Família Kardecista
Partes 1
e 2
(1)
Romeu A. Camargo
Reformador (FEB) Janeiro 1942
(1) Embora o estimado confrade e distinto amigo, autor destes
artigos, os tenha enviado para o Reformador
ao mesmo tempo que para outros periódicos espíritas, só muito depois que estes
os divulgaram a nossa revista os insere, pela razão de ser mensal a sua
publicação, ao passo que a daqueles periódicos é quinzenal ou semanal. Pomos
aqui esta nota para assinalar que não se trata de transcrição ou reprodução,
que teriam outro significado.
Com
bastante desprazer venho escrever estas linhas, dada a natureza do assunto.
Faço-o, todavia, porque a isso me sinto impelido. Sim, uma obrigação moral
manda-me sair do silêncio em que venho vivendo há três anos. E obrigação moral
é bem um sinônimo de "dever". Julgo-me, portanto, no indeclinável
dever de traçar este artigo, e espero fazê-lo de modo a deixar sem sombra a intenção
que me conduz a estas colunas.
Antes
de esflorar a assunto anunciado ou denunciado no título destas linhas, quero
dizer duas palavras, à guisa de introdução, para justificar não somente o meu
reaparecimento, como principalmente a minha atitude.
O
Protestantismo é credor de minha eterna gratidão. Foi no seio da Igreja
Presbiteriana que aprendi a ler e meditar o Evangelho de Nosso Senhor Jesus
Cristo. Guardo a data em que recebi essa benção da misericórdia de Deus: 21 de
Junho de 1901, sábado. Quarenta anos e seis meses feitos.
Em
Outubro de 1923, neófito no Espiritismo, senti dobrado interesse pela leitura e
meditação do volume por todos os títulos sagrado. O Evangelho é, para mim, o espelho refletor de toda a ciência
espiritual, porque é a palavra do Senhor e Mestre único, e por isso mesma é o Código Moral da Vida (com V maiúsculo,
significando a existência em sua plenitude, na Tempo e no Espaço, e não somente
durante a passagem neste mundo físico ou planeta (Espaço); ou seja a existência não limitada pela idade (Tempo); Vida ligada à infinidade do
Tempo ou Imortalidade).
Sem
laivo ou mostras de vanglória ou de vaidade, quero confessar que, durante os 22
anos de saudoso convívio com os zelosos irmãos protestantes, procurei sempre
auxiliá-los em sua multíplice atividade evangelizadora (no púlpito, na
imprensa, na escola dominical, nas visitas domiciliares, etc.) O desejo de um
era o da comunidade: repartir com os de fora da Igreja as lições que o Mestre e
Senhor dá a todos os pecadores, nas páginas do Evangelho, a fim de que se orientem e se conduzam como verdadeiros cristãos. Por mais de duzentas vezes, tive o prazer
de ocupar o púlpito de quase todas as comunidades evangélicas da Capital e o de
muitas do interior. Sinto-me altamente honrado em dizer que trabalhei ao lado
do meu grande amigo, o saudosíssimo pastor Eduardo Carlos Pereira, o maior teólogo,
o maior tribuno da Igreja Evangélica no Brasil; de todos os tempos. Seu nome é
bastante conhecido, como o maior gramático dos tempos modernos.
*
Essas
reminiscências de minha vida no Protestantismo vieram para estas linhas, não
para que seja posto em destaque o nome da minha Ilustre obscuridade, mas para dizer
que falo com pleno conhecimento de causa, por experiência própria, nesse longo
convívio com irmãos filiados a ramos diversos do Protestantismo. Nesse
particular, falo com alguma autoridade. É sabido que, só nos Estados Unidos, o
Protestantismo apresenta mais de 200 seitas todas, porém, dentro da Bíblia, e
no Brasil existem mais de 30 denominações com suas igrejas organizadas. Tratei
disto, documentadamente nesse livrinho há pouco publicado ("Salvação pela
fé ou pelas obras” pág. 16.)
