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terça-feira, 7 de maio de 2019

Comunicação



Comunicação
Francisco de Assis
Reformador (FEB) Jan 1920

            Por mais endurecido que seja o metal, submetido no fogo liquefaz-se e recebe a forma que se lhe quer imprimir.

            Se esta não corresponde ao gosto idealizado ou se apresenta falha volta o metal ao fogo, passa de novo pelo mesmo processo até que seja alcançada a concepção artística. Assim, meus filhos, o espírito:

            Criado para o bem descambou na queda! Mas, por misericórdia do Senhor, por si mesmo, por sua inteligência e livre arbítrio, vai se refundindo nas provas consequentes da sua queda. E, nesse apurar de sofrimentos e dores consecutivas, a inteligência se lhe vai desenvolvendo, novos horizontes se vão abrindo para a sua evolução.

            O espírito é o autor do seu progresso e, por isso, em cada desventura ou desilusão que a dor lhe proporciona ei-lo que, modificando os seus sentimentos, vai compreendendo de seguir a Lei Suprema que preceitua o amor a Deus sobre toda as coisas e ao próximo como a si mesmo. Então, libando o gozo de emoções cada vez mais doces, o livre arbítrio submete-se ao império da inteligência que alça o seu voo em busca da perfeição,

            Buscai, meus filhos, que vos chegue essa quadra bem-aventurada da existência em que a inteligência e a virtude se confundam, para, juntas, auxiliarem a ascensão para Jesus, Que Este vos abençõe.

domingo, 7 de dezembro de 2014

5b AntiCristo senhor do mundo


5b

            A história da Igreja cristã, nestes dezenove séculos decorridos, tem sido uma flagrante representação objetiva da alegoria expressa na parábola do joio entre o trigo, com exclusão apenas do desfecho, que os sinais do tempo presente anunciam aproximar-se, mas cuja integral consumação à exiguidade da visão humana ainda se afigura vir distante.

            Os que se preocupam, moralistas e pensadores, com os alarmantes sintomas de dissolução moral, que é a característica de nossos dias, consequente da irreligiosidade que por toda parte predomina, gerando o excessivo culto da matéria e a vertiginosa corrida a todos os seus gozos, reconhecem a necessidade de uma renovação religiosa, que restitua aos homens o sentimento de seus deveres e de suas responsabilidades, inerente à crença em seus destinos imortais. Alguns., ou seja obnubilados pelo espírito de sectarismo, ou por deficiência de apreciação, que lhes não consente discernir a verdadeira significação da sobrevivência da igreja romana a tantas vicissitudes seculares, entendem que a volta dos desertores do rebanho católico ao seu grêmio, de par com a conversão, dos indiferentes ao seu credo, resolveria o angustioso problema contemporâneo. Outros, ponderando unicamente os graves erros durante séculos acumulados por essa igreja, o seu espírito reacionário e intolerante, reconhecem-na falida em sua missão espiritual e só têm para ela palavras de condenação.

            No alvitre ilusório dos primeiros, como no radicalismo, condenatório dos segundos, há - repetimos – deficiência de apreciação. Para julgarmos com justiça a igreja, no curso de suas realizações e de suas graves delinquências, através a história, cumpre discernir as duas modalidades que nela se acham nitidamente representadas c se não devem confundir num mesmo julgamento. Uma é o partido politico, formada pelo seu corpo administrativo, a outra a família cristã propriamente dita, subordinada contudo à direção daquele.

            O primeiro, chefiado pelo papa e composto não somente do alto clero que constitui a corte pontifícia, mas de todo o exército eclesiástico, disciplinado e obediente, é o responsável pelos abusos, prevaricações e atentados contra a doutrina do Senhor, que teria definitivamente impopularizado, causando a sua ruína irreparável e fazendo soçobrar a própria igreja, se não tivesse esta sido, em todos os tempos, sustentada pelos sentimentos religiosos da família cristã.

            Sobre esta, de que - apressemo-nos a acrescentar - têm feito no passado e ainda hoje fazem parte os prelados de todas as categorias, verdadeiros crentes, portadores das virtudes cardiais - humildade, fé e caridade - é que o Espirito do Senhor se tem difundido, mantendo a estabilidade da sua Igreja, composta não apenas - cumpre ainda advertir - de cristãos professos, mas de todos os homens de boa vontade que, mesmo não pertencendo a nenhuma confissão religiosa, dotados, porém, de coração puro e consciência reta, praticam por toda parte o bem, na ordem moral, sem cogitar de retribuição. Ainda que se nos afigure limitadíssimo o seu número, esses pertencem de facto à Igreja invisível do Cristo, cujos membros se distinguem pelas boas obras e não por quaisquer insígnias exteriores.

            O partido politico, ao contrário, que tem o seu quartel general no Vaticano e representação diplomática em todos os países, preocupa-se antes de tudo com o domínio temporal, só pela violência se deixou despojar dos Estados pontifícios, sem de todo renunciar à sua restituição - teremos ocasião de ainda fazer a isso nova referência - corteja a força e foi, em todos os tempos, aliado dos poderosos, em detrimento dos humildes. É, numa palavra, e não parece resolvido a deixar de ser, uma potência exclusivamente mundana, fazendo da religião, que explora e em cujos dogmas finge hipocritamente acreditar, apenas o pretexto para ostentação do seu poderio e satisfação de suas insaciáveis ambições. O "tesouro de S. Pedro" - que de resto "não possuía ouro nem prata" - é o alicerce da sua grandeza, embora pretenda, para iludir o mundo, ser o depositário das "chaves elo reino dos céus" e o representante de Deus, com poderes para absolver e condenar os homens.

            Enquanto a ideia cristã é imperecível, vive no coração dos crentes, como chama divina alimentada pelo próprio Cristo, e há de regenerar as sociedades humanas, sob a modalidade renovada de que oportunamente nos ocuparemos, o partido politico, ou a igreja de Roma - verdadeira criação do AntiCristo, que a tem subjugada ao seu império - encontra-se em face do seguinte dilema, cujo imperativo só a obstinada cegueira dos seus orientadores não permitirá reconhecer: ou, para salvar-se do naufrágio e sobreviver, terá que radicalmente modificar-se, voltando á edificante simplicidade e às austeras virtudes dos primeiros tempos apostólicos, ou terá que desaparecer, em época talvez distante, mas inevitável, arrebatada no tufão demolidor que, desencadeado na esfera político-social - e os seus rumores crescem dia a dia - terminará por derrubar os derradeiros tronos, que a esse tempo existirem sobre a terra.

            Ora, essa igreja ou, indiferentemente, esse partido político, adversário natural do Cristianismo, de que é a antítese, não parece resolvido a aceitar melhor no futuro; do que o fez no passado, as suasórias lições que o Senhor; em sua longanimidade, lhe tem enviado.

            Com o apostolado franciscano, que devia ser para essa igreja, como o foi para a cristandade, uma fonte de regeneração, já vimos de que modo se conduziu ela. Depois de ter apunhalado de desgostos o patriarca, deturpando a sua obra e fundindo-a por último no mesmo regime de quase completa esterilidade das antigas ordens, limitou-se, como. hipócrita compensação, a canoniza-lo e erigir-lhe, com desrespeito à humildade de sua vida, uma suntuosa basílica.

