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terça-feira, 7 de dezembro de 2021

Stupete gentes!

 

Stupete gentes   (pasmai, ó gente!)

por Carlos Imbassahy

Livro: ‘Libertação’ (Editora ISMAEL -1955)


             Venho tratar das burletas do erudito teólogo nacional por comprazer com os insopitáveis desejos do meio amigo Leite. Ele pensa que o nome de Flammarion não deve figurar impunemente nas mistificações de certos rois.

             De fato, o grande astrônomo aparece entre os “que não admitem as explicações dadas pelos espíritas.” E começaram então a bravejar as citações com essa piada fulminante:

             “E o Dr. Imbassahy a fazer crer que Flammarion é partidário da doutrina espírita e a invocá-lo como testemunha e autoridade em seu favor. É de se tirar o chapéu.”

             Iremos ver que é de se lhe tirar mais alguma coisa.

             O famanaz (o que tem muita fama pelo seu valor) descobridor dos antipsiquistas, lança-se à obra de Flammarion, ‘Les Forces Naturelles Inconues’, e já do título começa a extrair ilustrativas conclusões.

             Das suas citas, algumas não pude encontrar; outras são excertos devidamente amputados: - “on peut poser en principe que les médiums de profission trichent tous”. E passou o ancinho no resto, onde se diz: -  

             Mais ils ne trichent pas toujours et possèdent des facultès réelles, absolument certaines.” Eles, porém, não enganam sempre e possuem faculdades reais, absolutamente certas.

             O astrônomo refere-se aos profissionais e declara que esses mesmos possuem faculdades reais, absolutamente certas.

              Vão assuntando.

           Foi-se levando ainda a rodo a várias passagens onde se vê explicado ou atenuado o ceticismo do Autor. Exemplos:

             “Por vezes, as idéias emitidas parecem provir de personalidade estranha e a hipótese dos Espíritos se apresenta mais naturamente.” pág. 18

                 “A obra de espíritos desencarnados, de alma dos mortos, é uma hipótese explicativa e não devemos rejeitá-la sem exame, porque, por vezes, parece a mais lógica.” pág. 594

             “Não me surpreenderei que algumas interpretações se traduzam pela opinião “de que não admito a existência dos Espíritos”. Não se poderá achar qualquer afirmação desse gênero nesta obra ou em quaquer outra.” pág. 595

             E para concluir, ainda no mesmo livro:

             L’hypothèse spirite ne doit pas etre eliminée. Pág. 597

            Como se nota, nem aí se vê que o astrônomo “não admitisse as explicações dadas pelos espíritas”.

             O que ele dizia na citada obra é que a intervenção dos mortos ainda não estava demonstrada; que ele não tratara ainda com a alma dos mortos:

             “O que eu digo é que os fenômenos físicos aqui estudados não provam a sua colaboração.” Pág. 595

                 E afirmava:

                 “Sem admitir a existência dos Espíritos como demonstrada, sentimos que tudo não é de ordem simplesmente material, orgânica, cerebral. Há outra coisa. Pág. 597

             Que dizer, entretanto, da sinceridade do escritor que estaca nessa obra preliminar? Que dizer do contraditor que cortina as obras posteriores em que ao eminente astrônomo se depara, afinal e concludentemente, a prova da sobrevivência? Que fecha os olhos quando a outra coisa aparece clara, irrefutável, ao notável Psiquista; quando a intervenção dos mortos lhe surge definitivamente demonstrada?...

             Ora, mais tarde, Flammarion dedica-se ao estudo dos fenômenos de ordem subjetiva, aos fatos da mediunidade intelectual. E escreve, então, ‘La Mort et son Mystere’, em 3 volumes assim denominados: ‘Avant la Mort’, ‘Avant de la Mort’ e ‘Apris La Mort’. Esse título já não comove o teólogo. Vamos adiante e vejamos o que nos diz o Mestre:

             “Os fatos expostos nesta obra mostram que os nossos caros desaparecidos ficam algum tempo em nossa vizinhança e se manifestam quando as circunstâncias o permitem.” III, 407.

             E ainda:

             “Verificamos que as manifestações dos mortos são irrecusáveis.” Pág. 408

             E mais:

             “Os fantasmas dos mortos existem. Mostram-se, manifestam-se. São vistos de face, de perfil, obliquamente, refletidos nos espelhos, em plena correspondência com as leis da perspectiva.” Pág. 415

             Toda a obra do astrônomo é a demonstração da cominicabilidade dos defuntos, o que o faz concluir:

             “Les défunts manifestant leur survivance sous les aspects les plus variés”. Os defuntos manifestam sua sobreivência, sob os mais variados aspectos.

               O mundo psíquico invisível e real parece-me doravante “icontestavelmente verificado”.

             E, finalmente, depois do seu longo estudo, estabelece cinco princípios, sendo o último o seguinte:

             “L’ame survit à l’organisme physique et peut se manifester aprés la mort.” “A alma sobrevive ao organismo físico e pode manifestar-se depois da morte.”

             Se folhearmos outra obra de Flammarion – Les Maisons Hantées – veremos que não émenos firme a sua convicção na manifestação dos mortos. Basta que anotemos o título do seu 1º capítulo: - Os mortos se manifestam.

             Nesse livro declarava ele que sua trilogia, consagrada ás manifestações post mortem, provocou tempestades e recriminações.

             Transcreve um artigo que já havia mandado ao Jornal, em 1922. Aí perguntava: Há ou não há manifestação de mortos? – E assegurava: - Eu digo que há.

             Depois de narrar, entre outros, um fato que prova a sobrevivência, termina:

           “Os que negam esses fatos são ignorantes, ilógicos ou acpciosos, de vez que, conhecendo-os, não atino como possam eliminar o ato do defunto.”

              As casas mal assombradas’ é mais um repositório de fatos que demonstram iniludivelmente a sobrevivência e onde Flammarion expende, com provas sobejas e razões indiscutíveis, a sua crença na manifestação do morto.

             E se invocá-lo com testemunha e autoridade a meu favor é de se tirar o chapéu, apresentá-lo como infenso à sobrevivência ou negador do que os espíritas afirmam, já não é simplesmente de se tirar o chapéu, é de escacholar.

             De tudo se conclui que ‘Les Forces Naturelles’ muito ao contrário de firmar o negativismo do Mestre, deixa-nos convicto de sua imparcialidade e insuspeição quando, nas obras posteriores, se inclina, franca, decisivamente, para a hipótese espírita.

            Entre as respostas abafantes do indefesso adversário dos espíritas acha-se a de que estava a ironizar quando encaixou, em certo lance, o fantasma da Katie King com os médiuns e experimentadores.

            Um fantasma transformado em médium é uma dessas facécias (pilhérias) que deve ter provocado sonoras  gargalhadas. E se formos examinar com justiça toda a argumentação do dicaz (satírico) opugnador, veremos que toda ela, a exemplo de Katie entre os médiuns, é capaz de provocar por aí além uma tal hilaridade, que será um nunca mais acabar de rir.

             Graças e argumentações que farão dizer – stupete gentes!





sexta-feira, 3 de dezembro de 2021

Mistificações conscientes

 

Mistificações conscientes

por Carlos Imbassahy

livro: “Libertação” (Editora Ismael - Araras-SP, 1955)

             Dizia certo cronista que a qualidade universal de nossos adversários é a incompetência. Mas não é só.

            No começo das experiências psíquicas, alguns experimentadores se espantavam de que, ao lado dos fenômenos iniludivelmente autênticos, houvesse outros que se diriam fraudulentos. Depois de vários estudos descobriram que, ora a suposta fraude era intrínseca ao fenômeno, como os fios que surgiam das mãos de Eusápia, ora que se tratava de mistificação inconsciente, como os casos de automatismo e sugestão.

            Os ignorantes, não obstante, continuavam a falar nos embustes de Eusápia, até que a Sociedade de Pesquisas, de Londres, enviou, para examiná-la, três dos seus mais célebres investigadores, peritos em prestidigitação. Esses técnicos concluíram pela autenticidade dos fenômenos.

            Se depois de tantos anos de observação, de experiências múltiplas; se depois do veredito dos sábios da época; se depois da afirmação de Richet, a de que a mediunidade de Eusápia era suficiente para ter-se a fenomenologia objetiva como demonstrada; se depois da última palavra da Sociedade de Londres alguém afirma que os fenômenos produzidos por Eusápia Paladino eram fraudulentos, esse está mistificando conscientemente.

            Temos, ainda, mistificação consciente quando se declara, como o faz abalizado teólogo, que:

             “após as tristes experiências de Cambridge por cientistas ingleses, ficaram por tal modo patenteados os “seus” processos fraudulentos...”

             (Estes ‘seus’ devem ser os processos de Eusápia e não os dos cientistas ingleses, como a redação pode presumir. Feche-se os parenteses).

             “... que a Society for Psychical Researchs resolveu não mais tomar conhecimento dos seus fenômenos”.

             E temos consciente mistificação porque, muito depois de Cambridge é que foi nomeada a célebre comissão de Baggaly, Fielding e Carrington, que assegurou a realidade dos fatos supranormais e a absoluta honestidade da médium. O relatório declarava: “A ausência de fraude é completa”. (Veja-se os Proceedings, 1969, e Annales des Sciences Psichiques, de Paris, setembro de 1909).

            Esse o último veredicto da Sociedade.

            Aquelas manifestções de Cambridge, segundo o contestante, ter-se-íam realizado em 1896, logo 13 (treze) anos antes do relatório dos três.

            Apadrinha-se o teólogo com Grasset. Mistificava, portanto: o Grasset se disse o que lhe imputam e não desconhecia o relatório.

            Quando se afirma, diante das provas e dos documentos apresentados por Crookes e por quantos o acompanharam em suas memoráveis experiências,

             “que a trapaceira mocinha Florence Cook iludiu por muito tempo o circunspecto e honrado professor”.

             Mistifica-se conscientemente.

            Quando se declara que o Times desmascarou a médium, está-se ainda a mistificar com toda a consciência, porque o Times não desmascarou coisa nenhuma, apenas publicou uma informação que lhe trouxeram, sem qualquer elemento de prova, a de que o Sr. Fulano havia apanhado em fraude uma Senhora Corner e que esta fora a Miss Cook. Provou-se a fragilidade da denúncia.

            Ora, William Crookes fez experiências com aparelhos de vária espécie, cercou-se de todas as precauções, auxiliado pelas suas máquinas, suas lâmpadas, e até por sua senhora, visitou, contou com a colaboração do Engenheir Varley, que inventou um “controle” elétrico e nele envolveu a médium; as manifestações se realizaram no gabinete do sábio e ele viu a materialização em plena luz, enquanto a médium jazia inanimada no canapé e no assoalho, e ele examinava, ao mesmo tempo, uma e outra.

            Ele viu, ao mesmo tempo, Katie e miss Crook; comparou-as, mediu-as, auscultou-as, tomou-lhes as pulsações, fotografou-as, enquanto as lâmpadas iluminavam o aposento. O fantasma dissolveu-se diante dos seus olhos como “uma boneca de cera”. Isto consta dos trabalhos de Crookes e de tantos quantos presenciaram o caso e escreveram sobre o assunto.

            Eram de granito essas experiências, assegurava Richet (C’est du granit).

            Afirmar que tudo não passava de mistificação, quando os maiores sábios ainda admiram as experiências de Crookes, é deixar entre as pessoas sensatas a convicção de que o verdadeiro mistificador é o negativista.

            Para acreditar que três anos ininterruptos de tis experimentos, à luz de vários focos, diante da impecável fiscalização mecânica e humana, puderam vir à terra pelo que disse a um jornal um informante qualquer, é mistificar conscientemente.

            Colhamos outros fatos de igual coturno. Temos exemplo num rol de psiquistas lançado no prelo, entre os quais se inclui Lombroso, Geley, Crawford, Flammarion...

             “que não admitem as explicações dadas pelos espíritas, segundo os quais os fenômenos produzidos pelos médiuns têm como causa a ação dos desencarnados”.

             Conta o autor do rol com a ignorância geral em tais assuntos e se fia em que, repetindo-se indefinidamente as mesmas inverdades, elas acabam esculpidas no cérebro de quem as lê.

            Já havíamos apresentado as opiniões de Lombroso. Oautor deixa passar o tempo. O tempo é a esponja mais eficaz para que os infelizes esqueçam as suas mágoas e os matreiros renovem as suas expertezas.

            Mas, o venábulo (lança curta, usada em combate ou em caça de animais selvagens) é velho e a zargunchada (pancada ou ferimento com zarguncho – instrumento de uso na cultura do trigo); ineficaz. Lembremos que já dizia René Sudre, autor insuspeito aos antagonistas:

             “Assim como Wallace e Lombroso partiram do mais radical materialismo para chegarem, sem transição, à certeza da sobrevivência humana...” (Ver. Mét. 1923, págs. 403)

             E para maior insuspeição, transcrevemos o próprio Lombroso:

             “Grande é pois a influência dos médiuns nos fenômenos espiríticos. A completa explicação sóse encontra na combinação d força medianímica com outra força, ainda que fragmentária e transitória mas que adquire, por momentos, e por causa do médium, maior potência. E esta força, que consta da tradição de todos os séculos e de todas as nações, unida à observação experimental, demonstra a ação sobrevivente dos defuntos”. (Richerche sui fenomeni ipnotici e spiritici”. Milão, 1909, págs. 171)   

             A respeito de Geley, estafei-me também em citações. O opositor não deu aos leitores o prazer de um daqueles seus maravilhosos expedientes. Calou. Mas o tempo correu e Geley volta agora a baila como um dos que não admitem a explicação dada pelos espíritas. E se ficou por aí, nesta simples, mas desnorteante afirmativa. Vejamos, pois, um pequeno trecho de Geley, por não tomar muito espaço:

             “Quando pela primeira vez estudamos seriamente a questão (espírita) esperimentamos verdadeira estupefação; percebemos que os fenômenos espíritas reduzem-se a alguns tipos principais, fixos e nítidos, que estão solidamente estabelecidos pelo testemunho concordante de milhares de pesquisadores; que foram fiscalizados com o máximo rigor do método experimental, por sábios de todos os países, que a negação pura  e simples equivale a uma declaração de ignorância, com surpresa não me.nor se verifica que esses fatos têm como base e ponto de partida uma doutrina racional e verdadeiramente científica, uma filosofia simples, clara e bela” (Essai de Revue Générale et d’Inter-prétation synthetique du Spiritisme. Avant-propos. Paris 1925. Págs. 2).

           Jean Meyer diz:

             “Geley afirma a sobrevivência com uma lógica, uma simplicidade de vistas e uma elevação de espírito, que sua autoridade de experimentadortorna singularmente impresionante.” (Prólogo à obra de Geley).

             Agora Crawford, e aproveitemos ainda uma exposição sintética. É de Sudre, na “Revue Metapsychique” de 1922, págs. 308:

             “Ele crê na existência independente desss operadores invisíveis. Em uma palavra, é espírita. No prefácio do seu primeiro livro declara formalmente que está convencido de que os operadores invisíveis são os espíritos de seres humanos que passaram para o Além. Dois anos mais tarde repete – Estou inteiramente certo de que os “operadores” são homens desencarnados.”