Como
é fácil de prever, diferenças e antagonismos existem entre essas numerosas
denominações, seja na forma governativa ou eclesiástica, seja na parte doutrinária
ou exegética (explicativa, interpretativa). Não fora a impropriedade do momento
e apontaria casos interessantes e mesmo curiosos. Contudo, citarei isto: um
crente da Igreja Batista sabe que não deve batizar seus filhinhos porque o
texto normativo do seu credo diz expressamente: "O que crer e for
batizado, será salvo", (Marcos, 16: 16). Ora, uma criança não pode crer;
logo, não deve ser batizada. E a Igreja Batista não batiza crianças. E essa
Igreja vai mais longe; acredita que só é valido o batismo por imersão, de modo
que o batizando seja completamente mergulhado (imerso), ou no rio, ou na
piscina da Igreja (batistério). Para os batistas, não vale o batismo por
aspersão (aspergir ou derramar água na cabeça), como se faz na Igreja Romana,
na Presbiteriana, na Metodista e na maioria das demais. Estribado em outros
textos do Novo Testamento, o presbiteriano não obedece a essa restrição e batiza os pequeninos,
fazendo o mesmo os crentes de outras Igrejas. Os imersionistas se firmam na
autoridade do texto evangélico (Mat. 3: 16), do mesmo modo que os aspergistas também
se escudam no livro sagrado. Baseado na Bíblia, o presbiteriano admite o dogma
da predestinação divina; apoiado no mesmo fundamento (a Bíblia), o metodista
não aceita esse ensino, estabelecido por Calvino, fundador do presbiterianismo
ou calvinismo.
Mas,
com essas e com outras discrepâncias, os protestantes se entendem perfeitamente,
visto que todas as denominações, todas as Igrejas Evangélicas formam
"unidade" em torno dos princípios fundamentais da Fé: existência de
Deus e seus
atributos; Santíssima Trindade; Deus
Uno e Trino; Céu e Inferno; eficácia expiatória do sacrifício do Calvário;
imortalidade da alma, etc.
Examinei
a teologia metodista ou wesleyana, em confronto com a presbiteriana ou
calvinista, flutuei equidistantemente entre as duas escolas, amparadas e dirigidas
por eminentes autoridades nos vastos domínios da ciência escriturística, a
começar de João Wesley (inglês) e João Calvino (francês), fundadores dessas
duas escolas teológicas (Igreja Metodista e Igreja Presbiteriana}. Observei e
admirei sempre, a "unidade" doutrinal nos pontos capitais do credo
evangélico (estou escrevendo quarenta anos depois).
Corroborando
tudo quanto vai nessas linhas, tenho a acrescentar: o Protestantismo não me autoriza
a dizer o contrário, hoje. Continuando ligado, como estou, por laços de amizade
a elementos da Igreja Evangélica - e até mesmo na própria família - sei que o
edifício espiritual da Reforma, levantado pelo ilustre frade alemão Martinho
Lutero é o mesmo, e também o mesmo é o vigamento, cujas linhas mestras solidificam
a estrutura orgânica das igrejas de todas as categorias denominacionais (grupos de cristãos não ligados a nenhuma
igreja).
Fiel
e zeloso pela conservação do seu ponto de vista - ainda que firmado mais na
"letra" que no "espírito" que vivifica os textos bíblicos -
o protestante aí vai realizando a sua destinação na Terra, na estrada do Evolucionismo.
Seja como for: "Iiteralista" ou liberalista, ele se atém aos princípios
basilares da sua Confissão de Fé, procura viver como cristão, pautando seu caráter
pelas normas morais do Evangelho, que lhe exigem toda vigilância, a fim de se
livrar da "tentação da carne, do mundo e de Satanás", essa tríplice
modalidade da "concupiscência da carne, da concupiscência dos olhos e da
soberba da vida".
Literalista
ou não, mas obediente à voz de seu e nosso Mestre, o crente evangélico tem como
norma inflexível de vida o "Sim, sim, não, não; porque tudo o que daqui
passa procede do mal" (Mat. 5: 37). É o império da verdade, do qual o
protestante súdito leal e intransigente, até à morte. É mesmo o traço característico
dos evangélicos, de modo a não fugirem à advertência apostólica: "Mas santificai ao Cristo, Senhor nosso, em
vossos corações, aparelhados sempre para responder a todo o que vos pedir razão
daquela esperança que há em vós", (I Pedro, 3: 15.)
