desesperada pela vida, consumira-a de um só trago, "queimando a vela pelas duas pontas", como diz a expressão inglesa. Tornara-se, agora, a sombra do que fora, enquanto jazia atormentado pelas dores físicas e morais, no leito da agonia, úlceras atrozes consumiam--lhe a bexiga, que era expelida aos pedaços, em crises insuportáveis, segundo relato de Burnet, o anjo bom dos seus últimos dias. Não obstante, dessa ruína física emergiam os clarões de decisões importantes para a vida daquele Espírito tão bem dotado.

            - "Quando seu moral estava tão baixo e exausto que ele não podia nem andar ou mover-se - escreve Burnet -, e pensava não viver mais que uma hora, disse ele que sua razão e sua capacidade de julgamento estavam tão claras e fortes que, daquele momento em diante, estaria totalmente convencido de que a morte não significa o desaparecimento ou a dissolução da alma, mas apenas sua separação da matéria. Sentia, durante a doença, grandes remorsos ante sua vida pregressa, mas como me disse, depois, tais remorsos eram mais da natureza de horrores generalizados e trevosos do que uma convicção de que ele tivesse pecado contra Deus. Lamentava que tivesse vivido de modo a dissipar as suas energias tão cedo, e criado tão má reputação em torno de si mesmo; sua mente estava de tal modo agoniada que ele nem sabia como se expressar.

            Não foram poucos os que duvidaram desse arrependimento de última hora. É difícil aos companheiros da libertinagem e do erro admitirem que um deles, de repente, saltou a cerca espinhos da dor e caiu, ofuscado e atônito, do lado claro da verdade. William Fanshawe foi um desses.

            Em carta de 19 de junho à sua irmã, Lady Rochester, mãe do doente, narra a cena do reencontro dos dois amigos, um ainda preso ao desespero de viver todos os prazeres e outro atirado ao leito, à espera da morte, exatamente porque tentara também  fruí-los todos.

            - Mr. Fanshawe, seu grande amigo, escreve Lady Rochester -, esteve aqui para
vê-lo e, enquanto, em pé, ao lado da cama de meu filho, este olhou-o intensamente e disse  "Fanshawe, pense em Deus, deixe-me dar-lhe este conselho, e arrependa-se de sua vida passada, e se emende. Acredite no que eu digo: Deus existe, um Deus poderoso, um Deus terrivel para os pecadores impenitentes. Está chegando a hora do julgamento, com grande terror para os maus; por isso, não adie o seu arrependimento: o desagrado de Deus desabará sobre você, se você não o fizer. Você e eu somos antigos companheiros, e praticamos juntos muitos erros. Amo a criatura humana e lhe falo diretamente de minha consciência, para o bem de sua alma."

            Segundo Lady Rochester, Fanshawe ficou ali em pé por alguns minutos mais, sem dizer uma. palavra; pouco depois, "stole away out of the room", ou seja, retirou-se de mansinho do quarto. Quando Rochester percebeu que ele havia saido, perguntou só para confirmar:

            - "Ele foi embora? Coitado. Temo que seu coração esteja muito endurecido."

            O antigo companheiro de farras memoráveis estava convencido de que o amigo tinha ficado doído, e não fez segredo algum de sua convicção, porque a notícia chegou ao conhecimento de Lady Roehester, que se queixa disso em nova carta de 26 de junho. Foi depois da visita de Fanshawe que Rochester ditou o seu testamento espiritual, mas não foram poucos os que continuaram a duvidar da sinceridade da contrição de um jovem muito brilhante que envelhecera e envilecera na devassidão.

            Um dia se escreverá a história de como John WiIlmot, Conde de Rochester, se transformou em J. W. Rochester, autor espiritual das extraordinárias narrativas histórlcas escritas com a dócil mão de Wera Krijanowski. Enquanto não temos essa história, que só ele mesmo poderá contar, vejamos como foi que o ex-faraó Mernephtah e o ex-beneditino da tenebrosa Abadia do século 13 se tornou John Willmot, Conde de Rochester.

*

            O livro que conta essa história chama-se "Lord Rochester's Monkey" ("O Macaco de Lord Rochester"), edição da Bodley Head, Londres, de autoria do escritor inglês Graham Greene. 

            O autor informa, no prefácio, que o livro foI escrito entre 1931 e 1934, mas foi então recusado pelo seu editor, Heinemann, o que o deixou tão desapontado que ele não teve coragem de oferecê-lo alhures. Greene supõe que a editora ficou temerosa de enfrentar a opinião pública, pois o livro era considerado obsceno, principalmente em vista da reprodução de vários poemas de Rochester. Graham Greene, não obstante, não perdeu o interesse pelo seu tema, pois julga, com muita razão, que Rochester foi um poeta genial, dos maiores da língua inglesa. De qualquer forma, os originais de seu livro magistral dormiram quarenta anos nos arquivos da Universidade do Texas que, permitindo fossem copiados, possibilitou a publicação, em 1974.