             A vista disso é mistificar conscientementemeter o Crawford entre os lábios que não admitem a explicação dada pelos espíritas.

            Finalmente, declarar que os autores que costumo invocar não passm de literatos desconhecidos, qundo me reporto aos que estão no “rol”, e fora do “rol” a vultos da estatura de Conan Doyle, John Edmonds, Hyslop, Richard Hodgson, Paul Gibier, Aksakof, Wallace, Willian Barret, Willian Crookes, Varley, Zoellner, Oliver Lodge, Eugene Huss, Bozzano, Frederico Myers, Chiaia e por aí além, é levar muito longe o direito de mistificar.

            E aqui fico, por então, deixando que os admiradores das boas peças quedem-se no deslumbramento dos magníficos recursos que acodem a polemistas de certo estofo.

            Cá entre nós, estou com Horácio – “nihil admirari”. (locução latina que significa "não se perturbar com coisa alguma")


quinta-feira, 22 de outubro de 2020

Espiritismo

 



Espiritismo

por Carlos Imabassahy   Reformador (FEB) Junho 1924

 

            O Espiritismo não se resume, a meu ver, unicamente, num corpo de doutrina.

            Esta é, sem dúvida, a parte principal, a mais importante do edifício em construção. Mas, não é a única; há outras, no grande todo, que não podem ser postas à margem.

            Todas elas, as partes, as vigas do grande monumento espiritualista se acolchetam, formando um conjunto harmônico.

            Tende tudo para um fim único: - a convicção, nos homens, que devem praticar a lei do amor.

            É esse, necessariamente, o alvo a que miram os espíritos superiores, encarregados pelo Mestre da missão grandiosa de regenerar o planeta.

            Mas, esse edifício, que se principia a erigir com um pouco de boa vontade aqui na Terra e com maravilhosa energia no Espaço, precisa de alicerces; são neles que assenta o organismo que agora começa a desenvolver-se.

            Os alicerces do Espiritismo são a parte experimental, são os fatos mediúnicos, que surgem por toda a parte, trazendo à pobre humanidade sofredora a prova da sobrevivência, com todas as consequências que dela dimanam: -as tristezas, as angústias, as dores para os maus; a paz, as alegrias, a felicidade para os bons.

            Sem os casos da mediunidade, não teria surgido o Espiritismo. Existisse somente a doutrina, bela, não obstante, como é, e não passaria de uma abstração filosófica, pouco mais valiosa que a de Sócrates ou Platão, cuja recordação histórica nos impressiona ainda, mas de pequenos frutos para o progresso do gênero humano.

            Na sua onisciência, o Criador achou que já era tempo de revolver, de sanear esse marnel (lodaçal) em que vivemos. E mandou-nos, então, a Nova Revelação pelo Espírito da Verdade; transmitiu-nos e transmite-nos os ensinamentos do Além, pela comunicação dos Espíritos.

            E que são as comunicações dos Espíritos? -São as mensagens, são o intercâmbio entre vivos e mortos, são o fenômeno espirita.

            É esse fenômeno que, a meu ver, se não pode abandonar; pelo contrário, todos os espíritas deveriam estudá-lo, ampara-lo, encaminha-lo, promove-lo, com os recursos de que dispomos, auxiliando por um lado a ciência, em vez de hostiliza-la, e, por outro, procurando trazer a todos os experimentadores, os ensinamentos de Allan Kardec, que se encontram no Livro dos Médiuns, para que seja de bons resultados, celeiro de provas fecundas, a parte prática, base onde assenta toda essa obra divina.

            Na ‘Vie d'Outre Tombe’, órgão da Federação Espírita Belga, o brilhante colaborador da Revue Spirite, Sr. Luiz Gastín, publicou interessante artigo, há pouco traduzido e remetido à ‘Aurora’ pelo confrade C. de Brito.

            Nele se lê o seguinte tópico, de acordo com as ideias que vimos de expor:

             “É fácil compreender que, se deixarmos perpetuar-se esse desmembramento da Ciência da Alma- ou Espiritismo científico, os psicólogos, psiquistas e metapsiquistas criarão - cada um no seu terreno - um corpo de doutrina separado, isolado, tendendo por consequência para rejeitar como inútil e vã a contribuição superior e sintética do Espiritismo propriamente dito.

            Não é exagero supor que os desmembramentos acima citados têm sido de setenta anos para cá - suscitados, inspirados ou favorecidos pelos adversários do Espiritismo, querendo enfraquece-lo destruindo sua unidade, procurando diminuir seu poder de ação, a importância de seu movimento social e seu alcance, encurralando-o, limitando-o à comunicação entre os vivos e os mortos.

            Era incontestavelmente estreitar o campo dos estudos espíritas, ao mesmo tempo que sua influência na evolução do pensamento contemporâneo. O domínio do Espiritismo sendo restringido de diversos lados e desmembrado, ele ficaria logo reduzido a não ser mais que uma teoria filosófica ou uma tese religiosa explicando o que se passa depois da morte.

            Semelhante situação, à medida que os ramos destacados do Espiritismo fossem crescendo com um caráter quase exclusivamente científico, concorreria para que o Espiritismo fosse absorvido pela metapsíquica - como o magnetismo foi absorvido pelo hipnotismo - suprimindo, bem entendido, todas as conclusões filosóficas e morais da nossa doutrina.”

             De fato, se ao Ciência e a Religião não só procurarem unir e abraçar, cooperando ambas, cada qual do seu lado, para o Progresso; se elas continuassem afastadas, como o têm sido até agora, e se nós, espíritas, contribuíssemos para esse afastamento, aqueles que se supõem sábios, cada vez mais engolfados no materialismo, esforçar-se-iam por separar das cogitações científicas todo o lado moral, todo esse facho de luz que Jesus veio fincar no coração do planeta e que o Espiritismo veio reativar no coração dos homens.

            Aos espíritas incumbe o dever de trazer a colaboração do seu esforço e de suas luzes, onde quer que haja um movimento, onde quer haja manifestações espíritas, surjam elas por meio da ignorância e tome o nome de feitiço, apareçam no seio do orgulho e do ceticismo e se rotule com o nome de Ciência.

            O que colimamos, nós, espiritas, é o Bem. Vamos procura-lo, alimenta-lo, robustece-lo, onde se encontre, esforçando-nos por que se não apaguem essas fagulhas que nos principiam agora a iluminem e donde surgirá mais tarde o grande clarão, o imenso incêndio que abrasará em amor puro e desinteressado todas as criaturas da terra.

            Deveríamos aproveitar tudo o que concorresse para a demonstração dessa grande verdade: - que só pelo Amor podem os homens ser felizes.

 *

             As dúvidas que se notam ainda nas reuniões em que se fazem trabalhos práticos de Espiritismo; o pouco conhecimento da doutrina - auxiliar necessário, imprescindível nesses trabalhos práticos; os percalços e os perigos que, força é convir, os acompanham, perigos inevitáveis em todos os ramos da atividade humana e sobretudo naqueles que estão em começo, levam-nos a recear entrar em contato com o mistério e ouvir as vozes do Além. E daí o se aconselhar não só prudência, senão o afastamento completo das sessões espíritas.

            A prudência é uma virtude, mas o recuar é medo.

            Deixamos de mão aquilo que não é possível enfrentar. Mas isso se não dá com as experiências psíquicas, que sabemos onde ir estuda-las, que temos onde aprende-las. E se Kardec nos ensinou como pratica-las, não me parece curial pô-las à margem pelos contratempos a que nos podemos expor.

             Tirados os elementos onde se encontram as provas do que afirmamos; esgotada a fonte de ensinamentos, que deve ser perene, porque nós marchamos e aprendemos sempre; retirado o sopé do edifício, que fica?

            Um corpo de doutrina, muito belo, mas insulado, parado, estagnado, no meio do caminhar constante da Natureza. Com os tempos, os seus raios irão perdendo o brilho, como ja se extingue o das religiões do passado. 

                E quando chegasse o Futuro, com os ensinamentos acumulados pelos séculos, encontrariam os pósteros apenas, de nossa passagem pela Terra, pálida e fugitiva lembrança, perdida, como lenda, nas páginas da história universal.

                Felizmente tal não se dá. Quando nos entibiem (entorpeçam) os perigos da mediunidade, quando nos tragam o desânimo a sua má aplicação; quando nos façam esmorecer e fraquejar o muito que há por fazer, por construir, aí estão os nossos amigos do Além para amparar-nos e alimentar a fé vacilante; aí estão os fatos psíquicos surgindo continuamente como a demonstrar que é por esse meio que o Criador pretende ferir a atenção dos homens; aí está toda a fenomenologia espírita, aparecendo, provocada ou espontaneamente, pela vontade ou sem a vontade das criaturas, embora oponham-lhe ainda as maiores barreiras os seres que povoam a Terra, deste lado ou do outro lado da vida.

            O movimento que se iniciou não pode parar.

            A cada um a sua tarefa: a este, as pesquisas científicas; àquele, a propaganda pela pena ou peja palavra. Tal dedicar-se-á à experimentação, tal outro à doutrinação. Todos, porém, como vários rios que se dirigem para o mesmo estuário, tendem para o mesmo fim - o Progresso.

            Aos construtores do grande edifício foram confiados misteres diferentes: cabe a cada um sua missão.

            Mas a obra, no seu conjunto, é uma única; todos concorrem para o Bem, todos contribuem com a sua quota parte, para que possa ser colocado no topo do monumento a formosa inscrição, que já liam os antepassados no coração de Jesus:

             - Amai-vos uns aos outros.


domingo, 18 de outubro de 2020

A Reencarnação e o esquecimento do passado

 

A reencarnação 

e o esquecimento do passado”

por   Carlos Imbassahy 

 Reformador (FEB) Janeiro 1924

             Escrevem-nos, perguntando: - “Por que o espirito que volta à Terra, isto é, que se reencarna, há de pagar por faltas cometidas em vida anterior, se não se lembra da coisa alguma?”

            O consulente muito delicadamente nos pede desculpas do incômodo que supõe nos dar, e declara que, assediado por amigos que lhe fazem perguntas que tais, não sabe como responder-lhes.

            Também não o saberíamos, se os espíritos que nos vieram trazer a Nova Revelação,  já nos não tivesse dito alguma coisa a respeito, como que prevendo essas interrogações e dúvidas.

            O esquecimento das vidas anteriores é uma necessidade.

            Se não olvidássemos o passado, as novas gerações, tendo na lembrança os rancores com que se foram, conservando, vívidas, as imagens de antigas inimizades, viriam continuar na nova existência as mesmas lutas, engolfar-se nas mesmas contendas, praticar as mesmas iniquidades; seria uma nova existência com os mesmos ódios, existência, por consequência, ainda de fel e de crimes.

            E não é só.

            A lembrança das faltas passadas, caso o indivíduo tivesse o propósito de regenerar-se, trar-lhe-ia uma vida de remorsos e de vergonha. Teria ele que viver se escondendo daqueles a quem ofendera ou maltratara. Suplício ingente seria esse, e a que poucos poderiam resistir. E se ele, o indivíduo, soubesse que teria que pagar essas faltas, a expectativa contínua do momento da prova, ser-lhe-ia suplício ainda maior que a maldade humana até agora não soube inventar.

            Espere a criatura uma desgraça e essa desgraça tornar-se-á um castigo inominável.

            Deus, porém, na sua bondade, escondeu aos homens a previsão do futuro, como lhes tirou a memória do passado. Assim, eles passam pela Terra, esquecidos do que fizeram e inconscientes do que lhes vai suceder. É essa a lei, lei de benignidade, para a qual só deveríamos ter agradecimentos e louvores.

            Depois de passadas as nossas provas; depois de termos na nossa vida de relação, nos aproximado de pessoas outrora desafetas e inimigas, e extinto, por novos atos, por favores, pela convivência e pela amizade que então se forma, os antigos ressentimentos, é que, tornando ao espaço, vemos voltar a pouco e pouco as reminiscências das várias existências que percorremos. Mas aí, já as provas fizeram os seus efeitos; já os inimigos estão amigos, já os sentimentos de rancor estão apagados.

            Deus assim fez para que os homens não prolongassem indefinidamente as suas raivas, os seus ciúmes, fugindo à lei divina - que é a da estima, da fraternidade, do amor.

            Amai-vos uns aos outros - é o grande princípio de direito divino; e para que nós nos amemos, força é que se apaguem, nas sombras do passado, os sentimentos de azedume que nos traziam desunidos.

 ***

             - Por que há de pagar o espírito, se não se lembra, pergunta o amigo.

            O fato de se não lembrar tira-lhe, porventura, a responsabilidade? Deixa ele de ser o criminoso, porque o crime se lhe apagou da memória?

            Muitas vezes, o tempo faz com que a justiça humana considere prescrito o delito.

Mas, nem por isso, deixa de ser o seu autor, um delinquente. E a justiça divina, que não pode deixar impune o culpado, o traz de novo ao cenário de suas iniquidades para que ele pague o mal que fez.

            Não se conta o tempo no além; para as coisas do além ele é como se não existisse. As vidas são solidárias umas com as outras, e como o SER é o mesmo, qualquer que seja a sua vestidura carnal, uma segunda vida para ele é continuação da primeira, a sua consequência inevitável.

            É como se uma criatura, na mocidade, comete-se uma falta, que viesse a pagar anos depois. Ninguém acharia isso injusto. Todos diriam: pagou o que fez, - inda mesmo que o faltoso houvesse esquecido a falta.

            Pois uma segunda existência, é uma dilação no tempo, dilação que não é nada perante o Supremo Juiz e diante da Eternidade.

 ***

             Temos inúmeras provas da sobrevivência, da solidariedade das existências, da justiça do Criador.

            Platão dizia: aprender é recordar. Os casos de precocidade, os gênios, as aptidões extraordinárias, nada mais são que a armazenagem de conhecimentos anteriores. E isso vem demonstrar que nem sempre a memória do passado jaz completamente mergulhada em trevas. Mozart é um exemplo. Foram outros tantos exemplos. Paganini, Thereza Milanollo; Liszt, Beethoven, Rubinstein, que, antes dos dez anos de idade, já se faziam admirar.

            Pascal aos 12 anos descobriu a Geometria plana.

            Jacques Chrichton, aos 15, discutia qualquer assunto em latim, grego, hebreu ou árabe.

            Henrique de Heinecken falou quase ao nascer; aos dois anos já sabia três idiomas.

            Mezzofanti conhecia setenta línguas e atualmente o Sr. Trombetti parece passar, em conhecimentos poliglóticos, o ilustre cardeal. Ele consegue aprender uma língua em poucas semanas.

            O prof. Richet, no Congresso Internacional de Psicologia, de Paris, apresentou uma criança, que sem saber ler, nem conhecer música, aos 3 anos de idade, improvisava vários trechos musicais muito interessantes.

            George Stephenson, o inventor da locomotiva a vapor, nunca entrou numa escola. Aprendeu a ler e a escrever já na maturidade.