Todo
este palavreado, que o leitor está suportando, visa a um fim: mostrar que os
antagonismos, as divergências ou discrepâncias, do ponto de vista doutrinal,
entre as igrejas evangélicas, não foram ao ponto de fazer surgir um novo credo
ou uma nova seita dentro do Protestantismo, porque são questões "secundárias".
O
presbiteriano, com o Evangelho nas mãos, "prova" que as crianças
devem ser batizadas; o batista, com o mesmo Evangelho nas mãos,
"prova" que as crianças não devem ser batizadas. E é bom lembrar que
o batismo é coisa sagrada, é "sacramento", em todas as igrejas evangélicas
(sacramento, segundo Sto. Agostinho, bispo de Hipona, na Africa, é "um
sinal visível de uma graça invisível"; no batismo, o "sinal visível"
é a água; a "graça invisível" é a regeneração moral e espiritual, que
vem do Alto; o batismo simboliza, pois, regeneração, renovação moral.)
Nenhuma
igreja evangélica pretendeu determinar a cor da barba do apóstolo Pedro, nem me
consta que a Teologia Dogmática de algum ramo do Protestantismo haja explicado
o "modo" do desaparecimento do corpo de Jesus, do sepulcro.
Os
protestantes afirmam, unânimes, que o corpo do Mestre foi sepultado; a
sepultura foi selada, e muito bem guardada por soldados romanos. E o corpo
desapareceu.
Param
aí os teólogos, de vez que Jesus subiu ao Céu com o seu corpo. E eu também vou
parar, porque este artigo já ultrapassou os limites do razoável. Antes de o
fazer, quero confessar que é com profundo pesar que estou vendo o trabalho
sorrateiro - verdadeira obra de submarino - no campo do Espiritismo, no Brasil,
com um só fim: dividir a família espiritista em dois grupos antagônicos,
divergentes, adversários primeiramente, para se tornarem inimigos, depois.
Parte II
Convidado
a ir ouvir uma conferência evangélica a ser feita pelo pastor Eduardo Carlos
Pereira, numa série de conferencias que se realizaram no vasto salão do Skating
Palace, nesta Capital, respondeu o moço: "Não vou ouvir besteiras."
-
Mas, meu amigo, já ouviu alguma vez esse orador? - retrucou o convidante,
proprietário de uma confeitaria, à cuja porta palestravam.
- Não
- respondeu o jovem.
- Então
acredita você que Eduardo Carlos Pereira, o maior gramático brasileiro, diga besteiras
em suas conferencias? E continuou, atrelando esta outra pergunta: sabe você
qual a diferença entre um católico e um protestante?
-
Não; não sei.
-
Pois eu lhe digo: o católico toca de ouvido, e o protestante toca por música.
O jovem caiu em si, como que medindo e
pesando a sua leviandade, e procurou sair pela tangente, mudando de assunto.
*
Essa
anedota é do ano de 1913, nascida na porta da casa comercial então pertencente
a meu tio, o piracicabano Bento do Amaral, ainda proprietário na Penha, subúrbio
da Capital paulista.
Retalhos
de literatura leve e ligeira, como esse aí, não faltam no baú velho de minha
vida religiosa.
No
artigo anterior, relatei umas tantas reminiscências do "meu"
Protestantismo, para provar, senão a minha autoridade, pelo menos a minha
experiência no venerável capítulo do evangelismo.
Referi-me
a antagonismos entre igrejas evangélicas, em assunto de interpretação de textos
bíblicos, mas divergências que não determinam o nascimento de novas escolas ou
novas denominações (seitas). Jamais o protestante se incomodou com subtilezas
teológicas ou filosóficas, como, por exemplo, em indagar sobre a natureza do
corpo de Jesus, depois da ressurreição. Limita-se o crente ao que está ali no
Evangelho, bastando-lhe o relato dos redatores do volume sagrado, sem se
preocupar com o "porque" e o "como" do desaparecimento do
corpo do Mestre, de uma sepultura selada e bem guardada por soldados romanos.
