Pesquisar este blog

Mostrando postagens com marcador Abel Gomes. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador Abel Gomes. Mostrar todas as postagens

sexta-feira, 31 de dezembro de 2021

Quando eu não cria

 

Quando eu não cria

por Abel Gomes   (1877-1934)

Reformador (Outubro de 1945)

             Quando eu não cria na vida após a morte, o móvel do meu pensamento era o pessimismo; por toda parte na Natureza eu só via inutilidade, anulação final de todo o prazer.

             “A beleza da juventude bem cedo e inevitavelmente se perde; nela pensa com tristeza o ancião; a recordação da saúde só traz tristezas e amargas lágrimas de dor.

            "O amor de dois corações é uma bela sorte; mas, que desgraça! o golpe da morte vem rompê-la!

            É belo cultivar a luz do vero saber, mas nada resta dessa luz após a morte."

             Assim meditava eu com grande mágoa, quando trilhava o caminho da descrença. Mas a compassiva bondade da mão de Deus guiou-me à fonte do verdadeiro Conhecimento.

            A crença no Deus sábio e na Vida imortal é, na verdade, a forte âncora de nossa salvação. A luz do Espiritismo é a luz da Verdade que salva os homens do desespero.

sexta-feira, 22 de janeiro de 2021

Cartas do outro mundo - 2

 

Cartas do outro mundo - 2

por Ismael Gomes Braga     Reformador (FEB) Fevereiro 1947

             Na carta de Abel Gomes, que damos a seguir, há ensinamentos tão preciosos que seria falta grave os conservarmos sem publicidade. Poucas são as frases que só interessam ao destinatário e que substituiremos por pontilhado. - I. G. B.

             “... Felicito-te a calma na tormenta. Deus não nos concede problemas desnecessários. “Em tudo permanecem os desígnios do Mais Alto, convocando-nos à redenção... E por enquanto, peças imperfeitas que somos na bigorna da vida, é imprescindível que o fogo purificador nos modifique, nos desgaste, nos transforme, de modo que possamos brilhar, algum dia, no serviço de nosso Pai. Nesse sentido é necessário o trabalho incessante. Se nos faltasse a temperatura de alta tensão, quem sabe? Talvez voltássemos à frieza de outro tempo, provavelmente a ferrugem nos consumiria devagar, relegando-nos ao esquecimento dos séculos. É por esse motivo que o meu coração se rejubila contigo nas realizações da atualidade. Tudo parece escuro, incerto. No entanto, vejo mais além. Noto-te a alegria do trabalhador que não desfaleceu, do semeador que prossegue, convencido de que o Senhor da Seara a tudo atenderá no momento oportuno. Guarda tua paz como um dom, no círculo de provas abençoadas que são igualmente dons divinos. O homem comum repudia o sofrimento, porque a ignorância constitui pesado véu a obscurecer lhe a mente. Nunca é demais asseverar que a dor é a escola mais nobre, e que a luta é o clima superior, onde as qualidades mais altas da alma se retemperam e aprimoram...

            “Esperemos o melhor, confiado n'Aquele que nunca nos abandonou no precipício. Continua, pois, trabalhando no ideal do bem e da fraternidade, Sejam o Espiritismo e o Esperanto as duas lâmpadas em tuas mãos de sincero servidor dos Planos Mais Elevados. O obstáculo acentua o poder criador. A dificuldade exerce funções de incentivo sempre que o servo aprendeu a ligar-se à esfera impessoal do bem coletivo, a cujo serviço permanecemos. Nossas mais belas horas são justamente aquelas em que ouvimos a Voz do Senhor no imo da consciência, quando as vozes humanas se degeneram em tormentosa inquietação. E a Voz Divina, filho meu, pede-nos trabalho, concurso e compreensão, de vez que precisamos observar que se o homem mantém a sua fé em Deus, Deus igualmente depõe a Sua fé paternal no homem (1). Atendamos ao Pai e prossigamos.

            “Meu abraço pela tua missão junto da Venina. Ela precisava de ti e fizemos votos e movimentamos providências para que te demorasses em Tomba-Morro (2). A situação assim exigia, e estou satisfeito por haveres compreendido a necessidade de ação no que se refere ao socorro aos necessitados. Tua adesão aos trabalhos diretos encheu-me de alegria. Não convém circunscrevermos o apostolado ao campo intelectual. Sofremos limitações enormes quando ensinamos a semear, esquivando-nos ao esforço ativo e sacrificial do contato com a Terra. Nossa crença é mais pura, nossa mente mais iluminada, quando aprendemos a fazer nossa a dor dos nossos semelhantes, quando vencemos os percalços da teoria para amarmos de algum modo os irmãos que necessitam. Podes crer que poucas excursões em tua vida presente foram tão ricas de bênçãos. E que continues, meu filho, nesse sagrado ministério da ação é o que desejo para que teu verbo esteja tocado do poder criador. Enriquecerás, dessa forma, a tua mordomia espiritual e administrarás os bens do Altíssimo com eficiência cada vez mais alta... (3)”

            (1) Refere-se ao fato de conceder Deus missões ao homem e deixar-lhe o livre arbítrio de cumprir a tarefa como melhor lhe parece ou até não cumpri-la . É bem original a expressão: "Deus tem fé no homem", mas parece exata.

                (2) Os Guias levaram-me a uma casa do campo, num lugar chamado Tomba-Morro, onde trabalhamos quinze dias em penosos casos de desobsessão. O mais violento dos obsessores compareceu a uma sessão cm Pedro Leopoldo e agradeceu os esforços feitos em seu benefício. Graças a Deus e aos Guias, ele está mais consciente de sua responsabilidade.