            Donde teriam vindo esses conhecimentos?

            A hereditariedade não pode explicar o gênio. Nem sempre os pais inteligentes produzem filhos prodígios; nem os filhos prodígios são sempre nascidos de pais inteligentes.

            Os filhos de Péricles, o grande Péricles, que deu nome a um século, eram dois tolos. E o de Cícero, de Carlos Magno, de Goethe, de Napoleão?

            E quem eram os pais de Mozart, de Newton, de Shakespeare, de Dante?

            Quem nos diz, ainda, a nós, que as pessoas se não recordam das vidas anteriores?

            Lamartine, na sua viagem à Palestina, antes de chegar a certos lugares, descrevia os como se já houvesse passado por eles. Era, no entanto, a primeira vez que os visitava.

            São muitas as pessoas notáveis que declaram parecer-lhes ter vivido uma outra vida, de cujos episódios se recordam.

            É muito comum, em algumas crianças, ouvi-las dizer que já viveram em outras regiões, que já tiveram outros pais, que já possuíram outro nome.

            Tem-se mesmo procurado verificar se o que elas dizem é verdadeiro, quando mencionam nomes e circunstâncias que ninguém conhece, e, por várias vezes, conseguiu-se averiguar que tudo era de exatidão surpreendente.

            Enfim, os livros sagrados nos falam dessas vidas sucessivas, doutrina que já vem de remota antiguidade.

            Virgílio nos diz que a alma, mergulhando no Letes, perde a lembrança de suas existências passadas.

            Assim é. E feliz daquele que, mesmo nesta vida, pode mergulhar no Letes do esquecimento, e assim amortece na memória os dias que mal empregou, as injustiças que praticou, as más doutrinas que pregou, o que ruim aconselhou, todas as maldades que engendrou.

            Feliz seria se tudo pudesse esquecer, como nos esquecemos dos fatos de uma existência para outra.

            Mas a voz da consciência nos acompanha às portas da morte e mesmo depois da morte, até que um arrependimento profundo a faça calar. Transpomos, então, de novo o espaço, acalentados pela esperança da redenção e mergulhamos de novo no Letes da vida, onde vimos saldar as nossas contas, sem o peso temível das recordações do passado.

            É essa a Lei.


segunda-feira, 17 de agosto de 2020

Prá pensar


“...Sofre? É por que fez sofrer.
O remédio? -Espera com paciência a remissão da dívida... 
Se não quer esperar, se prefere desesperar, lamentamo-lhe 
o gosto, e é só o que nos resta fazer, na nossa fraqueza, na nossa impotência de velhos pecadores também.”

De um artigo de Carlos Imbassahy
Reformador (FEB)  15.03.1929

quinta-feira, 23 de abril de 2020

As objeções de um irmão protestante



            
As objecções de um irmão protestante
Parte 1 - O valor da Escritura
por Carlos Imbassahy
Reformador (FEB) Maio 1929

            Estudávamos, por estas colunas, a tese oposta pelo nosso muito digno irmão, Rev. Galdino Moreira, ao lema espirita de que fora da caridade não há salvação, quando o ilustrado pastor julgou que já era tempo de embargar-nos o passo “na arrancada audaz e confiante" em que íamos correndo.

            Havíamos dito que era nosso costume argumentar pouco com as escrituras. – “Pois é um mal sinal, um péssimo costume" - replica o nosso opositor, "visto - como o assunto gira em torno de doutrinas formuladas à luz da Bíblia, e, ainda “porque os apóstolos apreciavam as escrituras”; e enfim, pondera S. R. que discordamos do próprio Allan Kardec e do Roustaing.

            “É uma pena que o Sr. Dr. tenha ojeriza da Escritura" - lamenta, contristado, o reverendo.

            Essa declaração de que temos ojeriza a Escritura era capaz, só por si, de incompatibilizar-nos com toda a família espírita brasileira.

            Nunca dissemos isto. Em toda a nossa “audaz arrancada” nada se poderá encontrar que autorize aquela suposição.

            O que dissemos é aquilo que está citado, - que gostávamos de argumentar pouco. A ojeriza é à argumentação com base na Escritura; só à argumentação. E vamos dizer porquê.

            Cumpre, antes do mais, salientar que a nossa discussão não girava - pelo menos quando escrevemos aquela frase - em torno da Bíblia. O que verificamos até então foram as razões por que o rev. “não podia ser Espírita”, e, nestas condições, o assunto gravitava em torno do Espiritismo filosófico em torno de doutrinas formuladas à luz dos fatos e não da Bíblia, livro a que nos referimos incidentemente.

            Expliquemo-nos.

            Os argumentos, com relação a textos, se no afiguram de pouca consistência. Falta nele o terreno sólido onde se possa especar (escorar) a prova irretorquível. De maneira que o crente aceita aquilo que lhe fala mais à alma; compreende a doutrina conforme sente; questão toda íntima, de que não se podem tirar elementos para uma demonstração.

            Há outras razões que aconselhariam a fugir das controvérsias religiosas. Muitas vezes, quando um dos contendores mal se precata (acautela), está embrenhado num formidável cipoal, donde com dificuldade se desvencilha. Outras vezes, se mete num labirinto de sutilezas teológicas cuja saída não lobriga (avista) mais.
           
            Em muitos casos o oponente se serve dos versetos como o jogador de “damas” ou de xadrez se serve das suas pedrinhas. Apanha uma aqui; mexe outra para acolá; anda com
esta para a direita, com aquela para a esquerda; combina, calcula e temos movimentado o tabuleiro.

            Nestas condições, a vitória nem sempre é do que está com a razão porém do mais ágil no manejo das pedras.

            Justo é que nós, neófito no assunto, reconhecidamente inábil, não estejamos sempre propenso a entrar na liça.

            Diz o irmão que “fugir do terreno, não gostar disso ou daquilo... não é de bem num douto mestre".

            Mas não nos consideramos tal; nem mestre nem douto, e nos desejaríamos aventurar somente na planura onde se mantém em nossa pouca ciência.

            Há mais: Em matéria de Escritura, quase tudo se resume em questão de fé. Para não ir muito longe, basta que citemos os Evangelhos, e a dificuldade já começará no demonstrar
a sua autenticidade.

            Não foi Cristo quem os escreveu. Os apóstolos é que coligiram os pensamentos do Mestre, sob a influência, - diz-nos alguns - das discussões da época, podendo ressentir-se de o apanhado das ideias, dos preconceitos e das perturbações de então.

            Vieram depois as contendas dogmáticas; cresceu a balbúrdia; houve mesmo conflitos sangrentos, até que Teodósio confiou a Jerônimo a tarefa de redigir a tradução do Antigo e do Novo Testamento. E assim surgiu a Vulgata.

            Mas o trabalho de Jerônimo foi ingente. Havia uma variedade infinita de textos. É o próprio Jerônimo quem o confessa quando diz ao Papa: “Quereis que me coloque como árbitro entre os exemplares das Escrituras que estão dispersas em todo o mundo, e como eles diferem entre si, que eu distinga os que estão de acordo com o verdadeiro texto grego. Perigosa ousadia essa da parte daquele que deve ser julgado por todos, o julgar ele próprio aos outros...

            Naquela variedade de escrituras, umas diferentes das outras (tot sunt enim exemplaria quot codices), foram escolhidos os Quatro Evangelhos. Estes os outros escritos passaram logo – é ainda o que se afirma por algumas correções. Temos já os manuscritos antigos corrigidos, aumentados, modificados.

            Aquela tradução teria sofrido mais tarde a intervenção dos pontífices romanos; nela colaboraria o concílio de Trento, Sexto Quinto, Clemente VIII...

            Alguns teólogos, como Sabatier, deão da Faculdade de Teologia Protestante de Paris, afirmam que os manuscritos originais do Evangelho desapareceram, sem deixar nenhum traço certo na História.

            Tudo, portanto, o que sabemos nasceria de cópias; estas cópias, há quem declare, foram alteradas; há ainda quem diga que não são verdadeiras. Muitos vão mais longe: - os apóstolos não teriam escrito nada.

            Nesse maremoto podemos ter uma opinião e a temos, sem dúvida, discordando dos negativistas e dos céticos, mas será sempre uma simples opinião e por maior que seja a autoridade em que nos escudemos, o que mais podemos apresentar é também a opinião dessa autoridade.

            A “prova” onde encontrá-la? Cremos na existência do Evangelho. Cremos, veja-se bem. Não será porém com a nossa "crença" que iremos abalar a "descrença" alheia.

            Ainda sobre a sua autoridade, que série de dúvidas!

            Papias, o bispo de Hierápolis, fala-nos dos manuscritos de Marcos, como sendo curtos, incompletos, não colocado em ordem cronológica; não seriam eles mais do que os ensinos e recordações de Pedro: os de Mateus, coleção de sentenças escritas em hebreu e que cada qual traduziu como pode.

            Dada, porém a semelhança entre os dois Evangelhos, Renan resolveu o caso afirmando-nos que, em vista da não existência das relações originais, os citados documentos são arranjos onde procuraram acomodar os textos.

            De pouca autoridade gozavam os Evangelhos é ainda Renan quem nos declara: - “Ninguém punha muita cautela em inserir parágrafos, em combinar as descrições, completá-las uma pelas outras. Assim, a mais bela coisa do mundo saiu de uma elaboração obscura e completamente popular.”

            Do Quarto Evangelho diz-se redondamente que ele é apócrifo, “uma tese, de teologia sem valor histórico.”

            O citado autor da “Vida de Jesus”, afirma que as palavras atribuídas por João ao Mestre nada tinham de comum com os Logia dos sinóticos: Se o Cristo falava como o quer Mateus, - diz-nos ele, não podia falar como quer João.

            O Evangelho de João mostra, sem cessar, as preocupações do apologista, os pensamentos arraigados do sectarista, a intenção de provar uma tese e convencer os adversários.”

            Esse Evangelho teria sido escrito por um sectário meio gnóstico, dos que, desde os fins do 1º século, na Ásia Menor, começavam o modificar profundamente a ideia do Cristo.

            É, enfim, uma obra de imaginação, surgida lá para o ano 150, em que o autor se propôs, não a contar a vida de Jesus, mas a fazer prevalecer a ideia que ele tinha de Jesus. Assim pensam vários doutores da Igreja e homens versados nas letras sagradas.

            Quanto à obra de Lucas “é um documento em segunda mão. Algumas sentenças são levadas ao excesso e falseadas.”

            Agora, abramos o Oltremare, - ‘A Religião e a Vida do Espírito’, e ele nos diz: Para fazer de um conjunto de textos antigos a norma da fé, é preciso de antemão aceitar como verdades demonstradas muitas proposições importantes: que estes textos ensinam uma verdade que, situada fora do tempo, é eternamente válida; que seu conteúdo não apresenta nenhuma contradição; que o sentido é muito claro para não dar nunca lugar a interpretações divergentes. Ora, é muito fácil provar que o Novo Testamento não satisfaz a nenhuma dessas condições.”

            Somos obrigados a confessar que assiste razão ao autor, pelo menos no que toca a uma das proposições: - a de que falta, às vezes, a clareza necessária a evitar as interpretações divergentes.

            E, se isso acontece com o Novo Testamento, em maior escala se dá com o Velho.
Razões, pois, de diversas ordens são as que nos mandam evitar os percalços de uma discussão em torno de assuntos bíblicos desde a falta de base, isto é, a falta de documentos que pudéssemos apresentar como provas indiscutíveis, até a dificuldade de fazer aceitar como verdadeira a nossa interpretação.

            Diz o nosso irmão Galdino que podemos muito bem nos servir dos textos sem os esticar.

            Não há dúvida. Mas como impedir aos outros que os estiquem? Como demonstrar que não somos nós que os esticamos? Aconselha-nos o nosso caro colega.

            Fossemos capazes dessa truculência, como provar, porém, que a lógica sadia era a nossa?

            Apresentamos o nosso modo de ver e dizemos: - a verdade é esta. Mas o nosso irmão replicará: - Está enganado, a verdade é a que eu apresento.

            Como sair daí?

            Os obstáculos, porém, que encontramos nesse terreno tão eriçado de dúvidas, não é motivo a que tenhamos ojeriza à Escritura.

            Sabemos que ela representa a palavra divina, porque nos toca, muitas vezes, a alma: pelo testemunho dos Espíritos; porque pode resistir, nos seus grandes ensinamentos, ao embate do tempo e dos homens e se nos afigura que só a vontade de Deus poderia obrar o milagre.

            Mas essa fonte em que vamos buscar a convicção, como levá-la aos outros?

            “Na obscuridade dos textos, divisamos, às vezes, o ponto luminoso que o esclarece, mas esse ponto nem todos o vêm como nós. Que eles não são claros, bem o percebemos, mas isso não é razão a que votemos antipatia aos santos livros. Certo estamos que a Verdade, ao penetrar no ambiente do planeta, sofre o seu contágio e perde o seu fulgor como as estrelas do céu quando as encobrem os nevoeiros da terra.

            Essa obscuridade é a letra que mata. Ah! Achar o espírito que vivifica, quem poderá afirmar que o conseguimos?

            Não temos a pretensão de supor acreditem outros o que o encontramos nós. E é por isso que não gostamos de argumentar com as escrituras. Unicamente por isso.

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As objecções de um irmão protestante
Parte 2 - Divergências e Interpretações
por Carlos Imbassahy
Reformador (FEB) Maio 1929

                        Dizíamos que não era hábito nosso argumentar com as escrituras porque cada qual as esticava como entendia, e o rev. Galdino, na resposta com que nos honrou, assim se exprime:

            “A seguir-se o método estúrdio do Sr. Dr. estamos perdidos: doravante já não será possível o estudo do direito, dos códigos, das leis...”

            Não sei o porquê estaríamos perdidos a seguir-se o nosso método.

            É ponto em que desejávamos, apenas, fazer o que nos diz Boyle: (“On the Style of Scripture”); - “Uso as sagradas escrituras, não corno arsenal a que possa recorrer para almas da guerra, mas como incomparável templo, onde me compraz admirar a simetria, a magnificência de sua estrutura e aumentar a minha devoção para com a divindade, ali
pregada e adorada.”

            Além disso, os casos não são idênticos: interpretações de leis e de escrituras.

            No 1º caso, temos três processos de investigação; a interpretação histórica, a gramatical e a lógica. Podemos empregá-las, com igual eficiência no exame da Escritura?

            A interpretação histórica, aplicada aos textos, é difícil, senão absolutamente impossível, dada a escassez ou carência total de dados no tocante à gênese dos mesmos; a gramatical, nos casos mais complicados, não nos elucida; que podemos inferir, junto à letra, daquela passagem onde se nos diz que os mortos devem enterrar seus mortos?

            Resta-nos a lógica. Esta seria apreciável se os religiosos de qualquer matiz lhe pudessem ser accessíveis, se houvesse, como no caso das leis, um poder superior para quem se apelar.