Mas,
o motivo principal do silêncio do protestante, nesse ponto, não é a deficiência
de dados informativos ou de provas. Sabe o crente evangélico quais são os seus
deveres para viver como discípulo do Cristo; sabe muito bem o cap. 25 do
Evangelho segundo Mateus, e ali, naquele quadro impressionante acerca do Juízo
Final, não se vê Jesus tratando de exterioridades, nem prometendo o reino das
bem aventuranças aos que houverem crido que Ele veio ao planeta Terra com um
corpo material ou semi-material. O crente no Evangelho não esquece jamais o
ensino substancial de seu Mestre, e esse ensino é para todos os crentes de
todos os tempos: "O meu preceito é
este, que vos ameis uns aos outros, como eu vos amei. Vós sois meus amigos, se
fizerdes o que eu vos mando. Se permanecerdes na minha palavra, sereis
verdadeiramente meus discípulos; e conhecereis a verdade, e a verdade vos
livrará" (da cegueira espiritual e moral). (Evangelho segundo João,
cap. 15, vv. 12 e 14, e cap. 8, vv. 31 e 32.)
Essas
passagens, como as demais do Livro Divino, refletem, sem ambiguidade nem reticências,
mas com absoluta cristalinidade, o pensamento didático do Mestre, isto é,
pensamento para "ensinar" e "esclarecer", a fim de
"conduzir".
O
crente em Jesus não pode errar (seja católico, protestante ou espiritista), uma
vez que recebeu do Mestre, não uma mas “a” diretriz para a sua vida. Ou, em
termos mais claros: sabe que Jesus reconhece como discípulos, não verbalistas e
rezadores (como os fariseus), mas os exemplificadores (como o bom samaritano).
Sim, o crente não deve nem pode errar quanto à sua qualidade de discípulo por
não ignorar que Jesus faz a classificação de seus amigos, não pela profissão de
palavras deles, mas pelo amor que revelam a seus semelhantes (lição na parábola
do bom samaritano, em Luc. Cap. 10.)
Perguntou
um doutor da lei: "Mestre, qual é o grande mandamento da lei?" -
Jesus lhe disse: Amarás ao Senhor teu Deus de todo o teu coração, e de toda a
tua alma, e de todo o teu entendimento. Este é o máximo e o primeiro
mandamento. E o segundo (que tu não perguntaste), semelhante a este, é: Amarás
a teu próximo como a ti mesmo. Destes dois mandamentos dependem toda a lei e os
profetas. (Mat., 22, v. 35-4.0.)
O
amor é um só e Jesus diz que o amor que os homens dizem ter a Deus só se torna manifesto
no amor que revelam a seus semelhantes. É a lição dada aquele outro doutor que
conhecia muito bem esses dois mandamentos, mas não sabia quem era o seu próximo
(Lucas., 10, v. 25 a 37.)
Esse
ensino não deixa dúvida alguma, e aquele discípulo que era o mais íntimo do
Mestre (João, 13, v. 23 a 25) confirma esse ensino, com estas palavras de
profundo senso pedagógico: "Se alguém disser, pois: Eu amo a Deus, e
aborrecer a seu irmão, é um mentiroso. Porque aquele que não ama a seu irmão, a
quem vê, como pode amar a Deus, a quem não vê?" (I Epist. de João, cap. 4,
v. 20.)
Todo
este palavreado meu, toda esta dissertação ou espraiamento de considerações,
tem um só objetivo: pôr em relevo a singeleza encantadora da doutrina do Senhor
e Mestre, já tão sabiamente compendiada naqueles três capítulos do maravilhoso
Sermão da Montanha, a mais linda joia de toda a literatura religiosa e o mais
belo, o mais perfeito Código de Moral que já existiu em toda a História (Mat.,
cap., 5 a 7.)
