A lição
da água poluída
João Marcus (Hermínio Miranda) Reformador (FEB) Janeiro 1967
Antes de alcançar o
quilômetro zero da Rodovia Presidente Dutra, a Avenida Brasil atravessa na
altura de Manguinhos, um canal de águas poluídas que escorrem preguiçosamente
para o mar. Aquela água fétida me ensinou uma lição que talvez valha a pena transmitir
ao leitor.
Aquela água, pensava eu, não foi sempre suja. Estou certo
de que, se remontarmos às suas nascentes, a encontraremos pura e fresca como a
inocência. Foi no seu curso, rio abaixo, que a contaminaram com detritos, lixo
e podridão.
Também nós, espíritos, somos criados puros, como diz a
boa doutrina, e seguimos o nosso curso. Se não nos defendermos e não nos preservarmos,
vamo-nos contaminando com os detritos espirituais, colhidos ao longo do nosso caminho.
Insensivelmente, vamo-nos tornando imprestáveis para nós mesmos e para o nosso semelhante.
Passamos a ser meros veículos de poluição. Não fomos sempre assim: as fontes das
quais emanamos são puras e nobres, mas, se não escolhemos os caminhos por onde
andamos, a cristalina beleza, que nos foi dada, no início, se tolda na impureza
das nossas paixões, no ímpeto das nossas vaidades.
Isso, aliás, acontece também com quase todas as grandes
doutrinas que nos legaram eminentes espíritos. De tempos em tempos, vem das
alturas um grande vulto espiritual trazer-nos a sua contribuição para o
progresso da Humanidade. Aquilo que prega aos que têm a ventura de ouvi-lo, em
primeira mão, é belo e simples corno a verdade, mas o que se transmite depois,
por tradição oral ou escrita, começa logo a se mutilar e contaminar-se de
ideias impuras; o que era amor se transforma, pouco a pouco, em ódio; o que era
caridade turva-se pela intolerância; o que era fraternidade, mancha-se de
rivalidade. E enquanto o rio, como o tempo, segue o seu curso implacável, os sedentos
que buscam nas águas um refrigério encontram-na maculada, conspurcada, imprestável
para aplacar a sede da alma que sonha com a paz divina.
Tal como os rios, porém, as doutrinas poluídas podem ser
alcançadas, ainda puras e frescas, nas suas origens. A água pode estar suja
aqui, mas é límpida e cristalina, lá, onde nasceu e onde continua a jorrar
generosamente, incessantemente. A impureza não lhe é própria - é estranha,
espúria, provêm de detritos que lhe atiraram ao longo do curso. A água que
escorre pejas matas, onde ainda não chegou a “civilização”, chega pura ao seu
destino. Nela vivem multidões de peixes e de seres. Nela se dessedentam todos
os animais da criação, Nela se mira a face tranquila da Lua e nela acende o Sol
fulgores inesperados. Ela canta entre as pedras, aprofunda-se nas represas, espadana-se
nas cachoeiras irisadas, É difícil, porém, senão impossível ao mais modesto riacho,
atravessar uma cidade, ou mesmo um lugarejo, e continuar puro como entrou.
Impiedosamente, retiramos a sua água limpa e lha devolvemos maculada.
Nem por isso, no entanto, elas deixarão de seguir o seu
destino e prestar o seu serviço.
Há outras lições, porém, nas águas que escorrem inexoráveis.
É que elas também renascem. Uma boa parte se evapora, numa imitação de
espiritualização e sobe para o céu, de onde desaba transmutada em chuva
generosa sobre a terra. Vai impulsionar a germinação e o crescimento das
plantas, vai ajudar um novo ciclo de vida. Vai infiltrar-se pelo chão a dentro e
renascer alhures, purificada nos imensos filtros da Natureza.
Lição prodigiosa essa, que precisaria, para explaná-la, a
erudição e a oratória de um Vieira renascido. Diria ele, na riqueza das suas
imagens e na pureza do seu verbo, que a água renascida é água purificada; é
água que veio servir de novo, na humildade do seu mister; é água que se
recuperou às angústias da podridão e recomeçou a sua tarefa, incansável; é água
que não teme atravessar cidades e não teme receber detritos, porque a mão invisível
de Deus a conduz e a faz filtrar-se e renascer tão pura e fresca como dantes; é
água que mata a sede; é água que banha; é água que limpa; é água que recebe
fluidos espirituais e se transforma em veículo da recuperação; é água sobre a
qual flutuam embarcações, fatores de comunicação, entendimento e comércio entre
os homens; é água que serve sem queixas, sem mágoas, sem ressentimentos, sem
angústias, ao bom e ao que ainda não descobriu a bondade: é água que, à
semelhança do Sol, nasce para o justo e para o injusto, como diz o Livro.
Depois dessa inesperada meditação, não mais tive desgosto
ao contemplar as escuras águas do canal, em Manguinhos. Sei que, nas suas
origens, continua virginal; sei que, mesmo impura, contínua a servir, arrastando
para longe os detritos que atiraram à sua face, sei que o seu destino é
purificar-se novamente para novamente servir.
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