            No mundo profano, se levarmos, por exemplo, a um juiz, a lei de que nos salvamos pelo sangue ele Cristo, ele inquerirá se é ela justa e verá que não, porque não é justo pagar o inocente pelo pecador; ele inquerirá se é útil e verá que não, porque só a aproveitam os que não precisam dela, os que já estão salvos pela fé; indagará se é eficaz e verá que não, porque o inferno está de portas abertas; indagará se é eficaz e verá que não, porque as gerações passadas aproveitavam de um ato que ainda estava por vir; indagará se é universal e verá que não, porque não abrange a todos; indagará se nos fala da onisciência de Deus e verá que não, pela pobreza do recurso empregado; indagará dos documentos em que se estriba e verá tudo vago e impreciso.

            Ora, esse juiz não pode aceitar a lei pela forma por que o nosso irmão Galdino a compreende e se a aceitasse, caberia recurso para outro juiz, para outra instância.

            Seria assim com as leis sacras?

            O principal motivo, porém, que nos leva a não assentar os nossos argumentos em textos religiosos, ou poucas vezes, faze-lo, está na dificuldade de provar o nosso acerto ou negar o acerto contrário.

            Como demonstrar que não existe no espaço e no tempo a aparelhagem salvatória, traduzida no martírio de Jesus, -- que o prezado irmão Galdino julga razoável e evidente?

            Dir-nos-á este irmão que a encontrou na Bíblia; isso não é razão para o nosso convencimento, habituado que estamos a ver extrair da Bíblia o que se quer. Ela é, na mão dos exegetas, o que era o chapéu de Hermann na mão do mágico: produz todas as doutrinas como o chapéu produzia todos os objetos.

            Pois não consta da Escritura a existência do Inferno e das penas eternas, como afirma o nosso prezado amigo? Surgem, no entanto, os “Estudantes da Bíblia, tão protestantes como o nosso irmão e como ele, tão bíblicos e tão estudiosos e nos vêm declarar que, abrindo 65 vezes o Velho Testamento lá encontram a palavra hebraica sheol, que quer dizer sepultura e não inferno, e folheando o Novo dão com o vocábulo grego hades, com a mesma significação; e acabam nos garantindo textualmente que “a doutrina do tormento eterno é contrária aos ensinos da Bíblia.”

            Aí temos o ‘pro’ e o ‘contra’ tirados do mesmo livro.

            Os adventistas não nos dizem, em face da mesma Bíblia, que a alma é mortal, que ela fica dormindo até a ressurreição, que Satanás será aniquilado juntamente com os ímpios que só será salvo um pequeno número de indivíduos, número que eles já estabelecem precisamente em 144.000?..

            Tudo isso foi extraído muito naturalmente do livro dos livros.

            O nosso amigo Macedo é um grande cultor das letras; certa vez, estranhamos que ele tivesse no seu salão de conferências, retratos, fotografias e esculturas, visto como o Senhor era contrário ao culto das imagens.

            E ele, chamando-nos à parte, pediu-nos que não dissemos mais aquela inverdade ou aquela tolice, pois que, no Êxodo, cap. 25, 18 e seguintes, se encontra:

            “Farás dois querubins de ouro; de ouro batido os farás, nas duas extremidades do propiciatório” (A palavra hebraica traduzida significa "o lugar onde a propiciação é feita". Propiciação significa apaziguar ou aplacar a ira de alguém. Cristo tornou-se a propiciação ou propiciatório pelos nossos pecados na cruz do Calvário (Romanos 3:25, I João 4:10)). (Versão brasileira da American Bible Society).

            O Novo Testamento presta-se menos a controvérsias, no entanto, ninguém poderá negar que as mais opostas doutrinas têm nele a sua fonte.

            Quer o digno pastor que impeçamos as más interpretações. Mas, impedi-las como?  Nem sempre é possível forçar a obstinação de um “crente”.

            Este, por exemplo, é um propagandista e dirá com Marcos, XVI: 15, devemos pregar o Evangelho por toda a parte e a todas as criaturas; mas o comodista, todas as vezes que quiser evitar maçadas, objetará com Matheus, VII, 6; - Não vale a pena estar dando as coisas santas aos cães.

            Nós não temos dúvida de que se deve dar de graça o que de graça se recebe o que porém estiver disposto a auferir proveitos, acomodar-se-á com Paulo, (1 Cor. 9:15), para nos vir afirmar que “quem serve o altar pode viver do altar”. E, acreditar toda a gente que está servindo o altar, não é muito difícil.

            Certo amigo nosso, fervoroso cristão, resolveu, um dia, dar formidável sova de pão em não sabemos que adversário. Fizemos-lhe ver que a sova não deveria entrar no programa de um estudante do Evangelho. E ele nos respondeu: - “Está enganado; Cristo também era enérgico, e, antes que protestássemos citou-nos João 2; 15: “E tendo feito um azorrague de cordas, expulso a todos do templo. 

            Podíamos acreditar que o meigo Nazareno empunhasse um chicote e derramasse dinheiro e virasse mesas como qualquer indivíduo de mau gênio e fraca compostura?

            Mas é o que lá está no texto e retiramo-nos, deixando o amigo com seu argumentum baculinum, (emprego da violência para a consecução de um objetivo) antes que ele fosse pela Bíblia a dentro e nos procurasse justificar a tese com todas violências e todas as matanças que lá se encontram ad gloriam Dei. (para glória de Deus)

            Outro amigo passava os dias caçando; era o emudecedor, o despovoador das florestas.

            Estranhamos que um discípulo de Cristo se entregasse àquele divertimento de sangue e de morte. Ele, porém, calmamente, abriu-nos os Atos dos Apóstolos e leu-nos: Pedro mata e come (10:13).

            Uma das cenas mais comuns a nossos olhos é o espancamento dos animais. Mas se formos a um desses brutos espancadores reprochar-lhes a bruteza e acertarmos com um indivíduo lido em obras sacras, ele poderá rir-se da nossa ignorância em Mateus, Marcos e Lucas, (8:28 -34 ; - 5: 10-13; - 8: 29-32), e com o testemunho dos três evangelistas nos fazer ver que se Jesus consentiu que o demônio entrasse no corpo dos porcos, que muito seria que ele lhes fizesse entrar o pão? Ora, entre o pão e o demônio...

            Fossemos falar em interpretação dos Espíritos. Aqui-del-rei!... (quem pede socorro) Queria ele saber disso!.. O que lá está é que Jesus consentiu na maldade.

            A fé transporta montanhas. Sabemo-lo nós e mais do que nós, o irmão Galdino. Mas qualquer desanimado poderá dizer que o próprio Cristo perdeu a fé, isto consoante Marcos, 15:34, quando põe nos lábios do Mestre, a amarga queixa: “Deus meu, porque me desamparaste?”

            Podemos afirmar ao descrente que Cristo nunca disse isto; o nosso irmão Galdino não sabemos o que afirmará, mas o outro nos poderá meter o texto no rosto e o que se encontra, na própria linguagem original do Mestre é a expressão: - Eloi, Eloi, lama sabacthani?

            O quadro é o menos favorável a outras interpretações: É o Cristo levado para o Gólgota, pregado entre os dois ladrões, vendo blasfemarem os que passavam perto, escarnecerem escribas e fariseus, enquanto lhe mandavam sarcasticamente que descesse da cruz.

            Chega a hora suprema, as trevas cobrem a terra, o Mestre está prestes a dar o último suspiro e então exclama, como qualquer mortal, sentindo-se abandonado: - Senhor porque me desamparaste?

            E ele era o Cristo e ele era o Deus!..

            Ora, não temos meios de provar que Cristo não disse tal, apesar de toda a nossa convicção sobre o verdadeiro sentido da passagem.

            Vejamos mais:

            Mateus nos ensina: (24-:34) “Em verdade vos digo que não passará esta geração sem que todas esta coisas se cumpram.”

            Aquilo que conhecemos como uma geração passou e aquelas coisas não se cumpriram.

            Como podemos impedir aqui as interpretações que cada um entender fantasiar?

            Nos Evangelhos se vê que Jesus fala de Deus como pessoa perfeitamente distinta: que é maior que ele, que é melhor que ele, que é mais sábio que ele, diante de quem ele crescia em graça e sabedoria, para quem ele apela, a quem pede perdão para os homens, de quem recebe ordens, a quem entrega finalmente o espírito.

             Chega mesmo a dizer claramente: Porque eu vim de Deus pois não vim de mim mesmo, mas ele me enviou. (João, 8:42).

            - Pois Jesus é este mesmo Deus. - assim nos aninam os nossos irmãos protestantes. Lá está em Paulo, Rom. 9:5, e em João 20-28; e mais em Isaías e em Ezequiel ...

            Terminemos que já este ultrapassou o espaço de que dispomos.  

            E citemos o seguinte tópico para mostrar o impasse em que podemos ficar, a discutir com as escrituras, sem mais nada:

            São palavras a Nicodemos: Em verdade, em verdade te digo que se alguém não nascer de novo, não pode ver o reino de Deus.

            Dizemos nós que ali está o ensinamento da reencarnação. Dirá o amigo Galdino que não: aquele “nascer de novo” é o nascimento do espírito. O que estiver, porém, de fora não saberá quem está certo e poderíamos ficar discutindo o resto da vida, se não tivessem os outros recursos, se não lançássemos mão das luzes, dos fatos do Espiritismo. E então traríamos ao nosso caro colega as provas experimentais da regressão da memória, os casos das crianças que se lembram de vidas passadas, os das mensagens dos espíritos que estão para nascer, realizando-se o que eles predizem, e mais a colaboração de circunstâncias outras, como a genialidade, as simpatias e antipatias inatas, as lembranças instintivas, os conhecimentos espontâneos, e acima de tudo, a justificação das nossas penas e das nossas dores.

            À oposição do nosso amigo Galdino teríamos, pois, uma série interminável de casos, de provas, de documentos, narrativas de dez, de vinte, de cinquenta, de cem anos, e diante de um majestoso arsenal de fatos, precária seria a argumentação contrária.

            Foi essa unicamente a razão que nos fez declarar não costumamos argumentar com as escrituras.

            Isto posto e pedindo desculpas do tempo tomado só com esta parte passaremos a estudar os demais artigos do sempre estimado pastor.

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As objecções de um irmão protestante
Parte 3A Caridade e a Salvação
por Carlos Imbassahy
Reformador (FEB) Junho 1929

            Diz o nosso irmão Galdino, ainda no seu 1º artigo de série “Raciocínios de um espirita”, - “que não entendemos ou não quisemos entender a sua tese tão simples e tão meridiana.”

            Essa tese tão simples e tão meridiana é a de que a caridade que salva não é a do homem, mas a de Deus. E porque “não entendemos ou não quisemos entender tese tão meridiana, acusa-nos de ter praticado um sofisma, visto como separamos ideias conexas , intimas, simbióticas.

            Caridade de Deus e caridade humana representam ideias íntimas. Nós temos que entender isto. Temos que entender e tomar como coisa absolutamente certa e iniludivelmente provada; como não aceitamos, porém, com a simbiose, ou com a prova, sofismamos.  

            Já no princípio dos seus escritos lança-nos o rev. outra Imputação: - de que, não raro, vamos truncando a tópicos e isolando trechos seus.

            Que não compreendemos as teses tão simples e tão meridianas do nosso irmão, justificar-se-ia, dado o nosso pouco entendimento e ninguém tem culpa de entender pouco. Já o mesmo não acontece com o truncar trechos e isolar tópicos, e muito menos com o sofismar, visto que o sofisma é um raciocínio falso, capcioso, feito de má fé e com o intuito de enganar o adversário. Havemos, por isso, de esmiuçar todos esses pontos onde, não raro pudéssemos ter cometido semelhantes delitos.

            Vamos a um deles:

            Afirmara o digno mestre que a caridade do homem tinha grande valor; mas não bastava para salvar. Replicamos que se não bastava ela para salvar, não tinha valor nenhum.

            A isso revida agora o nosso irmão que “deslocamos o seu pensamento, que separamos de ideias conexas, íntimas, simbióticas, absolutamente inseparáveis”; que “a caridade que salva é a de Deus; mas onde houver essa caridade salvadora haverá seu fruto, a sua prova, a sua consequência irresistível: a caridade humana real, o amor do bem.” 

            Vamos a ver se entendemos e, para não cair em novos sofismas, acompanhemos muito de perto as frases de nosso amigo: - “onde houver a caridade de Deus haverá a caridade humana”.

            Logo, onde não há a caridade humana é que não houve a caridade de Deus.

            Temos Deus sem caridade.

            Ainda mais: “se onde houver a caridade salvadora de Deus existe, como consequência irresistível, a caridade humana, temos que acreditar que quando a caridade humana não existe é porque não houve a caridade salvadora de Deus. Mas, quando o indivíduo não possui essa caridade humana vai para o inferno, e temo-lo eternamente condenado por culpa que não lhe cabe, visto como a sua caridade dependia da caridade salvadora do Senhor.

            Pode ser que, diante da clareza com que nos é agora exposta a doutrina, percebamos a simbiose: o que, porém, perdemos de vista, diante de tese tão simples, é a justiça do Pai.

            Se a caridade que salva é a de Deus, se onde ela entra, logo aparece o seu fruto, a sua consequência irresistível, porque ela não se espalha por toda a parte, para que por toda a parte surjam essas consequências irresistíveis, esses frutos?

            Se eu sou caridoso é sinal de que estou salvo; mérito nenhum me cabe: minha caridade e a minha salvação são resultados do arbítrio divino.

            Esta é a tese. Impõe-se a recíproca. Os que não têm caridade não possuem o sinal dos salvos, - pelo mesmo arbítrio, forçosamente, - e vão carpir as duras penas do Averno (inferno), pelos séculos sem termo, na mais horrenda das agonias, que são aquelas acrescidas pelo desespero sem lenitivo e sem fim.

            A “bondade infinita” do Senhor, por esta forma, não a podemos compreender, por certo.

            Vamos, porém, à “simbiose” a ver se ela existe de fato.

            Todos os caridosos estarão salvos? A caridade será, iniludivelmente, um sinal dos salvos?

            Declara o irmão: “Quando se diz Fulano é verdadeiramente bom é como se dissesse “então é um salvo e um crente, é de Deus.

            Há de perdoar o nosso amigo, mas continuamos a não ver a conexão ou a não entendê-la, o que nos vai arrastar a novos e deploráveis sofismas.

            O Dr. afirma um fato não só indemonstrável como seguramente contrário à evidência: - a de que todos os fulanos verdadeiramente bons sejam crentes, - a menos que a expressão “verdadeiramente bom” tenha um sentido que os dicionários não consignam e que ainda não podemos alcançar.

            Se víssemos, sempre, sem sombra de dúvida, a caridade ligada à crença, ou à fé, talvez atinássemos com a simbiose. Mas não é isso o que se dá.

            Temos um amigo, médico, o Dr. G.M. (dar-lhe-emos o nome se o pastor fizer questão), que é caritativo, desinteressado, boníssimo. Esse amigo confessa-nos que não tem fé, não crê em Deus, não crê em nada. E lamenta-o, declarando que as crenças religiosas devem ser o consolo para os que sofrem e lutam na Terra e assim esperam uma recompensa no Céu ou no Alto.

