A Monja “Inquieta e Andeja” (*)
Kleber Halfeld
Reformador (FEB), pág. 80 - Março 1987
Aos 7 anos, a filha de Dom Alonso Sanches de Cepeda e de Dona Beatriz d’Ávila Y Ahumada, convence seu irmão predileto, Rodrigo, quatro anos mais velho, a ir com ela para o continente africano onde combaterão os mouros. Pretendem morrer, caso necessário seja, por amor ao Cristo. Um tio que os encontra em local já distanciado da cidade, leva-os de volta ao palácio paterno.
Um sonho inocente de duas crianças.
Mas é um ideal - este de oferecerem a vida a uma causa - que se concretizará anos mais tarde, embora através de uma luta diferente: o trabalho difícil e perseverante junto às consciências humanas.
Principalmente da parte de Teresa d’Ávila.
Tarefa que fará da mística e escritora dessa cidade espanhola um dos nomes mais respeitados no mundo cristão.
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Na noite de 14 de outubro de 1954, no “Grupo Meimei” , o Espírito José Xavier , através da psicofonia, avisa aos presentes:
“Esforcemo-nos por entrelaçar pensamentos e preces, por alguns minutos, pois receberemos, na noite de hoje, um anjo e uma benfeitora. Nosso Grupo, em sua feição espiritual, deve permanecer atento. Neste instante, aproximar-se-á de nós, tanto quanto possível, a grande Teresa d’Ávila e, assim como um grão de areia pode, em certas situações, refletir a luz de uma estrela, nosso conjunto receber-lhe-á a mensagem de carinho e encorajamento, através de fluidos teledinâmicos. A mente de Chico está preparada agora, qual se fosse um receptor radiofônico. Repetirá, automaticamente, com certa zona cerebral mergulhada em absoluta amnésia , as palavras de luz da grande alma, cujo nome não ousarei repetir . Rogamos aos companheiros se mantenham em oração e silêncio, por mais dois a três minutos.”(Grifei.)
A mensagem ditada por Teresa d’Ávila - “Palavras de Luz” - na verdade não constituía a primeira de que o mundo espírita tomava conhecimento. Quem folhear a obra “Falando à Terra” , editada em 1951, encontrará outra página da mesma autora, com o título “Lembrete”. Como o “grupo Meimei” seria fundado somente três anos mais tarde, é de se acreditar tenha sido a mensagem recebida por Francisco Cândido Xavier na intimidade de outra agremiação. Em ambiente adequado e após preparo, inclusive, do próprio médium, tal o quilate da Entidade comunicante.
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É realmente considerável o número de obras que descrevem a vida de Teresa d’Ávila, a única “santa” do Catolicismo que mereceu o título de doutora da Igreja, título que no caso foi outorgado pela Universidade de Salamarca.
Para se ter uma visão dos autores que se ocuparam dessa respeitada figura da Espanha basta tomar do volume que a ÊMECE Editores S.A. (Buenos Aires) imprimiu, contendo duas obras da autora espanhola: “Camiño de Perfección” e “Libro de las Funciones”. É exatamente na Nota Preliminar que se identifica a relação desses três autores.
A verdade, porém, é que o primeiro que se propôs escrever algo sobre Teresa d’Ávila foi o conhecido Frei Luís de León, apelido da irmã de Felipe II, a Imperatriz viúva da Maximiliano da Áustria. Entretanto, somente pode redigir algumas páginas, porquanto a desencarnação o surpreendeu em plena tarefa.
O trabalho, incompleto embora apareceu em 1883, na “Revista Augustianiana”.
Mas, se muitos escreveram sobre ela, por outro lado também escreveu Teresa d’Ávila.
Além das duas obras citadas, merecem destaque: - “A Vida” - encomendada pelo Padre Gracián, no sentido de fornecer dados ao Inquisidor (!) encarregado de proceder a uma investigação sobre a monja.
- “As Invocações” e os “Cânticos” - que constituem exclamações de amor, espontâneas e diretas, delas extravasando o ardor místico de sua autora. - “Castelo Interior” ou “As Moradas” - que são crônicas leais da única experiência de vida que poderia interessar a Teresa: as diversas etapas que a alma percorre, ao longo da estrada que conduz ao Pai. Aliás, outra obra, “O Caminho da Perfeição”, enquadra-se, igualmente, nesse aspecto.
Quanto ao trabalho “O Livro das Fundações”, o próprio título denuncia seu conteúdo.
É toda essa produção literária, aliada ao amplo trabalho de fundação de conventos, que lhe granjeará um certo temor não apenas das religiosas de seu tempo, mas dos próprios Superiores , que anos mais tarde acabam por beatificá-la e canonizá-la, conscientes de sua “santidade”.
