O óleo e o candeeiro
José Brígido
(Indalício Mendes)
Reformador
(FEB) Setembro 1951
Thuran Nassam odiava seus semelhantes. Perdera todo sentimento de
caridade e nem mesmo as crianças lhe inspiravam compaixão. Morava só. Como
vivia, entretanto, ninguém o sabia. De quando em quando fazia excursões demoradas,
afastando-se noite escura da cabana que construíra no alto de uma colina circundada
por espessa vegetação.
A seu respeito muito se comentava, porque seu nome se envolvera em
impenetrável mistério. Não cultivava a terra, não tinha amizades, afugentava
quem quer que tentasse aproximar-se da sua tosca morada. Era, em suma, um homem
estranho e temido.
Certa vez, Thuran Nassam, munido de uma faca de caça, saiu, alta
madrugada, na esperança de trazer algo que lhe mitigasse a fome. Não se sabe
quando Nussam voltou. A verdade é que, ao abrir a porta, encontrou sentado em
sua imunda cama um velho de longas barbas brancas, cujo alforje descansava no
chão frio.
Thuran Nassam ficou tão surpreendido que, durante alguns
instantes, não pode balbuciar palavra. Foi o velho que falou primeiro:
- Também te perdeste nestas paragens?
- Não! - retrucou Nassam com má vontade. Esta cabana é minha e não
quero ninguém mais aqui! Podes ir saindo por onde entraste, antes que eu te faça
correr, velho imbecil!
O velho não se alterou. Continuou sentado e não demonstrou nenhum
temor pela faca que Tburan Nassam trazia à cintura. Calmo, imperturbável, voltou
a falar:
- Não te agastes comigo. Foi Alá que aqui me trouxe. Perdido na
estrada, meti-me na mata e,
sem o esperar, vim sair defronte à tua cabana. Quem és tu, que tão
descaridosamente se dirige a um velho cansado como eu?
- Não te interessa quem sou. Volta por onde vieste, some da minha
presença, antes que eu me inflame de cólera!
- Está bem - tomou o velho com voz serena. És, porventura, Ali
Bemaram, que foi
cameleiro do
mercador Omar?
Ante essa pergunta. Thuran Nassam empalideceu e retirou a faca da
cinta. Ali Bemaram era acusado de haver assassinado o mercador e como ninguém
conhecia seu paradeiro, o velho supusera estar diante do homicida. Nassam,
ensandecido pela raiva, encostou a ponta da arma. no pescoço do ancião,
intimando-o:
- Cão miserável! Se não me conheces, como ousas admitir seja eu o
assassino de Omar? Saiba que eu sou Thuran Nassam, apenas Thuran Nassam! Nunca
matei ninguém, mas é grande a minha vontade de começar por ti, velho
intrometido!
O ancião fixou os olhos em Nassam e disse com voz impressionantemente
firme:
- Então; mata! Mata, porque ficarás sendo pior que Ali Bemaram.
Mata! Bemaraam. trocou a vida de Omar por um saco de cequins. (Pequeno disco de metal amarelado
e utilizado como enfeite nas vestes de ciganas.)
E tu, Thuran Nassam, que troca farás? Trocarás a vida de um
desconhecido, que nenhum mal te fez, pelo ódio que te inunda a alma?
Podes fazê-lo! Alá, quando me guiou os passos até aqui, tinha um
propósito que ignoro. Vivi muito e a vida não me seduz nem me assusta a morte.
Sabes porquê? Porque aprendi que a morte nada mais é que a nossa restituição à
verdadeira vida. Se a tua sede de ódio só pode ser mitigada com o sangue de um
velho inocente, mata-me! Vamos! Onde a tua coragem?! Basta um empurrãozinho
para que a tua faca, que já me roça a pele enrugada, faça jorrar meu sangue!
Thuran Nassam perdeu a cor e tremeu! A faca, que seus dedos
crispados mantinham firme, vacilou. A mão quase homicida se abriu numa convulsão
nervosa e a arma caiu de ponta, ficando espetada no chão! Jamais Thuran Nassam
se vira em situação igual. O velho readquiriu sua atitude calma e sua voz se
tornou mais suave.
- Fizeste bem. Eu sabia que a tua maldade não chegaria a tal
ponto. Agora, sei quem és tu. Já
ouvi falar, na aldeia mais próxima, do teu nome. És um misantropo, odeias teus
semelhantes, esquecido de que só a ti é que tal ódio prejudica. Porque guardas
no coração a fera dos maus instintos?
Thuran Nassam estava abatido. Não sentia ânimo para encarar o
velho. Só depois de algum tempo respondeu:
- Tenho sofrido muito. Meu pai me deixou uma faixa de terra que me
foi roubada pelos ricaços de Bludel-Azam, perto de Ar-Bharai. Queixei-me ao
grão-vizir Aldiel e fui castigado. Procurei auxilio para recomeçar a minha vida
e fui tratado como um criminoso. Aqueles que me podiam dar a mão, pois haviam
sido ajudados por meu pai, davam de ombro às minhas pretensões. Outros, que se
diziam anteriormente meus amigos, desconversavam e se afastavam de mim. Eram
meus amigos enquanto eu lhas era útil, mas desde que era preciso que me
socorressem, ficavam silenciosos, demonstravam não compreender o que eu lhes dizia
e me deixavam ao desamparo, entregue ao meu desespero. Foi por isto que me
afastei de todos e hoje não confio em ninguém...
O velho, que ouvira atentamente suas palavras, perguntou-lhe:
- Algum dia alegraste teus olhos nas páginas do livro sagrado?
- Não sei de que livro falas.