            Aniquilada aquela generosa iniciativa, recrudesceu a dissolução de costumes, e a decadência do pontificado, que se vinha acentuando desde o começo do século XIV, veio a atingir o seu período culminante com o grande cisma do ocidente, que se declarou, como vimos, em 1378.

            O concílio de Constança, convocado em 1414 não somente para pôr termo ao cisma e restabelecer a autoridade pontifícia, mas para tomar medidas radicais que restaurassem a disciplina eclesiástica e pusesse cobro aos desregramentos do clero, foi, quatro anos depois - em abril de 1418 - encerrado pelo papa Martinho V, eleito depois da sua abertura, sem terem sido feitas as reformas reclamadas.

            Ao contrário disso, porque João Huss, que se fizera intérprete dos clamores populares, prosseguisse em sua moralizadora propaganda, o escolheu para vítima de sua criminosa incoerência e, como precedentemente o recordamos, tornou-se cúmplice da sua execução. Porque o movimento reformador, segundo o atesta a historia, "tinha-se manifestado de três modos: dentro da própria igreja, nos conselhos dos príncipes seculares e no seio do povo. Os reformadores mitrados, entretanto, e o reformador secular, Segismundo, deram-se as mãos para condenar e supliciar o revolucionário popular".

            Preso, por ordem do papa João XXIII, que a esse tempo (1415) exercia o pontificado e contra quem, de resto, o concílio formulara "acusações porventura mais graves e afrontosas que todos os vitupérios de João Huss", foi este, depois de uma simulada proteção do imperador, entregue ao braço secular, perecendo intrepidamente na fogueira. A mesma sorte coube, pouco depois, ao seu discípulo Jerônimo de Praga, com quem ocorreu o conhecido incidente do camponês que, no momento do suplício, chegava, com fanático zelo, mais lenha à fogueira, provocando esta serena exclamação do condenado: "Santa simplicidade! Peca mil vezes mais quem dela abusa!"

            Encerrado, como dissemos, o concílio em 1418, sem terem sido tomadas as medidas reclamadas pela situação anárquica da igreja, o papa Martinho V convocou outro para Basiléia, morrendo, porém, logo depois. O concílio foi aberto em 23 de julho de 1431 por ordem do papa Eugenio IV, que pretendia "extirpar as heresias, estabelecer perpetua paz entre as nações cristãs, pôr termo ao secular cisma dos gregos e reformar a igreja". Assustado, porém, com a excessiva atividade dos membros do concílio, apressou-se em adia-lo. A assembleia contudo prosseguiu em seus trabalhos, citou Eugenio IV para comparecer, acusou-o de desobediência e declarou-se superior a ele.

            Nesse ambiente agitado foram votadas várias reformas moralizadoras, mas o dissídio prosseguiu, agravado por novos incidentes, que omitimos, só vindo a terminar o grande cisma do ocidente em 1449 e restabelecer-se a paz na igreja, com a ratificação, pelo papa Nicolau V, da concordata firmada por Felix V com Frederico III e mediante proposta deste. Paz, em verdade, transitória, que melhor se denominaria trégua, pois que, não tendo sido postas em prática as medidas radicais tendentes à moralização dos costumes eclesiásticos, prosseguiram os desregramentos, até que no começo do século XVI, isto é, aos albores já da Renascença, estalou a grande crise.


5a AntiCristo senhor do mundo



5a

V. Escopo do apostolado franciscano menosprezado pela Igreja.
- Crescimento paralelo do "trigo" e do "joio". - O partido político e a família cristã.
- Novo movimento de reação, tendente a restabelecer e popularizar o Evangelho. - Martinho Lutero e a Reforma. O AntiCristo não renuncia ao seu predomínio.
- Excessos e frutos do fanatismo. - Deficiência do movimento reformista.
- O reino dividido.

            Foi verdadeiramente uma rajada de luz, vinda do Alto, a passagem de Francisco de Assis pelos flancos da igreja romana. Porque ele, de fato, nunca pertenceu a essa igreja, de que apenas, como o próprio Cristo, veio a tornar-se prisioneiro, desde que aos sagazes detentores da direção espiritual da cristandade pareceu conveniente se apropriarem do nome e da vida gloriosa do santo, para enriquecerem de imerecida auréola a instituição que vinham profanando com suas paixões desordenadas.

            A ação do patriarca foi exercida paralelamente e não dentro da própria igreja. A razão é fácil de compreender-se.

            O Senhor Jesus havia prometido à humanidade, simbolicamente representada em seus apóstolos, reunidos em torno da Ceia pascal: "Não vos hei de deixar órfãos". Quando, portanto, depois de haver feito a sua redentora doutrina triunfar de todas as vicissitudes, desde as ferozes perseguições iniciais à sua adoção por Constantino como religião do Estado e, através as múltiplas agitações e controvérsias dos séculos seguintes, não obstante as alterações na letra e no espírito que a animava, tornar-se o fundamento estrutural das sociedades ocidentais, quando - repetimos - a viu conspurcada e quase desaparecida em seus frutos de regeneração, pela mistura com as ambições politicas e o desregramento de costumes ostentado pelo clero e contaminando o próprio povo, destacou o seu Enviado, infundiu-lhe o seu espírito e, por ele, operou os prodígios de ressurgimento cristão, que deviam restituir à Igreja, com idênticos caracteres, o esplendor dos primitivos tempos.

            Desde o período apostólico o mundo, com efeito, não tornara a presenciar igual movimento de vitalidade religiosa e efusão do espírito divino, como durante a vida do excelso patriarca, sobretudo - como precedentemente o assinalamos - nos dez primeiros anos que se seguiram à fundação da Ordem dos irmãos menores. E, se os fiéis companheiros, de que se rodeou, porfiaram em diligentemente o imitar, Francisco de Assis foi, realmente, por sua estatura de verdadeiro missionário, o centro irradiado  desse movimento de renovação.

            O seu apostolado, fundado intencionalmente na Pobreza, foi uma obra de amor e de humildade. Tanto como de pureza espiritual e de renuncia. Para corrigir os vícios dos serventuários do altar, envilecidos em suas desvairadas ambições de ouro e de mundano poderio, para edificar a cristandade, extraviada pela conduta de seus pastores infiéis e restituir à doutrina o prestígio de seus postergados mandamentos, que melhor e mais oportuno remédio que o contraste daquela vida de indigência material, duplicada de excelsas virtudes morais, oposto às falaciosas opulências do clero e aos seus costumes dissolutos. A incredulidade e ao sórdido materialismo, que haviam terminado por implantar-se no seio da igreja, importava contrapor a fé em que se abrasava o santo, a certeza da vida imortal de que ele, por antecipação, participava, e os dons do espírito que através de seus atos fluíam da divina Fonte e o tornavam um veículo irradiador do saneamento de almas e de corpos, como em tão grande abundância o atestaram os testemunhos de seus contemporâneos que determinaram a abreviação do prazo para sua canonização, nos termos a que aludimos no anterior capitulo.