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Entre tantos e tão singulares fenômenos da vida de Teresa d’Ávila, dois podem ser citados como os mais singulares: os êxtases e a levitação.
Sobre o primeiro, é a própria monja que confessa:
“É ele o reflexo exterior de um ímpeto de amor da alma”.
E um dia revelaria mais minuciosa:
“Dali a pouco cresceu em mim um amor de Deus tão grande que eu não sabia quem me infundia; por ser muito sobrenatural, nem eu o procurava para mim. Sentia-me morrer do desejo de ver a Deus; e não sabia onde buscar essa vida verdadeira, senão na morte... Às vezes, o ímpeto é tão violento que o corpo parece sem vida e não se podem mover os pés nem os braços; a o contrário, quando estou de pé, caio sobre mim mesma, como que inanimada...”
A descrição feita coincide perfeitamente com o estudo que vamos localizar em “O Livro dos Espíritos”.
Quando Kardec indagou:
“O Espírito do estático penetra realmente nos mundos superiores?” Eis a resposta que recebeu:
“Vê esses mundos e compreende a felicidade dos que os habitam, donde lhes nasce o desejo de lá permanecer.” (...)
Mais à frente perguntou o Codificador: “Se se deixasse o estático entregue a si mesmo, poderia sua alma abandonar definitivamente o corpo?” O esclarecimento da Espiritualidade não poderia ser mais claro:
Lembrete
Mensagem do Espírito Teresa D’Ávila
O mundo é cerâmica sublime,
em pleno cosmos.
A carne é o barro; o espírito é o oleiro.
Cada homem plasma
seu destino de acordo
com a própria vontade.
Há quem fabrique ânforas
para o vinho do Senhor,
e há os que modelam crateras
para a cicuta do espírito.
Companheiro da Terra,
faze da existência um vaso sagrado,
em que a Divina Bondade
se manifeste.
Na pobreza ou na abastança,
na felicidade ou na desventura,
não te esqueças
de que a vida corpórea é
divina argila em tuas mãos.
“Falando à Terra”.
Psicografia de Francisco Cândido Xavier.
(3ª Ed. FEB)
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“Perfeitamente, poderia morrer. Por isso é que preciso se torna chamá-lo a voltar, apelando para tudo o que o prende a esse mundo, fazendo-lhe sobretudo compreender que a maneira mais certa de não ficar lá, onde vê que seria feliz, consistiria em partir a cadeia que o tem preso ao planeta terreno.”
Nesse particular, sou levado a imaginar que nos repetidos êxtases experimentados por Teresa d’Ávila não deve ter faltado a assistência das próprias monjas de seu convento, buscando despertá-la, embora agindo sem a devida compreensão do fenômeno.
É possível mesmo que algumas chegassem a mentalizar a repetição das crises que ela apresentara algum tempo antes.
A esse propósito, a própria Teresa d’Ávila em sua autobiografia revela:
“Comecei a ter delíquios contínuos e, pouco depois, sobreveio um mal do coração tão violento que eu incutia pavor a quantos me viam. A isto se ajuntaram muitos outros males.”
De fato, houve na vida dessa monja períodos de contínuos padecimentos. O mais sério parece ter ocorrido em 1537, quando contava ela 22 anos. Neste ano, após muitos dias de sofrimento foi dada como morta. Dom Alonso, entretanto, recusava acreditar em sua desencarnação, mantendo-se junto à filha durante três dias, prazo em que a moça voltou ao normal.
Teresa explica em sua autobiografia:
“Na Páscoa desse mesmo ano, eu só tinha ossos. Assim permaneci oito meses e, se bem melhorasse gradativamente, continuei encolhida durante três anos. Quando comecei a arrastar-me de gatinhas pelo chão, agradeci a Deus.”
Foi nesta fase de vida que ocorreu um fato curioso, sem explicação para aqueles que a rodeavam. Ou melhor, o caso foi levado à conta de milagre, uma vez que ninguém encontrou explicação conhecida. Tanto médicas, quanto religiosas.
Um dia, de repente, ergueu-se Teresa e saiu da enfermaria, tão saudável quanto suas companheiras de convento. A partir desse instante retornou às suas atividades regulares: quer às tarefas de sentido puramente espiritual, quanto às de ordem funcional propriamente dita.
Alguns de seus biógrafos explicam que os delíquios de que era vítima poderiam produzir “ausências” recorrentes, de natureza epiléptica e que o “mal do coração” por ela citado tenha correlação com a dor que se difundia do peito a todo o corpo. Mas, eles mesmos, os biógrafos, acrescentam por prudência que ‘tudo isto são simples hipóteses”.