                (3) Parece haver agradado ao Espírito o fato de havermos abandonado numerosos e cultos auditórios das cidades, para trabalharmos num meio obscuro do campo, durante duas semanas, em favor de sofredores desconhecidos e tímidos. Mas, se bons resultados foram obtidos, nós os devemos exclusivamente à paciência do Guia Que tudo fez em quinze longas sessões e outros serviços de assistência.


sexta-feira, 7 de fevereiro de 2020

O Avarento


O Avarento
Abel Gomes
Reformador (FEB) Setembro 1946

            Passeando pela região do Crepúsculo, aqui no mundo astral, encontrei alguns Espíritos humanos chegados da minha Pátria.

            Entre eles havia um comerciante, desencarnado já há anos, mas que ainda só pensava em dinheiro, lucros e mercadorias.

            Quando o avistei, estava ele assentado a uma secretária, contando dinheiro; peças de ouro, papel-moeda, lá se achavam em sua frente, e sorridente ele as contava.
           
            Cumprimentei-o. Ele logo estremeceu e cobriu com um pano o seu tesouro e exclamou: "Retira-te! ou eu chamo o meu cão!" Estava pálido. "Não tenhas medo de mim", disse-lhe eu; "meu amigo, não me reconheces? eu sou o Abel".

            Respondeu-me: "Queres comprar alguma coisa? à vista? Emprestar eu não empresto."

            Não vi mercadorias nem armazém; só na imaginação ele as tinha.

            Perguntou-me ele: "Mas porque vieste aqui? Hoje não é dia de visitas."

            Soprou um vento, levantou-se o pano; e nem dinheiro, nem ouro reapareceram, só havia areia e folhas secas.

            O Espírito avarento se enraiveceu: "Restitui-me o meu dinheiro, já!" - exclamou ele ameaçando-me com uma arma.

            Eu sorri: "Teu dinheiro, meu amigo, era simples aparência inútil. Não vives na Terra: por isso o ouro e o cobre não te podem aqui valer pois que aqui só valem boas ações, boa mente e bom coração".

            Mas o avarento não me entendeu, porque de repente pôs-se a correr para um lugar onde uma coisa parecia brilhar; e eu o ouvi murmurando: "Lá está o meu ouro!" Mas chegando ao lugar brilhante só viu um pirilampo e ficou triste, porque não era o brilho vão do ouro.

            Desejei esclarecer-lhe seu estado, porém ele fugiu de mim e não quis ouvir-me. 

           Voltei ao meu caminho, fazendo por ele uma prece a Deus.

sábado, 25 de janeiro de 2020

O contínuo vai-vem



O contínuo vaivém
Abel Gomes por Porto Carreiro Neto
Reformador (FEB) Março 1951

            Quem sabe a vida que, depois da morte,
            Há de levar o Espírito de alguém,
            Não lhe choremos, se foi mal, a sorte,
            Que tudo é sempre para o nosso bem.

            Por que oremos, para um novo norte,
            Que lhe traga a instrução que lhe convém.
            Que ele a um porto seguro em breve aporte,
            Quais são as obras desse grande Além!

            Em tudo bendigamos a Divina
            Justiça, que duma alma pequenina,
            Seu grande embaixador faz amanhã!

            No contínuo vaivém entre os dois mundos
            Sentimentos se criam, tão profundos,
            Que uma alma é de outra verdadeira irmã!

quinta-feira, 15 de março de 2018

O Avarento



O Avarento
por Abel Gomes
 Reformador (FEB) Setembro 1946

Passeando pela região do Crepúsculo, aqui no mundo astral, encontrei alguns Espíritos humanos chegados da minha Pátria.
Entre eles havia um comerciante, desencarnado já há anos, mas que ainda só pensava em dinheiro, lucros e mercadorias.
Quando o avistei, estava ele assentado a uma secretária, contando dinheiro; peças de ouro, papel—moeda, lá se achavam em sua frente, e sorridente ele as contava. Cumprimentei-o. Ele logo estremeceu e cobriu com um pano o seu tesouro e exclamou: "Retira-te! ou eu chamo o meu cão!" Estava pálido. "Não tenhas medo de mim", disse-lhe eu; "meu amigo, não me reconheces? eu sou o Abel".
Respondeu-me: "Queres comprar alguma coisa? à vista? Emprestar eu não empresto."
Não vi mercadorias nem armazém: só na imaginação ele as tinha.
Perguntou-me ele: "Mas porque vieste aqui? Hoje não é dia de visitas."
Soprou um vento, levantou-se o pano; e nem dinheiro nem ouro reapareceram, só havia areia e folhas secas.
O Espírito avarento se enraiveceu: "Restitui-me o meu dinheiro, já!" - exclamou ele ameaçando-me com uma arma.
Eu sorri: "Teu dinheiro, meu amigo, era simples aparência inútil. Não vives na Terra; por isso o ouro e o cobre não te podem aqui valer pois que aqui só valem boas ações, boa mente e bom coração".
Mas o avarento não me entendeu, porque de repente pôs-se a correr para um lugar onde uma coisa parecia brilhar; e eu o ouvi murmurando: "Lá está o meu ouro!" Mas chegando ao lugar brilhante só viu um pirilampo e ficou triste, porque não era o brilho vão do ouro.
Desejei esclarecer-lhe seu estado, porém ele fugiu de mim e não quis ouvir-me. Voltei ao meu caminho, fazendo por ele uma prece a Deus.

domingo, 16 de julho de 2017

A Maior das Obras de Deus


A Maior das Obras de Deus – parte 1
por Abel Gomes
Reformador (FEB) Dezembro 1942

Convidado a opinar, para as páginas de uma revista, sobre a grandeza das obras de Deus isto é convidado a declarar qual dessas obras sublimes em minha opinião, é a mais elevada, mais bela, mais perfeita, conservei-me longamente em silêncio receoso de ser uma falta dissertar sobre assunto de tão provada transcendência.