            Posto assim diante da igreja, como exemplo vivo das potências realizadoras do Espírito, inspirado no amor e na humildade, ao mesmo tempo que transportado na fé que animava o seu instituidor, o escopo do apostolado franciscano, evidentemente suscitado pelo Senhor Jesus, era restaurar em seus fundamentos a Igreja, na iminência de ruína, e restituir-lhe a função de remodeladora dos costumes e orientadora das sociedades humanas em o rumo de seus destinos espirituais.

            Não se tratava certamente de uma brusca subversão na estrutura orgânica e exterior da igreja, que subitamente a transformasse numa vasta confraria, rigidamente plasmada nos moldes franciscanos. O que o trabalho dos séculos realizara, só poderia ser modificado por uma gradual substituição, inflexivelmente prosseguida. A reforma devia operar-se energicamente, sim, mas de dentro para fora, isto é: cumpria que, desde o pontífice aos prelados da menor categoria, o clero antes de tudo se convertesse novamente ao Evangelho, cujos preceitos havia desertado, e, adotando um teor de vida irrepreensível, desse testemunho dessa conversão. À libertação interior do apego aos bens materiais, seguir-se-ia o complemento exterior da abolição do luxo na corte pontifícia e nas cerimônias do culto, uma e o outro cingindo-se a proporções de modéstia e de simplicidade, que lhes não diminuiriam o prestigio, antes o exalçariam, fazendo-o de preferência consistir na prática de virtudes e na sobriedade, que as coisas sagradas, por sua natureza, exigem.

            Da eficácia desse programa, tendente a promover o rejuvenescimento e a prosperidade espiritual da igreja, o melhor testemunho ali estava na vitalidade, por toda parte suscitada pelo apostolado franciscano. Em lugar, portanto, de o absorver e deturpar em seus caracteres substanciais, como o terminaram por fazer os pontífices romanos, chegando alguns, em sua desvairada cegueira, segundo o vimos precedentemente, a abrir luta com os irmãos menores, aos quais pretendiam negar o direito de ser pobres, por mais esse motivo impopularizando a própria cúria, o que lhes cumpria, para honra e salvação desta, era assegurar ao patriarca a liberdade de ação que desejava, a fim de ampliar aos extremos limites a sua obra regeneradora.

            Mas para isso era necessário que não houvessem eles perdido o senso de sua missão e de suas responsabilidades. Ora, um dos efeitos, sem dúvida o principal, da ação inibitória do AntiCristo, que se vinha, de séculos, exercendo no ânimo dos responsáveis pela direção da cristandade era - como o é em todos que têm o infortúnio de padecer essa influência - gerar primeiro a dúvida e, em seguida, a descrença na própria existência de Deus. Sim, o alto clero e, em grande número, os seus inferiores hierárquicos haviam perdido a fé. Procediam, pelo menos, como filhos do século e materialistas consumados. Daí o seu desregrado apego às coisas deste mundo, únicas em que acreditavam. Daí os escândalos, de que fora teatro a corte pontifícia, sobretudo em Avignon, e os excessos de tantos papas, que muitas vezes faziam relembrar os truculentos desvarios dos césares romanos.

            Para essa descrença em Deus muito contribuiria certamente um falso raciocínio sobre a impunidade com que perpetravam e viam outros iterativamente perpetrarem tamanhos e tão escandalosos ultrajes à doutrina do Senhor, cuja guarda e difusão lhes fora confiada. Se Deus existisse -  raciocinariam eles - já teria, suscitando aterradores cataclismos, fulminado os que desonram a Sua Casa. Se o consente, é que não existe ou, pelo menos, lhe são indiferentes as coisas d'este mundo. Tratemos, pois, de gozar o mais possível, sem nos preocuparmos do que virá depois.

            Insensatos, que até haviam perdido, com a fé, o senso interpretativo das próprias Escrituras. Porque há no Evangelho uma parábola que, de um lado, exprime profética visão do que sucederia ao Cristianismo e, do outro, constitui um comovedor testemunho da longanimidade de Deus, em face da fragilidade e extravios de suas criaturas - homens e Espíritos. É a parábola do joio entre o trigo, referida pelo Senhor Jesus em seguida à do semeador.

            "O reino dos céus - disse Ele - é semelhante a um homem que semeou boa semente no seu campo. Mas, enquanto os homens dormiam, veio o seu inimigo, semeou joio no meio do trigo e retirou-se. E quando a erva cresceu e deu fruto, então apareceu também o joio. Chegando os servos do dono do campo, lhe disseram: Senhor, não semeaste boa semente no teu campo? Donde, pois, vem o joio? Respondeu-lhes: Homem inimigo é quem fez isto. Os servos continuaram: Queres então que vamos arrancá-lo! - Não, respondeu ele, para que não suceda que, tirando o joio, arranqueis juntamente com ele também o trigo. Deixai crescer ambos juntos até a ceifa, e no tempo da ceifa direi aos ceifeiros: Ajuntai primeiro o joio e atai-o em feixes para o queimar, mas recolhei o trigo no meu celeiro."

            A significação espiritual dessa parábola foi dada pelo próprio Cristo aos seus discípulos, que a solicitaram, em termos restritivos, apropriados a sua capacidade, mas que podem ser, nalgumas expressões, ampliados e esclarecidos, consoante o adiantamento das inteligências e os dados da Revelação nova, que vem preparar os novos tempos.

            Explicou, pois, o Senhor aos seus discípulos:

            "O que semeia a boa semente é o Filho elo homem; o campo é o mundo; a boa semente são os filhos do reino; o joio são os maus filhos. O inimigo, que o semeou, é o Diabo; o tempo da ceifa é o fim do mundo e os ceifeiros são os anjos. De maneira que, assim como o joio é ajuntado e queimado no fogo, assim acontecerá no fim do mundo. O Filho do homem enviará os seus anjos e eles tirarão do seu reino todos os escândalos e os que praticam a iniquidade e os lançarão na fornalha de fogo. Alí haverá o choro e o ranger de dentes. Então resplandecerão os justos como o sol no reino de seu Pai. O que tem ouvidos de ouvir, ouça."
           
            Agora a ampliação interpretativa. O Senhor Jesus semeou no mundo, sancionando-a com o exemplo e o martírio, a sua doutrina redentora. Com ela converteu e tem, ao longo dos séculos, convertido pecadores em discípulos, ou filhos da luz, participantes do seu reino, ao mesmo tempo que sublimado nessa categoria os espíritos consideravelmente evoluídos, que tem enviado à Terra, com a missão de acelerar, pelo exemplo de suas virtudes, o adiantamento espiritual da humanidade; legítimo trigo por Ele semeado no terreno inculto deste mundo. O AntiCristo, porém, infatigável em suas reacionárias investidas, aproveitando o sono dos encarregados de velar pela sementeira, isto é, a falta de vigilância introspectiva dos pastores religiosos, tem não somente suscitado falsas doutrinas, mas estimulado os vícios e paixões nos próprios que ouviram a palavra do Evangelho, sem, todavia, como na parábola do semeador, anteriormente referida pelo Mestre, lhe guardar fidelidade, antes conspurcando-a com suas violações e só exteriormente adotando as insígnias de cristãos.

