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quinta-feira, 12 de novembro de 2015

Assinou... João.



  Ditado em março de 1874

            "Elevei-me para além do presente, meus irmãos, e meu espírito descortinou...
            Que descortinou meu espírito?
            Descortinou o passado e algo do futuro.
            Viu primeiro a confusão, o estado caótico primitivo do planeta em que habitais, e minha alma admirou o poder de Deus na esfera da Humanidade.
            O caos terrestre estava imerso na luz, na harmonia universal, no fecundo seio do Criador.
            Que viu mais?
            Viu a nuvem condensar-se, e o caos obedecendo ao impulso da única lei que governa o Universo. A Terra ia surgindo da confusão e rolava e rolava pelo infinito, banhada nos raios do Sol e envolta na luz de miríades de formosíssimas estrelas - e minha alma admirou o poder de Deus em sua sabedoria incriada.
            Que mais viu?
            Viu levantarem-se da Terra os vapores e a chuva cair torrencialmente, resfriando-a, fecundando-a e preparando-a para os seus grandes destinos. E seu seio virginal, obediente à suprema lei das harmonias, recebia os primeiros germens, a semente da vida, destinada a fecundar os organismos - e minha alma admirou o poder de Deus, em sua inefável providência.
            Que mais viu?
            Viu a Terra soerguer-se do fundo das águas e separarem-se os mares dos continentes, e o fluido vivificante elaborar, no segredo da Natureza e no mistério das forças emanadas da suprema lei, os organismos primitivos. Um princípio sem princípio, anterior e superior a toda a força, uma lei anterior e superior a toda a lei, uma causa anterior e superior a toda a inteligência, uma vontade anterior e superior a toda a vontade, penetravam e ligavam tudo - e minha alma admirou o poder de Deus e sua incomparável imensidade.  
            Que mais viu?
            Viu os raios do Sol banhando as primeiras colinas da criação e produzindo um oceano de pontos luminosos na superfície agitada das águas. Que bela e majestosa solidão! E as colinas da Terra, e o fundo dos mares se cobriam e se matizavam com as encantadoras primícias da vegetação, - e minha alma admirou o poder de Deus e a formosura de suas obras. 
            Que mais viu?
            Viu grandes abalos e espantosos cataclismos; a Terra agitar-se e arrojar de suas entranhas nuvens candentes e turbilhões de fumo e fogo, como, montanhas, e as águas romperem os diques naturais, inundando a Terra, como se corressem a apagar aquele incêndio universal, por meio de um dilúvio universal. E, nem por isso, deixava o globo de seguir seu curso, porque os cataclismos entravam nos efeitos da primeira e única lei imposta à substância material - e minha alma admirou o poder de Deus e sua admirável previsão.
            Que mais viu?
            Viu surgir de novo a ordem e a harmonia do seio da confusão, desenhar-se no firmamento o arco-íris, renascerem as plantas e transformarem-se, mais ricas de frescura e louçania; embelezando mais e mais a superfície terrestre. A nuvem, que circundava e prendia a Terra, ia se purificando e adelgaçando, tornando-se mais sutil e transparente. O planeta tinha soterrado os enormes boqueirões que deram passagem ao fogo de suas entranhas - e minha alma admirou o poder de Deus, e sua esmagadora grandeza.
            Que mais viu?
            Viu, com surpresa, e percorreu toda a escala ascendente da vegetação, em seus inumeráveis tipos, desde os mais simples e imperfeitos até os mais perfeitos e complexos. No cimo da montanha, no ápice da pirâmide, no mais elevado dos tipos, pareceu adivinhar que o desenvolvimento das plantas não era só devido ao fluido, ao princípio vivificante, mas que também intervinha um fluido, um princípio, porventura mais etéreo e celestial. E fixando, confusa e impotente, os olhos na soberba vegetação que cobria as terras primitivas - minha alma admirou o poder de Deus e seus insondáveis mistérios.
            Que mais viu?
            Minha alma ficou deslumbrada e cega, porque quis desafiar a luz do Sol. Deixai que minha alma recobre a vista que perdeu, tentando surpreender um dos segredos de Deus.”