Na verdade, Teresa d Ávila não tinha saúde boa, bastando lembrar que em certo período foi dada como tísica irrecuperável. Mas não se pode alijar a decisiva influência do mundo espiritual sobre sua organização, fazendo surgir quadros patológicos que aos facultativos da época traduziam doenças tipicamente de fundo extrafísico.
Por essa razão, não acredito fossem todos seus delíquios “ausências” recorrentes de natureza epiléptica.
Não devemos nos esquecer de que muitas vezes fenômenos epilépticos têm sido responsáveis por casos em que a Ciência não dispõe de melhores explicações.
É muito mais simples diante da complexidade de determinados casos tomar-se a epilepsia como a melhor porta de saída...
Com referência à levitação, era um fenômeno que a molestava sobremodo, consoante sua própria confissão:
“É uma coisa terrivelmente extraordinária, que dá azo a muitos falatórios.”
Tudo acontecia inopinadamente. Ela era como que “aspirada” para o teto, de nada valendo seu esforço para manter-se no chão, diante das atônitas irmãs do Convento da Encarnação.
Passado o fenômeno e já refeita do susto, costumava candidamente exclamar que “Sua Majestade” assim procedia, porquanto desejava atraí-la para Si...
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A pesquisa sobre a vida e a obra de Teresa d’Ávila nos propicia ensejo de concluir que não obstante ter sido religiosa católica vinculada a um sistema de clausura; apesar de viver em um país dominado pelo clero e, ainda, curvada ao jugo de múltiplas enfermidades, tornou-se, ao cabo de longas reflexões e contínuas interpenetrações no mundo dos Espíritos, símbolo de trabalho dinâmico, consciência livre e mentalidade otimista.
Justifico, embora resumidamente, essa assertiva.
1. Trabalho Dinâmico
A organização do Carmelo, primitivamente subordinada a um regime de severidade, sobretudo no que dizia respeito ao voto de pobreza, afastara-se ao tempo de Teresa d ‘Ávila de tal preceito. Uma das provas eram os “parlatórios-salões” dos conventos, transformados em salões mundanos onde as monjas adereçadas como grandes damas da sociedade e aqueles tidos como benfeitores das “servas de Deus” se distraíam em conversas fúteis, malbaratando o tempo, com o que não se conformava Teresa. Por isso mesmo, em companhia de algumas religiosas com ela identificadas no mesmo pensamento, retirou-se para um pequeno mosteiro, iniciando então o movimento pela reforma da obra do Carmelo.
Aliás, esse desejo de reforma no seio de uma ordem religiosa me faz recordar uma visita que Francisco Cândido Xavier fez a Juiz de Fora em 1945, quando em um grupo de confrades teve a oportunidade de esclarecer que diversos Espíritos evoluídos, de época em época, descem à Terra para a renovação dos costumes, até mesmo no campo religioso. Adiantou, ainda, que não demoraria muito para que um grande número de Entidades devidamente preparadas no Espaço encarnassem em nosso Planeta visando a operar sensíveis transformações no seio de congregações tidas como “muito fechadas”.
O trabalho de Teresa, é óbvio, encontra forte resistência, não só da parte do padre provincial da Ordem, do Governador da cidade de Ávila, dos magistrados do Conselho, como dos membros do Capítulo. Uma discussão agita todas as camadas religiosas ao ponto de o núncio apostólico, Felippo Sega, exclamar certa feita:
“-Não lhe pronuncieis o nome! (referindo-se a Teresa) É uma monja inquieta e andariega (uma monja inquieta e andeja), desobediente, obstinada, que propaga doutrinas perniciosas a pretexto da devoção e deixa o seu convento contra as ordens superiores e os decretos do Concílio de Trento.
E arrematava mal-humorado:
“-É uma ambiciosa que tem a pretensão de ensinar Teologia como se fosse um doutor da Igreja, desprezando os ensinamentos de São Paulo, que ordena às mulheres que se abstenham de ensino.”
Essa é uma característica dos renovadores.
De nada receiam.
A própria vida entregam por amor a uma causa que julgam justa.
Em troca, invariavelmente, recebem a perseguição, os apodos, as calúnias!
Teresa, porém, não se dá por abatida. E a continuidade de seu esforço persistente acaba por propiciar-lhe, anos mais tarde, assistir à multiplicação dos conventos dentro de um esquema de ação como houvera sonhado.
Era o triunfo de uma monja sobre um sistema organizado.
Constituía a vitória da severidade sobre a futilidade.
Para sustentá-la em sua jornada reformadora, houve por bem a Espiritualidade Maior colocar-lhe ao lado um grupo de dedicadas monjas. Eis por que certa vez escreveu:
‘O ver-me encerrada nesta casa, com almas tão dedicadas, é para mim grandíssima consolação.”