            Trata-se de um volume de 231 páginas, primorosamente elaborado, tanto do ponto de vista literário/como gráfico. Impresso em papel excelente, contém Inúmeras ilustrações em preto e branco, e maravilhosas reproduções a cores, Inclusive retratos e autógrafos de Rochester. O título, aliás, foi inspirado num quadro a óleo, que mostra Rochester, com um ar algo sarcástico, colocando uma coroa de louros na cabeça de um macaco que, sentado sobre dois livros, estraçalha um terceiro com um ar de deboche. Rochester segura, na outra mão, esquerda, originais manuscritos de alguns poemas.

*

            Rochester nasceu em 1617 - há dúvidas quanto à data precisa, que seria 1º ou 10 de abril -, num período difícil da história da Inglaterra. Duas das mais fortes paixões humanas - religião e política -- haviam concorrido para criar um clima de tensões violentas, que precipitaram o país em crises e lutas sangrentas. Nem mesmo a execução do rei Charles I, em 30 de janeiro de 1649, acalmou os ânimos, e, depois de um interlúdio, em que Cromwell governou com vigorosa disciplina, Charles II recuperou o trono, em maio de 1660. Governaria o pais, a seu modo, até 1685. Nascera em 1630, sendo, portanto, cerca de 17 anos mais velho que Rochester, e foi o rei do poeta, que o serviu em várias condições, como veremos.

            A Enciclopédia Britânica diz que ele era "demasiado preguiçoso e amante dos prazeres para se dedicar com firmeza às suas funções, mas às vezes enérgico, e sempre inteligente".

            Não teve filhos legítimos, mas uma meia dúzia de bastardos, os quais agraciou com títulos de nobreza. Queixa-se a Britânica de que os que denunciam sua moral demoram-se nos seus vícios, esquecidos de seus talentos.

            Rochester era filho de Henry Wilmot e de Anne, filha de Sir John St. John, viúva de Sir Francis Henry Lee, com quem esteve casada apenas dois anos. Este casamento deixou--lhe dois filhos e uma propriedade em Ditchley. Casou-se com Lord Wilmot, em 1644. Era, segundo Greene, mulher obstinada, impulsiva, cheia de preconceitos, e sobreviveu ao marido, ao filho e ao neto, bem como à nora. Anthony Wood ouvira dizer, conforme escreveu em seu diário, que John Wllmot, o segundo Conde de Rochester, seria filho ilegítimo de Sir Allen Apsley, mas Greene não endossa o registro, atribuindo-o à malícia . daqueles tempos socialmente tumultuados, pois a virtude de Lady Rochester jamais foi questionada, a despeito de seu temperamento desabrido.

            Além do mais, ele se parecia com o pai, não apenas fisicamente, como até no gênio aventuroso e folgazão; Henry Wilmot era ambicioso, orgulhoso e incapaz de se contentar com o que quer que fosse. Bebia abundantemente e tinha temperamento dominador, "suportando com impaciência a contradição"; sem escrúpulos religiosos, entregou-se à devassidão.

            - "Era bem o pai do homem que, segundo disse a Gilbert Burnet, o historiador, durante cinco anos consecutivos se manteve embriagado..." - escreve Greene.

            Devido ao importante papel que desempenhou na fuga do rei Charles I, Henry Wilmot teve de deixar a Inglaterra. Entre 1653 e 1654, Lady Wilmot esteve em Paris com seus filhos - dois do primeiro matrimônio, e o pequeno John, então com seis para sete anos - em busca do marido aventureiro que, aliás, se encontrava na Alemanha, tentando levantar dinheiro para ajudar a causa do rei, seu amigo e senhor. A essa altura, Henry Wilmot já havIa sido distinguido com o titulo de Conde - "Earl", em inglês, e empenhava-se, no continente, no esforço de repor seu rei no trono e, certamente, garantir para si próprio uma fatia de poder. Lady Rochester, porém, não tinha paciência nem gosto pela vida na Corte; muito menos, a de um rei pobre e destronado, ocupado com a sua décima sétima amante.       

            Henry Wilmot morreu em Sluts, em 1658, e foi enterrado temporariamente em Bruges, na Bélgica, deixando ao segundo Conde de Rochester, então com 11 anos, pouca “herança além das honrarias e do titulo". Desde que deixara Paris, em 1656, de volta a Ditchley, que herdara de seu primeiro marido, até a morte do segundo em 1658, Lady Rochester tivera oportunidade de estar com Henry apenas uma vez.