II

            “Ao restabelecer-se a visão, já não eram só os vegetais os seres viventes que povoavam a superfície da Terra e os abismos do oceano. As aves se aninhavam agitadas por
suaves brisas e cantavam nas ramagens; os animais corriam, cada um segundo seus instintos e necessidades, pelos montes e vales, por desertos e selvas, pelos bosques e margens dos rios; os peixes desfilavam pelo seio das águas, e, sobre todos esses seres, dotados de vida e de movimento, destacava-se outro mais nobre e privilegiado, o rei de todos - o homem.
            Tinha mediado um parêntesis, talvez de muitos milhares de séculos. Este parêntesis não pertence à criatura; é do domínio da Sabedoria Infinita.
            Donde saíram os peixes, as aves e os animais terrestres? Qual foi o princípio de sua formação e desenvolvimento? Vieram do Alto ou surgiram do pó?
            Meu espírito não o tinha visto, porém minha alma parecia ter algo adivinhado, mais puro que o impulso vivificante, nos primeiros e mais elevados elos da cadeia vegetal.
            Livrai-vos de firmar juízos sobre minhas palavras, quanto ao misterioso nascimento dos animais. Meu espírito estava cego; e que confiança merece a vista de um pobre cego? Ascendendo, pelo estudo, à escala ascendente do reino animal, em seus inumeráveis tipos, vi com surpresa, nos mais perfeitos, algo que não podia explicar, algo que parecia escapar e parecia estranho à natureza animal.
            Meu Deus! quão pequenos somos a teus pés!
            Donde havia saído o homem? Qual tinha sido o princípio de sua formação e de seu desenvolvimento? Veio diretamente do pensamento de Deus ou levantou-se do pó por uma série de transformações sucessivas?
            Meu espírito não o tinha visto, porém minha alma não podia esquecer aquele algo indefinível, que tinha como que adivinhado nos animais superiores.
            Luz - luz - muita luz -. muitíssima luz! porém a luz reside em Deus.
            Eu tinha visto, e via vegetais como minerais e minerais como vegetais, animais como vegetais e vegetais como animais, homens que participavam muito do animal e animais que participavam alguma coisa do homem.
            Livrai-vos de assentar juízos sobre minhas palavras quanto ao misterioso nascimento do homem. Meu espírito estava cego; e que confiança merece a vista de um pobre cego?
            Eu via o homem, e via nele o sentimento, a vontade e a luz; via o animal, e via nele a sensação, o impulso e o instinto; via o vegetal, e via nele a tendência para a conservação. E perguntava a mim mesmo: o sentimento, a vontade e a luz são criações independentes e primitivas ou são uma criação única, já modificada ou transformada?
            E, ao pensar que os três caracteres distintivos da natureza humana poderiam confundir-se em sua raiz, acudiu fugitivamente à minha alma a ideia de que podia ser a unidade, a identidade, o limite de sua depuração.
            E perguntava a mim mesmo:
            São, porventura, o sentimento, a sensação depurada e transformada - a vontade, o impulso depurado e transformado? Serão, porventura, o sentimento e a sensação, a vontade e o impulso, a luz e o instinto - depurações e transformações daquela tendência para a conservação iniciada no organismo vegetal?
            Ignoro; não sei; não quero; não posso; não me atrevo a sabê-lo; porque Deus pôs um véu entre o seu segredo e os olhos de meu espírito. Minha alma nada sabe acerca do princípio e do nascimento do homem!"

III

            "Adão, Adão, onde estás?
            Meus olhos procuravam-no e não o viam; eu o chaMava e ele não me respondia.
            Adão ainda não tinha vindo.
            Onde estava Adão?
            Não me aparecia; Moisés tampouco vinha, para dizer-me onde se achava escondido o primeiro homem do Gênesis.
            Porque eu via um homem, dois homens, muitos homens e, no meio deles, não via Adão, e nenhum deles conhecia Adão.
            Eram os homens primitivos, esses que meu espírito, Absorto, contemplava.
            Era o primeiro dia da Humanidade; porém, que humanidade, meu Deus!..
            Era também o primeiro dia do sentimento da vontade e da luz; mas de um sentimento que apenas se diferençava da sensação, de uma vontade que apenas alcançava desvanecer algumas das sombras do instinto.
            Primeiro que tudo, o homem procurou que comer, e comeu; após, procurou uma companheira - juntou-se com ela, e tiveram filhos, parecidos com o pai e com a mãe; finalmente, ele ergueu os olhos na direção do céu, e, tombando pesadamente sobre a terra, dormiu.
            Quão nebuloso e triste é o primeiro dia da Humanidade comparado ao tempo de hoje!..
            Meu espírito procurava o homem, e, descobrindo-o, retrocedia. Volvia a observá-la, e de novo retrocedia. Porque meu espírito não via o homem do Paraíso; via muito menos que o homem, coisa pouco mais que um animal superior.
            Seus olhos não refletiam a luz da inteligência; sua fronte desaparecia sob o cabelo áspero e hirsuto da cabeça; sua boca, desmesuradamente aberta, prolongava-se para diante; suas mãos pareciam-se com os pés, e frequentemente tinham o emprego destes. Uma pele pilosa e rígida cobria as suas carnes duras e secas, que não dissimulavam a fealdade do esqueleto.
            Oh! se tivéssemos visto, conto eu, o homem do primeiro dia, com seus braços compridos e esquálidos caídos ao longo do corpo, e com suas grandes mãos pendidas até aos joelhos, vosso espírito teria fechado os olhos para não ver, e procuraria o sono para esquecer.
            Não obstante, não deixeis de glorificar a Deus; porque Ele é a sabedoria infinita, e o homem primitivo é uma manifestação - um raio da luz eterna da sabedoria infinita.
            Deixai seguir a obra de Deus. Seu termo, como o de todas as obras do Senhor, é a pureza e a perfeição.
            O homem primitivo, visto de hoje, é um espetáculo que fere de horror e desolação; visto dos primeiros séculos do nascimento dos animais, é uma esperança luminosa, uma nuvem rasgada no horizonte da eternidade.
            Amemos e adoremos a Deus.
            O homem dos primeiros dias da Humanidade comia e bebia, porém não comia nem bebia como homem; andava, porém não andava como homem; via, porém não via como homem; amava e odiava, porém não amava nem odiava como homem.
            Seu comer era como o devorar; bebia abaixando a cabeça e submergindo seus grossos lábios nas águas; seu andar era pesado e trôpego, como se a vontade não interviesse; seus olhos vagavam, sem expressão, pelos objetos, como se a visão não se refletisse em sua alma; e seu amor e seu ódio, que nasciam de suas necessidades satisfeitas ou contrariadas, eram passageiros como as impressões que se estampavam em seu espírito, e grosseiros como as necessidades em que tinham sua origem.
            O homem primitivo falava, porém não como homem.
            Alguns sons guturais, acompanhados de gestos, os precisos para responder às suas necessidades mais urgentes, eram a linguagem do homem do primitivo dia.
            Fugia da sociedade e buscava a solidão. Ocultava-se da luz e procurava indolentemente, nas trevas, a satisfação de suas exigências naturais.
            Era escravo do mais grosseiro egoísmo. Não procurava alimento senão para si.    Chamava a companheira em épocas determinadas, quando eram mais imperiosos os desejos da carne; e, satisfeito o apetite, retraía-se de novo à solidão, sem mais cuidar da companheira e dos filhos.
            Era extremamente preguiçoso. Estendido na terra, alimentava-se do que estava ao alcance de sua mão; e, sempre que se punha em movimento, seus gestos revelavam repugnância e desgosto.      
            Passava pelo cadáver de outro homem, fixava nele Um olhar estúpido, e ia além.
            Nunca ria; nunca os seus olhos derramavam lágrimas.
            O seu prazer era um grito, a sua dor era um gemido.
            O seu pensamento era superficial, incerto e fugitivo; as suas ideias eram elementares e confusas; não deixavam em sua alma outro vestígio mais que aquele que em vós deixa um sonho incoerente e fugaz.
             O pensar fatigava-o; ele fugia do pensamento como da luz.
            Considerava os animais terrestres como iguais, em natureza, a si mesmo, e considerava as aves como superiores ao homem.
            O céu girava e as estrelas luziam por cima de sua cabeça, mas ele não percebia o movimento do céu, nem o brilho das estrelas.
            Para ele não havia terra além do que divisavam seus olhos, nem outros seres além dos que descobriam os seus toscos sentidos.
            Vivia sem conhecer o motivo da sua vida; morria sem ter jamais pensado em morrer.
            Oh! se houvésseis visto, como eu, o homem do primeiro dia, com os seus longos e esquálidos braços caídos, e com as suas grandes mãos que chegavam aos joelhos, o vosso espírito teria fechado os olhos para não ver, e buscaria o sono para esquecer.
            Não obstante, não deixeis de glorificar a Deus, porque Ele é a sabedoria infinita, e o homem primitivo é uma manifestação, um raio da luz incriada, da sabedoria infinita."