Como poderia eu, pequenino, finito, frágil, alçar o pensamento à imensidade, ao infinito, à grandeza e ao poder do Pai Celeste?! Eu, tudo ignorando, minúsculo verme da terra, erguer o olhar à onisciência do Ser Supremo?!

O que hoje faço talvez seja, portanto, uma ousadia. Tão grande é, porém, a misericórdia divina, que extinguirá a minha falta, cobrindo-a com o manto do seu perdão sublime.

Mas, o meu ato, neste rude escrito, não é uma falta para com o Onipotente, apenas o será perante os homens; pois a Grandeza Infinita, que domina o universo, não será jamais atingida por um obscuro verme deste mundo.

Falta no tempo e não na eternidade; ousadia perante meus irmãos, os homens, e não para com o Eterno, o Pai.

Perdoai-me, pois, Deus e Senhor meu, se for ousadia proclamar qual é, de vossas obras sublimes, a mais elevada, a mais bela, a mais perfeita.

Perdoar-me, não por Vós, a Quem a minha ousadia, se assim o meu ato for considerado, jamais atingirá, mas pelo conceito que de mim podem fazer os homens, hóspedes, como eu, deste ponto minúsculo da imensidade, denominado Terra, se me puder molestar esse conceito, ao verem-me eles abordar assunto de tão extraordinária transcendência.

Perdoai-me, pois, Deus e Senhor meu, e permiti-me proclamar, neste rude escrito, qual é, dentre vossas obras sublimes, a mais elevada, a mais misericordiosa, a mais bela, a mais perfeita.

*

Quando, durante o dia, volvo o olhar pelo espaço que nos circunda na terra e imagino a quantidade de espaços semelhantes de que é composta a superfície desta enorme esfera, minha alma se extasia de admiração ante o Criador deste mundo. E vendo o Sol que nos ilumina e aquece, e lembrando-me de que esse Sol é o centro de um sistema de mundos semelhantes ao nosso mundo - maiores uns, outros menores, mas todos cheios de luz e de vida e todos habitados ou habitáveis por humanidades semelhantes à deste mundo - meu espírito se perde em conjecturas a cerca da grandeza e do poder do Senhor Supremo.

Se cada uma dessas moradas possui a sua atmosfera, as suas selvas, os seus rios, os seu mares, a sua fauna, as suas montanhas, os seus vaies; se sobre cada uma delas existe e evolui uma raça pensante; se em torno desses mundos gravitam astros secundários, que são outras tantas luas iluminando lhes as noites com os revérberos do astro-rei; e se tudo quanto vemos entre nós de encantador e grandioso - todo o meu ser vibra de admiração e deslumbramento, contemplando nessas maravilhas o poder do Senhor Supremo.

Mas, entre as obras de Deus, algo existe mais elevado e mais belo.

*

Quando, à noite, atiro um olhar à imensidade e contemplo os milhões e milhões de estrelas que povoam esses espaços sem fim, minha alma se sente extasiada perante a magnificência do Ser Supremo, sabendo ser um sol cada uma dessas estrelas, ao redor do qual gravitam outros astros que são outros tantos mundos, habitados ou habitáveis, centenas ou milhares de planetas e seus satélites, girando no espaço, e levando cada um desses mundos as suas maravilhas particulares, as suas raças ignotas; as suas belezas naturais, uma fauna talvez estupenda, uma flora talvez exuberante, e talvez os seus sábios, os seus gênios, os seus admirados cientistas...

E cada estrela é um sol, em torno do qual há outros mundos semelhantes a este que nós habitamos; e essas estrelas são tantas, isto é, são tão numerosos esses astros-sóis, centros ao redor dos quais vivem e giram astros, que se os pudéssemos contar veríamos, maravilhados, que o seu número é maior do que o número de gotas de água que o nosso oceano contém!

São tantos esses sóis misteriosos, perdidos para nós pelo infinito, que a lenda antiga pretendeu ver, esparso na amplidão, o branco liquido de onde se derivou o nome de Via-Láctea, nome dado ainda àquele magnificente e imenso cardume de estrelas, que aos nossos olhos parecem unidas umas às outras, estando entretanto separadas entre si por distâncias incomensuráveis.

Contemplando, a noite, aqueles sóis longínquos e imaginando o sistema solar que cada um deles preside, e pensando nas outras maravilhas do espaço infindo, com as suas nebulosas, - germes talvez de futuros mundos. - e os cometas misteriosos, de alongadas elipses, minha alma é arrebatada a curvar-se, submissa e deslumbrada, ante a magnificência de Deus, que tudo dispôs nesse universo sem fim.

Mas, entre as obras de Deus, eu penso existir algo mais elevado e mais belo.

*

Quem, como eu o fiz, já se embrenhou a sós por uma floresta espessa onde não se ouvia a voz de outro ente humano, e ai viu árvores colossais, e frutos, e flores, e aves canoras, e animais silvestres, e conservou-se longo tempo a pensar sobre a riqueza imensa das selvas, sobre a quantidade admirável de seres vivos aí ocultos e acerca dos mistérios aí entrevistos, deve ter ficado deslumbrado pela grandeza e pela sabedoria do Senhor Supremo.