A
construção moral que Jesus oferece aos homens está condicionada a um requisito
apenas: amor! - Ei-lo, desdobrado:
a) O
meu preceito é este, que vos ameis uns aos outros, como eu vos amei (até ao
sacrifício, sem vingança, mas perdoando sempre, até aos maiores inimigos);
b)
vós sois meus amigos, se fizerdes o que eu vos mando (imitar o meu exemplo,
amar como eu amo, com o mesmo espírito de humildade e de renúncia, em prol de
meus semelhantes);
c) se
permanecerdes na minha palavra (de Mestre amigo, do adjetivo "amigo",
em latim, clamoroso", que ama) sereis verdadeiramente meus discípulos, e
conhecereis a verdade e a verdade vos livrará (sim: sabendo amar então vossa
vista espiritual, já sem as escamas de toda milícia que é hipocrisia, e do
"egoísmo" que é a mais perniciosa de toda idolatria, se livrará da
velha miopia, e assim fareis por vossos semelhantes o que, vertidos os papéis,
desejaríeis que eles vos fizessem). Esta é a lei e os profetas, disse o Mestre,
no Sermão da Montanha (cap. 7, v 12.)
Sei
que o leitor está concordando comigo, porque tenho certeza de estar interpretando
com fidelidade a palavra do Evangelho. Diante do que estou vendo, ouvindo, lendo
e observando, tenho meus receios de que haja no campo do Espiritismo, no
Brasil, grande número de músicos que só sabem tocar de ouvido. Talvez deva
dizer positivamente que isso é real.
Quero
caminhar devagar para chegar logo ao termo desta jornada. Preliminarmente, devo
dizer que, toda vez que me refiro ao nosso querido Brasil, não me esqueço de
que tenho olhos de educador de mestre-escola, com 39 anos de observação, nesses
olhos estão sempre voltados para esse quadro bastante triste: analfabetismo. A ser verdadeira a estatística da “The Modern Encyclopedia", em cada
dez mil filhos do nosso País, mais de sete mil não sabem ler. Calculada a
população do Brasil em 45 milhões de almas, desse total apenas 11 milhões são
letrados, E destes, quantos serão realmente espíritas ou espiritistas?
Dos
90 ou 95 por cento dos espíritas que tocavam de ouvido no Romanismo, talvez
mais de 60 não tocam por música. Sim, não posso admitir Espiritismo sem o
Evangelho como base fundamental, como pedra angular ou de esquina do edifício
da Espiritualidade (para usar da própria linguagem bíblica; Atos dos Apost.,
cap. 4, v. 11; Isaias, cap. 28 V. 16. etc.) E o Evangelho é a voz de Jesus
"chamando os homens para uma vida nova", como fala abertamente, hoje,
o grande Humberto de Campos ("Boa Nova", cap. XX.)
Segundo
o cálculo divulgado pelos competentes, há no Brasil 10 milhões de espíritas, e "mais de três mil
centros". Dado que haja 10 por cento de espiritas naqueles 11 milhões que sabem ler - ou seja um milhão e
cem mil, eis que cerca de nove milhões de espíritas não sabem ler. O
Espiritismo Evangélico para ser compreendido, sentido e praticado, não exige cérebros
cheios de letras mas corações que saibam sentir e amar. Bem judiciosa esta advertência do espírito de Kardec,
dada em abril de 1874, ou cinco anos após haver deixado a Terra: "Nenhum homem é condenado por não saber, mas sim por deixar de sentir;
porque, o livro da sabedoria é um livro geralmente fechado, mas o livro do
sentimento é um livro universalmente aberto." ("Roma e o
Evangelho" parte II comunicação nº 30.) ,
Peço ao
leitor que fixe bem esses algarismos estatísticos na memória visto que vou entrar na apreciação de um ponto
bastante sério, porque bastante delicado, e que, de um simples ponto hipotético,
poderia converter-se num capítulo volumoso e concreto. É este: ao lado ou dentro
da família espírita, existirá uma família kardecista? Duas famílias ou uma só
família com dois nomes, designando a mesma ideia?
......................................................................................
Família Kardecista?
Parte 3
Romeu A. Camargo
Reformador (FEB) Fevereiro 1942
O sol
derrete a cera e endurece o barro. O foco de calor é o mesmo; os recipientes é
que variam.