Sem mencionarmos aqui o trabalho propriamente dito de reforma dos conventos, é de ser destacado igualmente o número daqueles que criou: 17 para freiras e 15 para frades, totalizando, desta forma, 32! Isso, ao longo de 20 anos de um trabalho decididamente penoso, porquanto sem qualquer descanso!
2. Consciência Livre
É Teresa d’Ávila quem escreve jamais ter obedecido cegamente às autoridades eclesiásticas constituídas de seu tempo.
E a conscientização de que não devia temer qualquer reação parece ter surgido no dia em que um Espírito se lhe apresentou (que julgou ser o próprio Cristo) indagando-lhe:
-Não sabes que sou onipotente? De que te arreceias?
A partir desse momento uma autoconfiança a sustentará perante a fadiga, o sofrimento e a própria fome - que não raro experimentou em sua caminhadas. E mais do que isso: dar-lhe-á coragem para manter independente sua consciência, não se submetendo às normativas vigentes no seio da Igreja, e com muitas das quais, não concordava.
Parece mesmo que Teresa pouco ou nada acreditava em sermões. E muito menos nos pregadores:
“por que razão as suas prédicas induzem tão pouca gente a deixar os vícios públicos?” - perguntava a si mesma enquanto levantava a correspondente resposta:
“Porque os que pregam têm demasiada prudência humana e não ardem com aquele grande fogo do amor de Deus com que ardiam os apóstolos: por isso mesmo a chama deles aquece pouco.”
Essa coragem chegava às vezes a um grau jamais imaginado pelas companheiras. Porque não tinha receio de advertir:
-Os senhores da Terra colocam toda a sua grandeza num aparato exterior de autoridade. Com eles só se fala em horas determinadas, e somente algumas pessoas podem fazê-lo. Se, portanto, quem deseja tratar com eles for um pobrezinho, terá de dar voltas e esperar nas antecâmeras, implorar favores e afadigar-se para obter uma audiência... Os que têm o mundo debaixo dos pés dizem a verdade, não têm medo de nada e nem devem tê-lo. Por isso não são feitos para as cortes, onde não se pode agir com sinceridade e onde é necessário dissimular o mal que se vê, pensando que não é mal para não cair em desgraça.
Apenas quem conhece a história da Inquisição pode avaliar do destemor dessas expressões!...
3. Mentalidade Otimista
Embora fosse Teresa d’Ávila uma grande contemplativa, sabia perfeitamente nos momentos de necessidade comportar-se como uma criatura de ação. Essa maneira de ser ficou provada quando sentiu que devia sair da sua clausura para o trabalho que sua consciência determinava.
Desenvolvia sua tarefa com verdadeiro espírito de alegria, o que deixava muita gente espantada.
Seria tal exteriorização uma qualidade inata em seu Espírito?
Seria influência de João da Cruz a quem nomeara seu confessor e pai espiritual assim que fora eleita Superiora do Convento da Encarnação? Porque este não cansava de repetir: “A primeira das paixões da alma é a alegria.”
Muitas vezes sua alegria, seu otimismo, sua descontração diante da situação deixavam desconcertados os circunstantes.
Quando, no dia 4 de outubro de 1582, caiu desfalecida em Alba de Tormes, após mais uma de suas costumeiras e longas viagens, abatida por um sem-número de padecimentos, indagaram-lhe as piedosas irmãs se desejava ser conduzida de volta a Ávila. De semblante descontraído e com voz sem qualquer embaraço respondeu:
- Não acreditais que me darão um pouco de terra aqui também?...
***
Não seria necessário maior extensão a este trabalho para concluir-se dos justificados adjetivos outorgados pelo núncio apostólico Felippo Sega a Teresa d’Ávila - monja inquieta e andeja. Muito embora emprestemos a esses mesmos adjetivos sentido emoldurado por vibrante positividade!
Inquieta, buscou penetrar no âmago das questões de caráter teológico, conseguindo dessa incursão corajosa extrair uma normativa de conduta para seus passos.
Andeja, apesar de toda uma série de barreiras levantadas pelo Clero, foi responsável, conforme vimos, pela fundação de mais de três dezenas de agremiações religiosas!
Um trabalho para o qual muitos não darão sua concordância, alegando não possuir ele maior objetividade prática, mas que de qualquer forma reflete o dinamismo de uma criatura que, sacrificada por enfermidades, ameaçada pelo poder constituído, não se deteve na tarefa que julgava justa e certa.
Talvez pudéssemos relacionar sua maneira de agir com a de Saulo de Tarso, que na defesa do mosaísmo julgava - com pureza e sinceridade - estar agindo corretamente.
E como o grande apóstolo dos gentios, agora já como defensor do Cristo, também Teresa d’Ávila possui outro denominador comum: o gosto pelas repetidas caminhadas por amor Àquele que cognominara - “Sua Majestade”...