Como pode, em urna pequenina semente, ocultar-se o germe de uma árvore gigantesca?! Como pode o tronco anoso originar-se de um fruto quase informe, e tanto se elevar e fortalecer que chega a resistir com galhardia à fúria dos vendavais?! Como pode, do solo impuro, subir a haste flexível onde desabrocha a flor?! E as aves, com o seu canto e os seus ninhos e as flores, com o seu perfume, e as águas cristalinas do riacho que murmura?!

Em tudo, e por toda parte, vemos a magnificência do Senhor Supremo - nas grandes e nas pequenas coisas da criação, no majestoso roble como no musgo humílimo, nas asas possantes da águia como no esvoaçar do esbelto colibri, para o qual nunca houve segredos para a permanência em um ponto no espaço.

É tão grande o poder e tão admirável é a sabedoria de Quem criou as selvas e nelas fez surgir quanto nelas vive e sente, que minha alma se enleva, comovida e deslumbrada, pensando na bondade infinita que tais maravilhas criou.

Mas entre as obras de Deus, algo existe mais elevado e mais belo.

*

No silêncio dos campos, na solidão das selvas, ou à vista do oceano, longe, bem longe do bulido dos outros entes humanos, é que nossa alma se eleva mais diretamente aos pés do Senhor Supremo.

O silêncio e a solidão aproximam-nos de Deus.

Alta noite, junto da cidade adormecida, quem já esteve, a sós, à luz argêntea da lua, contemplando o oceano, e sentindo, a seus pés, o embate forte e sonoro das vagas de encontro às pedras da margem, deve ter sabido compreender como é grande o mar, formoso nos seus dias de calma e nas suas noites silenciosas, majestoso e belo nos mistérios que encerra em suas entranhas profundas, e mesmo em sua imensa superfície, imponente e tétrico, mas ainda assim formoso, nos seus dias tempestuosos, nas suas noites de trevas e de borrasca, quando o nauta lhe vê as fauces dos abismos, estrondeando nos ares revoltos a voz ameaçadora, de morte e de extermínio, contra o frágil batel exposto à fúria dos ventos e das vagas.

No fundo ainda quase desconhecido do oceano, nos seus vales profundos e nas suas escarpadas montanhas, que estranha flora vegeta e que extraordinária fauna habita!!

Em cada gota de suas águas existe o que a fraqueza do nosso aparelho visual nos não permite distinguir; mas as lentes do microscópio aí descobrem seres que vivem, que sentem e talvez - quem o poderá negar? - progridem, evoluem...

Vendo esse mar imenso, com o desejo insano de lhe desvendar os arcanos, nossa alma se prostra reverente perante a grandeza dos oceanos, em tudo sentindo a magnanimidade de Deus, o Ente infinitamente poderoso e sábio para Quem não há mistérios em todas essas maravilhas.

Mas, entre as obras de Deus, algo existe mais elevado e mais belo.

*

Perdoai-me, Deus e Senhor meu, pela ousadia em que talvez esteja incorrendo, não perante Vós, mas perante meus irmãos, os homens, proclamando que alguma coisa existe, entre as vossas obras sublimes, mais elevada, mais bela, mais perfeita, do que o mar imenso com todos os seus mistérios, do que as florestas espessas com todas as suas riquezas, do que a terra onde habitamos com todas as suas belezas naturais, e do que a amplidão infinda, povoada de mundos incontáveis, e repleta de maravilhas, e que é, toda ela, como que um hino perene de glória para com o Senhor Supremo, para com a sabedoria infinita do Criador.

Algo existe, pois, entre as obras de Deus mais elevado, mais belo e mais perfeito do que a terra, o mar e o infinito.

*

Penso que, entre as obras sublimes de Deus, a mais elevada, a mais bela, a mais perfeita, é, incontestavelmente, o amor de mãe.

          *

Que seria do indefeso entezinho se lhe faltasse o carinho materno?

Iniciando a vida terrena o entezinho chora, lamenta-se. Talvez sejam os protestos da ave altiva e livre que se librava nos ares, contra as agruras do nosso mundo, cadeia de almas que recebe mais um sofredor.

Ei-lo, o recém-nascido, pequenino quase inerte, privado de consciência e de palavra, ignorando importância da sua missão, mas já envolto em faixas, e docemente estendido sobre o fofo colchãozinho do seu leito suspenso.

E alguém vela, dia e noite, à beira do pequenino berço.  

Ao abrir a criancinha os seus olhos doloridos, pouco afeitos ainda à nossa luz, alguém, num sorriso santo de felicidade, de esperança e de amor vem depor-lhe, sobre o corpo rosado, sobre os bracinhos tenros, sobre as mãozinhas apertadas, sobre a lisa e pequenina face, um sem número de beijos castos, impregnados do amor mais puro e mais santo.

Se chora o inocentinho, há alguém, a seu lado, que o embala e consola, que o defende contra as intempéries, que o alenta com carinho inexcedível, com afeição incomparável. 

É sua mãe.

*

A mulher é mais formosa quando é mãe. Não lhe reconheço a verdadeira beleza, se não lhe vejo nos braços o filhinho amado.

Sempre foi este, para mim, o quadro mais belo da criação: a mãe, sorridente, tendo nos braços o filhinho a sugar-lhe os seios túmidos.

É a carne da sua carne, a vida da sua vida. Representa para ela um mundo inteiro de amor e concentra para ela as mais fagueiras, as mais belas e lisonjeiras esperanças.

*

Que seria do inocentinho se lhe faltasse o carinho materno?!