            Daí em diante, ao se referir ao Conde de Rochester, o livro quer dizer o segundo, ou seja, John Wilmot, que se tornaria tão popular ao público brasileiro de nossos dias sob o nome de J. W. Rochester, autor de tantos livros, fascinantes, como "Romance de uma Rainha”, "Herculanum”, "O Sinal da Vitória", "O Chanceler de Ferro", "A Vingança do Judeu" e outros.

            Enquanto seu pai vivia seus derradeiros anos de aventura, o jovem John Wilmot crescia em Ditchley, que nunca foi suplantada na sua preferência, nem mesmo pelas atrações e prazeres que mais tarde teria em Londres, nos meios aristocráticos.

            - "A cidade - escreve Graham Greene - seria o divertimento nublado pela bebida, as intrigas do teatro, as amizades artificiais com os poetas profissionais, os casos de amor e luxúria, as disputas na Corte, a amizade do rei a quem ele desprezava, os bordéis de Whetstone Park, as doenças e os remédios, os "banhos" da Sra. Fourcard. O interior seria a paz, uma espécie de pureza mesmo, e, finalmente, o lugar para morrer."

            Essa a perspectiva da vida do menino que, aos 11 anos, carregava os títulos pomposos de Conde de Rochester, Barão Wilmot de Adderbury, na Inglaterra, e Visconde Wilmot de Athlone, na Irlanda.

            Na Escola primária de Burford, o jovem Conde foi aluno exemplar. Era disciplinado e aprendia com facilidade. Há depoimentos escritos de seus professores, atestando sua natureza virtuosa, boa e sempre pronta a acolher um conselho aproveitável; enfim, como disse Gifford, seu tutor doméstico, "a very hopeful youth", ou seja, "um jovem que muito prometia."

            Gifford, no entanto, não o acompanhou a Oxford, como esperava, e, mais tarde, diria que a vída do Conde teria sido muito diferente se ele o tivesse seguido mais além, em seus dias de formação. No que, acredita-se, ele não deixou de ter alguma razão, pois era homem austero e disciplinador, e, ao que tudo Indica, Rochester respeitava-o.

            A cultura do jovem Conde foi bastante ampla para a época. Manejava com facilidade o latim e o grego, e era versado nos clássicos dessas línguas. Nos seus versos, mais tarde, apareceriam adaptações de Lucrécio. Ovídio ou Sêneca, a despeito dos resmungos de Gifford, que, enciumado dos progressos de seu antigo pupilo, dizia que ele pouco sabia de latim, e multo menos de grego.

            Na realidade, o ressentimento era profundo. Certa vez em que Rochester reclamou que o velho não vinha vê-Io com mais frequência. Gilford respondeu com azedume e mágoa: - "My lord, sou um sacerdote. Vossa Graça tem o péssimo caráter do devasso e do ateu, e não ficará bem para mim estar em companhia de Vossa Graça, enquanto esse procedimento durar, enquanto o senhor continuar nessa vIda."

            E, assim, em 1660, sem Gifford, Rochester partiu para o Wadham couege, em Oxford. Não completara 13 anos, e não estava ainda suficientemente amadurecido para experimentar a vida livre de um grande colégio, nem suportar o assédio da malícia e da irresponsabilidade de um ou outro companheiro mais impetuoso.

            Quando um mestre mais impertinente tentou coibir o uso da cerveja, e chamou os alunos para uma conversa a sério, os estudantes disseram que os homens do Vice-Chanceler da Faculdade também tornavam das suas na Taverna da "Split Cow". O Mestre foi ao Více--Chanceler que, por sua vez, não sendo indiferente às atrações da cerveja, deu de ombros, dizendo que não via mal no que o Mestre rotulava de "aquele licor infernal que se chama cerveja". Diante disso, o Mestre tornou a reunir os jovens e deu-lhes permissão para beber, "de modo que pudessem ser beberrões autorizados", e não clandestinos. Esse era o ambiente de Oxford, de onde Rochester saiu em 9 de setembro de 1661, com 14 anos de idade, levando o título de "Master or Arts". Em novembro, ele partiu para o Continente, em companhia de Sir Andrew Ballour, conhecido botânico e homem integro. A viagem seria principalmente à França e à Itálla.

            Ao regressar, a doce vida estava aberta diante dele. Um relato da época descreve-o como um jovem gracioso, alto e esguio, de feições extremamente atraentes, inteligente, irresistivelmente charmoso ("charms not to be withstood"}, brilhante, sutil, sublime, muito bem educado, e "adornado com uma natural modéstia que o tornava encantador". Além do latim e do grego, já referidos, dominava perfeitamente o francês e, o italiano, estando familiarizado com autores clássicos e modernos nessas línguas, sem contar o inglês. Era, pois, uma figura encantadora, com todos os atributos para conquistar a frívola sociedade de seu tempo; e até mesmo admirações autênticas.