            Ele, no entanto, não espera nada, porque não crê em nada. Bem que quisera crer, mas não sabe crer, não pode crer!..

            E quando insistimos que ele deve crer, pergunta-nos como é que se adquire essa crença ou pelo menos onde é que se compra.

            E como não sabemos onde ela se compra, não atinamos como responder-lhe.

            Aí temos um caridoso, um “verdadeiramente bom”, mas que não tem crença e a quem devem aguardar as dores reservadas àqueles que não têm fé, que são as dores máximas, os tremendos e eternos suplícios infernais.  

            Poderá esse amigo e nós que o conhecemos, compreendermos a simbiose de que nos fala o irmão pastor? Poderemos aceitar essa caridade como a prova dos salvos, desde que o nosso amigo não se salva? Onde está aí a simbiose?

            E no fim acusa-nos o rev., de não querermos entender.

            Não queremos, entender, não. Não podemos entender, fique certo o caro amigo.

            Nota: Alguns correligionários inferiram dos dois artigos anteriores que duvidávamos da autenticidade dos Evangelhos ou púnhamos restrições ao seu grande valor.
            Nenhumamente. O que declaramos é que não tínhamos no Evangelho o elemento probante. O fato de Jerônimo ver-se às voltas com variadas obras não é motivo para que tenhamos vacilações, certo que estamos que ele fora um missionário nessa e nessa qualidade os espíritos superiores o teriam auxiliado em acertar com os livros que melhor descreviam a história e as lições de Cristo.
            A convicção que possuímos a respeito do Evangelho promana do testemunho dos Espíritos. É o Espiritismo pois, que nos fornece a prova. Que motivos teríamos nós para acreditar nos textos sagrados se, desde criança, ouvíamos falar na Bíblia como um livro herege? Porque haveríamos de aceitar os Evangelhos como a expressão da verdade? Onde assentar a nossa convicção?
            Não haveria de fato, onde assentá-la se o Espiritismo não a viesse firmar com o extraordinário acervo de fatos e a sua lógica irresistível. O elemento probante está, pois, no Espiritismo e não nos Evangelhos. Foi o Espiritismo que lhes veio dar força e clareza. É isto o que queríamos dizer, e, com certeza, a língua não nos ajudou.

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As objecções de um irmão protestante
Parte 4Almas falidas e almas perdidas
por Carlos Imbassahy
Reformador (FEB) Junho 1929
             
            No seu 2º artigo “Raciocínios de um Espírita”, o nosso irmão Galdino analisa as nossas saídas. Antes, porém, registra o fato de não termos dito palavra sobre vários pontos do seu escrito de 30-6-28.

            Cumpre informar que estávamos em meio caminho, quando o pastor julgou que já era tempo de “embargar-nos o passo na arrancada audaz em que íamos correndo.”

            Não querendo perturbar a sua argumentação estacamos na arrancada e daí o nos havermos somente "agarrado” aos textos referentes ao tal “copo de água fria”. (Mt. 10:42)

            Tínhamos principiado por aquela parte de capital importância para os espíritas - a evangélica. E era a principal, visto como o reverendo, com o copo d’água fria parecia querer esfriar a argumentação apresentada pelo “Reformador”.
 
            Estávamos neste pé quando surgiram os “Raciocínios”.

            Pareceu-nos, então, de maior polidez, ceder o caminho ao nosso irmão e daí não termos dito palavra sobre vários pontos do 2º artigo.

            Exposto isto, vejamos o que, continuando, diz o nosso amigo:

            “A 1ª coisa que S.S. faz observar é que citamos mal um trecho de Kardec, falando sobre a soberania de Deus que, “sabendo serem falíveis as almas, errou-as assim mesmo.” E declara que entre ser falível e perder-se uma alma há grande diferença, que, portanto, foi sem justeza a nossa citação de K., que fala do 1º caso e não do 2º. Apenas queremos chamar a atenção para o que escrevemos e que S. S. não leu direito: Há aqui duas concepções falsas, 1º que Deus criando as almas sabendo que podiam perder-se, e, portanto, falíveis, não agiu com caridade. Leu Sr. Dr.?”
            "Tornamos para nosso asserto exatamente o ponto de vista de Kardec, que Deus cria alma falíveis...
            “Portanto S. S. não fez justiça ao nosso raciocínio. Embrulhou, emaranhou, embarafustou as coisas...”

            Lemos. Admitido que o reverendo tomasse o mesmo ponto de vista de Kardec, a falibilidade da alma, - continuamos a afirmar que não há nenhum ponto de contato entre as duas doutrinas. A falibilidade do que cai para se erguer, para subir, não é a mesma falibilidade do que cai para não se levantar mais, do que vai para o inferno, per omnia secula. (para todos os tempos)

            Deus cria seres falíveis mas sabe que esses falíveis salvar-se-ão. Esses falíveis serão um dia felizes. Será isto a mesma coisa que criar falíveis para a eterna desgraça?

            Temos um médico que lanceta um paciente para extirpar lhe um tumor. Surge um outro que lanceta um inimigo para tirar-lhe a vida.

            Fazemos ver que os dois entes não se assemelham. E o nosso amigo, então, julgando iguais os feitos, responde:

            Leu, Sr. Dr.? Temos o mesmo ponto de vista, o de que ambos deram lancetadas...    
      
            Sim, ambos deram lancetadas, mas o primeiro tinha em mira curar, e o segundo, matar. O médico produzia a vida, o adversário produzia a morte. São a mesma coisa?..

            A falibilidade com que Deus cria os seres, segundo dizem os Espíritos, tem por objetivo fazer com que eles aprendam por si próprios. A falibilidade que conduz à perdição ninguém sabe ao que colima. As dores que acompanham a primeira são um processo de cura, as do segundo são um resultado de vingança.

            Num caso, o falido segue uma lei de evolução necessária ao seu propósito. No outro caso ele obedecerá a prepotência de um tirano que o castiga inexoravelmente.

            Podem ser comparáveis esses dois casos? O que submete o indivíduo para ensiná-lo pode ser igual, em sentimentos ou em caridade, ao que o arruína para vê-lo sofrer? Lemos, Sr. Reverendo, e continuamos a não julgar idênticas as duas falências.

            Vamos, porém, passar de novo as vistas sobre o que escreveu o irmão Galdino, no seu primitivo artigo, a ver se o seu ponto de vista é “exatamente” o de Kardec:

            “Acha S. S. que, se só a caridade de Deus é que dá a salvação, segue-se que Deus ao criar as almas, sabendo-as perdidas, criou-as assim mesmo.”
            Há aqui duas concepções falsas, 1º que Deus, criando as almas, sabendo que podiam perder-se e portanto falíveis, não agiu com caridade...”

            Aí tem as frases do nosso irmão. Trata-se ali de almas perdidas, almas que podiam perder-se.

            Uma alma perdida pode ser que seja uma alma falida, mas uma alma falida não é uma alma perdida, e por isso afirmávamos que a doutrina das almas perdidas não era a mesma das almas falidas, isto é, que a doutrina de Kardec não tinha relação com a do nosso irmão. Kardec nunca falou em almas perdidas.

            O fim das almas que se perdem é o das penas eternas.

*

            Semelhante teoria nunca poderia encontrar paralelo em nenhum tópico de Allan Kardec e daí acharmos que o nosso caro pastor não se havia apadrinhado bem. 

            Contesta o Reverendo que Deus, criando as almas falíveis, as tivesse feito para a perdição. Estas tinham a possibilidade de perder- e, diz R., mas não foram criadas para isso.

            Sim, mas essa possibilidade não poderia escapar ao onisciente. Se Ele sabia que elas se podiam perder e pô-las no mundo, é fora de dúvida que as fez para a perdição.

            Há aqui uma criança; eu a deixo só sabendo que ela tem a possibilidade de cair. A menos que eu não tivesse determinado desígnio, se eu a entrego a si mesma ou a quem quer que seja, certo de que ela poderá cair, de que ela vai cair, cometo uma perversidade.

            Tal seria o Deus das penas irremissíveis, o Deus das almas perdidas.

            Agora, pergunta o pastor: - “Como poderá o irmão garantir que uma alma fatalmente vai salvar-se?

            Podíamos responder que do mesmo modo por que o ilustrado escritor sabe que ela iria fatalmente perder-se.

            E estaríamos naquele pé de igualdade que o digno patrício acabou por descobrir, sem que nós lhe indaguemos porque, então, achando a nossa doutrina nas mesmas condições que a sua, escreveu um livro só para arrasá-la.

            Esse tratar de potência a potência é o que se infere do seu tópico:

            “Sabemos que o Espiritismo ensina o universalismo, a salvação de todos, no final de Contas, mas, entre Kardec e a escritura preferimos esta que, entre outras coisas, assevera que a apostasia consciente e voluntária de uma alma torna impossível novo arrependimento (Hebreus, 6: 4-6).
                Pode parecer inclemente mas é o fato afirmado por autoridade apostólica...  
                Entre conjecturar um fato e demonstrá-lo há uma distância quase infinita... O Sr. Dr. nesse caso preferirá Kardec. Sua alma, sua palma. Nós preferimos Jesus e S. Paulo. Os direitos de opção são iguais.”

            Os direitos de opção são iguais, mas não são iguais as bases em que nos mantemos. Nossos esteios divergem muito. Não há a igualdade que o reverendo supõe.

            Que apresenta o nosso amigo? Um texto de S. Paulo onde se diz que a apostasia de uma alma torna impossível novo arrependimento.

            É fraco o arrimo porque o texto parece mal traduzido. O que o apóstolo teria dito é que a apostasia de uma alma torna difícil novo arrependimento. Dada a pobreza do idioma
originário, cujos vocábulos tinham várias significações, o difícil passou a ser impossível, como as penas duradouras passaram a ser eternas, como o calabre (corda grossa) (que mais fácil era passar pelo fundo de uma agulha), passou a ser camelo... etc., etc...

            E que apresentamos nós? Somente o Kardec? Se assim fosse, já apresentaríamos alguma coisa, porque tínhamos, não a doutrina de um homem, mas o resultado de uma série enorme e infatigável de pesquisas.

            Mas não foi só o Kardec quem as fez. Todos aqueles que têm experimentado com as almas do outro mundo, não as vê falar em penas eternas, em almas perdidas, mas nas penas relativas às suas faltas. Essas almas dizem dos seus sofrimentos ou das suas alegrias tal como no-lo refere Allan Kardec.

            Aqui, na Europa, na Ásia, na África, em qualquer parte em que os espíritos se manifestem, eles dão os mesmos ensinos sobre o seu estado d’alma. Quer o médium seja católico, protestante ou budista, as manifestações são idênticas. Estes afirmam que sofrem ou que são felizes mas não nos refere nada do Inferno.

            Leia-se a enorme série dos trabalhos de psiquismo qualquer que seja a doutrina do seu autor, e ver-se-á o fenômeno com a mesma feição.

            Se o rev. Galdino se dispuser a passar os olhos pela tradução que o Reformador está fazendo de um trabalho de Ernesto Bozzano lerá a concordância dos informes dos Espíritos através das diversas fontes onde são esses informes colhidos.  

            Folheie o Bozzano ou o Flammarion ou o Oliver Lodge, ou Sr. William Barrett, ou Conan Doyle, ou Cosme de Vesme, ou Lombroso, ou Geley ou Aksakof, ou Gibier, ou Edmonds, ou Wallace; percorra a plêiade enorme dos que relatam os fatos psíquicos, devidamente observados, em meio honesto, e encontrará, em todos, a súmula da doutrina espírita.

            É o que nota Richet, autor absolutamente insuspeito, conforme registra no seu ‘Tratado de Metapsíquica’.

            Já vê o nosso honrado irmão que, enquanto nos mostra S. R. um texto elástico e duvidoso, nós, em troca, lhe darmos o vulto imenso das experiências realizadas por homens eminentíssimos, nós lhe apresentamos o relato de fatos colhidos em todas as partes, em todas as camadas, no seio de todas as raças, de todos os povos, de todas as crenças.

            Não “conjecturamos”, como diz S. R.; mostramos um imponente acervo de documentos.           
            A opção entre os fatos do Espiritismo e a nebulosidade de um texto, é livre, não há dúvida. Reservamo-nos, porém, o direito de achar aqueles mais convincentes pelos elementos de prova que nos fornecem.

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As objecções de um irmão protestante
Parte 5 - O que é acreditar em Cristo  
por Carlos Imbassahy
Reformador (FEB) Junho 1929

            Confessamos que há assuntos em que a nossa mente se emaranha e um deles é a doutrina que justifica a salvação dos homens pelo sacrifício do Cristo, mormente quando aquela se realiza muito antes desse sacrifício se haver consumado.

            O nosso irmão Galdino defende a sua tese afirmando “que a salvação operada no tempo por Cristo já existia como fato e como realidade na infinitude plena do Deus eterno.

            E para que o compreendamos apresenta um exemplo simples:

            Um pai dedicado prepara o futuro dos filhos, pondo economias em bancos antes deles nascerem. Assim faz Deus que lhes prepara desde a eternidade a redenção pela morte futura do redentor.

            Ficamos, pois, percebendo porque o sangue de Cristo Já salvava muito antes de Cristo vir ao mundo.

            O Pai estava economizando...

            Ora, os casos, no entanto, não se nos afiguram muito parecidos. Do exemplo apresentado, só inferimos a igualdade, na indigência de recursos de que dispunham um e outro, o pai pobre e o Criador.

            O pai pobre é obrigado a economizar para manter o filho. Deus teria, para a salvação da humanidade, de recorrer ao expediente de lançar o filho nos braços da cruz. E esse fato que iria de acontecer passados muitos séculos após o aparecimento do homem, equivaleria à economia do pobre.

            É este o exemplo que esclarece o assunto e que o nosso irmão opõe à “salvação pela caridade.”

            Para não desperdiçarmos o caso ilustrativo do reverendo, vamos ver como procederia um pai mais moderno. Em vez de limitar sua atividade a guardar na caixa vintém por vintém, que o filho mais tarde viria gastar ou esbanjar, sem conhecer o valor do trabalho, prepararia ele o seu rebento para as lutas da vida, ensinava-o, encaminhava-o, fortalecia-o, tornava-o apto a ser o vencedor futuro nas lides ásperas da existência.

            O Deus que conhece o espírito é como esse pai. Dá aos filhos os recursos para eles se fazerem por si.

            É a essa doutrina de trabalho, de esforço, de mérito que o nosso amigo opõe como lógica a de que estamos sendo alvos agora pelo sangue do Cristo pelo doloroso flagelo do Nazareno, como outros já o haviam sido por esse suplício que estava por suceder.

            Pode ser que o irmão Galdino ache isto muito claro e muito justo mas, creia o bom amigo, os que estão fora da sua seita não o entenderão. E se amanhã se lembrarem de dar-nos uma teoria pela qual possa alguém remir-se com o terrível sacrifício de um terceiro, todos terão essa teoria como irrisória; no entanto, que a remissão pela caridade é logo facilmente compreendida e aceita por todo o mundo.