Mas, passam dias e noites, decorrem semanas, escoam-se meses, sem que, por um momento, falte quem vele junto a seu berço, ou durma a seu lado, ouvindo-lhe o respirar calmo da inocência e da confiança, ou despertando ao som do mais ligeiro vagido, para novos cuidados, para novos esforços pela saúde e pela tranquilidade do pequenino ente tão ternamente adorado.

Mesmo durante o sono reparador, a mãe, amorosa e boa, vê em sonhos o filho querido.

E os meses continuam a passar, e vão os anos decorrendo. Com o perpassar do tempo não diminuem, porém, os cuidados maternos. O filho tem crescido em idade, em forças, em tamanho, em raciocínio, e então é tempo, para a mãe dedicada, de lhe formar a alma, de lhe incutir a crença em Deus, e na imortalidade, de lhe inspirar amor ao bem e ao próximo.

No correr da vida, muitos homens são, física e moralmente, quais suas mães os idearam.

Sem o amor materno, numerosas criaturinhas pereceriam, não podendo resistir aos perigos da primeira infância, e a quantos sobrevivessem faltariam, no futuro, os sentimentos mais nobres que apenas um coração de mãe sabe inspirar. E o mundo estaria, consequentemente, pleno de deformidades.

É por tudo isso que eu penso ser o amor de mãe a mais elevada, a mais bela, a mais perfeita das obras sublimes de Deus, mesmo quando essa maravilhosa criação da bondade divina é comparada às selvas, ao mar e ao espaço, e a quanto existe nas selvas, no mar e no espaço.

Ao inocentinho, que entre nós vem viver, falta, às vezes, nos seus primeiros tempos de existência terrena, o carinho materno, porque à mulher a quem deve a vida, terminou cedo ainda, a vilegiatura neste mundo de incertezas; mas, nesse caso, tão grande é a misericórdia divina, que o pequenino orfanado é recolhido com afeto e carinho, pressurosamente, por um coração a quem a ternura de outra progenitura soubera transferir, anos antes, quanto de afeição e de cuidados sabe abrigar um coração de mãe.

E é assim, mesmo indiretamente, que a infinita bondade de Deus se manifesta através da mais sublime de suas obras - o amor de mãe. Sem ele, o nosso mundo seria um caos. Os mais nobres sentimentos humanos desapareceriam. O amor conjugal passaria a ser uma convenção. A verdadeira fé religiosa seria substituída pelo negro ceticismo. O dever seria do domínio dos códigos.

Deus, criando o amor materno, agiu menos como Senhor do que como Pai. Essa criação, a mais sublime, é filha de Sua ciência sem limites mas inspirada pela Sua misericórdia imensa e Seu amor infinito.

Eu penso, pois, que a mais elevada, a mais bela, a mais perfeita das obras de Deus, é incontestavelmente, o amor de mãe...

A Maior das Obras de Deus – parte 2
por Abel Gomes
Reformador (FEB) Janeiro 1942

Examinemos uns fatos, entre os numerosos que me ocorrem.

Um dos meus amigos fora acometido de uma doença grave, no crâneo, e era necessário uma intervenção cirúrgica. Para isso dirigiu-se à Capital, acompanhado pela esposa; mas os ilustres facultativos, por ele procurados, exigiam que primeiramente se fizesse mais forte, mais robusto, de modo a resistir à dolorosa operação, pois, estava tristemente abatido no físico e no moral.

Entre esses facultativos estava um parente e amigo do enfermo. Esse ilustrado clínico, porém, devia seguir naquela ocasião para o sul, em trabalhos da sua honrosa profissão, e, fazendo-lhe a última visita de médico, partiu quase convicto de não mais o encontrar à sua volta, tão pálido e desanimado estava o pobre moço.

No dia seguinte, também a esposa do enfermo abandonou-o naquela grande metrópole, e voltou para a terra natal, onde enfermara gravemente o velho pai.

Cerca de trinta dias se escoaram. Em uma bela tarde de verão, o ilustre médico, regressando de sua viagem ao sul, quis, antes de se dirigir ao lar, saber notícias do primo enfermo e encontrou-o forte, animado, bem disposto, à porta da casinha ajardinada que lhe servia de residência. Parecia em plena saúde.

O moço foi ao encontro do recém-chegado, estendendo-lhe as mãos numa saudação cheia de afeto; mas, o doutor, antes de lhe corresponder ao cumprimento, asseverou:

- Tua mãe está aqui contigo.

- Sim - replicou o moço; - há mais de vinte dias. E porque o dizes?

- Porque somente um amor de mãe é capaz de fazer voltar à vida um quase moribundo, - replicou o doutor.

Realmente, com o enfermo estava sua mãe, que, sabendo, vinte e cinco dias antes, em que condições se achava o filho, correra em seu auxílio. Mal podendo dispor dos recursos necessários à longa viagem, partira pelo primeiro comboio.

A pobre senhora não conhecia a capital, mas seguiu sem relutância; não dispondo de uma companhia, seguiu sozinha.

Sem os cuidados assíduos de uma mãe amorosa, sem o tratamento carinhoso e incansável daquela a quem devia a vida, jamais o pobre enfermo recuperaria as forças e nunca se elevaria, física e moralmente, às condições necessárias à intervenção cirúrgica.

Pouco depois era o moço operado e iniciava a curta fase de convalescença, terminada pelo seu completo restabelecimento.

***

De quanto é capaz um coração de mãe! É sempre o mesmo o seu amor, em todas as épocas da vida do filho, e por este sacrifica a fortuna, os gozos da vida, o fruto do seu labor insano, os confortos de um lar feliz, a própria saúde, a própria vida enfim, se também se tornar preciso, tudo fazendo sem um queixume, e considerando-se feliz em concorrer para a felicidade do filho querido.