            Cedo, pois, estava ele profundamente engajado nas intrigas da corte de Charles II, de quem passou a desfrutar amizade e confiança. Em carta de 26 de dezembro de 1664, o rei escrevia à sua querida irmã, casada com o Duque de Orléans: "Somente ontem recebi sua carta, por intermédio de Lord Rochester." O Lord tinha apenas 17 anos...

            No ano seguinte, raptou Elizabeth Mallet, herdeira de propriedades que rendiam 2.000 libras por ano, o que não era de se desprezar para um Conde bonito e talentoso, mas empobrecido.

            Era a noite de 26 de maio. A moça havia ceado em White Hall, em companhia de seu avô, com Frances Stewart, uma das Damas de Honra da corte. Achava-se a caminho de casa, com Lord Hawley, quando um grupo de homens armados. sob o comando de Rochester, fez parar a carruagem em Charing Cross. Puseram-na em outra condução e levaram-na para fora de Londres, a um lugar secreto, onde duas mulheres à esperavam. A noticia circulou, e Lord Rochester foi capturado em Uxbridge, sem Elizabeth. O rei, que havia, tentado arranjar o casamento de ambos, ficou furioso. Em, 27 de maio, foi expedida uma ordem de prisão; e Rochester recolhido à Torre. Elizabeth, resgatada, voltou aos seus. Mais tarde precisamente em 29 de Janeiro de 1667, ao cabo de inúmeras peripécias, ela se casaria com Rochester, "contrariamente à expectativa de todos os seus amigos", segundo a velha Senhora Rochester.

            Antes, porém, viveu ele a aventura do mar, no combate à marinha holandesa, no que se saiu com valor, embora sem atingir o posto de almirante, como alguns acreditaram e divulgaram. Atribui-se, no entanto, sua admissão à Câmara dos Lordes (Parlamento), antes dos 21 anos de idade, à sua atuação na campanha. Foi nessa oportunidade que Rochester, assediado por premonições de morte, celebrou com seu amigo e companheiro Wyndham um pacto formal, com aspectos de cerimônia religiosa, segundo o qual aquele que morresse primeiro prometia aparecer ao outro, para dar notícia do futuro estado, se é que existia um futuro estado. Um terceiro amigo, um certo Edward Montagne, recusou-se terminantemente a fazer parte do acordo.

            Rochester regressou são e salvo à Inglaterra para encontrar seu país sacudido por urna das grandes pragas que dizimavam populações inteiras naquela época; mas a vida seguia seu curso entre o pavor da morte e o aceno dos divertimentos.

            Em reconhecimento por seus serviços, o rei atribuiu a Rochester um prêmio de 750 libras que devem ter sido utilizadas para aliviar a pressão de seus credores.

            Em fevereiro de 1666, a Corte retornou a Londres, de onde fugira espavorida, e, em março, Rochester foi nomeado "Gentleman of the King's Bedchamber", ou seja Camareiro do Rei, posto honorífico que o monarca reservava aos seus íntimos amigos, e que rendia os vencimentos nada desprezíveis de 1.000 libras por ano. A principal função do Camareiro era apresentar ao rei, todas as manhãs, a sua primeira peça de roupa, uma espécie de camisa com a qual o vestia. Além disso, supervisionava a ordem dos aposentos reais; vendo que nada faltasse ao conforto de Sua Majestade.

            O jovem Conde preferia, no entanto, a aventura, e, no verão de 1666, fez-se ao mar novamente, em companhia de Sir Edward Spragge, para novas lutas com os holandeses, e desta vez para derrotas humilhantes.

            Ao se casar com Elizabeth Mallet, Rochester não completara ainda 20 anos, e Graham Greene queixa-se de que os 13 anos restantes de sua vida são difíceis para o biógrafo, pelas fantásticas histórias que circulam a respeito, as aventuras amorosas com várias cortesãs e senhoras da sociedade, suas amizades literárias, suas disputas, algumas das quais resultaram em duelos mais ou menos românticos, suas desavenças com o rei, seu papel de charlatão, quando resolveu ser médico, "como se todos esses anos - escreve Greene - fossem nublados pelos vapores da bebida".

            Suas visitas à esposa, que permanecera na propriedade rural, eram intermitentes e espaçadas. Desse período aventuroso e vago, somente se conhecem com precisão as datas do batismo de seus filhos: Anne, em 30 de agosto de 1669; Charles, o único filho varão, em 2 de janeiro de 1671; Elizabeth, em 13 de julho de 1674 e, em 6 de janeiro de 1615, sua última filha legítima, Mallet, pois teve ainda uma filha com a atriz Elizabeth Barry, em Londres, em 1677.

            Em suma: a vida era uma enorme “chatice" que, no entanto, precisava ser vivida, e
"Rochester bebia para torná-la suportável"

            Piores momentos viriam, porém.