IV

            "Tinha findado o primeiro dia do homem; dia de séculos, porque no relógio da Humanidade os dias são segundos de segundos, e os séculos de séculos são dias.
            Amemos e glorifiquemos a Deus e elevemos-lhe cânticos. A Humanidade deu um passo nas vias do progresso.
            Como penetra no coração o rocio da consolação! Como brilham para o espírito os primeiros albores da luz!
            Como desperta a alma, trêmula de emoções, ao doce pressentimento de uma felicidade a conquistar nos séculos!..
            O homem primitivo não é o homem; a humanidade do primeiro dia não é a humanidade.
            O primeiro homem é o primeiro degrau da escada de Jacob: mal se destaca do pó.
            O homem é a lei, é o progresso, é o aperfeiçoamento, é a elevação pela matéria, é a purificação pela luz, é o melhoramento pelo mérito, é a felicidade pelo dever, é a palavra de Deus que subsistirá pela eternidade.
            Se o homem do primeiro dia fosse o homem, não teria ele saído do primeiro dia. E o homem saiu do primeiro dia.
            Meu espírito vê o corpo do homem, e não cerra os olhos para não vê-la; contempla sua alma, e não repele a imagem de sua alma.
            Começou a luta do espírito com a matéria, e o princípio espiritual avança, ainda que pouco, porém avança.
            A primeira jornada augura a vitória do espírito sobre a carne; é o ponto de partida - o princípio do fim do reinado da matéria - é o primeiro anúncio do reinado do pensamento de Deus.
            Nessa luta, eternamente secular, o corpo é o crisol do espírito, e o espírito é o modelador, o artífice do corpo.
            Depois do primeiro dia da Humanidade, o corpo do homem aparece menos feio, menos repugnante à contemplação de minha alma.
            Sua fronte começa a debuxar-se na parte superior do rosto, quando o vento açoita e levanta as ásperas melenas que a cobrem.
            Os seus olhos são mais vivos e transparentes, o seu nariz é mais afilado e levantado e a sua boca é menos proeminente. Um princípio de expressão se manifesta no conjunto.
            Os seus braços são menos longos e esquálidos, suas carnes são menos secas, suas mãos menos volumosas e, com dedos mais prolongados, os ossos do esqueleto são mais arredondados, mais bem dispostos ao movimento das articulações; maior elasticidade existe nos músculos e mais transparência existe na pele que cobre todo o corpo.
            No seu olhar, ele reflete o primeiro raio de luz intelectual; é o olhar da criancinha, ao despertar a sua alma, ao primeiro despertar da sensação em seu espírito adormecido.
            No seu caminhar, já menos lerdo e vacilante, adivinha-se facilmente a ação inicial da vontade, o princípio das manifestações espontâneas.
            Procura a mulher, e não mais a abandona, como no primeiro dia do homem. Assiste-a no nascimento de seus filhos, com quem reparte o calor e o alimento. O sentimento começa a despontar.
            Move a língua, entorpecida e balbuciante, como a do pequeno párvulo. Sente novas necessidades - e ensaia os meios de exprimi-las, para satisfazê-las. Eis o princípio da linguagem: a necessidade.
            Julga inferiores os demais animais e aproveita-se deles para saciar a fome, conforme o seu apetite.
            Suspeita que nem tudo acaba onde termina o alcance da sua vista; que, por detrás da sua montanha, levanta-se outra, em uma extensão relativamente dilatada.
            No seu olhar divisa-se mais surpresa e curiosidade do que estupidez. Foge dos objetos que encontra pela primeira vez; pouco a pouco perde o temor que lhe causa a novidade; evita, aceita e, por fim, compraz-se em tomar nas mãos o que lhe causou receios. Já o seu rosto, os seus ademanes e as suas exclamações revelam a pueril alegria de que está cheio o seu coração.
            É o soldado que acaba de alcançar grande triunfo sobre um invencível inimigo.            O medo é mais poderoso nele que todos os seus cálculos e sentimentos.
           O rugido das feras, o estampido do trovão, o fulgor do relâmpago, o sinistro rumor que precede a tempestade, os frequentes tremores de terra, pelas expansões interiores, a erupção dos vulcões, e não só isto, tudo o que é novo, tudo o que é desconhecido, gela-o de espanto, transtorna-o e aniquila-o.
            Esquece a companheira, esquece os filhos, e crê que vai morrer.
            Porque ele sabe que tem de morrer e o temor da morte sobreleva todos os seus temores. Ele viu, com medo, cadáveres de outros homens e julga inevitável a morte.
            Já não procura a sombra e a solidão, como no primeiro dia; foge das trevas, porque tem medo; e foge da solidão, porque se reconhece débil e impotente. A mulher e os filhos são a sua companhia habitual.
            Admira, com infantil entusiasmo, a saída do príncipe dos astros e renascem as suas recordações e as suas esperanças, pintando-se, no seu rosto, o desânimo e a angústia
quando vê o Sol perder-se no horizonte. Volverás? pergunta-lhe entristecido.
            E o Sol reaparece, porque a satisfação de todos os desejos legítimos de felicidade está prevista na eterna lei que imprime seu movimento aos mundos e dirige a evolução dos seres.
            E o homem cai agradecido, de joelhos, ao contemplar o renascimento do Sol e, na sua grosseira e incipiente linguagem, exclama: Graças, meu amigo protetor - meu Deus! Tu vens consolar-me. A ti devo a minha felicidade e a minha alegria. Eu te adoro! ...
            O benefício foi o primeiro deus da Humanidade, personificado no Sol, porque o Sol era o maior dos benefícios que a materializada inteligência do homem podia conceber.
            Não tomeis por vitupério essa adoração primitiva; ela é o ponto de partida da religião natural; completada pelo Evangelho de Jesus e pelas sucessivas instruções sobre os pontos obscuros do Evangelho.
            Ela é, ainda, a raiz da moralidade das ações humanas - a primeira manifestação de agradecimento da criatura ao poder superior desconhecido.”