***

Quando entrardes numa cadeia, em visita de caridade, ou quando percorrerdes as dependências de uma penitenciária, levados pelo desejo de fazer o bem como discípulos do Cristo e como cidadãos, procurar um por um, em particular, os criminosos condenados pelos delitos mais horrendos, mais terríveis, e a cada um desses infelizes perguntai com interesse afetuoso:

"Onde reside tua mãe?"

Um deles responderá: "Não conheci minha mãe, Senhor: faleceu quando eu nasci".

Outro vos dirá: "Minha mãe me faltou na primeira infância; não existe mais".

Um outro vos explicará: "Eu fugi da casa de meus pais quando ainda era menino, e nem sei sequer se minha mãe ainda existe!"

Mais um infeliz vos elucidará: "Eu sou filho do erro, e as convenções sociais baniram-me do lar. Não sei quem é ou quem foi minha mãe”.

Dai a cada um desses infelizes, se disso necessitarem, uma pequena lembrança que lhas deixe um pouco de conforto material, e a todos eles dedicai uns momentos de consolo, descerrando-lhes as portas longínquas da esperança pelo caminho da fé, do arrependimento, da regeneração e do amor, e serenai o vosso espírito, ao deixardes esse campo de misérias, pensando na bondade infinita de Deus, que a todos os Seus filhos aguarda com o Seu perdão de Pai amantíssimo.

***

Conheceis de certo alguns moralmente sãos, cujas qualidades, como chefe de família, e amigo, e funcionário, e cidadão, podem ser tomadas por modelo. Encaminhai-vos a alguns deles, particularmente, na direção de um estabelecimento industrial, ou à banca honrada de um advogado, ou à cátedra do mestre erudito, ou ao laboratório onde trabalha o sábio, ou ao consultório de um facultativo que de sua ciência faz um sacerdócio, ou a qualquer parte, enfim, onde labuta um homem com honra, com dedicação e com fé, e a cada um deles interrogai:

“Senhor, eu desejava saber a quem deveis a posição que ocupais. Quem vos ensinou a subir com honra, a engrandecer-vos sem soberba, a devotar-vos ao bem? Deveis a compreensão dessas verdades ao vosso próprio mérito, aos vossos esforços pessoais, ou tivestes um mestre que vos apontou o caminho do bem, da honra, do dever?"

Algum desses homens, dirigindo-se ao interior de sua residência, de lá regressará trazendo pelo braço uma velhinha sorridente, que vos apresentará nestes termos: "É minha mãe!..”

Outro, menos feliz, ouvindo a vossa pergunta, erguerá a destra em direção a um quadro que lhe honra a câmara de trabalho e vos dirá com os olhos úmidos de pranto:
           
"Cavalheiro, eu tive uma mãe".

E diversos outros dar-vos-ão respostas semelhantes.

É que o amor de mãe não se confina somente num berço. Não justifica a alegria grega do amor-menino. Acompanha o filho desde o primeiro vagido até que um dos dois entes desaparece da vida terrena; depois ressurge na vida futura, e vive e brilha pela amplidão infinita.  

***

Vi algures uma família sem chefe, uma viúva coberta de luto, alguns infantes sem pai, um lar onde a desdita se alojara. Pouco tempo antes habitavam ali a alegria e a esperança. Mas um dia morrera o chefe da família, o pai, esvaindo-se em sangue, horrivelmente ferido pelo ferro homicida que o seu próprio filho manejara.

Muito jovem ainda, o imberbe matador pensou na fuga, mas o remorso o atirou às mãos da justiça dos homens que o condenaram à pena máxima.

Porque cometera ele o horrendo crime? Defesa de alguém? Defesa própria? Sugestão de um espírito devotado ao mal? Medo de opinar, nas desarmonias domésticas, se existiam, contra quaisquer arbitrariedades paternas? Ou ausência de cultivo moral, ou falta de crença, ou um momento de loucura?

Ninguém o sabe. Ninguém o saberá talvez.

E o infeliz parricida, muito jovem ainda, quase adolescente, viu fechados após de si as férreas portas da penitenciaria, e viu que ao longe, numa aldeia pacifica, naquela herdade anteriormente alegre e calma, ficava uma família banhada em lágrimas e coberta de luto e de vergonha.

Pois a mãe extremosa desse infeliz, vendo-o embora culpado de tanta dor, de tanta e tão acabrunhadora desdita, saía a procura de clemência para o filho parricida. Com o coração a transbordar de amor e a alma de mãe a retumbar afetuoso perdão, deixava bastas vezes o lar e despendia não pequena parte do fruto do seu trabalho e das suas economias, e partia, viajando com sacrifício inaudível, a fim de impetrar perdão para o filho, o seu primogênito, tanto mais querido quanto mais desditoso se tornara, até que um dia, quase vinte anos depois do horrendo crime, um dos dirigentes deixou-se comover pelas suas lágrimas, pelos seus rogos, restituíram-lhe o filho.

Tem muito de divino o amor de mãe, ao qual nem o crime, e crime tão atroz, consegue jamais arrefecer.

***

No interior de um castelo antigo e nobre, no seio de uma família de costumes austeros, penetrou um dia a desonra: uma criança devia em breve surgir à luz, sem que anteriormente se houvesse efetuado um matrimonio. Era necessário desaparecesse a prova do erro. Assim opinava a velha castelã, e assim confirmava a jovem, filha única, que tivera a fraqueza de crer nas juras fementidas das de um moço pervertido pelos maus exemplos da época.