            - "A paixão do ódio começou cedo, escreve Graham Greene. Atrelada, como estava, à ingratidão, suspeita-se de que a bebida tenha começado a afetar o caráter de Rochester aí pelo fim de 1667, dez meses depois de seu casamento."

            O ódio era difuso e impessoal, mais pela sociedade, suas hipocrisias e falsidades, pois, na palavra repetida de seu biógrafo, "odiava a imoralidade... nos outros", enquanto se permitia todos os desatinos. É essa a imagem que, provavelmente, tentou retratar o pintor que o figurou coroando um macaco que destrói livros. A 5 de outubro, foi convocado para a Câmara dos Lordes, com 21 anos incompletos, o que provocou alguns protestos veementes; mas, o rei manteve sua decisão. Estava "de bem" com Rochester. De outras vezes, expulsá-lo da Corte, dado que o poeta não poupava nem mesmo o seu real amigo nos seus terríveis epigramas,  às vezes em versos pornográficos irreproduzíveis, como os que constavam da sua "The History of the Insipids".

            Com outro rei mais impulsivo, a carreira de Rochester estaria para sempre encerrada, e, talvez, a sua vida; mas, Charles acabava por readmiti-lo na sua intimidade, e até conferiu a ele cargos e bens. Além da posição de Camareiro, que Rochester abandonou, o rei designou-o para a Câmara dos Lordes, como vimos. Em fevereiro de 1668, foi nomeado Guardião da Caça Real, em Oxford, e, em abril, Rochester fez uma petição solicitando quatro distritos em Whitthewood Forest. Em 1673, foi-lhe atribuído, em comum com Laurence Hyde, o domínio de uma propriedade da coroa, em Bestwood, o quatro carregamentos de feno de Lenton Mead, tudo Isso a troco de um aluguel nominal de 5 libras por ano. Em 1674, Rochester foi nomeado Guardião de outra propriedade, chamada Woodstock Park. Em abril do ano seguinte, nova nomeação para um cargo honorífico, e, em junho, o usufruto de algumas propriedades. Três dias depois da nomeação, ele quebrou um raríssimo relógio de sol, no jardim do palácio, na inconsciência da embriaguez.

            Graham Greene não pode deixar de observar o estranho relacionamento entre Rochester e seu rei, que, tão pacientemente, suportou suas loucuras e Impertinências. "Talvez, acrescenta o biógrafo, somente no abismal cinismo do rei se poderia encontrar a explicação." Ou, diríamos nós, numa amizade sincera, que resistia aos mais duros embates da provocação e do ridículo em que o poeta às vezes o colocava perante a Corte e a nação, em versos que circulavam por toda parte.

            Numa dessas expulsões da Corte, Rochester e seu amigo Buckingham adquiriram uma estalagem na Newmarket Road, onde se esmeravam em tratar tão bem os clientes que os homens passaram a trazer também as esposas. Enquanto os maridos bebiam, Rochestcr e amigo cortejavam as esposas. Uma delas, particularmente difícil, porque o marido teimava em mantê-la em casa, aos cuidados de uma irmã, Rochestcr conquistou com um artifício: enquanto o amigo embebedava o marido, o poeta vestiu-se de mulher e conseguiu insinuar-se, colocando a tia-guardiã fora de combate com uma dose de ópio, habilmente ministrada.

            Daí em diante, as loucuras desatam-se mesmo, constituindo, às vezes, incidentes sérios, como o de Epson, em que Rochester só por milagre não foi levado à Justiça para responder por crime de morte. Andou foragido, por algum tempo, e, depois, reapareceu na Corte. O rei o havia perdoado novamente...

            Depois disso, foi a aventura como "médico", especialmente de senhoras, e corno astrólogo. Os anúncios que então publicou foram preservados.

            - "Quanto às previsões astrológicas - dizia um texto "publicitário" - fisiognomonia, adivinhação por meio de sonhos e outras (na quiromancia não acredito, porque não possui a base invocada em seu suporte), minha própria experiência me convenceu dos seus consideráveis efeitos e maravilhosas operações, principalmente no sentido dos acontecimentos futuros, na preservação de perigos ameaçadores e na utilização de vantagens. que se possam oferecer. Afirmo que minha prática me convenceu mais dessa verdade do que todos os eruditos e sábios escritos existentes sobre a matéria: porque isto posso dizer por mim (sem nenhuma ostentação): que raras vezes tenho falhado nas minhas predições, e com frequência tenho sido muito útil em meus conselhos. Até onde posso ir neste assunto, estou certo de que não poderia dizê-lo por escrito."

            Com um "anúncio" desses, quem deixaria de procurar o jovem astrólogo, além de tudo muito simpático, inteligente e bonitão? Especialmente mulheres românticas e ambiciosas, ou ingênuas.     .