            Aproxima-se, porém, o fim do mundo, por essa expressão devendo entender-se não o aniquilamento catalítico do globo, mas o fim do velho mundo moral ou - equivalente-
mente - a terminação do ciclo desta civilização estrepitosa e materialista, irreligiosa, portanto, que se ostenta em nosso século, para ceder lugar a uma nova era, de espiritualização da humanidade, em que, aproveitadas todas as maravilhosas conquistas da ciência, para beneficio de todos e não apenas de uma minoria de favorecidos, o Evangelho será restabelecido em espírito e verdade, no esplendor de seus ensinamentos. Era de ascensão da Terra na hierarquia sideral, passando de esfera expiatória á categoria de mundo de regeneração, não sendo inadmissível - acrescentemos incidentemente - a ocorrência de alguns cataclismos parciais, que modifiquem, melhorando-as, as suas condições de habitabilidade, os Espíritos que, por sua obstinação no mal, se tornarem indignos de aqui voltar ou, conforme a sua rebeldia, de sequer permanecer em a nossa atmosfera, serão retirados pelos anjos do Senhor e conduzidos a planeta, ou sistema planetário, em formação - verdadeira fornalha ígnea, como o foi o nosso - em cujo ambiente, saturado de gazes asfixiantes, aguardarão, entre "choro e ranger de dentes", a época de baixarem a tomar novos corpos, para recomeço de evolução, que se tornaram incapazes de prosseguir na Terra, então regenerada. Os justos, que nela permanecerem, nela implantarão, com a Lei do Cristo, fiel e universalmente observada, o reino de seu Pai, isto é, de justiça, de paz e de fraternidade. E, como o sol, em sua deslumbradora irradiação física, resplandecerão eles de virtudes nesta morada, tornada então celestial.

            Esta, segundo os dados da Revelação nova, a significação espiritual do julgamento.


sexta-feira, 21 de novembro de 2014

4f. AntiCristo senhor do mundo


4f


            Voltemos ao patriarca.

            Entre as numerosas conversões que obteve, conta-se, em 1213, a do fidalgo Orlando de Chiusi de Consentino, que ofertou à Ordem a propriedade do Mont’ Alverne, tornado célebre não somente pelas demoradas visitas que a ele fez posteriormente o apóstolo, mas pelo fenômeno de estigmatização, que aí se lhe produziu e de que adiante falaremos.

            Prosseguindo a obra de evangelização com êxito crescente, quer pela entrada de novos irmãos na Ordem, quer pelo acolhimento que da parte do povo encontrava, operando sensível ressurgimento da fé e melhorando os costumes, promovendo, numa palavra, uma verdadeira restauração, pelo menos parcial, da Igreja Cristã, houve que amplia-la a outros países da Europa e ao Oriente, para onde Francisco enviou alguns de seus abnegados companheiros, seguindo ele mesmo, em 1219, com outros irmãos para o Egito, a anunciar a Boa Nova (1).

            (1) Dos frutos dessa evangelização nos dão noticia os trechos seguintes de uma carta de Jacques de Vitry, citada pelo cronista de cujos depoimentos nos temos socorrido:
               "Tenho a dizer-vos que, Maitre Reynier, prior de S. Miguel, entrou na Ordem dos Irmãos Menores, ordem que por todos os lados se multiplica muito, porque imita a Igreja primitiva e segue em tudo a vida dos apóstolos.    "O mestre desses irmãos chama-se o irmão Francisco: é tão amável que se faz venerar por todos. Vindo para o nosso exército, não temeu, por zelo pela fé, as iras dos nossos inimigos.
               "Colin, o inglês nosso letrado, entrou na mesma Ordem, assim como dois outros dos nossos companheiros, Miguel e D. Matheus, ao qual eu tinha confiado o curato da Santa Capela. Castor e Henrique fizeram o mesmo, bem como outros cujos nomes esqueço."
           
            Antes disso, porém, ocorreu um sucesso que merece destaque. Levado a Roma pelo cardeal Hugolino, que tomara como protetor da Ordem, contra a má vontade do sacro colégio, e obrigado a pregar diante do papa, Francisco de Assis, tendo preparado a sua oração, no momento de a proferir, esqueceu completamente o que escrevera e humildemente o confessou. Mas tão inspirado logo se sentiu que improvisou um eloquente discurso, com que subjugou toda a assistência.

            Ali sofreu ele a primeira investida contra a pureza institucional da sua comunidade. Encontrando-se com o patriarca da Ordem dominicana, pretendeu este induzi-lo a fundir na dele a Ordem franciscana, para satisfazer os desejos do papado e também para melhor desse modo retribuir os favores que da cúria romana recebera, em virtude dos quais não hesitara em adoptar na sua comunidade a regra de S. Agostinho.

            Francisco de Assis opôs-se formalmente: "queria isolada e simples a sua querida Ordem dos irmãos menores".

            O inimigo, entretanto, não desanimou. Enquanto Francisco evangelizava no Oriente, o cardeal Hugolino, que só hipocritamente se fizera protetor dos franciscanos, impunha às clarissas a regra beneditina, a que tanto se opusera o patriarca, ao mesmo tempo que os substitutos deste no governo da Ordem, atraiçoando a confiança que neles fora depositada, "mitigavam os votos, multiplicavam as observâncias, precipitavam a Ordem na imitação das antigas, adstringindo-a a meras prescrições ritualísticas".

            Avisado Francisco de Assis do que ocorria, regressou imediatamente do Egito e ficou desolado, ao encontrar "evidentes sinais de relaxação: os frades já eram proprietários", violando assim o voto de pobreza absoluta que haviam feito.

            Recorrendo ao cardeal Hugolino, este, em lugar de apoiar o patriarca, procurou convence-lo de que "convinha entrar a Ordem sem demora no regime habitual do catolicismo, aceitando as concessões de Roma". O privilégio das irmãs clarissas foi cassado, e o papa Honório III expediu em 1220 uma bula modificando os dispositivos da regra franciscana.

            Diante desse criminoso desmoronamento da sua amada comunidade, no que se refere ao espírito em que fundamentalmente a instituíra, Francisco de Assis, com a alma transpassada de amargura, reuniu em setembro daquele ano o último capítulo geral, a que presidiu, e abdicou suas funções em Pedro de Catania, dizendo aos companheiros: "De ora avante, irmãos, morri para vós; mas eis aqui o irmão Pedro de Catania, a quem todos vós e eu obedeceremos".

            Fiel aos seus sentimentos de humildade, não tendo embora senão lágrimas no coração para presenciar a deturpação da obra que com tanto amor edificara, conservou-se o patriarca na prometida obediência, assistindo ainda ao capítulo geral de 1221, em que Pedro de Catania foi, a seu turno, substituído pelo irmão Elias.

            Terminara para a Ordem o período de inspiração e liberdade, entrando ela no regime de absoluta sujeição à igreja.