*

            No seu 3.° artigo, o jovem pastor “percebe que estamos incomodados com a salvação pela fé” e afirma “que tudo está em ignorarmos as Escrituras.”

            A quem o diz!.. Essa ignorância nós mesmo, há muito já a tínhamos descoberto. Ela, porém, não empalidece o nosso raciocínio.

            O reverendo enumera as objeções que opusermos à salvação pela fé em Cristo, entre as quais estava a de que não podia ela abranger os antigos, - (os pagãos, os trogloditas, por ex.,) - visto como estes não conheceram Cristo.

            Responde o pastor que as dúvidas parecem mesmo difíceis, mas a verdade é que no fim é o ronco da montanha para dar contas de um ratinho.

            Vejamos como foi elucidado o caso e posto o “ratinho” nas suas justas proporções:

            Para a 1ª objeção, diz o amigo, bastava que tivéssemos examinado um opúsculo que as igrejas evangélicas distribuem às crianças e aprenderíamos como o homem pode se salvar pela fé antes da vinda de Cristo. E assim afastaríamos as graves cogitações em que nos temos embarafustado.

            Da cartilha infantil que se nos põe diante dos olhos tiremos o ensinamento que vem ao caso:

            “P.   E como podiam crer em Cristo os homens antes que ele tivesse vindo?

            “R.   Crendo em Deus... e crer em Deus e crer em Cristo são uma e a mesma coisa.”

            A esta lição o reverendo Galdino aduz o seguinte comentário:

            “Percebe agora S. S. que a salvação sempre foi, é e será pela fé. Crer em Deus e crer em Cristo são uma e a mesma coisa. Quando os antigos criam, criam em Deus... "

            Sabíamos que os irmãos protestantes tinham Cristo como Deus: a esse ponto, mesmo, várias vezes nos referimos. Não ia até lá nossa ignorância. O que não supúnhamos era que a crença em todo e qualquer Deus bastasse para os efeitos da salvação.

            Acreditamos que a fé salvadora, apresentada pelos evangelistas, fosse a do Deus-Cristo, a do Deus bíblico, a de um Deus razoável; mas que todos os deuses por esse mundo afora e pelos tempos idos, pudessem salvar, isso desconhecíamos. Que a fé em deuses de todos as formas e tamanhos e feitios e caracteres; em deuses construídos de todos os materiais, ajeitados a todos os paladares, formados segundo o atraso de todas as épocas; a fé em deuses revestindo os aspectos os mais esdrúxulos e inconcebíveis, ídolos, bonzos, animais, vegetais e minerais... que toda a série interminável de divindades que a humanidade vem criando a seu capricho, gosto e inclinações, pudesse, pela crença nelas depositada, ter o condão de salvar - francamente o confessamos: não sabíamos.

            Pode o reverendo dizer triunfantemente: reum confitentem habemus. (temos a confissão do réu)

            Nós vemos que cada povo concebe o seu deus ou seus deuses, de acordo com a sua evolução.

            Há deuses terríveis, que exigem sacrifícios tremendos; há deuses injustos, que espalham calamidades gerais, porque um tal ofendeu numa ninharia qualquer; há deuses que obrigam os homens a atos de crueldade, a atos viciosos, a crimes de toda a ordem.

            Pois a crença nesse pessoal todo é o que salva.

            Siva é adorado sob certo emblema; as festas que o seduzem têm o aspecto da mais repelente imoralidade. Para agrada-lo os crentes se suicidam em massa, atirando-se sob as rodas do seu carro. Este também salva.

            Tupã não queria medrosos. A maioria dos deuses selvagens não beneficiava o índio que não tivesse o ornamento de muitos despojos humanos – isto é, despojos dos inimigos que devia matar. São também deuses salvadores.

            Quando as legiões romanas entravam vitoriosas em sua capital, iam depor nos joelhos do seu Deus os louros do triunfo. Após esta cerimônia, havia outra mais imponente e aos olhos de Júpiter, radiante, imolavam-se os prisioneiros. Alguns eram degolados como Vercingetorix; outros postos a morrer de fome como Jugurta. (160-104 a.C. - foi um rei da Numídia.)

            Os deuses gregos, por seu turno, são inteiramente iguais aos homens, de cujos atributos, vícios, erros e enganos participam.

            Eram velhacos, astuciosos pérfidos, libertinos e sanguinários. Hermes se notabilizara por ser ladrão, Ares pela sua ferocidade, Afrodite...

            Em suma não poderia haver maior falta de pudor e de honra do que aqueles deuses. Era uma época em que tudo era Deus; é o que nos dizia Tertuliano, é o que nos assegura Bossuet.

            E não se diga que tais divindades exerceram esta ação salvadora em poucos povos e por pouco tempo.

            Afirma-nos Seignobos (Hist. Da Civilização), no que é acompanhado por todos os historiadores, que “essa religião, ao mesmo tempo grega, romana, egípcia, asiática, dominava o mundo inteiro no II século da nossa era”.

            Recuemos, ainda, e vamos encontrar no Egito, Phtah adorado na figura de um escaravelho, Horus na de um gavião. Osíris na de um boi...

            Penetremos mais longe e já não são os animais que representam as divindades, mas os próprios corpos inanimados. E por aí se verá, chegados ao troglodita, que Deus espantoso não seria o do homem primitivo!

            Mas não importa: acreditar em Deus é acreditar em tudo isso, e essa crença, por mais absurda que seja ou incompreensível que pareça, é o suficiente para salvar a humanidade.

            Acreditar em Zeus ou em Netuno ou em Vishna, ou no trovão, ou no boi Apis, ou no crocodilo, ou em determinada pedra ou acreditar em Jesus Cristo é tudo a mesma coisa.

            Os deuses do passado eram esses. Era nesses deuses que os nossos ancestrais  acreditavam, e o nosso bom irmão Galdino di-lo claramente: “Crer em Deus é crer em Cristo. Quando os antigos criam, criam em Deus e nesse ato estava implícita a sua fé em Cristo”.

            É essa a doutrina que os nossos irmãos opõem à salvação pela caridade.  
           
            Ser bom...  Não, não é isso o que salva. O que salva é crer em Cristo e crer em Cristo é crer numa coisa qualquer- seja em Júpiter ou seja no gavião.

            Queira desculpar-nos o digno pastor. Isso não sabíamos. O nosso engano promanou de não podermos nunca ver confundido o Cristo, a doce figura do Cristo, com os deuses polutos que a imaginação, a ignorância e a maldade dos antigos fabricaram.

            Nós, que não vivemos a pregar a crença em Cristo, como meio primordial de salvação, temos o Mestre, no entanto, como um ser perfeito, vindo ao mundo em missão de paz e em missão de amor. E tal é o culto que lhe devotamos que nunca imaginaríamos que esse Cristo fosse as mesmas divindades abastardadas das mais recuadas épocas da civilização humana.

            Reum confitentem (um réu que confessou) declaramos o nosso engano!

Nota - Em o escrito anterior referíamo-nos à passagem de Paulo, onde se diz que “a apostasia de uma alma torna impossível novo arrependimento”. E achávamos, segundo a opinião de alguns, que o que teria dito Paulo é que a apostasia tornou difícil...” etc.
                Escrevem-nos, perguntando-nos se estamos mesmo certo de que o apóstolo tivesse dito “difícil” e não “impossível”.
                Não estamos certo de nada e por isso é que recorremos a outras fontes informativas.
                O que afirmávamos é que as línguas antigas não tinham a riqueza das modernas e daí os prováveis enganos de tradução. Essa pobreza, se nota na própria língua latina, apesar de oriunda de línguas relativamente ricas como as arianas. Aliás, não fomos nós que inventamos isso; dizem-nos os entendidos.
                Abra-se Ribeiro de Vasconcellos (Origens da língua portuguesa) e se lerá: “Uma língua mais se altera quanto se modificam as condições sociais do povo que a fala.” (pg. 12)
                “As modificações fazem-se sentir em todo o organismo de cada língua... No vocabulário, porém, é que estas mudanças mais se acentuam.” (pg. 13)
                Na época de Cristo, parábola, por ex. significava uma narração alegórica. Com os tempos passou a significar termo (palavra). Se se houvesse perdido o primitivo significado, estariam os contemporâneos a fazer os costumados prodígios de imaginação, para explicar o que queria dizer-falar Jesus por palavras.
                “Mudam as significações dos termos” são ainda os eruditos que o proclamam - “para satisfazer a estados psicológicos.”
                Mas, além dos erros de tradução, há muitas outras causas de possíveis enganos nas escrituras. Confrontando ainda agora os livros sagrados, de diferentes edições, notamos divergências nem sempre de pouca importância. É que, às vezes, é preciso acomodar os textos a doutrinas estabelecidas e os períodos vão perdendo a significação, os termos vão sendo substituídos por outros mais ajeitáveis... E, por esse processo, aí teríamos um difícil tornado impossível. Poderemos afirmar que no decorrer de dois mil anos fosse impossível alterar o difícil, quando, nos nossos dias, notamos flagrantes e injustificáveis alterações?
                Mas o caro missivista não precisa aziumar-se (aborrecer-se) por termos julgado alterável um trecho escriturístico. Paulo poderia ter empregado mesmo o impossibilis, sem que a expressão tivesse o sentido absoluto que se lhe quer dar. Se folhearmos o moderníssimo Aulete veremos que “impossível” também quer dizer “difícil.”
                O que é difícil aceitar é que, por esbarrar num vocábulo, tenhamos de admitir o impossível, isto é, um Pai vingador irredutível, e as letras sacras em contradição umas com as outras.

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As objecções de um irmão protestante
Parte 6O que a razão aceita e o que a razão repele
por Carlos Imbassahy
Reformador (FEB) Julho 1929

            Dizia o nosso irmão com quem vimos palestrando, que os antigos, quando criam, criam em Deus e o mesmo é crer em Cristo; e nós chegaríamos, por esse ensinamento, à conclusão de que a crença, por mais absurda que fosse, bastaria ao salvamento humano.
           
            Não obstante, posta a questão nesses termos, parece que ela sofre restrições diante do que nos diz Paulo (I:18-20), e que o nosso amigo Galdino transcreve da cartilha protestante das crianças. 

            Pelo versículo citado se vê que é possível que os homens não tivessem em algum tempo conhecimento da lei de Deus e estes serão julgados segundo suas obras.

            Temos, então, o princípio que defendíamos e é que a fé não pode ser o padrão universal da salvação.

            Deixamos de lado uma parte em que o pastor se refere aos tópicos da Gênese de Kardec, concernente à autoridade das revelações, porque não compreendemos em que as revelações e os tópicos destruiriam a tese de que a criaturas não se podem salvar sem a caridade.       

            Mas, esta tese o próprio amigo a confirma. À nossa pergunta, se os maus iriam para o céu, responde-nos: “Quanto aos maus não há também dificuldade. Os maus não podem ir ao céu sejam os maus do passado, do presente ou do futuro.”

            Mas é o que nós dizemos.

            Ora, os maus são os que não praticam a caridade humana. Se os que não praticam  a caridade não podem ir ao Céu, claro está que “fora da caridade não há salvação”, e é só o que pretendíamos demonstrar.

*

            No seu artigo IV o rev. Galdino acusa-nos de acreditar que toda a gente é cega e nós é que somos os mestres, os sábios, os entendidos; que só nós é que compreendemos o espírito das escrituras; que só nós somos os apadrinhados de Deus; que ficamos no terreno das afirmações e não discutimos texto a texto, para desmascarar o erro; que não aclaramos os outros com um taquinho da nossa ciência bíblica...

            Parece inexata a asserção de que não discutamos texto a texto e não possamos aclarar os pontos duvidosos.

            O ilustre opositor dir-se-ia querer afirmar que os espíritas contestam as passagens obscuras e se ficam nisto, impossibilitados que estão de apresentar um taquinho da sua ciência bíblica.

            Ora, o “Evangelho segundo o Espiritismo” de Allan Kardec, tá cheio de elucidações a respeito dos textos evangélicos e os quatro volumes de Roustaing estudam os mesmos Evangelhos, texto a texto; isto para só falar nas obras básicas.

            Quanto a nós, em particular, na dificuldade de apreciar, ao mesmo tempo, a grande cópia de passagens apresentadas pelo distinto patrício, limitamo-nos a ir tocando nelas, à proporção que os assuntos atinentes às mesmas e iam apresentando.

            É o que nos parecia uma questão de método. Não há, pois, motivos para supor que estejamos fracos e desarmados diante da exposição dos nossos prezados antagonistas.

            Quanto à nossa interpretação, oferecemo-la com o mesmo direito com que oferecem a sua os nossos irmãos protestantes e se achávamos que esses nossos amigos “entendem apenas a letra”, é porque eles sustentam essa letra contra todos os ditames da lógica e mesmo contra outras letras com que vêm colidir.

            Quando os nossos amigos nos declaram que Cristo é Deus, somos forçados a achar que eles não entenderam a letra, - não por sermos apadrinhados de Deus, - mas porque a inteligência humana não pode conceber esse Deus dividido em 3 partes, da qual uma fração veio à Terra; porque o espírito se perde procurando compreender como esse Cristo era Deus e falava de Deus como do Pai a quem obedecia; como Cristo era Deus e afirmava que ele não era bom, porque bom só era o Pai...

            Não é um privilégio o que nos faz julgar em engano os nossos irmãos, senão o entendimento, que nos obriga a repelir o que não é possível compreender.

            Quando se afirma que o que salva é crer em Jesus nós temos que buscar o espírito da lição, porque vemos inúmeras pessoas que têm crido em Jesus ou em Deus como quer o pastor, e que cometem as maiores iniquidades.

            Quando o digno rev. nos diz, em S. Paulo, “que é impossível novo arrependimento”, - o que importa na condenação ao inferno, - necessário se torna que elucidemos o sentido do versículo, para não nos enredarmos em pavoroso cipoal.

            E assim, forçoso é que tenhamos como duvidosa a interpretação literal do amigo, interpretação que nos vem por Deus, diante dos olhos, como um títere a quem o demônio engana e vence a quem os homens não obedecem, a quem o mundo não se subordina.

            Se vamos a Ezequiel, encontramos (XXXIII, III) a seguinte categórica declaração:
           
            “Por mim vos juro, diz o Senhor, que não quero a morte do ímpio, mas sim que ele se converta, deixe o mal caminho e viva.”

            Abrimos o Evangelho de João e vemos: Todo o que meu Pai me dá virá a mim...  Ora, a vontade de meu Pai que me enviou é que eu não perca nenhum de todos os que
Ele me deu...” (VI, 37-39).

            Vejamos Mateus e ele nos diz: Se um homem tiver cem ovelhas e uma delas se extraviar, não deixa as noventa e nove e vai aos montes procurar a que se extraviou? (18:18).

            Enfim, “o Filho do homem veio para salvar o que estava perdido”, “Deus não enviou seu Filho para julgar o mundo mas para que o mundo seja salvo por ele”.

            A vontade do Pai é pois a de que o ímpio se converta. Para salvar os perdidos mandou-nos o seu Filho. O seu proceder é o do homem que vai buscar a ovelha que se extraviou.

