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segunda-feira, 3 de janeiro de 2022

O Direito de Crer

O Direito de Crer

A Redação

Reformador (FEB) Agosto de 1943

             Como não podia deixar de acontecer, tiveram e vão tendo ainda grande repercussão as razões com que, num processo instaurado contra certo médium, há pouco tempo, por exercício ilegal da medicina, o ilustre Dr. Alcides Gentil, falando como promotor de justiça, opinou pelo arquivamento do mesmo processo. Era natural que assim acontecesse, não só por serem jurídica e moralmente irretorquíveis aquelas razões, como porque, liberto inteiramente do jugo do sectarismo religioso, o referido promotor as expendeu com uma inteireza e um desassombro que não são comuns, porquanto, o que é comum é, em casos desses, ter o preopinante, como diz o vulgo, “um olho no padre e o outro na missa.”

                Assim, contrapondo-se a duas ou três arremetidas de sectaristas ultramontanos, para os quais aquelas razões constituíram um acervo de heresias e blasfêmias, não poucas apreciações judiciosas e encomiásticas têm aparecido, da peça jurídica a que aludimos, tornando indubitável que ela acabará constituindo padrão para quantos, em circunstâncias idênticas ou análogas, hajam de pronunciar-se com independência, retidão e espírito de justiça.

                Dentre essas apreciações judiciosas e ponderadas, cumpre se destaquem as contidas num artigo que subordinado ã epigrafe que acima se lê, em sua edição de 17 de julho último publicou, sem assinatura, a ‘Gazeta Judiciária’, que se edita sob a direção do Dr. Rolando Pedreira, seu proprietário, artigo que, pedindo a devida vênia, aqui transcrevemos e que é o seguinte:

             Gustave Le Bon notava, há mais de trinta anos, que as nossas atitudes derivam de nossas crenças e opiniões. Os legisladores, porém, nem sempre consideram devidamente esse fato. Tomemos para exemplo o caso do "curandeirismo", previsto entre os “crimes contra a saúde pública” discriminados pelo Código Penal. Conforme a denominação consagrada no Código, não é preciso, para que se caracterize o delito, que se ministre ou aplique, “habitualmente, qualquer substância”; basta que se usem "gestos, palavras ou qualquer outro meio”; com o intuito de curar. Nestas condições, aplicado com rigor esse dispositivo penal, ninguém, por certo, escaparia à sua sanção. Com efeito, a arte de curar, que é tanto mais empírica, quanto mais atrasado é o meio social em que ela se aplica, é, na sua expressão mais simples, uma altruística manifestação de solidariedade humana. Quem sofre, ou está sujeito ao sofrimento, instintivamente se compraz em minorar o sofrimento alheio. E, para este fim, não há ninguém (e isto é nobre) que não se utilize de seus conhecimentos ou de sua experiência. E isto, aliás, que explica as origens religiosas da medicina. E, segundo Augusto Comte, de futuro, a arte médica constituirá uma das atribuições da classe sacerdotal.  “A medicina se encontra melhor incorporada à religião, sob o positivismo, do que sob a teocracia.” O certo é que a tradição, mais imperiosa do que os textos legais, tem confirmado o interesse que as religiões sempre tiveram por essa arte, cujo escopo e a preservação da vida. É muito comum por exemplo, verificar-se que a prática do chamado “curandeirismo” se prende às atividades religiosas. A medicina torna-se assim uma simples questão de fé. Todas as mesmas leis que garantem a liberdade religiosa, que é o direito de crer, cominam penalidades para os indivíduos que procuram curar-se de acordo com a sua fé. O pior, porém, é a direção que se faz, a este respeito, entre o catolicismo e as outras religiões, conquanto sejam Iguais perante a lei: a terapêutica mediúnica, usada pelo Espiritismo é um crime, a “água benta” da Igreja, porém, é um benefício social, posto que, muitas vezes, mais nociva, do ponto de vista higiênico. Em face dessas considerações, apraz-nos louvar a brilhante e corajosa promoção do dr. Alcides Gentil no recente processo de um flagrante de “curandeirismo”, configurado por uma dessas frequentes aplicações práticas do Espiritismo. Não precisamos minudenciar os termos da notável promoção, que tão grande e justificada, irradiação obteve em nossa imprensa, desejamos apenas aplaudi-la. Não pode haver crime, em uma simples manifestação de crença religiosa, na qual, sem que se prove a fraude, é forçoso observar uma completa isenção de culpa. A liberdade religiosa é uma grande conquista social. É, pois, em nome desta nobre conquista que não se deve permitir o privilégio de qualquer religião, legitimando todas as suas práticas, enquanto se condenam fatos idênticos, que se prendem ao exercício, regular, de outros cultos religiosos. Foi assim que entendeu o ilustre representante do Ministério Público, com quem concordou, aliás, muito louvavelmente, o íntegro juiz Mario de Paula Fonseca, determinando o arquivamento dos autos do aludido processo. É possível que uma interpretação literal do Código inspirasse uma atitude diversa. Mas, ter-se-ia, por certo, cometido uma injustiça, porque, na hipótese, não se trata realmente de “curandeirismo”, como notou, com exação, o promotor Alcides Gentil, “Trata-se de ato ligado a determinada crença”. E “atender a fieis, sem o intuito de remuneração (fls. 4), equivale, sem dúvida, a dar uma assistência espiritual muito mais generosa do que aquele que cobra, a dinheiro de contado, a missa, o batismo, ou a encomendação dos mortos”. Eis aí a verdade. É que, para a justiça e para o interesse público, a equiparação dos cultos religiosos é tão importante quanto a liberdade de seu exercício. O que se deve garantir é simplesmente o direito de crer".


Um comentário:

  1. Atender ao próximo sem cobrar é seguir os ensinamentos do Mestre Jesus.

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