V

            "Adiante! adiante! ...
            O homem emergiu de sua inofensiva infância. Os seus apetites, os seus instintos e as suas paixões dominam a vontade, que precisa de leme. O homem é uma barquinha agitada pelo vendaval.
            Vê a mulher, sente de chofre o fogo da luxúria. Ai da mulher, se se atreve a opor-se, a resistir aos seus carnais desejos!
            Quebra-la a entre as mãos, com a facilidade com que quebra um frágil caniço a mão contraída do adolescente contrariado.
            Os apetites da carne preponderam e exercem no homem violenta influência.
            Estamos no reinado da carne.
            O corpo humano adquiriu toda a sua força e robustez. Não vos falo de sua beleza.
            Conheço eu, porventura, o limite da beleza dos organismos humanos? Sei, mesmo, se existe ou não esse limite?
            A carne impera; os seus estímulos são tão poderosos no homem, que obscureceram completamente a sua razão, torcem o seu juízo e pervertem-lhe a consciência.
            Não importa: adiante! adiante!..
            O homem julga lícito tudo servir à sua concupiscência.
            Ainda não pensou em classificar os seus atos, como lícitos ou ilícitos, senão como agradáveis ou desagradáveis.
            Sente a força, que em si brota, e corre a satisfazê-la, sem cuidar de meios brandos ou violentos. Se outros homens têm em seu poder o manjar que ao seu estômago apetece, corre a arrebatá-lo; se para arrebatá-lo é mister matar, mata. Fustigado pela fome, mata do mesmo modo um seu semelhante e devora-o, mesmo que este seja um filho ou a sua própria companheira.              
            Horrorizai-vos mas não condeneis. Só compaixão devem inspirar-vos os primeiros extravios da nascente humanidade. Ai! vós não sabeis sobre quem cairia a vossa condenação.
            Sente o aguilhão da luxúria, e tudo o impele a satisfazer o seu insaciável e vulcânico apetite.
            As contrariedades excitam a sua ira e movem-no à vingança. Irado, perde os traços humanos do seu semblante e não compreende outra vingança que não seja a morte.
            Os seus deuses são o raio e o furacão, símbolos, para ele, os mais expressivos da força e do poder.
             O gérmen de todos os maus instintos que têm nascimento da carne, a semente de todos os impulsos malévolos que têm a sua raiz na consciência, desenvolvem-se aceleradamente e dominam no coração do homem.
            O bem moral é desconhecido, o mal é o soberano da Terra, e tem sujeitas ao seu domínio as manifestações da vontade humana.
            Não digo da liberdade humana, porque, nessa fase da humanidade, a vontade não é a liberdade; é pouco mais que um impulso mecânico e inconsciente; é uma pequena fagulha luminosa, amortecida pelo frio da insensibilidade afetiva e pelo impulso destruidor das exigências da carne.
            Os diabos espalham-se e pululam por toda a extensão da Terra - e insinuam-se enganosamente nas inexperientes criaturas. Incitam, com sedutores afagos, à volúpia - à intemperança - ao egoísmo - ao ódio - à violência - ao homicídio; triunfam sem resistência.
            Isto devia ser, e foi, o reinado da carne; - devia preceder, em virtude da eterna lei, ao reinado do Espírito - assim como o reinado do diabo ao de Deus, sobre a Terra.
            Não vos escandalizem estas palavras. O mal absoluto não existe. Tudo o que está no tempo é relativo. O mal de hoje é o bem de ontem - e o bem presente será o mal de amanhã.
            Nada há absolutamente perfeito senão o absoluto e nada há absoluto, senão Deus.
            Tudo o que existe fora de Deus, vem de Deus, porém não é Deus - existe de toda a eternidade, sem ser Deus, porque Deus é o princípio de todas as coisas, e existe desde toda a eternidade.
            No princípio era Deus e era o Verbo - e o Verbo em Deus era Deus, porque era o próprio Deus - e o Verbo como emanação de Deus - e não era Deus fora de Deus.
            Porque todas as coisas do céu e da Terra são efeitos da palavra de Deus.
            Nada há absolutamente perfeito senão Deus e o Verbo em Deus, que é a lei em Deus.
            O perfeito não pode ser jamais princípio do imperfeito; e eis porque a imperfeição absoluta, o mal absoluto, não é uma realidade.
            A lei é perfeita, porque é o Verbo em Deus - as criaturas não são perfeitas, porque são o Verbo fora de Deus.
            Porém, o Verbo fora de Deus, como o que vem de Deus, caminha para a perfeição, que é o seu princípio e o seu fim.
            A imperfeição das criaturas, as suas misérias, as suas fraquezas, os seus extravios, os seus erros, não são mais que transições ou fases progressivas de sua perfectibilidade infinita - eis por que eu dizia e repetia: Adiante! adiante!.."