            É certo, porém, que ele não acreditava no produto que anunciava, mesmo porque o Espírito de seu amigo Wyndham - aquele do pacto de morte - não voltara para dizer se havia ou não vida póstuma. No entanto, outro episódio de premonição impressionara-o bastante para merecer um relato a Burnet.

            Um capelão que frequentava a casa de Lady Warren, sua sogra, sonhara que em tal dia morreria; mas, como trataram de dissuadi-lo da ideia, ele acabou por esquecer o sonho. Uma noite, porém, jantavam 13 pessoas em torno da mesa e, segundo antiga superstição, uma deveria morrer breve. Uma jovem presente apontou o capelão como candidato à desencarnação, o que trouxe de volta à sua mente a lembrança do sonho, e o deixou perturbado. Lady Warren repreendeu-o pela sua preocupação com a crendice, mas o certo é que o homem, em perfeitas condições de saúde, amanheceu morto no seu aposento.

            Isso, porém, somente iria fazer algum sentido para Rochester quando ele próprio se avizinhava da hora final. Enquanto essa hora não chegava, a vida tinha de ser vivida, e o mais intensamente possível.

            Na sua aventura como charlatão da Medicina, seu interesse mais uma vez se focalizou na clientela feminina, à qual prometia maravilhas de restauração e conservação da beleza física, segundo técnicas que teria aprendido na Itália, onde "mulheres de 40 anos têm a mesma aparência das de 15". Lá não se distinguia a idade pelo rosto, "enquanto na Inglaterra, ao olhar um cavalo na boca e uma mulher na face, sabe-se com precisão suas idades". Para remediar tal situação vexatória, lá estava o Dr. Rochester, com seus remédios miraculosos que limpavam a pele, clareavam os dentes, tornando-os "brancos e redondos como pérolas, fixando os que estivessem' frouxos". Enquanto isso, as gengivas ficariam vermelhas como coral, e os lábios da mesma cor "e macios como você os desejar para os beijos lícitos" ("lawfull kisses")', pois o jovem médico não poderia fazer mau juízo de suas clientes", Além do mais, eliminaria gorduras indesejáveis, ou poria carnes onde necessário, sem nenhum prejuízo para a saúde, E concluía:

            - "Mesmo que o próprio Galeno desse uma espiada de sua sepultura e me dissesse que isto tudo fossem recursos indignos da profissão médica, eu lhe diria, friamente, que, com muito mais glória, preservo a imagem de Deus na sua beleza imaculada, numa boa face, do que o faria remendando todas as decadentes carcaças do mundo."

            E assim segue a vida, esquecida de si mesma, atordoada em loucuras, desinteressada do futuro. Se ao menos o amigo Wyndham tivesse voltado para continuar a vida póstuma... 

            Aos 30 anos, tem notícia do nascimento de sua filha ilegítima com Elizabeth Barry, em Londres. Rochester estava doente, já prematuramente desgastado, numa de suas propriedades rurais. Em carta ao seu amigo Saville - outro companheiro de desatinos - escreve que está "quase cego, completamente coxo e com remotas esperanças de ver Londres outra vez". Mas, ainda se recuperaria para voltar a Londres e à vida tresloucada, com entreatos em sua propriedade em Woodstock, onde promovia bacanais memoráveis e distúrbios inenarráveis na vizinhança, com inocentes criaturas. 

            Enquanto isso, Lady Rochester, a jovem esposa, vivia por ali mesmo, a cerca de 15 milhas, em Adderbury, com os filhos, uma existência pacata, recolhida e sem horizontes.

            E, por estranho que pareça, Rochester amava-a, à sua maneira, é claro, e respeitava-a. Ademais, adorava os filhos, e todos gostavam muito dele. Suas rápidas passagens pelo lar devem ter sido sempre momentos de alegria e descontração, pelo seu gênio alegre e pelas histórias que deveria contar, não as escabrosas, mas as que pudessem passar pelo crivo da moral. Nos seus filhos, segundo Graham Greene, ele via a única forma de imortalidade em que podia acreditar: a continuidade da vida nos descendentes.

            Uma de suas cartas ao seu filho Charles preservou-se, com sérias recomendações sobre o bom procedimento e o amor a Deus. Greene comenta, depois de transcrevê-la, que não se trata do documento de um hipócrita. Ele realmente desejava para o filho uma vida diferente da sua, queria que o menino crescesse crendo em Deus e "não imitasse seu pai a caminhar no frio de um universo ateu". Diria, mais tarde, a Burnet que considerava muito felizes aqueles que tinham fé, "dado que isso não estava ao alcance de toda agente".

            É certo, porém, que, para um homem de seu talento e de suas inclinações para a vida libertina, as religiões predominantes na época não tinham muito a oferecer, ainda mais que disputavam ferozmente entre si não a supremacia dos corações e das consciências, mas a do poder temporal. É óbvio, também, que, mesmo na tormenta da sua vida Inconsequente, ele ouvia em si a voz de Deus a chamá-la. Mas, chamá-lo para onde? Para o Catolicismo? Para o Protestantismo?