Recordo-me
dessas expressões figurativas por mim usadas no púlpito protestante, quando procurava
explicar a razão por que, num auditório, o indivíduo A recebia de boamente a
palavra do Evangelho, na primeira vez que a escutava, ao passo que os indivíduos
B, X e Z. na segunda ou na quinta vez, não só não aderiam ao ensino evangélico,
como, ao contrário, sentiam-se mais grudados ao seu rotinismo, aos seus
preconceitos religiosos e sociais. O primeiro, na simpleza de sua curiosidade indagadora,
olhava por cima dos preconceitos e das demais mentiras sociais, e alcançava o
que satisfazia ao seu espírito e ao seu coração; os outros, não querendo ter
olhos de ver nem ouvidos de ouvir, continuavam barrificados no “seu" ponto
de vista religioso, isto é, no comodismo dos desejos aprovados por seus
corações, mas desaprovados pela moral do Evangelho. Um, com fome e sede de
saber, a fim de libertar sua alma dos apetites da terra, aceitava gostosamente
a mensagem do Céu, na esperança de conseguir a sua iluminação interna, condição
essencial para chegar às claridades espirituais; outros, abrasando-se na concupiscência
da carne - vaidade, luxuria, egoísmo, - não podiam dar ouvidos à voz do Céu,
que condena essas baixezas da Terra.
-
Essas duas categorias não deixarão de existir, senão após o decurso de milhões
de milênios.
Nesse
quadro alegórico ou emblemático, tentei imitar, ainda que apagadamente, uma
parte do ensino encerrado nas parábolas do Semeador e da Cizânia, registradas
pelo evangelista Mateus, no cap. 13.
Pequena
foi a área onde o Semeador viu lançada com proveito a boa semente, no vasto
campo de toda a semeadura. Assim o resultado da atividade semeadora no campo
das verdades morais. Aqui, como ali surge a cizânia (ou joio) semeada pelo
inimigo, protegido pela escuridão da noite, enquanto repousa o trabalhador.
As trevas
simbolizam "atraso" e "ignorância", característicos do
"meio" em que vivem os espíritos inferiores. Conquanto agraciada com
as luzes da Revelação Divina, a Terra ainda é escola de doloroso aprendizado,
de penosos padecimentos expiatórios. Continua sujeita às influências dos
agentes do atraso e da ignorância. Haja vista essa terrificante catástrofe que
anuncia o desmoronamento total de uma civilização vinte vezes secular, iniciada
sob o influxo da ideia cristã. Aí estão envolvidos, na liquidação final,
efetivamente, militarmente, em terra, no mar e no ar, os moradores dos cinco
apartamentos terráqueos denominados: Europa, Ásia, África, América e Oceania.
Sem exclusão de uma só criatura, eis que o manto da inquietação, da dor e do
desespero estende-se à raça humana inteira. É o toque de reunir. Ouve-se o sonido
da sexta trombeta apocalítica (cap. 9) anunciando o fim do mundo moral, feito
pelos homens à sua imagem e semelhança. Dois mil milhões ou dois bilhões...
(2.000.000.000) de testemunhas na Terra,
da bondade e da misericórdia do Pai das criaturas, que dá a livre-agência, o
livre-arbítrio, a liberdade de ação, ao homem, a fim de que possa ele realizar
a sua destinação planetária, colhendo aqui o fruto de toda semente que plantou
(Mat. 26:52; Gálatas 6: 7,8; Apoc. 13:10)
*
É
neste momento tempestuoso que a pena deste pigmeu vem esflorar questiúnculas
que jamais deviam existir no campo do Espiritismo, onde frondeja a árvore da
liberdade, a cuja sombra se prega a liberdade de consciência, "condição e
fonte de todas as liberdades", na frase feliz de Júlio Simon, notável
escritor, filósofo e político francês.
Theophilo
Siqueira, espírito culto e observador sumamente perspicaz, escreveu magnífico
artigo no “Reformador" de novembro pp., sob o sugestivo título "Práticas
Religiosas". Merece leitura atenta o seu escrito, vasado em estilo
claríssimo, sem rendilhas nem rebuços. O assunto é oportuno, sobre certas
inovações que se vão verificando na seara espírita.