VI

            "Somos chegados ao nascimento das sociedades.
            Donde veio a sociedade?
            Não o adivinhais?
            Meu espírito contempla, absorto, o encadeamento e sucessão das maravilhosas fases da geração e do movimento do Verbo.
            No princípio era Deus, e em Deus o Verbo, e Pensamento de Deus.
            E o Verbo em Deus gerou hoje, no princípio, a Palavra, que é Verbo fora de Deus.
            E o Verbo, a palavra, gerou no princípio a matéria cósmica e o movimento; e o Verbo em Deus gerou hoje, no princípio, a lei fora de Deus.
            E a lei, atuando desde o princípio sobre a matéria cósmica e o movimento, gerou a sucessão eterna das coisas e dos tempos.
            E a lei gerou a condensação e a separação da matéria cósmica.
            E a condensação gerou o movimento circular e a separação gerou a translação.
            E a rotação e a translação geraram o resfriamento e as formas das massas condensadas e separadas da matéria cósmica.
            E a lei gerou, pelo resfriamento das grandes massas de matéria cósmica condensada, os globos vaporosos e os vapores geraram os líquidos, e os líquidos se transformaram em sólidos.
            E a lei, atuando sobre os sólidos e os líquidos, gerou os primeiros organismos.
            E vieram os vegetais.
            Eu não sei qual a geração dos animais aquáticos, que certamente vieram após a vegetação aquática.
            Eu não sei qual a geração dos animais terrestres e das aves; sei, porém, que vieram depois da vegetação terrestre.
            Eu não sei qual o princípio da geração do homem; porém, sei que ele veio depois da sucessão dos animais terrestres.
            Meu espírito estava deslumbrado e cego.
            E a lei, na sua atividade eterna, gerou hoje, no princípio, o ser da matéria cósmica, e gerou, no seio da substância, o princípio vivificante.
            E o princípio vivificante gerou o desenvolvimento expansivo e a transformação progressiva de todas as substâncias, procedentes da substância única.
            E a lei, agindo sobre o princípio vivificante, gerou, para o vegetal, a tendência - para o animal, a sensação, o impulso e o instinto - para o homem, o sentimento, a vontade e a luz.
            Já conheceis o mistério; hoje não podeis penetrá-lo nem eu tampouco.        
            Estudemos em Deus, neste e no outro século, ativemos o estudo e oremos pelo estudo e em verdade; porque Deus vê o nosso estudo, e os seus ouvidos ouvem, e os seus olhos estão postos nos nossos bons desejos.
            Porque está escrito: que nada permanecerá eternamente oculto.
            E o princípio vital, predominante, gerou nos vegetais, nos animais e no homem o desenvolvimento e o predomínio dos órgãos.
            E o predomínio dos órgãos, no homem, gerou primeiro a estupidez, que é o sonho da luz - e a inércia, que é o sonho da vontade e do sentimento.
            E a primeira chispa luminosa gerou o primeiro movimento da vontade incipiente.
            E o predomínio orgânico, no homem, gerou a força muscular.
            E a vontade, subjugada pela carne, gerou o abuso da força.
            Dos estímulos da carne nasceu o amor.
            Do abuso da força nasceu o ódio.
            E a luz, agindo com maior intensidade sobre o amor e sobre o dia, gerou as sociedades primitivas."