            E não obstante tudo isso, os filhos se perdem e vão para o inferno, que “infelizmente”, - diz-nos o rev. - está de portas abertas.

            E nós chegamos a esta conclusão espantosa, a de que Deus tomou uma providência, qual a de nos mandar seu filho, e ela foi quase de todo o ponto inútil, e o que se passa no mundo é contra sua soberana vontade!..

            E se nós soubermos que nenhum passarinho cairá ao chão sem ser pela vontade de Deus, que até os fios de nossos cabelos estão contados, ficaremos na maior perplexidade por descobrir, como é que a vontade de Deus é de tal ordem que até os fios de nossa cabeça lhe obedecem e como é que, sendo de sua vontade salvarem-se os homens, eles se perdem!

            É, pois, diante desse dilema, que nos achamos no direito de afirmar que parecem enganados os nossos irmãos protestantes.

            Não é preciso uma iluminação especial, nem o filhotismo divino para nos julgarmos com a razão.

            É que ela está a nos entrar pelos olhos, é que não pode haver dúvidas a esse respeito, e se não cremos que os nossos irmãos sejam cegos ou deixem de ter a nossa inteligência, somos, pelo menos, obrigados a ver que a repetição dos mesmos ensinos através das idades, incrustou-se lhes por tal forma no pensamento, que eles não ponderam perceber aquilo que já percebem os que não foram educados na escola do dogma.

            Fora, portanto, desses pontos que o nosso espírito rejeita, não porque julguemos esse espírito esclarecido, mas porque aqueles pontos são inaceitáveis diante do mais superficial estudo. Fora desses pontos, lemos sempre com atenção o nosso irmão Galdino e seus confrades, com quem muitas vezes temos aprendido.

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As objecções de um irmão protestante
Parte 7Permaneçam as três mas a caridade é a maior  
por Carlos Imbassahy
Reformador (FEB) Agosto 1929

            Apesar de haver afirmado o digno pastor Galdino Moreira que fugíamos à análise dos textos evangélicos, sempre descobriu esse nosso irmão alguns, em que a fuga não se verificava. São aqueles que falam no “crer em jesus”, “seguir a Jesus”, “não ir ao Pai senão por Jesus”etc., textos que temos como significando seguir a doutrina de Jesus.

            E declara o nosso amigo:

            “Diz S. S. que interpretamos essas frases como exigindo crença ou conhecimento da pessoa de Jesus, em carne e osso ou seja travar relações materiais com Jesus...”

            E então S. R. explica:

            “Nunca protestante algum ensinou que crer em Jesus seja privar com Jesus em carne e osso ou travar relações materiais com ele...”

            Se nunca os protestantes ensinaram isso, nunca tal coisa supusemos.

            Nunca dissemos que os protestantes tinham o “crer em Jesus” como privar com ele em carne e osso.

            Nunca interpretamos as frases do nosso irmão como exigindo conhecimento pessoal de Jesus.

            Pensávamos e pensamos que o “crer em Jesus” tinha, na teoria dos nossos irmãos, a acepção de haver fé em Jesus, visto como todas as vezes que nos referimos à caridade, antepõe-se nos a essa caridade o “crer em Jesus” o “seguir a Jesus”.

            Dir-se-ia, pois que “crer em Jesus”, é coisa diferente do que ter caridade e o que nós queríamos provar é que não se dava tal, e por isso dizíamos que “crer em Jesus” é seguir sua doutrina e seguir sua doutrina é fazer o bem.
           
            Acha o irmão que assim é. Porque nos contraditava, então?

            É verdade que acrescenta: “é confiar também na sua autoridade e não sabemos por que se há de inferir que com o pregarmos a caridade, estamos desautorizando a divindade.

            Em todo o caso, acompanhemos o amigo, a ver no que estamos errados.

            “...É mais do que isso. É confiar na sua divina autoridade... Crer em Jesus no sentido só de adotar sua doutrina é pouco. Por que hei de acreditar em sua doutrina? ...Acredito na sua doutrina porque atrás dela está o Autor...
            O Sr. Dr. diz: - para conhecer psicanálise, por ex., é preciso conhecer Freud, isto é, estudar lhe as lições. Perfeitamente.
            Mas, por que hei de aceitar as lições de Freud? Claro que devido à pessoa de Freud, a quem reconheço como autorizada...
            Portanto, a aceitação de uma obra está primariamente na aceitação da autoridade do autor... Logo o Sr. Dr. Carlos não interpretou bem nossa crença, não a conhece e julga mal os evangélicos...”

            Parece-nos que há aqui alguns equívocos.

            Não é pelo autor que se conhece a obra, mas pela obra que se conhece o autor, assim como pelo fruto é que se conhece a árvore.
            O valor de Freud está nos seus trabalhos. Não tivesse ele feito a Psicanálise e ninguém o conhecia.

            O homem só aparece depois da obra.

            E tanto a autoridade do indivíduo depende dos seus frutos, que essa autoridade é mais ou menos acatada conforme o valor que se empresta ao que ela faz.

            Assim, aquele para quem a teoria freudiana veio a calhar, com a doutrina da libido, - porta aberta às nossas fraquezas, - o Freud é um gênio.

            Outros, como nós, que põem em dúvida as suas concepções, têm-no como pouco mais de medíocre.

            Lutero é para o nosso amigo um grande vulto.

            Os nossos irmãos católicos, porém, a quem a Reforma tanto desagradou, há muito que o julgam no inferno.

            Porque ninguém conhece os anônimos? Porque eles não fizeram obra nenhuma.

            Que é a obra que diz do autor, parece-nos ponto de tão insofismável clareza, que nos dispensamos de prosseguir. Lembremo-nos, apenas, que o próprio Cristo, para que o Batista soubesse quem ele era, disse ao mensageiro que o veio interrogar: “Ide contar a João o que estais ouvindo e observando: os cegos veem, os coxos andam, os leprosos ficam limpos, os mortos são ressuscitados, aos pobres anuncia-se lhe o Evangelho.” (Mt., 11:14.).

            Aí tem. Jesus falava de suas obras para ser conhecido.

            Pensamos mais que a criatura pode seguir a Jesus sem ter sabido de sua autoridade. Segue-o, praticando a sua doutrina.

            Houve e há, talvez, quem nunca ouvisse falar de Jesus. Dirá o nosso irmão que esse, porém, ouviu falar de Deus.

            Mas esse Deus, de quem muitos ouviram falar, podia deixar de ensinar o que ensinava Jesus. E o justo, no entanto, guiado unicamente pelos seus bons sentimentos, enriquecidos através dos séculos, cumpriria a risca o Evangelho, de que jamais tivera noticia, acreditando mesmo em divindades do mais absurdo feitio e quilate.

            Abreviemos, porém, a questão, declarando que a tese espírita não cogita, propriamente, negar essa “autoridade”, por que tanto se empenha o amigo G. M..

            Não a eliminamos de nossos princípios, todos nós que somos essencialmente cristãos. O que se pretende tornar patente é que os que não têm caridade não podem absolutamente salvar-se; o que se afirma é que “fora da caridade não há salvação” .

            Esse é que é o princípio básico do salvamento:        

            E vamos ver como esta questão da autoridade está relegada a um segundo plano.

            Folheemos, por ex., o trabalho de um dos mais acatados escritores do catolicismo, - ‘A Doutrina da Ordem’ - do Dr. Hamilton Nogueira e leremos o seguinte:

            “Abre-se a História e surge o dulcoroso Cromwell, assinando com mansidão evangélica, com suave tolerância, a Constituição que recusa a liberdade aos católicos. Mais adiante aparece um Guilherme de Orange cuja bondade angelical não o impede de excluir os católicos do bill de tolerância. Viram-se páginas e aparece Cristiano III, cordeiro de extraordinária brandura, que se contenta apenas em condenar à morte os padres que ousem penetrar na Dinamarca.”

            A esse irônico libelo, podiam revidar os nossos irmãos protestantes:
           
            “Abre-se a História e surge o melífluo e católico antecessor de Cromwell perseguindo aos puritanos.

            Mais adiante aparece um Luís XIV, cuja brandura de serafim não o impede de revogar o edito de Nantes.

            Viram-se páginas e aparece Catarina de Médici, ovelha de fenomenal bondade, que se contenta apenas de mandar matar todos os huguenotes que ousaram existir na França.

            Os nossos amigos podiam dizer isto assim e unicamente assim, para não sair das águas daquele escritor citado. Se eles quisessem partir das Cruzadas, velejar pela Idade Média, acompanhar os trabalhos da Inquisição, e mesmo nos tempos modernos se demorar nos feitos religiosos, muito haviam para comentar.

            Que espantosa messe não lhes forneceria a História Universal, se se lembrassem de ir catar todas as maldades dos seus irreconciliáveis adversários.

            Em nome de Cristo e para ser lhe agradável os habitantes de Béziers foram assassinados. O monge Arnaud Amaury recomendava o morticínio, falando por essa forma a seus soldados: -Tuiez-Ies tous, Dieu connaitra ceux qui sont à lui.

            Para que Deus soubesse os que estavam com ele, foram massacrados também os habitantes de Carcassona, de Castre, de Alba e de Tolosa.

            E triste verdade é esta que lemos numa obra de Maurice Magre (Pour quoi je suis boudhiste): - “Logo que os cristãos chegavam em algum lugar, aí instalavam um tribunal religioso e levantavam fogueiras.”

            Era esta a doutrina do Cristo? Por certo que não. Mas aqueles maus eram crentes, e tinham em muito apreço a autoridade de Cristo.

            A crença nessa autoridade, traduzida por tal forma, poderá conduzir alguém ao caminho do céu? Por certo ainda que não. O que fica, pois, indestrutível, inabalável em seus alicerces, é o Bem. A parte inamovível, a que resiste sempre, aquela sine qua non, é a da caridade. Isso é o que afirmamos. O que se assegura, em Espiritismo, é que as manifestações da fé nada valem se desacompanhadas das obras.

            Tal como dizia Tiago: “Pois assim como o corpo sem espírito é morto, assim também a fé sem obras é morta” (2:26).

            O que o Espiritismo procura, com seu lema, é mostrar aos homens que de nada lhes adianta o fanatismo religioso, a crença em Jesus ou no quer que seja, as demonstrações sinceras ou não da fé, se no fundo da alma não lampejar o amor do semelhante, que se traduz nas obras da caridade humana.

            Afirma o nosso contraditor que a autoridade de Jesus está apresentada no Evangelhos pelo seu nome: - fazer a caridade em nome de Jesus é faze-la porque Jesus mandou.

            Mas o que se tem feito em nome do Divino Mestre é a iniquidade. O seu nome tem acobertado as maiores infâmias na face na terra e então os espíritas vieram lembrar que o nome de Cristo pouco valor terá sem a sua doutrina.

            E nada mais fazermos que repetir as palavras do Messias:

            Naquele dia muitos hão de dizer: Senhor, Senhor, não profetizamos em teu nome e em teu nome, não expelimos demônios e em teu nome não fizemos muito milagres?”

            Então lhe direi claramente: “Nunca vos conheci; apartai-vos de mim, os que praticais a iniquidade.” (Mateus 7:22-23).

*
            Há quem suponha, e assim parece acreditar o nosso pastor amigo, que temos como inútil a fé.

            (Não dissemos isto em nossos escritos, não n'o dizem a Igrejas, não n'o ensinam nossos símbolos)
           
            Quando se diz que fora da caridade não há salvação, o que se afirma é que- sem caridade ninguém se salva.

            Tal princípio não exclui a fé. Não há quem possa negar o valor da fé no processo evolutivo do Espírito. Ninguém crê que um ateu seja um espírito adiantado. Em todas as altas comunicações espirituais se nota o mais acendrado respeito e a mais doce confiança no Pai.

            Quando se assegura que é a caridade que salva ter-se-á em vista afirmar que é ela o principal caminho para atingir-se a felicidade. É mesmo possível que se diga que a caridade é o único caminho, será ênfase. O que os espíritos declaram, o que está no Kardec é que essa virtude é indispensável à salvação. Será mesmo a que predomina, a que mais resplandece aos olhos de Deus e por ser a principal é que ficou esculpida como lema
da doutrina.

            O ensinamento espírita é o ensinamento de S. Paulo:

            Mas agora permaneçam a fé, a esperança, a caridade, estas três; porém é a caridade a maior destas.” (Cor. I, XII, 13.)

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As objecções de um irmão protestante
Parte 8A Fé e a Caridade   
por Carlos Imbassahy
Reformador (FEB) Agosto 1929

            O ilustrado pastor do Riachuelo, com quem vimos palestrando, contestava a tese espírita da caridade dizendo que esta é evidencia da salvação.

            Não entendemos muito e S. R. explica: “sem verdadeira fé não há verdadeira caridade”, e estabeleceu a simbiose de que já tratamos.

            Mas porque, - perguntávamos, - não pode haver caridade sem fé? Muito pelo contrário, estamos fartos de ver que há caridosos que não são crentes e crentes que não são caridosos.  

            Ao que replica o nosso irmão:

            “Devagar, Sr. Dr.. Isto não vale assim tão às carreiras. S. S. afirma, raciocina, propõe, analisa; mas nem sempre há de ser como julga. Vamos deslindar essa meada. Há caridade e caridade. Há crentes e há crentes.

            Há indivíduos hipócritas e há sinceros...

            E continua o eminente sacerdote a demonstrar-nos “que há caridade que vale e há caridade que não vale”; cita vários trechos do Evangelho e entre estes Mateus (6:1-4): “Não façais as vossas esmolas para serdes vistos dos homens, como fazem os hipócritas...

            E então diz-nos:

            “Percebe, Sr. Dr. Há uma caridade que Deus não aprova, caridade que se faz por aplauso e por hipocrisia...”

            Mas quem diria ao nobre amigo que a caridade que a caridade, que o Espiritismo 
prescreve é esta que se faz por aplauso e por hipocrisia?..

            O que se tem por caridade é o amor ao próximo e os atos que o traduzem.

            Veja-se o “O Livro do Espíritos” cap. XII, 893:

            “Toda virtude tem seu mérito próprio porque todas indicam progresso na senda do bem. Há virtude, sempre que há resistência voluntária ao arrastamento aos maus pendores. Porém, a sublimidade da virtude está no sacrifício do interesse pessoal pelo bem do próximo, sem pensamento oculto. A mais meritória é a que assenta na mais desinteressada caridade.”

            Já vê o douro evangelista que foi inútil a enumeração dos textos com que nos quis provar que há uma caridade que Deus não aprova.

            Esta, - se é que se lhe pode chamar caridade, - também não a aprovam os espíritos superiores.

            Os versículos apresentados pelo nosso irmão são os mesmíssimos apresentados por Kardec, e comentando S. Paulo (I Cor. XIII) diz-nos o codificador, reforçando lhe o ensinamento:

            “Ele define a verdadeira caridade, não somente na beneficência, mas também na reunião de todas as qualidades do coração, na bondade na beneficência dispensadas ao próximo.”

            Tal é o que o Espiritismo tem por caridade.