Também
eu venho observando acentuada tendência para uma indisfarçada romanização do
Espiritismo, aí pelos Centros onde os "passes" e a "água
fluida" não deixam tempo para a leitura e explicação dos princípios basilares
da Nova Revelação.
Pecado
paralelo e de muito maior gravidade é esse que ai vai pompeando nos lábios de
poucos, pouquíssimos confrades, felizmente: o de se querer criar, à viva força,
seitas religiosas na família espírita. Isto, sim, deve merecer maior atenção e
maior cautela da parte dos que se interessam pela doutrina. O primeiro cuidado
a ser observado é este: se é certo que há no Brasil dez milhões de espíritas,
também certo, certíssimo é que, em cada dez, um apenas sabe ler e nove não
podem estudar as obras fundamentais da sua crença. Têm de tocar de ouvido, isto
é, conhecerão a doutrina através da palavra ouvida da boca de terceiro; se não
houver trabalho bem organizado, bem distribuído, com aquele critério
recomendado nas epístolas apostólicas - e as epístolas encerram o Evangelho
diluído em explicações pormenorizadas - então o aprendizado dos crentes será um
enigma.
Em
outro artigo citei dados estatísticos, pelos quais se vê o seguinte: dos 45
milhões de habitantes do Brasil, apenas 11 milhões sabem ler. E destes, quantos
serão espiritas? Se houver ali 10 por cento, então será um milhão e cem mil.
Quase 9 milhões de espíritas não saberão ler, nem a cartilha do abc, nem, muito
menos, as obras de Kardec.
Chamo
a particular atenção do leitor para isto: a romanização e a fragmentação da família
espírita representam atividades, não de confrades analfabetos, mas dos que se
presumem de olhos bem abertos e que falam a auditórios constituídos de letrados
e analfabetos. Imaginemos, nós que escrevemos e que falamos ao público, qual
seria o resultado de uma investigação acerca da natureza do corpo de Jesus,
entre os espiritas espalhados pelo vasto território brasileiro! Uma calamidade!
Um verdadeiro desastre! Mais do que isso: seríamos, nós, os supostos
investigadores, legítimos abusadores da boa fé, da simplicidade, da sinceridade
dos nossos irmãos analfabetos. Almas simples e cheias de lealdade,
responderiam: “Não podemos entrar nesse exame, porque não sabemos ler o
Evangelho; mas, contentamo-nos em saber o que o Senhor Jesus exige de nós, para
que o imitemos em nossa vida, carregando a nossa cruz." Diriam outros:
"Não nos importa saber isso mas, sim, que o Senhor e Mestre quer que nós
nos tornemos novas criaturas, sabendo amar os nossos semelhantes e fazendo por
eles o que quereríamos que nos fizessem.”
Estarei
errado com esse raciocínio? Pois foi assim, como estes últimos, que me
respondi, a mim próprio, quando, em 1924, pela primeira vez, ouvi um ilustre
confrade abordar tal questão. Sigo o Evangelho desde 1901, e, de 1923 para cá,
continuo no mesmo traçado, dando graças a Deus por haver ingressado nos
domínios do Espiritismo, pela mão de AlIan Kardec, "o bom senso
encarnado", na profética expressão do sábio Camille Flammarion.
Dotado
de Incrível honestidade mental, jamais pretendeu Allan Kardec fundar ou chefiar
qualquer corrente de pensamento pessoal, muito menos escola sectária de caráter
religioso dentro do Evangelho.
Missionário
escolhido e guiado pelo Alto, realizou a parte que lhe fora confiada, ficando o
resto para os seus continuadores, como aconteceu com os apóstolos, que tiveram
também quem lhes seguisse as pegadas.
Kardec
deixou organizada, ou em começo de organização, uma entidade coletiva destinada
a continuar a sua obra, que é a do Cristo. E essa entidade é já bastante
conhecida no mundo. Chama-se: família espírita.
Falará,
a respeito, o ilustre missionário.
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