VII

            "O homem mora em companhia das suas mulheres e dos seus filhos, e a volúpia no meio deles.
            E a volúpia é a fogueira que dá o sinal e atrai os ladrões.
            E os filhos do fogo se ajustam aos filhos do fogo  e a volúpia os faz fortes, pela união contra os fortes.
            No meio de todos existe a força e a iniquidade, porque a força está com o poder, e a luz, no homem, já lhe ensinou o poder da força.
            Um homem, dois homens, dez homens; uma mulher, duas mulheres, dez mulheres, uma família. Uma família, duas famílias, dez famílias, uma sociedade. Primeiro é o homem.
            A família existe pela carne; a sociedade existe pela força.
            Moram as famílias à vista de todos, protegem-se, criam rebanhos nos pastos próximos, levantam tendas sobre troncos, e depois caminham pela terra; primeiro é o homem.
            Entre as tribos vê-se a guerra.
            A guerra pela volúpia, pela violência, por causa dos rebanhos, dos pastos, das peles, por causa da sombra das tendas.
            O primeiro direito é a força, porque o primeiro rei é a carne.
            O homem mais forte é o senhor da tribo, a tribo mais poderosa é o lobo das outras.
            Porém, duas tribos, três tribos, se concertam e se opõem à vontade do lobo; e, o que devorava, é devorado.
            Que vale a vida de um homem? Que vale a de cem homens?
            Morre um filho? Um movimento da carne é um choro e uma lágrima. Morre um homem? É um grão de areia nas entranhas do mar.
            Todos os gozos são a gula, a volúpia e a vingança; todas as dores são a fome, os males do corpo, os sofrimentos e as violências do ódio.
            As tribos errantes, como o furacão, marcham para diante, e, como o gafanhoto, assolam a terra onde pousam seus enxames.
            As pedras e os ramos despencados das árvores são os seus instrumentos de destruição e de morte; o seu grito de guerra é um alarido feroz.
            Mas, o abuso da força e da volúpia era necessário: estava na lei da depuração e da perfectibilidade.
            Em virtude dessa lei se purificam o ouro e o cristal, o espírito e o corpo; porque ambos vêm de um mesmo princípio, e marcham para o mesmo fim: para Deus, que é o princípio e o fim dos seres.
            A preponderância, porém, do corpo, devia preceder; pois que, da vitória do Espírito sobre a carne, depende a depuração e desenvolvimento indefinidamente sucessivo da criatura racional.
            Se o desenvolvimento espiritual preceder ao predomínio da carne, vereis desaparecer o mérito das ações humanas; porque não há mérito sem luta - e a razão,
 sem os estímulos e os apetites do organismo, é o triunfo sem combate.
            Não acrediteis, entretanto, que a desesperação e a elevação do corpo sejam o predomínio da carne; precisamente, o que este predomínio revela é a inferioridade do corpo.
            O aperfeiçoamento do corpo segue paralelo ao do Espírito; porque ambos obedecem à mesma lei - e o Espírito edifica o seu teto conforme as suas necessidades e na altura das suas aspirações.
            A medida que o Espírito se emancipa das suas impurezas, o corpo se desprende também das suas, pela comunicação que existe entre o Espírito e o corpo, e em virtude da influência que o primeiro exerce sobre o segundo.
            O homem tem dois corpos. Pelo primeiro, que o toma da substância etérea fluídica, comunica o Espírito sua atividade e perfeição ao segundo.
            O primeiro é tanto mais etéreo e celestial, quanto maior é a elevação do espírito do segundo, e menos carnal, conforme a purificação do primeiro.
            O limite superior do corpo carnal é o corpo espiritual; o limite do corpo espiritual é o Espírito - e o limite do Espírito é Deus.
            Não o duvideis, embora não o compreendais. O corpo terreno se purifica gradualmente e se eleva até ao corpo espiritual - o corpo espiritual até ao Espírito - e o Espírito até a Deus.
            Esta é a lei. Não a conheceis hoje; esperai, que a conhecereis amanhã."

VIII

            Donde vieram esses homens, novos no meio dos homens? A Terra não lhes deu nascimento, porque eles nasceram antes de ela ser fecunda.
            A Humanidade não se transforma num dia, mas no decurso de séculos e séculos.
            No meio dos homens antigos da Terra descubro homens novos, meninos, mulheres e varões robustos; donde vieram esses homens que nasceram antes da fecundidade da Terra?
            Em cima e ao redor da Terra, rodopiam os céus e os infernos com sementes de gerações e de luz.
            O vento sopra para onde o impulsa a mão que criou a sua força, e o Espírito vai para onde o chama o cumprimento da lei.
            Os homens novos que descubro entre os homens antigos da Terra, e que nasceram antes de esta ser fecundada, vêm a ela em cumprimento de uma lei e de uma sentença.
            Eles vêm de cima, pois vêm envoltos em luz, e a sua luz é um farol para os que moravam nas trevas da Terra.
            Se, porém, seus olhos e suas frontes desprendem luz, nos semblantes eles trazem o estigma da maldição. É a reprovação das suas consciências.
            São árvores de pomposa folhagem, mas privadas de frutos, arrancadas e lançadas fora do paraíso, onde a misericórdia as havia colocado, e donde as desterrou por algum tempo.
            A sua cabeça é de ouro, as suas mãos de ferro e os seus pés de barro. Conheceram o bem, praticaram a violência e viveram para a carne.
            Os que, entre eles, se aproveitaram da luz e praticaram a justiça, viram o ferro das suas mãos e o barro dos seus pés transformar-se em ouro, como o de suas cabeças, e ficaram residindo no paraíso até à sua elevação. Para os outros, a misericórdia foi justiça, e seu pecado acompanhou-os em maldição perpétua, até ao renascimento.
            Eles tinham a luz, e desprezaram-na - e, em vez dela, surgiram o orgulho e o desejo de oprimir os bons.
            Moisés viu a sua luz e disse: São anjos decaídos; viu-os feitos de barro e disse: São homens - Adão e Eva; sem os estímulos e os apetites do organismo, e fê-los ser expulsos do paraíso pela tentação dos anjos decaídos.
            Vós perguntais: Como se pode retrogradar no caminho da felicidade e da perfeição. Poderemos deste modo ir viver um dia na morada da ventura? Somos fracos, e o temor e o desânimo se apossam de nós.
            Recuperai a paz; eu, João, vê-lo digo: descansai no seio da sabedoria e da misericórdia do Pai, como descansei a minha cabeça no regaço e no amor do Filho, Jesus-Cristo. (38)