Para que desaparecesse o inocentinho, porém, esbulhado até dos seus direitos de herança, pensou a rica fidalga dever falar ao velho e sábio arcebispo, - naqueles tempos em que, como disse Vieira, os vasos eram de pau, mas os sacerdotes eram de ouro - e o prelado, profundo conhecedor do coração humano, declarou a ambas as senhoras que o caso era justo e seria a ação digna da aprovação de Deus; mas, apenas, sendo ele o arcebispo quem recebesse o inocentinho e se encarregasse de o extraviar, sob o mais rigoroso sigilo, o que poderia ser feito somente depois que a jovem mãe conservasse consigo o pequenino durante três dias...

Efetivamente, o velho prelado, algum tempo depois, entrando na alcova alcatifada onde tinha nascido, três dias antes, a inocente criancinha, dirigiu-se a jovem mãe, que a amamentava sorrindo, e disse, estendendo-lhe as mãos: "Venho reclamar o recém-nascido a fim de fazê-lo desaparecer, concluindo a minha missão".

- Não - respondeu-lhe a mãe com firmeza; o meu filho não se arredará de mim. Eu o criarei com dedicação e com amor.

- E eu tudo farei para que o meu amado netinho seja feliz entre nós - asseverou a velha fidalga, sorrindo ao pequenino.

Eram dois corações de mãe. Afrontavam o opróbrio e encaravam desassombradamente as convenções sociais, desprezando todas as censuras, que pelo mundo lhes pudessem fazer, e conservavam consigo, amorosamente, com carinho inexcedível, aquele pequeno ser, cujos olhos misteriosos pareciam envolver uma carícia e cujos lábios rosados pareciam esboçar, a meio, um sorriso de gratidão e de afeto.

O arcebispo sorriu, satisfeito. Aquele três dias tinham sido suficientes, mais do que suficientes, para despertar no coração da nobre e orgulhosa castelã o amor ao pequenino infante, de quem era duas vezes mãe, e para substituir, no coração da jovem fidalga, a afeição mundana pelo amor puríssimo de mãe.

Já não consentiriam que lhes arrebatassem dos braços o filho querido.

***


Penso pois, que, entre as obras grandiosas de Deus, a mais sublime é o amor de mãe.

terça-feira, 7 de outubro de 2014

Burlões


Burlões
Abel Gomes
Reformador (FEB) Dezembro 1946

            Há no mundo astral uma região chamada "Burlolândia", que é habitada pelos fraudulentos e traidores.

            Lá vi dois burlões: um queria vender ao outro um campo que parecia bem cultivado.

             "- Quanto à colheita não terás de que te queixares", disse ele, mostrando a plantação; o outro só via deserto; mas querendo também enganar o vendedor, elogiou o campo e a habilidade do agricultor. Porém, quando pagou, o dinheiro se transformou todo em grãos de areia. Ele exclamou: "Pago assim muito bem tuas fraudes e mentiras".

            O outro o esbofeteou e atracaram-se em luta, gritando: "Oh, burlão, agora vejo o que querias fazer!"

            Um bate forte, o outro lança-o ao chão; longo tempo dura a peleja; finalmente, exaustos, ambos adormecem.

            Quando despertaram, cada um saiu para um lado, à procura de alguém para enganar.

            Como esses, lá havia muitos que a mim também quiseram burlar.

            Como não me quis deixar enganar, quiseram atacar-me, espancar-me; porém, com energia os repeli e não me deixei explorar.

            Lá vi outros sofredores: um perseguia à sua ex-esposa, como pérfida. Ela escondia-se, mas ele a procurava com renitência.

            Quando lhe pareceu que a encontrava, outra mulher lhe aparece. Esta fora por ele enganada em seu amor e muito sofrera.

            Fiquei sabendo que também aí eu não podia ainda ajudar, porque, quando não é castigado sobre a Terra, o criminoso recebe o castigo depois da morte.

quinta-feira, 11 de julho de 2013

A Caridade


A Caridade

            Um hospital é lugar onde mais facilmente pode ser exercida a caridade: basta dirigirem-no pessoas que não tenham o coração empedernido, pessoas para as quais cada indivíduo seja um irmão, sejam quais forem, neste, a crença religiosa e politica, a nacionalidade, a cor, a posição pecuniária ou social.

            Nesses prédios, não raro vastos, denominados hospitais, numerosos pobres encontram abrigo, têm alimentos, são medicados.

            Nesta cidade (1) foi construído um desses prédios, - vasto, cômodo, firme, de acordo com a estética, e para a manutenção do hospital há a renda de um fundo de reserva. Era o mais difícil de se conseguir, e isso está feito.

               (1) Cataguases. Artigo publicado n'O Município.

            Agora é necessário, completando-se a obra, encontrarem aí os pobres, além do conforto físico, também o conforto moral. Que sob esse teto encontrem os enfermos a dedicação de um medico, a consciência de um farmacêutico e os cuidados pacientes de um enfermeiro. Quanto ao enfermeiro, principalmente, muito há a esperar, pois muito podem conseguir a sua palavra animadora, a sua prática profissional, a sua dedicação de todas as horas.

            É preciso colocarem-se como enfermeiros, nessa casa de caridade, indivíduos a quem o cargo não seja somente um meio de ganhar o pão, mas também uma espécie de sacerdócio. Devem ter caráter acima da mediocridade, e ser caridosos como o devem ser os cristãos.

            O enfermo pobre deve encontrar no hospital, além da assistência necessária aos sofrimentos físicos, também o conforto moral, os cuidados necessários à alma, onde bastas vezes reside a origem  das moléstias do corpo.