            Num poema intitulado "On Rome's Pardons" ("00 Perdão de -Roma"), dizia que  “se Roma pode perdoar pecados, como diz, e se tais perdões podem ser comprados e vendidos, não seria pecado adorar e venerar o ouro. Quando surgiu esse artifício, ou quando começou? Quem é o seu autor? Quem o trouxe? Teria o Cristo criado uma alfândega para o pecado?"

            Seja como for, ele deve ter encontrado mais lógica na doutrina reformista, pois conseguiu, já no final, converter sua mulher do Catolicismo para o Protestantismo anglicano.            

            Pouco depois, com o corpo devastado pelas doenças, e com o Espírito ansioso, amargurado e cheio de remorsos, iniciaria, ao lado de Gilbert Burnet, a última aventura: a busca de Deus e da verdade escondida atrás do mistério da vida.

            Esse dedicado sacerdote passou horas e horas ao lado do Jovem Conde agonizante, e, meses depois da morte de Rochester, publicou, ainda em 1680, um precioso livro sobre a vida do malogrado amigo: "Algumas passagens sobre a vida e a morte do nobre John, Conde de Rochester, morto em 26 de julho de 1680."

            Muito gostaríamos de ter em mãos esse livro raríssimo, pois é ele o verdadeiro testamento moral de um Espírito extremamente bem dotado, mas mergulhado numa crise terrível de insatisfação consigo mesmo, sua vida e seus atos, diluído tudo numa loucura que durou umas poucas décadas, e que acabou em agonias penosíssimas.

            Seria preciso, também, percorrer os seus versos geniais, para ver faiscar na lama escura da obscenidade a pedra cintilante das suas intuições, como, para citar um só exemplo, a intuição da reencarnação, colocada num verso que, de tão pornográfico, se torna irreproduzível.

            Burnet foi o confidente da hora última, dia após dia, até o amargo fim, desde outubro de 1679, quando Rochester mandou buscá-lo. Depois dos primeiros encontros, "ele adquiriu confiança em mim - escreve Burnet - e abriu para mim todos os seus pensamentos, tanto em religião como em moral, proporcionando-me uma visão completa de tua vida, e não parecia aborrecer-se com minhas frequentes visitas".

            É claro que, a princípio, o depoimento de Burnet foi considerado apócrifo, especialmente pelos amigos de Rochester, que não podiam aceitar a conversão, naqueles termos tão dramáticos, de quem realmente busca, aturdido e contrito, o sentido da vida, afinal revelado nas últimas horas. A passagem do tempo, no entanto, confirmou a autenticidade do livro, porque as pesquisas realizadas em dois séculos e meio em torno de Rochester deram credibilidade ao que o bom sacerdote documentou de maneira tão comovente.

            Burnet foi o grande doutrinador junto de Rochester. Só que, em vez de doutrinar um Espírito já desfigurado, esforçava-se por levar uma parcela de luz e de esperança ao coração de um que partia e se preparava para enfrentar a realidade póstuma. Seu mérito é ainda maior, quando nos lembramos de que ele dispunha apenas da precária teologia dogmática que a sua intuição e sua sabedoria devem ter suprido na extensão suficiente e necessária para acordar aquele Espírito ainda na carne.

            Rochester estava, afinal, disposto n ouvir: o debate à beira do túmulo contém 302 linhas atribuídas a Rochester, e 1671 a Burnet. Mesmo assim, não deve ter sido fácil a tarefa para o virtuoso e culto sacerdote, pois seu oponente desejava uma realidade que pudesse admitir com apoio na lógica, e não uma crença que teria de aceitar à base da fé sem especulação intelectual.

            Achava o Conde que nossa concepção da ideia de Deus era tão insignificante que seria mera presunção pensar muito nele. Era melhor adorá-lo independentemente de qualquer culto religioso, mas com uma celebração genérica, como, por exemplo, com um hino.

            Quanto à vida depois da morte, "apesar de achar que a alma não se dissolve com a morte, duvidava muito das recompensas, tanto quanto das punições: as primeiras, por achá-las muito elevadas para que as alcançássemos com os nossos minúsculos serviços, e as outras demasiadamente excessivas para serem impostas ao pecado".

            Em suma: não podia aceitar céu nem inferno. Portanto, admitia claramente que deveria haver outras formas de ajustar a alma ao bem, dado que ela sobrevivia à morte do corpo físico.