                (38) No começo desta comunicação, sabíamos que era Lamennais quem nos falava: mas a diferença do estilo e dos conceitos em alguns pontos nos fez suspeitar que não era ele só quem a Inspirava. Com efeito, ao chegarmos a este ponto, tivemos a inefável satisfação de ver que o pensamento do evangelista João também nos vinha fortalecer e iluminar.

            Na perfeição nunca se retrocede; o Espírito é sempre atraído para o centro da perfeição, que é Deus. Os homens de Adão, ao virem para a Terra, não perderam um só átomo do aperfeiçoamento adquirido.

            Eles tinham sido elevados ao paraíso pela misericórdia divina e não pelos seus merecimentos, porque as felicidades são também provas, assim como os sofrimentos
e as misérias.
            Muitos saíram bem na prova e mostraram que era justiça o que tinha sido misericórdia; estes herdaram o paraíso até que aí fossem elevados, porque a felicidade da justiça se perpetua de tempos a tempos e de geração a geração.  
            Outros abusaram dos dons da misericórdia, e as suas obras clamaram justiça; e o peso dessas obras na balança da justiça fê-los descer à Terra, até ao renascimento.
            Mas a misericórdia de Deus os segue sempre de século em século, de geração em geração.
            A geração proscrita traz na fronte o selo da sentença, mas também tem o da promessa no coração.
            Tinham pecado por sabedoria e orgulho, e o seu entendimento obscureceu-se.
            Passarão os anos e os séculos, e o entendimento estará nas trevas e as trevas no entendimento.
            Foi o entendimento quem pecou; as trevas são o seu castigo; não há outro.
            A obscuridade foi a sentença do entendimento ensoberbado - a luz, a promessa da misericórdia que subsiste e subsistirá.
            E essa luz deve iluminar a todos os homens que vêm ao mundo para cumprir uma sentença.
            A uns com o sol nascente, a outros o sol meridional, a outros, com o sol poente, prestando-lhes o seu calor até a manhã em que ele despontará mais luminoso.
            É lá no Oriente que irrompeu os primeiros albores do sol dos Espíritos, os crepúsculos do novo dia, a aurora da redenção. Bem-aventurados os que não dormem e têm os olhos voltados para o nascente do Sol: porque serão os primeiros a ver a luz e se regozijarão antes do dia, e o dia não os cegará.
            Bem-aventurados os que choram por causa das trevas e da condenação, e cujos corações não edificam moradas nem levantam tendas.
            Porque serão peregrinos no cárcere, e renascerão para morar perpetuamente, de geração em geração, nos cimos onde não há trevas; porque recuperarão os dons da misericórdia na consumação.
            Ai dos que dormem com o rosto voltado para o poente! Ai dos que olvidam e riem! Ai dos que estabelecem moradas e levantam tendas! Ai dos que se enraízam no pó!
            Eles ficarão cegos antes de verem a luz - os seus olhos renascerão na obscuridade - e o seu dia não renascerá nem neste nem no século vindouro.
            Eles serão considerados, não como peregrinos, mas como habitantes; é a sua justa sentença.
            Serão novamente plantados no pó das suas raízes, até à hora do fruto, na justiça e na renovação.

                                                                                  Eu - João."

 ‘Roma e o Evangelho’ (trecho)
estudos resumidos por D. José Amigó y Pellicer

7ª Edição FEB - 1982

terça-feira, 12 de julho de 2011

02 / 02 'Roma e o Evangelho" - 2



após o 'Prefácio do Tradutor' lemos...
            
Quatro palavras ao leitor

                Quando, no intuito de estudarmos o Espiritismo, demos princípio, em maio passado, ás nossas reuniões, bem longe estávamos de suspeitar que um dia havíamos de publicar o resultado dos nossos modestos trabalhos.

                Levávamos a suspeita de encontrar, na nova doutrina, pontos ridículos - flancos vulneráveis – e motivos mais que suficientes, não só para a votarmos ao desprezo, como para sepultá-la por atentatória das sábias leis da moral evangélica; caso em que estávamos, de antemão, resolvidos a dissolver as nossas reuniões, volvendo cada um de nós ao seu estado anterior.

                Força, porém, é confessar que redondamente falsa era aquela suposição e que infundada e ilegítima era ela.

                Em vez de teorias ilógicas – afirmações ridículas – crenças supersticiosas e absurdas – e moral suspeita, deparamos com uma filosofia robusta e acessível à razão, sancionada pelos fatos e solidamente firmada nos ensinamentos de Jesus Cristo.

                Movidos por uma força superior e irresistível, demos, em setembro, um caráter mais formal às reuniões, estabelecendo, em razão dos estudos feitos e das ideias aceitas, o Círculo Cristiano-Espiritista, já então decididos a darmos, oportunamente, ao público, o fruto dos nossos trabalhos.