            "O santo - informa o cronista - deixando a Porciúncula, buscou a solidão nas montanhas da Úmbria. Em 1224 assistiu ele pela última vez ao capítulo geral, dirigindo-se em seguida, com os irmãos Masseo, Ângelo e Leão, para o famoso Mont'Alverne".  Alí ocorreu, na manhã de 14 de setembro, após uma longa vigília de penitência e oração, o fenômeno de estigmatização, a que aludimos.

            "Nos raios quentes do sol a erguer-se, o qual, sucedendo ao frio da noite, vinha reanimar lhe o corpo, distinguiu de repente o santo uma forma estranha. Um serafim, asas abertas, voava para ele dos confins do horizonte, inundando-o de alegrias inexprimíveis. No centro da visão aparecia uma cruz e o serafim estava pregado nela. Quando a visão desapareceu, sentiu que às delicias do primeiro momento se juntavam dores pungentes. Profundamente confundido, procurou com ansiedade a significação de tudo isso e encontrou, impressos em seu corpo, os estigmas do Crucificado".

            Tratou de ocultar humildemente os sinais glorificadores, passando desde então a andar calçado e escondendo as mãos nas mangas do hábito, mas não tardou em ser descoberto, daí lhe provindo a conhecida designação de "São Francisco das Chagas".

            Em fins de setembro deixou para sempre, com profunda saudade, o Mont' Alverne, dizendo adeus às arvores amigas e seguindo para a Porciúncula, onde pouco se demorou, entrando em seguida a evangelizar o sul da Úmbria.

            Era já o ocaso da sua missão. Ferido no amor exuberante com que servia ao Senhor e que se desdobrava enternecido por todos os seres da criação, não era mais que uma sombra angustiada e errante daquele jovial condottiere do Bem, que fraternizava com as aves, entoando, de conserto, hinos de glorificação ao Criador; que tirava as formigas e as lagartas do caminho, para não serem pisadas, e agasalhava na manga do hábito as cigarras, que lhe vinham cantar na palma da mão; que, em sua profunda humildade, não apagava as lâmpadas e as velas, “para não profanar a luz com o seu sopro", nem amarfanhava uma folha de papel escrito, porque podia conter as letras com que se escreve o nome de Jesus. O poeta, que compusera o maravilhoso "Hino do Sol", que celebrara as cariciosas belezas da Água, como das mais preciosas dádivas de Deus às criaturas deste mundo e tecera apaixonados madrigais a Dona Pobreza, continuava, sim, a bem-dizer e louvar o Criador por tudo e por todas as coisas, sem exceção do próprio sofrimento, com que exalta e aperfeiçoa as potencialidades da alma humana, mas não podia esquivar-se à infinita amargura que lhe resultava de ver lançada por terra a obra com que, no seu expressivo dizer, "Deus quisera fazer um novo pacto com o mundo".

            Esse traumatismo moral não podia deixar de afetar-lhe profundamente o organismo. Adoeceu, por isso, mais de uma vez, gravemente, sendo removido, em busca de melhoras, para a ermida de Monte Colombo, perdida entre árvores e rochedos, e mais tarde para Siena, sem resultado, sendo acometido de vômitos de sangue.

            Quis então voltar para a Úmbria. "Tinha pressa em rever a sua Porciúncula e os mais lugares que se avistam dos terraços de Assis e tão doces recordações lhe avivavam".

            Numa de suas mais agudas crises viram-no, ardendo em febre, levantar-se de repente na cama e bradar com desespero: - Onde estão os que me roubaram os irmãos? Onde estão os que me roubaram a família?

            "É necessário recomeçar - pensava alto - criar uma nova família, que não esqueça a humildade: ir servir os leprosos e, como outrora, pormo-nos sempre, não só em palavras, mas na realidade, abaixo de todos os homens".

            Na PorciúncuJa ditou um testamento para os irmãos menores e ditou outro para as filhas de santa Clara, "que interessados fizeram desaparecer".

            Aproximava-se o desenlace, cujas particularidades resumimos. Do palácio episcopal de Assis, onde ocorrera a derradeira crise, foi a seu pedido carregado pelos companheiros para a sua querida Porciúncula, detendo-se em caminho, para abençoar a cidade e dirigir-lhe, numa comovida prece ao Senhor Jesus, os últimos adeuses.

            No dia primeiro de outubro (1226) mandou que, despido, o deitassem na terra: queria morrer nas braços de sua dama, a Pobreza. Reposto no leito, a todos pedia perdão e abençoava.

            Da radiosa serenidade, com que encarava a sua próxima libertação, pode ajuizar-se pela despedida que antes, ainda em Assis, dirigira aos companheiros, exortando-os: "Adeus, meus filhos! ficai sempre no temor de Deus, ficai sempre unidos em Jesus. Grandes provações vos estão reservadas! a tribulação vem perto. Felizes os que perseverarem como começaram, pois haverá escândalos e cisões entre vós. Eu vou para o Senhor e para o meu Deus. Sim, tenho certeza de que vou para Aquele que eu servi".

            Depois disso, ainda reuniu ao pé de si os irmãos Ângelo e Leão e entoou com eles o cântico em louvor da morte corporal.

            O desenlace, porém, só veio a ocorrer na Porciúncula, como íamos descrevendo, ao cair da tarde de 3 de outubro, verificando-se por essa ocasião um tocante sucesso, assim narrado pelo irmão Boaventura:

            “À hora do passamento, as cotovias, aves que amam a luz e temem as sombras do crepúsculo, juntaram-se em grande número sobre o teto da casa, embora se aproximassem as sombras da noite, e, esvoaçando com certa alegria desusada, entraram a dar testemunho, tão gracioso quão evidente, da glória do santo, que costumava convida-las para louvarem a Deus".

            Saudado assim, do lado de cá, por esse coro de inocentes e delicadas criaturas, que um poder divino punha indubitavelmente em alvoroço naquele momento, para confusão dos néscios e edificação dos sapientes, penetrou os umbrais da imortalidade e foi, do lado de lá, recebido entre hinos glorificadores dos anjos do Senhor, aquele que, fiel até a morte, O servira com todas as potencialidades de sua alma, ébria de amor divino, e tudo fizera realmente para cumprir a determinação de "restaurar a sua Casa, na iminência de ruina".

            Pouco importa que, na obnubilação da consciência, que os infelicitava, não tivessem os detentores da direção visível da igreja aproveitado a misericordiosa lição e advertência que, pelo humilde "poverello" de Assis, lhes enviara o Senhor e de que voltaremos, no próximo capítulo, a ocupar-nos com o possível desenvolvimento. Nem por isso a obra franciscana, por sua repercussão nos costumes e na restauração da fé, entre membros do clero e no seio do povo, deixou de ser uma fecunda tentativa de salvação da igreja, indubitável, embora temporariamente apenas, obtida, amparando-a contra os mais graves efeitos da crise que a assoberbava e - tal a pressão oculta que a desorientava - apenas mitigada, não tardou em recrudescer, como vimos páginas atrás, desdobrando-se nos séculos imediatos.

