quarta-feira, 28 de outubro de 2020

A lição da água poluída

 

A lição da água poluída

João Marcus (Hermínio Miranda)     Reformador (FEB) Janeiro 1967

 

            Antes de alcançar o quilômetro zero da Rodovia Presidente Dutra, a Avenida Brasil atravessa na altura de Manguinhos, um canal de águas poluídas que escorrem preguiçosamente para o mar. Aquela água fétida me ensinou uma lição que talvez valha a pena transmitir ao leitor.

            Aquela água, pensava eu, não foi sempre suja. Estou certo de que, se remontarmos às suas nascentes, a encontraremos pura e fresca como a inocência. Foi no seu curso, rio abaixo, que a contaminaram com detritos, lixo e podridão.

            Também nós, espíritos, somos criados puros, como diz a boa doutrina, e seguimos o nosso curso. Se não nos defendermos e não nos preservarmos, vamo-nos contaminando com os detritos espirituais, colhidos ao longo do nosso caminho. Insensivelmente, vamo-nos tornando imprestáveis para nós mesmos e para o nosso semelhante. Passamos a ser meros veículos de poluição. Não fomos sempre assim: as fontes das quais emanamos são puras e nobres, mas, se não escolhemos os caminhos por onde andamos, a cristalina beleza, que nos foi dada, no início, se tolda na impureza das nossas paixões, no ímpeto das nossas vaidades.

            Isso, aliás, acontece também com quase todas as grandes doutrinas que nos legaram eminentes espíritos. De tempos em tempos, vem das alturas um grande vulto espiritual trazer-nos a sua contribuição para o progresso da Humanidade. Aquilo que prega aos que têm a ventura de ouvi-lo, em primeira mão, é belo e simples corno a verdade, mas o que se transmite depois, por tradição oral ou escrita, começa logo a se mutilar e contaminar-se de ideias impuras; o que era amor se transforma, pouco a pouco, em ódio; o que era caridade turva-se pela intolerância; o que era fraternidade, mancha-se de rivalidade. E enquanto o rio, como o tempo, segue o seu curso implacável, os sedentos que buscam nas águas um refrigério encontram-na maculada, conspurcada, imprestável para aplacar a sede da alma que sonha com a paz divina.

            Tal como os rios, porém, as doutrinas poluídas podem ser alcançadas, ainda puras e frescas, nas suas origens. A água pode estar suja aqui, mas é límpida e cristalina, lá, onde nasceu e onde continua a jorrar generosamente, incessantemente. A impureza não lhe é própria - é estranha, espúria, provêm de detritos que lhe atiraram ao longo do curso. A água que escorre pejas matas, onde ainda não chegou a “civilização”, chega pura ao seu destino. Nela vivem multidões de peixes e de seres. Nela se dessedentam todos os animais da criação, Nela se mira a face tranquila da Lua e nela acende o Sol fulgores inesperados. Ela canta entre as pedras, aprofunda-se nas represas, espadana-se nas cachoeiras irisadas, É difícil, porém, senão impossível ao mais modesto riacho, atravessar uma cidade, ou mesmo um lugarejo, e continuar puro como entrou. Impiedosamente, retiramos a sua água limpa e lha devolvemos maculada.

            Nem por isso, no entanto, elas deixarão de seguir o seu destino e prestar o seu serviço.

            Há outras lições, porém, nas águas que escorrem inexoráveis. É que elas também renascem. Uma boa parte se evapora, numa imitação de espiritualização e sobe para o céu, de onde desaba transmutada em chuva generosa sobre a terra. Vai impulsionar a germinação e o crescimento das plantas, vai ajudar um novo ciclo de vida. Vai infiltrar-se pelo chão a dentro e renascer alhures, purificada nos imensos filtros da Natureza.

            Lição prodigiosa essa, que precisaria, para explaná-la, a erudição e a oratória de um Vieira renascido. Diria ele, na riqueza das suas imagens e na pureza do seu verbo, que a água renascida é água purificada; é água que veio servir de novo, na humildade do seu mister; é água que se recuperou às angústias da podridão e recomeçou a sua tarefa, incansável; é água que não teme atravessar cidades e não teme receber detritos, porque a mão invisível de Deus a conduz e a faz filtrar-se e renascer tão pura e fresca como dantes; é água que mata a sede; é água que banha; é água que limpa; é água que recebe fluidos espirituais e se transforma em veículo da recuperação; é água sobre a qual flutuam embarcações, fatores de comunicação, entendimento e comércio entre os homens; é água que serve sem queixas, sem mágoas, sem ressentimentos, sem angústias, ao bom e ao que ainda não descobriu a bondade: é água que, à semelhança do Sol, nasce para o justo e para o injusto, como diz o Livro.

            Depois dessa inesperada meditação, não mais tive desgosto ao contemplar as escuras águas do canal, em Manguinhos. Sei que, nas suas origens, continua virginal; sei que, mesmo impura, contínua a servir, arrastando para longe os detritos que atiraram à sua face, sei que o seu destino é purificar-se novamente para novamente servir.


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