                Sem o impulso superior e sem a força da convicção e do dever que nos fizeram corajosos, não nos atreveríamos a publicar este livro.

                Frágeis e fracos para resistirmos ao sopro do Aquilão – sem abrigo, além da consciência satisfeita, para enfrentarmos com a tempestade, bem sabíamos que, da publicação deste livro, só colheríamos desgostos e amarguras.[1]

     Débeis pigmeus, arrojamo-nos a por os olhos num colosso de dezenove séculos, cujo simples estremecimento podia aniquilar-nos.

     Por que, então, não vacilamos – não trememos? Por que, como David, nos oferecemos às iras de Golíat?
 
      Por que tão insólito valor, quando sabíamos que éramos irremessivelmente vítimas da força?

     Ah! Uma voz mais poderosa que a de todos os colossos da Terra, soou clara aos nossos ouvidos – e nós seguimos os seus preceitos, tomados da loucura do dever a que estamos resolvidos sacrificar tudo.

     Como os primeiros cristãos, temos a fé precisa para desenrolar o divino estandarte dos ensinos de Jesus, embora tenhamos de sucumbir à sua gloriosa sombra.

     Não nos amaldiçoeis, sacerdotes do Cristo, que vos julgais depositários da verdade absoluta. Somos vossos irmãos – e, mesmo que recusásseis o vosso coração à caridade, tão recomendada pelo Enviado do Altíssimo, não deixaríamos de sê-lo.

     Nós vos amamos e bendizemos, porque devemos assim fazer – porque devemos amar e bendizer todas as criaturas emanadas do pensamento de Deus.

    Não nos amaldiçoareis, não? Dizeis-vos cristãos – e estamos certos de que procedereis como cristãos. Não ignorais que Jesus repreendeu severamente a Tiago e a João[2] quando pediram o fogo do céu para samaritanos que recusaram recebê-los em uma das suas cidades.

     E o que faríeis, se chegasse a vós outros a palavra de Jesus dizendo-vos: “fazei isto?”
     Faríeis o que o Mestre vos ordenasse; e, pois, deixai que o façamos nós.

     O fim do presente livro é justificar o nosso procedimento e combater os erros plantados pelos homens na religião cristã, demonstrando que o Evangelho, longe de opor-se à realização do progresso condenado pelos decretos de Roma, é a fonte e a grande alavanca do progresso infinito da Humanidade.

     É assim que, convencidos os homens de que o Cristianismo satisfaz a todas as necessidades e legítimas aspirações, abraçá-lo-ão com entusiasmo e fé – e desaparecerão o indiferentismo e o culto da matéria.

     Como, porém, a existência dos erros supõe a de indivíduos ou classes que os aceitam e sustentam, é impossível combatê-los sem ferir as suscetibilidades destes.

     A fim, portanto, de evitar falsas interpretações que não estão em nosso ânimo, declaramos formalmente que, nem antipatias, nem prevenções, nem má-vontade, e tampouco desejo de ofender ou prejudicar alguém, moveram, direta ou indiretamente, a nossa pena, pois ela é exclusivamente dirigida pelos impulsos da consciência.
     Quando censuramos, referindo-nos ao clero ou às autoridades da Igreja, deve isso ser entendido como dirigido aos erros e abusos, nunca porém aos indivíduos ou classes;  pois que, se nos julgamos autorizados a censurar mistificações, direitos não presumimos ter de condenar os que porventura vêem o bom uso no abuso - e a verdade no erro.

     E como poderíamos condenar, se o princípio capital da nossa doutrina é a caridade e o perdão?

     Tudo tem sua razão de ser – e tudo contribui e coopera para o cumprimento da lei que preside à criação.

     Moisés não podia deixar de preceder a Jesus, porque o povo hebreu, então grosseiro, material e prevaricador, não estava em condições de receber o Evangelho.

     Tampouco Jesus, não ensinou tudo o que sabia, porque a geração do seu tempo não suportaria o peso de todas as verdades[3].

     Por isso, ele serviu-se de alegorias e de parábolas que, se no momento se prestavam a errôneas interpretações, mais tarde deveriam ser entendidas em seu verdadeiro sentido.

     Quem, entretanto, poderá com razão acusar Moisés, pela dureza das suas leis, e Jesus, por haver falado ou dito em linguagem obscura o que não convinha revelar?

     A inspiração e a palavra de Deus são sucessivas, e a Humanidade vai recolhendo-as à medida das suas necessidades.

         Por conseguinte, não podemos culpar a Igreja Romana por erros que não são seus, mas sim da miséria dos tempos e da ignorância das gerações que se têm sucedido após a morte de Jesus.

     Se, depois do exposto, alguém se julgar ferido por qualquer frase nossa, sentiremos; mas a culpa não é nossa.

     As pessoas, repetimos, merecem-nos indistintamente o mais cordial respeito; os erros, eis o que nos propomos combater.

     Lérida, abril de 1874.
                                                               O Círculo Cristiano-Espiritista.


[1] Poucos meses depois de publicada esta obra, o Ministro da Instrução Pública na Espanha, Marques de Orovio, suspendia dos seus empregos de Diretor e segundo Professor da Escola Normal de Lérida, por causa de suas opiniões filosófico- religiosas, a D. Domingo de Miguel, presidente do “Círculo Cristiano=Espiritista”, e o autor do “Roma e o Evangelho”.
[2]   S. Lucas, cap. IX, vers. 54, 55 e 56.
[3]    S. João, cap. XVI, vers. 12.