            Rematemos, por agora, as referências ao sublime "poverello", por muitos com justo título denominado "o Cristo da Idade Média", assinalando que o prestígio de suas virtudes de tal modo universalmente se impusera que, menos de dois anos após o seu desprendimento, isto é, aos 26 de julho de 1228, com inobservância do interregno para casos tais estabelecido pela cúria romana, mas tendo em consideração os notórios e abundantes sinais de santidade patenteados em sua vida, o papa Gregório IX presidia em Assis às cerimônias da canonização e a 27 colocava a primeira pedra da famosa basílica consagrada S. Francisco".

            Assim - não é possível esquivar-nos ao oportuno comentário - os infiéis "vigários do Cristo" que, insensíveis à providencialidade e aos intuitos da obra franciscana, haviam atormentado a vida do seu excelso fundador, acabrunhando-o de desgostos pela impiedosa deturpação com que a mutilaram, tanto que o viram libertado, deram-se pressa em reivindicar para a periclitante igreja, que desgovernavam, a glória daquela figura incomparável. E eles, que lhe não tinham sabido respeitar as virtudes, nem muito menos imitá-las, arrogaram-se a autoridade, de resto meramente convencional e exterior, de conferir-lhe a santificação. Infiéis, todavia, uma vez mais ao espírito do Cristianismo, outra forma não encontraram, para glorificar a memória do que fora, antes de tudo, acima de tudo e sempre, o apóstolo da Pobreza, senão a ereção de uma basílica suntuosa.


            Incoerência de cegos, que se obstinavam em permanecer condutores de cegos!

4e. AntiCristo senhor do mundo

4e

            O mesmo se pode, infelizmente para ela, dizer da magnífica obra realizada, com idêntica intenção, no começo do século XIII, por esse outro iluminado, verdadeiro espírito celeste, que se chamou Francisco de Assis.

            À semelhança de Saulo, no período anterior ao desabrochar de sua vocação, mas de um caráter diametralmente oposto ao do convertido de Damasco, pela compassiva doçura e jovialidade, que era o traço fundamental da sua índole, o "poverello" de Assis apresenta um contraste expressivo entre os primeiros anos de sua mocidade, dissipada em estroinices levianas, e a fase imediata, de consagração integral ao serviço do Senhor, em que se revelou a mais completa, a mais fascinante personificação das virtudes evangélicas.

            De origem plebeia, filho que era do mercador Pedro Bernardone, que se enriquecera no comércio de fazendas, escassa foi a instrução que recebeu e que, mesmo depois de convertido, não se preocupou de ampliar além do indispensável ao exercício do seu ministério, conservando assim a mente liberta das sutilezas teológicas e o coração inteiramente livre para amar com fervor e servir com fidelidade a causa de Jesus. Como, por outro lado, nunca veio a receber as ordens sacras, conservando-se sempre um filho do povo, mais propriamente, um leigo militante do Evangelho, essa mesma ignorância, que as efusões transfiguradoras do Senhor iluminavam de sabedoria, o preservou das seduções e do contágio da igreja oficial.

            Até aos 20 anos repartia a sua atividade entre os misteres da loja de seu pai e as estroinices a que o arrastavam a sua imaginação e o pendor para as aventuras, quando, ao rebentar, em 1202, o dissídio entre as cidades de Assis e Perugia, alistou-se e combateu pela causa popular da primeira, caindo, porém, prisioneiro e ficando detido como réfem um ano inteiro.

            Assinada a paz de 1203, foi restituído à liberdade e recomeçou a mesma vida de dissipações, de que lhe resultou adoecer gravemente e ter de pedir aos ares tonificantes das montanhas da Úmbria a restauração das energias combalidas.
           
            Durante essa crise de enfermidade a graça do Senhor o visitou, infundindo-lhe ao começo um desgosto profundo pela "vã saciedade dos prazeres a que se entregara", e, em seguida, mediante sonhos reveladores, despertando-lhe vivo o sentimento de sua vocação, cujo verdadeiro rumo, todavia, não se lhe apresentou senão depois de angustiosas perplexidades e porfiadas lutas interiores.

            Um primeiro sonho pareceu indicar-lhe que estava destinado a combater pela glória do Senhor, incorporando-se aos Cruzados, que por esse tempo se organizavam para ir à Terra Santa reinvidicar o Santo Sepulcro. Alistou-se, por isso, no exército de Gauthier de Brienne, que andava pelejando por conta do papa Inocêncio IIl. Novo sonho, porém, o dissuadiu, mostrando-lhe a inanidade das glórias cavalheirosas e fazendo-lhe sentir que não aos servos, improvisados em guerreiros, mas ao Senhor diretamente, empunhando as únicas armas espirituais e com desprezo do mundo, é que devia obedecer.

            Regressa a Assis, com extrema surpresa dos seus conterrâneos e, retirado do convívio dos companheiros de estroinice, refugia-se frequentemente no ermo, a procurar no recolhimento e na oração as inspirações para a escolha da direção que conviria imprimir a sua vida. A tranquilidade do ambiente, a paz religiosa que sentia penetrar-lhe a alma o induziam a preferir a vida contemplativa como refúgio e defesas contra as seduções e o tumulto do século. A piedade, porém, pelas misérias do mundo e a profunda simpatia humana, que sempre manifestara por todos os sofredores e constituía; por assim dizer, o substrato de sua natureza comunicativa e amorosa, o convidavam à ação. Mas de que modo?

            Nessas dolorosas perplexidades se lhe atribulava o espírito, até que um dia, entrando na pobre e arruinada capela de S. Damião, como tantas vezes o fizera, prosternado em oração diante do altar, julgou receber a orientação que procurava, ouvindo, maravilhado e enternecido, a voz do Senhor que lhe dizia: "Vai, Francisco, restaura a minha casa que como vês, ameaça ruina".

            Era, com efeito, a deslumbradora revelação, que o Senhor lhe fazia, da missão espiritual a que o destinava. Amortalhado contudo nas obscuridades da matéria, não tendo ainda aberto o entendimento à nítida percepção das divinas verdades, interpretou Francisco literalmente a amorosa intimativa e entrou resolutamente a trabalhar pela restauração material do pequenino templo, logrando mediante esmolas, que diligentemente pedia, ver, no prazo de três anos, concluída não, somente essa obra, mas as da igreja de S. Pedro e do santuário de Nossa Senhora dos Anjos, ou da Porciúncula, para as quais do mesmo modo trabalhou.

            Foi somente ao fim desse tempo, isto é, em 1209 que, assistindo à missa nessa mesma igreja da Porciúncula, a verdadeira natureza da sua missão, como súbita claridade, lhe penetrou o espirito, ao ouvir o celebrante ler os seguintes versículos do Evangelho, contendo as instruções dadas por Jesus aos seus discípulos:

            "Ide e pregai, dizendo que está próximo o reino dos céus. -Curai os enfermos, ressuscitai os mortos, limpai os leprosos, expeli os demônios, dai de graça o que de graça recebestes. Não possuais ouro nem prata, nem tragais dinheiro nas vossas cintas, nem alforje para o caminho, nem duas túnicas, nem calçado, nem bordão; porque digno é o trabalhador do seu alimento."