            Esses cuidados para com o espírito, porém, devem ser prestados a cada enfermo de acordo com a sua crença, e não impondo-se lhe essa ou aquela religião, por mais digna de respeito que ela seja, - como em geral o são todas as crenças sinceras; - pois liberdade alguma é tão merecedora de amparo como a liberdade religiosa, e é uma vilania, das mais torpes, martirizarem os diretores de hospitais o mísero inválido, mormente quando a este já vão faltando a faculdade de discernir com precisão e a energia para a defesa do próprio credo, impondo-se lhe as cerimônias de uma religião tardia, que o paciente aceita, coagido pela necessidade, sem sua alma tomar parte em quanto o rodeia. Esquecem-se os corifeus do dogmatismo de que o Divino Mestre recomendou, como seguro meio de nos aproximarmos de Deus, a prática da caridade...

            O benefício em troca da liberdade religiosa não é caridade, e não honra jamais a quem o pratica, como a benção de Isaac, permutada em um dia de fome por um prato de lentilhas, não atraiu felicidade ao adquirente.

            A verdadeira caridade deve ser humilde e secreta. Usando-se as palavras expressivas dos livros inspirados, pode-se declarar que a mão esquerda não deve perceber o que a direita oferece.

            Talvez seja demasiado hiperbólica a linguagem de Paulo de Tarso: "Se eu dispuser de todos os meus bens, e der o produto aos pobres, e der o meu próprio corpo a ser queimado em beneficio dos pobres, nada valerei e nada serei se não tiver caridade."

            Hiperbólicas ou não, as palavras do grande apóstolo contêm ensinamentos merecedores do mais profundo respeito.

            A verdadeira caridade é simples e humilde. Não tem grandezas; não tem ostentação.

            Conheci, há já muitos anos, uma pessoa que sabia exercer a caridade cristã como fala dessa virtude Paulo de Tarso. Fazia-o na persuasão de apenas cumprir um dever, - simplesmente, humildemente, cristãmente.

            Era uma pobre mulher de cor, cuja única propriedade era uma casinha térrea, onde residia com seu marido e seu único filho, em um dos bairros mais pobres de uma pequena cidade do interior.

            Laboriosa e ágil, pequena de corpo e grande de alma, e de uma alegria sincera e comunicativa, e atividade surpreendente, minorava muitas dores, amenizava muito sofrimento alheio, e tudo fazia sem ostentação, mas alegremente, naturalmente, e
algumas vezes com a humildade de quem pede.

            Onde houvesse um enfermo desprotegido, ali estava essa mulher. Ouvia as observações do facultativo, - que não raro chamado por ela com o pedido de se apresentar como se o fizesse espontaneamente, - e ministrava os medicamentos, cozia e apresentava alimentos, etc.

            Muitíssimas vezes eu a vi, ora levando um caldo à cama de um enfermo vizinho, ora fazendo-lhe   um chá, ora compondo lhe o leito, ora fazendo, enfim, tudo quanto só uma alma caridosa fazer, inclusive angariar lhe auxílios como se os pedisse para si própria.

            Se o enfermo era pessoa do seu sexo, e mormente sem parentes próximos no lugar, ia essa mulher fazer-lhe companhia, durante dias e noites, quase sempre conduzindo entre as mãos um trabalho começado, que continuava nas horas desimpedidas, e quase sempre dizendo que sentira-se isolada, por estarem ausentes o marido e o filho, operários que eram, e que por isso tinha resolvido continuar o seu trabalho junto ao leito da sua vizinha ou sua amiga enferma, assim fazendo-se companhia mutuamente. E dizia-o com a maior naturalidade, sentindo talvez, em sua alma boa, que de tanto amparo necessitava ela como a pessoa a quem tão abnegadamente servia na moléstia.

            Pobre entre as mais pobres, ninguém naquela pequena cidade espalhou tanto beneficio como a senhora a quem eu me refiro.

            Um vestido longo e escuro, calçando sapatos leves e sem saltos, os longos cabelos suspensos, em tranças, à parte posterior da cabeça, ela percorria todos os bairros da pequena cidade, ligeiramente, às pressas, como si o fizesse a negócios, mas realmente à procura de um beneficio a fazer, de um ato de caridade a praticar, o que ela fazia sem compreender estar exercendo a caridade como Paulo de Tarso a descreveu, mas apenas agindo com o intuito único de minorar, de combater o sofrimento alheio.

            É provável não pertencer mais ao número dos vivos, tendo ido certamente, se deixou de existir, colher o fruto da sua bondade, da dedicação com que compreendeu a mais sublime das virtudes.

            Deixo de citar lhe o nome, - e que vale um nome? - para que, caindo estas linhas sob as vistas de algumas pessoas de sua família, ou de sua vizinhança ou suas antigas relações, pessoas que não a compreenderam devidamente, não lhes arranque o meu pobre escrito algumas palavras de protesto.

            Há criaturas assim. Passam pela vida sem ser compreendidas pela grande massa popular, sem ser sequer notadas por muitíssimos, e entretanto deixam após si, na roda dos seus íntimos, ou entre os raros observadores atentos e imparciais dos homens e das coisas, um rastro luminoso que Deus certamente transforma, após a passagem desta à outra vida, num halo de bênçãos pelas regiões sidéreas.

            A pessoa de quem falo é um desses casos, uma das Pérolas Ocultas disseminadas pelo mundo.

            É de criaturas semelhantes que os hospitais necessitam, para que possam eles ser chamados, sem ironia, casas de caridade.

por Abel Gomes
in ‘Pérolas Ocultas e Factos Comentados’

Ed. FEB  -  1943