O Evangelho, amigo. Trago-o sempre em minha companhia. Tenho-o no
alforje que aí vês.
E se curvou sobre o saco, de lá retirando o livro santo.
- Sinto que não és tão mau quanto queres parece, Nassam. E somente
tens ódio porque estás divorciado do Pai Supremo. Saibas, entretanto, que o ódio
é irmão do amor. Se na Escritura encontramos Caim e Abel, na vida também
podemos encontrar o ódio e o amor. Ambos são fonte prodigiosa de energia
espiritual, sendo que o amor é a energia bem aproveitada, e energia que ilumina
e engrandece, o ódio é a energia mal empregada, que em vez de luz gera a
escuridão da alma. O maior trabalho do homem está justamente em transformar
essa escuridão em luz, em disciplinar essa energia mal orientada e aproveitá-la,
transformando-a em amor. A propósito, tens ali, sobre a mesa, um candeeiro. Quero
ler alguns versículos do Evangelho para que sejam ouvidos mais pelo teu Espírito
do que pela matéria que ele anima. Podes acendê-lo?
Thuran Nassam resmungou:
- Não tenho lume...
- Tenho-o eu - retrucou o velho.
Nassam, no entanto, atalhou:
- O candeeiro está vazio, sem óleo...
Então, o velho, sempre sereno e complacente, esclareceu:
- Tanto melhor...
- Tanto melhor? - indagou Nassem, instintivamente.
- Sim, tanto melhor. É por isto que tua cabana tem estado imersa
na treva?
- É - respondeu secamente Nassam.
- Sabes que Alá dispõe as coisas sempre com acerto? Tu és também
um candeeiro sem luz. Antes de partir deixarei em tuas mãos o óleo de que
necessitas para a iluminação do Espírito. Toma este Evangelho. Inunda com ele a
tua alma, o teu candeeiro. Enche-o bem, o mais que puderes com a leitura, com o
estudo do livro sagrado. Lembra-te, contudo, de que isso não será suficiente.
Para acender o candeeiro é preciso lume. Sabes como obtê-lo? Pela caridade,
trocando o ódio pelo amor, dando sempre amor, mesmo quando seu preço seja o
sofrimento. A dor não deixa de ser uma advertência do Alto. Se soubermos
aproveitá-la para melhorar o nosso íntimo, teremos ouvido o sinal de
"sentido!" celestial. Todos te temem. Terás, portanto, de realizar um
esforço sobre humano para vencer. Começa, porém, vencendo-te a ti mesmo. Trava
luta séria com os teus preconceitos, e. embora sejam muitas as tuas queixas
justificadas, procura esquecê-las. Perdeste muito tempo, Nassam. Levaste muitos
anos com o candeeiro vazio e a alma às escuras. Mas todo tempo é tempo para se
tentar a retificação do caminho.
Surpreendentemente, daqueles olhos que antes chispavam ódio,
rolavam lágrimas. O velho vencera a luta desigual. Thuran Nassam não se
dominava mais. Chorava. Alguma coisa diferente lhe tocara o coração.
E o velho prosseguiu:
- Cuida primeiro de ti. Procura triunfar sobre as tuas dúvidas.
Domina teus rancores e elimina-os
do coração. A vitória maior será a que conquistares contra os teus defeitos. Alá escreve
direito por linhas tortas. Não foi sem motivo que eu me perdi na estrada. Não
foi sem razão que me embrenhei na mata e aqui vim dar. Fui guiado pela mão do Todo-Poderoso!
Bendito seja Seu nome!
Nesse interim, Thuran Nassam sentiu curiosidade pelo Evangelho. Ía
abri-lo, quando o velho ponderou:
- Este é o óleo de que precisa o teu candeeiro. Guarda-o com
carinho, porque é inesgotável. Se souberes cultivá-la nunca mais ficaram vazio
o candeeiro...
Thuram Nassam, refeito das emoções que o haviam assaltado, encorajou-se
a perguntar:
- Que farei com ele sem lume?
- Tens razão. A verdade é que somente poderás acender o óleo com o
lume da exemplificação. Assim como não basta ter o candeeiro cheio se não há
fogo para queimar o óleo assim também não basta ler o Evangelho, não é
suficiente saber de cor todos os versículos e propagá-los a outrem. O
indispensável é dar, sempre que se oferecer uma oportunidade, o exemplo de que
o Evangelho está no coração e não apenas nos lábios. Ter o Evangelho no coração
é aprender a ser caridoso, é perdoar, é esquecer as ofensas, é retribuir com o
bem o mal que nos fazem. O mundo está cheio de ingratidões, mas precisamos
compreender que o mal existe por culpa do homem que está distanciado de Alá.
Pelo bem, havemos de conquistar o mal. As dores serão muitas, os desenganos nos
espreitam a cada passo, de modo que precisamos estar alerta, iluminando a
estrada da nossa vida com o óleo santo do Evangelho.
Thuran Nassam estava outro homem.
Nunca ninguém lhe havia dito coisas tão elas e tão úteis. Num
repente, baixou-se, arrancou a faca que se achava fincada no chão e disse ao
velho:
- Quero que me perdoes, desconhecido. Vou quebrar esta faca e
lançar longe dos meus olhos os seus pedaços!
E ia fazê-lo, quando o ancião lhe segurou o braço:
- Não deves desfazer-te dessa arma, Nassam. Guarda-a com carinho
porque ela deve ser para ti um símbolo. Talvez marque o início da tua
libertação espiritual. Guarda-a.
E sem mais palavra, pôs sobre os ombros o alforje, abriu a porta e
partiu, desaparecendo na mata espessa ...