            Compreendeu então o sentido espiritual daquelas palavras que o Senhor lhe fizera ouvir na capela de S. Damião: a Casa, na iminência de ruína, que Ele lhe ordenara saísse a restaurar, não eram os templos de pedra, mas a Igreja cristã, em sua verdadeira significação - ecclesia - formada pela comunhão dos crentes, periclitante, de um lado, pelas deturpações e pelos exemplos desmoralizadores dos ministros do culto, do outro e como consequência, pelo declínio da fé e da caridade patenteado na dissolução dos costumes e na indiferença religiosa que lavravam, como sintomas alarmantes, entre o próprio povo.

            Quis, não obstante, obter uma confirmação da verdade que se lhe patenteara e, encaminhando-se pouco depois, com dois companheiros, Bernardo de Quintavalle e Pedro de Catania, cônego da catedral de Assis, à igreja de S. Nicolau, "tomou do altar o Evangelho e lhes releu o trecho que decidira de sua vocação, tendo tido o cuidado de se recolherem previamente, a fim de receberem, pela prece, a inspiração que desejavam.

            Assentindo eles, com ânimo resoluto, aquele programa de ação, Francisco de Assis formulou solenemente o compromisso, dizendo-lhes: "Irmãos, eis a nossa vida e a nossa regra e de todos que se nos queiram agregar".

            Assim deliberados, Bernardo de Quintavalle distribuiu pelos pobres os bens que possuía e, em companhia de Pedro de Catania e do patriarca - informa um seu biógrafo - que lhes lançou o hábito, composto de uma túnica de burel e uma corda", encaminharam-se os três para a Porciuncula onde construíram pobres cabanas, para se abrigarem, tendo em volta uma sebe que lhes servia de muro. O claustro - e que melhor lugar para o recolhimento e a oração a Deus - era a floresta em torno.

            Com essa absoluta singeleza estava criada a Ordem franciscana ou, mais propriamente, dos "irmãos menores", como a denominou intencionalmente o seu fundador, empenhado em fazer da Humildade e da Pobreza, que imortalizaram o seu ministério e o seu nome, os alicerces do edifício - renovação do primitivo - em que vinha convidar a abrigar-se a cristandade, na iminência de extravio.

            E como um tímido veio d’água, que em breve se faria caudal irresistível, começou a obra de evangelização pela prédica e o exemplo, não sem molestas resistências iniciais, opostas pela ignorância popular. Para obterem o alimento, ora ajudavam os agricultores nos trabalhos de colheita, ora esmolavam pelas ruas, expostos à irreverencia dos garotos.

            "Quando mendigavam pela cidade, sofriam não poucos vexames, sobretudo das famílias dos penitentes, as quais lhes não perdoavam a perda das riquezas". Deles se ocupa a Lenda dos Três Companheiros, nestes termos:

            "Muitos tomavam os irmãos por mariolas ou doidos e se recusavam a recebe-los em casa, com receio de serem roubados. Assim, em muitas localidades, depois de terem recebido toda a sorte de ultrajes, não achavam outro refugio, à noite, senão os portais das igrejas ou das casas.

            "Havia pessoas que lhes atiravam lama, outras lhes metiam dados nas mãos e os convidavam a jogar; outras se lhes penduravam do capuz e deixavam-se arrastar assim. Vendo, porém, que os irmãos estavam cheios de alegria no meio das tribulações, que não recebiam nem levavam dinheiro e, pelo amor uns aos outros, se faziam reconhecer como verdadeiros discípulos do Senhor, muitos sentiam-se arguidos no coração e lhes vinham pedir perdão das ofensas. Eles lhes perdoavam de todo o coração, dizendo-lhes: "O Senhor vos perdoe". E lhes davam piedosos conselhos sobre a salvação da alma".

            Com esse poder incoercível do amor e da humildade conseguiram não somente vencer as desconfianças e oposições da turba ignorante, mas ver aumentar o número dos irmãos, como eles, resolvidos a adoptar a mesma vida de renúncia, para prédica e exemplificação dos ensinos de Jesus. Francisco de Assis, entretanto, guiado sempre pelas inspirações do Alto, pressentindo o perigo que haveria para a sua obra em desenvolver-se á revelia e sem permissão da autoridade pontifícia, no ano seguinte, isto é, em 1210 partiu para Roma, com alguns companheiros, a fim de pedir a Inocêncio IV a aprovação da "regra" que organizara para a comunidade. Repelido ao começo com rudeza, terminou por obter a desejada aprovação, graças a uma expressiva alegoria com que, descrevendo a investidura da missão que o Senhor lhe havia dado, logrou vencer a resistência do pontífice.

            De regresso a Assis, já não teve que pregar diante de auditórios improvisados, que se formavam nas ruas e nas praças publicas, aos quais - informa ainda o cronista - "se juntavam membros do clero secular, monges, homens instruídos e mesmo ricos, nem todos certamente se convertendo, mas sendo-lhes impossível esquecer aquele desconhecido que um dia tinham encontrado no caminho e em algumas palavras lançara a perturbação e o temor até ao fundo de seus corações".

            A situação mudara. As pessoas que o tinham como herege, a ele e aos seus companheiros, se tranquilizavam, sabendo-o munido de autorização do sumo pontífice, e Francisco entrou a pregar na igreja de São Jorge, em breve tornada insuficiente para conter a multidão que acorria a ouvi-lo, de sorte que teve de transferir as suas prédicas para a catedral de Assis, crescendo sempre o número dos que a sua palavra inspirada convertia à fé e ao serviço do Senhor.

            As pobres cabanas, por isso, já não bastavam também para abrigar o crescente número dos irmãos que entravam para a Ordem, valendo-lhes nessa conjuntura a generosidade dos beneditinos, que lhes fizeram doação do santuário da Porciúncula, para uso perpétuo da nova comunidade.

            A glória, o esplendor perfeito da Ordem dos irmãos menores aí se expandiu durante 10 anos, período em que viveu santamente impregnada do espírito cristão, consoante a regra de 1210, a qual, vasada em preceitos e versículos do Evangelho, "derivava quase unicamente da fascinação exercida pelo santo" - refere um seu biógrafo. - "Segui-la, era imita-lo; aceita-la, era crer nas suas palavras com uma fé interior perfeita e ardente."

            "Tudo - prossegue - se passava com simplicidade inaudita. Em teoria, a obediência ao superior era absoluta; na prática, vemos a cada instante Francisco dar aos companheiros completa liberdade de ação. Entrava-se na Ordem sem noviciado de espécie alguma: bastava dizer a Francisco que se queria levar com ele a vida de perfeição evangélica e prova-lo, dando aos pobres tudo o que se possuísse."

            Em 1212 ingressaram na Ordem os mais notáveis companheiros do patriarca: Silvestre, João, Masseo, Junipero, Rufino e Leão.

            Nesse mesmo ano, a jovem Clara, da família dos Sciff, que se extasiara a ouvir Francisco pregar na catedral de Assis, resolvida a abandonar a vida faustosa da sociedade a que pertencia e dedicar-se ao serviço da pobreza, abandona a casa paterna, em companhia de duas amigas, e faz perante o patriarca o voto de consagrar-se à vida de caridade cristã. Contava 18 anos de idade.