            Infere-se de vários trechos a série do pastor: - Raciocínios de um espírita -, que é nosso intuito combater. O Protestantismo demonstrar o seu nenhum valimento, enfim, fazer obra de todo o sectarista, que é a de derrocar a crença alheia seja ela qual for, sem lhe perceber nunca mérito de espécie algum.

            Tal procedimento, contra o qual sempre nos insurgimos, é contra os preceitos da doutrina e prova pouca evolução mental.

            Porque, talvez, o nobre amigo vê em nós um antagonista, é que não percebeu o que queríamos dizer quando citamos Talleyrand.

            Declarava esse prelado que acreditava na Bíblia por ser bispo, mas não lhe entendia nada e nós fazíamos ver que os bispos iriam rareando e assim desapareceriam os crentes para ficarem só os que não entendessem nada.

            O eminente pastor responde que há engano em confundi-los com os bispos; eles creem na Bíblia porque a Bíblia é “a palavra de Deus” e mais “que os crentes não vão rareando, o que se demonstra com as estatísticas.”

            Sim, creem na Bíblia porque a Bíblia é a palavra de Deus; mas acham que a Bíblia é a palavra de Deus por serem protestantes...

            Quase que vem a dar no mesmo que dizia o bispo...

            Quanto às estatísticas, elas provariam alguma coisa, se ficasse demonstrado que só protestantes adquirem a Bíblia.
           
            Mas não é isso o de que queremos tratar, nem é do nosso interesse que o Protestantismo desapareça e os crentes vão rareando.

            Aqui discutimos unicamente princípios e deste, na nossa controversa, os que o rev. antepôs aos ensinamentos espíritas.

            O nosso lema é o do mais absoluto respeito à fé alheia,

            O que queríamos porém, dizer, é que, sustentando, obstinadamente, dentro dos Evangelhos, doutrinas indemonstráveis ficarão pouco acreditados perante as gerações vindouras, sacrificando, talvez, toda a importante obra a que se dedicam.
           
            Por enquanto a humanidade ainda não raciocina. Os indivíduos acreditam naquilo que se lhes diz. Quando, porém, o raciocínio começar a despertar, todo o mundo compreenderá que o homem só poderá ser salvo pelo seu merecimento e que é inverídica e afirmativa de que o sangue de Cristo é que veio redimir a humanidade, e isto durante uma só encarnação.

            Se lançarmos, por de leve os olhos sobre a histeria dessa humanidade o que vemos são atos contínuos de barbaridade, de injustiça, de revoltante iniquidade.

            Pode-se dizer que o homem é mau por sua natureza. As sociedades vivem em tranquilidade aparente.

            Por pouco que se rompa o equilíbrio que as mantém, logo se veem surgir os abusos de toda a ordem.

            Há uma pequena luta civil; os exércitos se encontram sob férrea disciplina; no entanto, uma cidade tomada é uma cidade saqueada.

            Perguntamos: O sangue de Cristo poderá acobertar tudo isso?

            Parece que não. Ora, em cada geração a parte dos bons é insignificante. Diógenes continua de lanterna acesa, pelos séculos em fora, à procura de um homem.

            É diminutíssima a quantidade dos justos diante a enorme massa dos desonestos.

            Temos, então, o Pai sacrificando o seu amado Filho para um resultado quase inapreciável. Uma empresa que apresentasse tal porcentagem de lucros seria uma empresa irremediavelmente falida. Do mesmo passo, a missão do Cristo, dada a precariedade dos seus resultados, estaria, indubitavelmente, fracassada.

            É o que verão os pósteros, quando começarem a ler pela cartilha da razão e não por aquela que dão às crianças os nossos caros irmãos protestantes.

            Isto não quer dizer, porém, que o Protestantismo deva desaparecer. Estenda-se um pouco mais o livre exame, amplie-se a Reforma e estarão os evangélicos dentro da lei imperturbável do Progresso, cumprindo a sua tarefa.

*

            Voltando à fé, diz o nosso prezado amigo que a que salva é a que faz amar primeiro a Deus, e que não há caridade sem fé! E servindo-se dos próprios ensinamentos espíritas, mostra-nos, com transcrições do Evangelho de Kardec, que “a esperança e a caridade são consequentes da fé” que a fé é a mãe da caridade que “a caridade sem fé não basta para manter entre os homens uma ordem social capaz de torna-lo felizes,” que "a caridade é impossível sem a fé.”

            Diante destas frases, acha o pastor que andamos meio esquecido até dos mestres.

            É. A memória já nos vai fugindo. As lutas da vida nem sempre nos deixam o espírito com a frescura do verdor dos anos. Mas não se trata aqui, propriamente, de perda da memória. Tomada naquelas frases, a fé, - como crer em Cristo, - o que se poderia dizer- é que ali havia uma contradição, porque nos ensinamentos espíritas que se proclama é que a caridade é o 1º passo para o salvamento.

            Nos lances apontados, porém, trata-se de mensagem que Kardec recolheu. Não é um ensinamento geral senão as opiniões dos Espíritos que se assinam “José” e “Um espírito protetor”.

            Belas mensagens, não há dúvida, e que por isso mereciam apanhadas.

            Mas não nos parece que seja aquela fé uma simples crença na divindade. Assim como o rev. no diz que há caridade e caridade, nós afirmamos que há fé e há fé.

            É este o calor num empreendimento; será o sentimento do Bem; a força motriz de nossas boas ações...

            Larousse aponta-nos várias acepções: - “firme adesão da inteligência à verdade que ela crê reconhecer. Fidelidade aos compromissos.

            Lesseps, que, arcando com as maiores dificuldades, vencendo óbices insuperáveis, abriu o canal de Suez, erei um homem de fé!

            Folheie o nosso irmão um pouco mais a mensagens que nos citou e lerá:

            “Mas o Cristo, que executou milagres, mostrou com eles próprios quanto pode o homem cheio de fé, isto é, da vontade de querer.”

            A fé, inspiração divinas, pode ter a acepção também deste sentimento que nos liga a Deus, que é o amor.

            E então seria a mãe da Caridade.

            Não vemos, pois, em que alterar as nossas conclusões. Mantemos a crença de que a Fé é indispensável na marcha do Espírito, mas o primeiro grande passo é o da Caridade.

            O mais interessante, porém, é ver o nosso irmão Galdino, para a defesa de sua tese, abonar-se em Allan Kardec e nós ficarmos com S. Paulo:

            “E se tiver todo a fé a ponto de remover montanhas e não tiver caridade, nada sou.”) (I. Cor. 13,2.)

            Mais um artiguete e está finda a nossa a palestra.

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As objecções de um irmão protestante
Parte 9 e final últimas palavras   
por Carlos Imbassahy
Reformador (FEB) Setembro 1929

             Disse o “Reformador”, em artigo doutrinário, que se só a caridade de Deus em Cristo é que salva, haver-nos-íamos com três dificuldades: a 1ª que tal caridade não é eterna; a 2ª que não era eficaz; e a 3ª que não concordava com o Evangelho.

            A isso respondeu o pastor Galdino Moreira que a caridade era eterna, porque o sacrifício do Cristo abrangia as humanidades de todas as épocas: quanto à sua eficácia, limitou-se S.R. a declarar que Deus não tinha culpa que o indivíduos sem fé e perdessem...

            Já tratamos das duas questões acima, e estamos agora na 3ª, a de que a caridade de Deus, como salvação, não concordava com os Evangelhos.

            Para provar que a caridade salvadora é a dos homens o citado artigo do “Reformador” reportou-se, entre outras, a passagem de Mateus 25:-10.

            “Em verdade vos digo que quantas vezes o fizestes a um destes meus irmãos mais pequeninos, a mim o fizestes.”

            O irmão pastor replica que “tomamos o texto isolado”, quando devíamos ir a Mateus 10: 42.

            E qualquer que tiver dado só que seja um copo d’água fria a um destes pequenos em qualidade de discípulo, de modo nenhum perderá seu guardião.

            Assim, o valor da caridade estaria no ser feita por crentes a crentes em Cristo.

            Mostramos a injustiça do princípio: - Ha dois grupos que fazem a caridade. Um crê em Cristo. Ambos envidaram os mesmos esforços na prática do bem e o Senhor só escolhe um deles, o que acreditou. Remeter o outro grupo para o inferno seria grande injustiça.

            Diz-no, então, o nosso contraditor:

            “A hipótese do Sr. Dr. é falsa e inadmissível porque, é um requintado sofisma.
            Tudo nesta comparação depende de uma cláusula que o Sr. Dr. enquadrou gratuitamente na hipótese, cláusula, aliás, inadmissível. É esta: “ambos os grupos envidaram os mesmos esforços, na prática do bem...”

            É a segunda vez que o Rev. Galdino nos acusa de sofistas. Ficou apenas em dois sofismas, felizmente, apesar de haver declarado que, não raro, sofismávamos. O interessante, porém, é ver o que o citado escritor chama de sofisma.

            Todas as vezes que partimos de ponto oposto ao que S. R., tem como certo, estamos sofismando.

            Assim é que ele afirma: “Se creram sim, podiam ter envidado os mesmos esforços na prática do bem...”

            Por esse processo estaremos sempre com períodos sofísticos. O ponto é partir de princípio diferente do que S. R. estabelece.

            Não há nada que nos demonstre “que só envidam os mesmos esforços, os que creram.”

            A proposição é simplesmente dogmática e não nos pode, portanto, convencer.

            Vamos ver, porém, que ela está longe de ser aceitável, e para isso transcrevemos todo o seguinte trecho do diretor do ‘Puritanos’:

            ...Provada a perfeita ligação desses passos evangélicos, vamos à dúvida do caro polemista: - Segundo a doutrina do pastor o bem não será praticado indistintamente para todas as criaturas. Ele só aproveita quando feita uns crentes em Cristo...

            Lendo este trecho, puzemo-nos a pensar no ditado: dois a medir e três a conta... É o fato. Tratamos de um caso específico, particular, de uma parte, apenas, do Evangelho; discutíamos, na ocasião, o texto apresentado pelo Sr. Dr. Carlos e este agora nos arruma em cima uma conclusão geral, fala da regra e não da exceção... Quando foi que declaramos que o bem só aproveita aos crentes?”
           
            Quando? Vejamos seu artigo “A caridade que salva”, do ‘Puritano’ de 30 de Junho de 1928:

            “Note o articulista que a caridade assim discriminará os salvos e perdidos, no juízo, não é simples ação de dar e acolher os pobres ou fazer benefícios. É a caridade feita aos crentes em Cristo...”

            E isto não é uma regra...

                E mais adiante:

                “Ora a caridade aqui (vers. de Mateus 25:31-46), que se põe em relação direta com
a pessoa de Cristo, é a feita em seu nome e a um seu discípulo...”

                E depois de várias citações evangélicas:

                Em todos estes lugares, a dádiva, a caridade é feita a um que ore, em nome de Cristo, a discípulos.

                Todos os grifos são do próprio reverendo.

                Nesses trechos citados não se encontra o 'so', de fato, mas esse advérbio subentende-se. Se “a caridade que discriminará os salvos e os perdidos” é a “feita aos crentes em Cristo” não discriminará os perdidos e salvos.  

                Se a caridade é a “feita em nome de Cristo a um seu discípulo”, segue-se que a que não for feita em nome de Cristo, ou a um que não for discípulo não será caridade.

                Se em todos os lugares “a caridade de é a feita a um que crê”, quando for feita “a um que não crê”, não será, está visto, caridade; e conseguintemente só será caridade quando feita ao que crer...

            Enfim, se o articulista declara não haver afirmado que o bem só aproveita aos crentes, impõe-se nos a certeza de que esse bem pode ser feito a crentes ou a descrentes,  isto é, a um que não seja discípulo do Cristo.

            E se não é obrigatório darem-se esmolas só a um crente, ipso facto não será obrigatório que a dádiva seja também feita pelo crente. Porque não há razão, no versículo em apreço, a que se dispense a exclusividade numa de suas partes e não na outra.

            Temos, então, que a caridade não tem restrições, pode ser dada e recebida por quem quer e não sabemos a que veio o versículo com que o reverendo quis restringir o ensinamento de Mateus 25:40.

            Quantas vezes o fizestes a um destes meus irmãos mais pequenos, a mim o fizestes.”

            Por que razão reprochou-nos o haver tomado o texto isoladamente? A que veio,  então, “o copo d’água fria, se ele pode ser dado, indiferentemente, a discípulos ou não discípulos?

            Não há obrigatoriedade no ensinamento, não falou no ‘só’? -Será então como se o ensinamento não existisse; ele é inútil.

            Suponhamos que se coloque num cartaz: “Dão-se esmolas aos sábados”.
             
            Parece indubitável que só aos sábados se darão esmolas. Mas se o avisador afirmar que não falou em ‘só’, nesse caso as esmolas podem ser distribuídas no sábado e fora do sábado e é patente a inutilidade do aviso.

            Foi, pois, para evitar que se tomasse como inútil um preceito cristão, que buscamos dar ao texto interpretação diversa da do rev. Galdino, e esse modo de ver fez com que S.S. achasse que estávamos virando e revirando, torcendo e retorcendo...

            Diz ainda o apontado mestre evangélico, que de uma premissa particular tiramos urna conclusão geral e afirma:

            Saiba, agora, o Sr. Dr. que a tese “a caridade que vale é a feita por crentes e a crentes” não é a toda a doutrina da Bíblia, mas, apenas, a conclusão lógica, real, exata, dos textos, em dirimência (em conclusão) na nossa primeira palestra ..”

            Confessamos que não nos foi possível entender isso. Que serão textos em dirimência?..

            O fato em suas linhas simples é este: declaramos, e era essa a tese do “Reformador”, que o Evangelho prescreve a caridade, quando diz: “Quantas vezes o fizestes a um destes pequeninos a mim o fizestes

            Responde o pastor que essa caridade é a feita por crentes a crentes. Estranhamos o absurdo e replica-nos, o nosso amigo: - O ensino é particular, não é geral.

            Mas quando um ensino bíblico é geral e quando é particular? Assim, para demonstrar que a caridade que salva é aquela feita por crentes e a crentes, que outra qualquer não salva, isto é, quando se trata de contradizer o Espiritismo, o ensino é geral se se prova o absurdo disso, o ensino passa a ser particular.

            Realmente, é uma exegese difícil de entender-se, a menos que se queira demonstrar com ela, que a caridade pode ser feita também por quem tem fé e a quem tem fé - coisa de que nenhum espírita nunca duvidou, e que se achava mesmo no direito de não acentuar, a fim de não obscurecer a genialidade do Sr. de La Palisse.

*
            E aqui terminamos a nossa amigável palestra com o rev. Galdino.

            Queríamos, antes, porém, agradecer ao ilustrado sacerdote as frases por vezes afetivas que teve para com o seu antagonista: queríamos ainda, cumprimentá-lo pela maneira elevada por que tratou o assunto, pela elegância dos seus escritos e, finalmente dizer da nossa admiração pelos seus conhecimentos e pela facilidade com que escreve. E o ficamos esperando, não para um revide mas para o abraço fraterno, com que havemos de ir, reconciliados e amigos, à presença do Senhor.