            Desse ajustamento, também teve intuições maravilhosas, não apenas no verso pornográfico há pouco lembrado. Certa vez interrompeu Burnet para dizer o que pensava disso:

            - "Pensava ele - escreve o sacerdote-biógrafo - que o mais certo é que a alma
começar de novo, e que a lembrança do que ela fez neste corpo, registrada nos desenhos do cérebro, tão logo ela é desalojada, tudo desaparece, e a alma é levada a algum novo estado para começar um novo ciclo" (destaques desta transcrição). 

            Ninguém poderia ter figurado melhor a ideia da reencarnação, há quase 300 anos! O único reparo que cabe fazer na suposição de Rochester é o de que as lembranças, embora gravadas no cérebro físico enquanto o Espírito está encarnado, apagam-se realmente deste, mas permanecem nos registros perispirituais, e quando a alma começa de novo, com um novo cérebro físico, ela se esquece por sua própria conveniência, mas apenas temporariamente, porque nenhuma lembrança se perde.

            John Wilmot, Conde de Rochester, voltaria mais tarde para documentar, com narrativas realmente históricas, as doutrinas que confusamente sentia e que não tinha como expressar naqueles meses agoniados em que sua vida física se extinguia lentamente. Afinal de contas, como dissera George Etherege do jovem Conde: "Sei que ele é um demônio, mas ele tem algo do anjo que ainda não se apagou nele." Ou seria o contrário: um anjo em potencial, no qual a face do demônio ainda não se apagara de todo?

            Num verso inteligente e brejeiro, Sir Francis Fane parece ter tido não apenas a intuição da verdade, mas também a premonição do traçado futuro da vida de Rochester. Para ele, Rochester foi um alegre emissário do Demônio que, de repente, para grande confusão do Maligno, mudou o rumo da sua nau, e, em vez de liderar para o caos as almas perdidas, enfunou as velas na direção das regiões da felicidade eterna.

*

            E assim tivemos a história sumária de John Wilmot, segundo Conde de Rochester, um Espírito que acabou por se encontrar a si mesmo, a despeito do alarido de suas paixões desencadeadas. Não apenas Isso. De regresso ao mundo espiritual, depois de pelo menos mais uma vida na carne, resolveu escrever, através de sua amiga Wera Krijanowski, a mais bela mensagem do mundo: a de que o Espírito sobrevive e se reencarna - tantas vezes quantas necessárias ao seu reajuste perante as leis de Deus, insistentemente desobedecidas ao longo do tempo imemorial. Nada se esquece, nada se perde, tudo serve para a reconstrução do nosso mundo íntimo, até mesmo as nossas loucuras, porque também com elas aprendemos a dura lição da vida, que não precisava ser dura se o quiséssemos.

            São muito populares no Brasil as obras mediúnicas ditadas por Rochester, mas uma parte considerável da sua produção histórico-literária ainda é desconhecida, segundo referências que colhemos no prefácio de "A Vingança do Judeu", edição da FEB, 1966. (1)

            Das obras já traduzidas, além da retrocitada, são mencionadas as seguintes, cujos títulos darei em português:
Tibério
A Abadia dos Beneditinos
O Faraó Mernephtah
O Sinal da Vitória
Romance de uma Rainha
O Chanceler de Ferro
 Herculanum
Naêma, a Bruxa (lenda do século XV)
A Lenda do Castelo do Conde de Montinhoso

                (1) A FEB lançará, em 1976, novas edições de "O Chanceler de Ferro", "Herculanum" e " Vingança
do Judeu".

            Entre as que ainda aguardam divulgação, citam-se os seguintes títulos em francês, neste trabalho traduzidos:

O Festim de Baltasar
Saul, Primeiro Rei dos Judeus
O Sacerdote de Baal
Um Grego Vingativo
Fraquezas de um Grande Herói
O Barão Ralph de Derblay
Diana de Saurmout
Dolores
O Judas Moderno
Narrativas Ocultas

            Só a leitura desses títulos nos aguça a curiosidade pelo mundo de revelações históricas que devem conter essas obras e as trajetórias de tantos Espíritos notáveis, no bem e no mal. Em "Dolores", por exemplo, o autor espiritual narra acontecimentos ocorridos na Espanha e em Cuba, no século 18, quando teria vivido sua mais recente encarnação. (2)

            (2) Sabe o leitor desses Iívros perdidos de Rochester? Possui alguém exemplares de alguns deles, em francês, Inglês ou qualquer língua viva? Quem tiver alguma informação, queira, por favor, transmiti-la à Redação de "Reformador".

            Há mais, porém: Rochester teria prometido aos amigos encarnados que compunham o círculo onde se manifestava, escrever "As Memórias de um Espírito" que, no dizer do prefaciador de "A Vingança do Judeu", seria "o seu trabalho capital". Teria escrito essa obra? Se não o fez, sempre haverá tempo de fazê-lo, porque a vida se desdobra pelo infinito, as memórias permanecem indeléveis no substrato do Espírito, e o ser caminha para a realização do amor que marca o nosso retorno a Deus.