            Com a nova doação, feita pelos monges de S. Bento, da capela de S. Damião, poude santa Clara instalar a sua comunidade, cuja residência era um hospital, para onde Francisco de Assis enviava os enfermos, principalmente leprosos.

            Aí - para resumirmos estas indispensáveis referencias - durante quarenta e dois anos realizou a santa, ou melhor, a irmã Clara uma fecunda obra de evangelização pelo fato, paralela à de Francisco de Assis, induzindo as pessoas do seu sexo a renunciar como ela às vaidades do mundo, não para se engolfarem na vida exclusivamente contemplativa, mas, alternando a ação com a contemplação, para operarem prodígios de caridade cristã, pela assistência aos leprosos, com que imortalizaram, por sua parte, o apostolado franciscano.

            

4d. AntiCristo senhor domundo



 4d

            Em meio ao tumulto das armas, ao aviltamento dos costumes e ao crepitar das fogueiras, com que a "santa" Inquisição insultou as pacíficas tradições do Cristianismo, naquele tormentoso período, em que muitos se detêm a admirar a construção, indubitavelmente maravilhosa, das catedrais, como expressão do pensamento religioso insculpido em arabescos de pedra, o que, a nosso ver, sobressai e permanecerá como incomparáveis contribuições para a obra da civilização verdadeiramente cristã, são: a Imitação de Cristo e o apostolado de Francisco de Assis.

            Escrita no silencio do claustro por um frade, cujo nome se conservou ignorado, pois que ele mesmo se absteve, humilde e cuidadosamente, de o lançar no manuscrito, encontrado só depois de sua morte, a Imitação de Cristo, pela singeleza do estilo em que está vasada e que tanto, ainda nisso, a aproxima do Evangelho, tornando-a a muitos respeitos o seu complemento natural, mas sobretudo pelos lampejos de inspiração divina que nela perpassam não obstante refletir frequentes vezes o ambiente sombrio da época e do meio claustral, constitui um brado exortativo a todas as consciências, um convite misericordioso do Senhor a todas as almas famintas de libertação e de socorro.

            Nesse verdadeiro manual da perfeição cristã, o seu iluminado autor, se algumas vezes flagela, com amargura espiritual, que não com virulência, os desregramentos do seu tempo, em frases como esta: "Ah! Se tanto zelo empregassem em extirpar os vícios e plantar virtudes, como em ventilar questões, tantos escândalos não haveria entre o povo, nem tanta relaxação nos claustros!" - aplica-se de preferência a atrair os homens para as  excelsitudes da vida interior, levantando-lhes as aspirações para as realidades eternas com desprezo das coisas transitórias. Identificado com o pensamento do Mestre, a tal ponto que chega a dele fazer-se, iterativamente, a expressão pessoal, autorizada e viva, quando exorta: "Filho, do céu baixei por tua salvação; assumi tuas misérias, não obrigado, só por amor: para ensinar-te a paciência e a sofreres sem revolta as presentes misérias", ora entremostra os arcanos da Sabedoria pela iluminação interior, mediante uma vida imaculada: "Bem aventurado aquele a quem a Verdade ensina, não por figuras e vozes que passam, mas por si mesma e como em si é," ora, penetrado do sentimento de renúncia, em que culmina a iniciação do crente, e advertido de que o padecer dores no corpo ou no espírito - inseparável contingência de toda criatura humana - representa lei inevitável numa esfera de aperfeiçoamento como a Terra, traça aquele magistral capítulo, "Do real caminho da Santa Cruz", em que faz eloquente apologia do sofrimento e acena a todos, que sob ele vergam, com as radiosas compensações que o futuro lhes reserva.

            "Diante foi o Senhor com a cruz às costas - diz ele - e por teu amor na cruz morreu, para que tu também leves a tua cruz e aspires a morrer na cruz; porquanto, se com Ele morreres, com Ele também viverás, e se fores seu companheiro na pena, também o serás na glória".

            Pois bem, esse livro, que tem atravessado os séculos e conta maior número de edições e de traduções em todas as línguas que outro qualquer até hoje publicado, esse livro, que tem derramado no mundo tantas consolações e dissipado tantas perplexidades, pois que em qualquer página que, ao acaso, seja aberto por uma criatura aflita, lhe oferecerá sempre uma advertência, um oportuno esclarecimento e um conforto, esse livro - repetimos - dir-se-ia que escrito pelo Senhor, servindo-se da mão e do cérebro de um de seus mais humildes, estudiosos e fieis discípulos, parece não ter exercido a mínima influência nos ministros da igreja, aos quais, em grande parte, era evidentemente dirigido, prosseguindo eles nos seus desvarios, sempre obcecados pelas ideias de grandeza e ambições materiais, escravizados que se conservaram sempre às tenebrosas sugestões do AntiCristo.

            Quando muito, o apreço que teriam ligado àquele admirável conjunto de ensinamentos da mais pura moral cristã, parece ter consistido em introduzir lhe, com profanadora mão, alguns enxertos e acréscimos, sobretudo no derradeiro, dos quatro "livros", que remata o volume, com a visível intenção de o acomodar às práticas devocionais, em que o clero interesseiro fez timbre em conservar de preferência obediente o rebanho católico.

            Um exame atento daquela obra divinamente inspirada, em cujo "Livro primeiro" são dados "Avisos para a vida espiritual", no segundo, "Exortações à vida interior", cujo "Livro terceiro" trata "Da interna consolação" e o quarto e último "Do S.S. Sacramento", revela, com efeito, nalguns lugares, em que a pureza do estilo se patenteia adulterada, e sobretudo no derradeiro "livro" uma preocupação exclusivista de atrair os crentes menos para a identificação com o pensamento evangélico, do que para a observância de práticas exteriores, cuja inutilidade, entretanto, o verdadeiro autor da Imitação de Cristo põe de relevo em mais de uma passagem dos anteriores capítulos de sua indubitável redação. Compreende-se que, se um instintivo respeito coagiu os representantes da igreja a manter intactos os grandes ensinamentos espirituais do iluminado autor, embora considerando-os porventura unicamente aproveitáveis para "pessoas crédulas", nenhum inconveniente, a seu ver, resultaria de adaptarem por último a divina oferenda aos interesses particularistas da igreja.

            Damos nisto uma impressão pessoal, que a nossa consciência e sinceridade nos impunham exprimir, submetendo-a contudo ao critério dos estudiosos imparciais que, como nós, busquem a verdade sem preocupações e exclusivismos apriorísticos, impressão que a histeria da igreja e sua contumaz infidelidade ao pensamento do Mestre e aos seus ensinos autoriza, sem temor de gratuitas suspeitas.

            De todo modo, o que os fatos demonstram é que, a não ser a criminosa deturpação de que as apontadas circunstâncias denunciam ter sido objeto a Imitação de Cristo, nenhum outro apreço mereceu da igreja o divino convite à reconciliação com o espírito do Cristianismo, que suas páginas imortais, de fato, encerram.