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quarta-feira, 31 de julho de 2013

Kardec é (e) Jan Huss

Fonte: ‘Revista Espirita’- Setembro ,  Ano: 1869 Ed. FEB 2004
Acreditamos ter sido Leymarie o autor do texto abaixo uma vez que a direção 
da ‘Revue Spirite’ por Allan Kardec se encerra com a edição de Abril, 
face seu desencarne, tudo de acordo com nota que aparece no início do livro-fonte.

Precursores do Espiritismo

“Lemos no Siecle de 11 de julho de 1869:

Os quinhentos anos de João Huss

"Recentemente os jornais da Boêmia publicaram o seguinte apelo:

            "Neste ano se comemora o 5OOº aniversário de nascimento do grande reformador, do patriota e do sábio mestre João Huss. Esta data impõe, sobretudo ao povo boêmio, o dever de rememorar solenemente a época em que surgiu, em seu seio, o homem que tomara como objetivo de vida defender a liberdade de pensamento. Foi por esta ideia que ele viveu e sofreu; foi por esta ideia que ele morreu.

            "Seu nascimento fez luzir a aurora da liberdade no horizonte do nosso país; suas obras espargiram a luz no mundo e, por sua morte na fogueira, a verdade recebeu o seu batismo de fogo!

            "Estamos convictos de que temos não só as simpatias dos boêmios e dos eslavos, mas ainda a dos povos esclarecidos, e convidamos a festejar a lembrança deste grande espírito, que teve a coragem de sustentar sua convicção diante de um mundo escravo dos preconceitos e que, ao eletrizar o povo boêmio, o tornou capaz de uma luta heroica que ficará gravada na História.

            "Os séculos se escoaram; o progresso se realizou, as centelhas produziram chamas; a verdade penetrou milhões de corações. A luta continua, a nação pela qual o mártir imortal se sacrificou ainda não deixou o campo de batalha sobre o qual o havia chamado a palavra do mestre.

            "Conjuramos todos os admiradores de João Huss a se reunirem Praga, a fim de colherem, na lembrança dos sofrimentos do grande mártir, novas forças por meio de novos esforços.

            “Será em Praga, no dia 4 de Setembro próximo, e no dia 6, em Hussinecz, onde ele nasceu, que celebraemos a memória de João Huss.

             "Nesses dias todos os patriotas virão atestar que a nação boêmia ainda honra o heroico campeão de seus direitos, e que jamais esquecerá o herói que a elevou à altura das ideias que são ainda o farol para o qual marcha a Humanidade! 

            "Nosso apelo também se dirige a todos os que, fora da Boêmia, amam a verdade e honram os que morreram por ela. Que venham a nós, e que todas as nações civilizadas se unam para, conosco, aclamarem o nome imperecível de João Huss! 

"O presidente do comitê."

Dr. Sladkowsley

            "Seguem-se trinta assinaturas de membros do comitê, advogados, literatos, industriais.

            "O apelo dos patriotas boêmios não poderia deixar de suscitar viva simpatia entre os amigos da liberdade.

            "Um jornal de Praga tivera a desastrada ideia de propor uma petição ao futuro concílio para pedir a revisão do processo de João Huss. O jornal Norodni Listy refutou com vigor esta estranha proposição, dizendo que a revisão se efetuara perante o tribunal da civilização e da História, que julga os papas e os concílios.

            "A nação boêmia, acrescenta o Norodni, perseguiu esta revisão com a espada na mão, em cem batalhas, no dia seguinte mesmo da morte de João Huss."

            "A folha Tcheca tem razão: João Huss não precisa ser reabilitado, assim como Joana d'Arc não precisa ser canonizada pelos sucessores dos bispos e doutores que os queimaram.

            Por nosso lado, vimos juntar às homenagens prestadas à memória de João Huss o nosso testemunho de simpatia e de respeito pelos princípios de liberdade religiosa,  e de  solidariedade que ele popularizou em vida. Esse espírito eminente, esse inovador convicto, tem direito à primeira fila entre os precursores da nossa consoladora filosofia. Como tantos outros, tinha a sua missão providencial, que realizou até o martírio, e sua morte, como sua vida, foi um dos mais eloquentes protestos contra a crença num Deus mesquinho e cruel, bem como aos ensinos rotineiros, que deviam ceder ante o despertar do espírito humano e o exame aprofundado das leis naturais.

            Como todos os inovadores, João Huss foi incompreendido e perseguido; ele vinha corrigir abusos, modificar crenças que não mais podiam satisfazer às aspirações de Sua época. Necessariamente devia ter como adversários todos os interessados em conservar a antiga ordem das coisas. Como Wyclif, como Jacobel e Jerônimo de Praga, sucumbiu sob os esforços de seus inimigos coligados; mas as verdades que havia ensinado, fecundadas pela perseguição, serviram de base às novidades filosóficas dos tempos ulteriores e provocaram a era de renovação que devia dar origem à liberdade de consciência e à liberdade de pensar em matéria de fé.

            Não duvidamos que João Huss, como Espírito ou como encarnado, caso tenha voltado à nossa Terra como homem (1) , haja se consagrado constantemente ao desenvolvimento e à propagação de suas crenças sobre o futuro filosófico da Humanidade.

(1) Do Blog: Sim, ele retornou na personalidade de Allan Kardec!
Pesquise no 'mini' Gloogle do Blog o texto sob título  ‘As 5 (?) Encarnações de Allan Kardec’ de Luciano dos Anjos.

            Estamos autorizados a pensar que o apelo do povo boêmio será ouvido por todos os que apreciam e veneram os defensores da verdade. Os grandes filósofos não têm pátria. Se, pelo nascimento, pertencem a uma nacionalidade particular, por suas obras são os luminares da Humanidade inteira que, sob o seu impulso, marcha para a conquista do futuro.

            Persuadidos de satisfazer ao desejo da maioria dos nossos leitores breve nota, o que foi em toda a sua vida o homem eminente cujo 500º aniversário a Boêmia celebrará no próximo dia 4 de setembro:

            João Huss nasceu a 6 de julho de 1373 sob o reinado do imperador Carlos IV e sob o pontificado de Gregório XI, cerca de cinco anos antes do grande cisma do Ocidente, que se pode encarar como uma das sementes do hussitismo. A História nada nos ensina do pai e da mãe de João Huss, senão que eram criaturas probas, mas de origem obscura. Segundo o costume da Idade Média, João Huss ou melhor, João de Huss, foi assim chamado porque nasceu em Huissinecz, pequeno burgo situado ao sul da Boêmia, no distrito de Prachen, nas fronteiras da Baviera.

            Seus pais tiveram o maior cuidado com sua educação. Tendo perdido o pai na infância, sua mãe lhe ensinou os primeiros elementos de gramática em Hussinecz, onde havia uma escola. Depois o levou a Prachen, cidade do mesmo distrito, onde havia um colégio ilustre. Logo fez grandes progressos nas letras e atraiu a amizade dos mestres por sua modéstia e docilidade, conforme testemunho que a Universidade de Praga lhe prestou após sua morte. Quando estava bastante adiantado para ir a Praga, sua própria mãe o conduziu. Contam que esta pobre mulher, cheia de zelo pela educação do filho, levava consigo um ganso e um bolo, para presenteá-las ao seu regente. Mas, infelizmente, o ganso fugiu no caminho, de sorte que, para seu grande pesar, ela não tinha senão o bolo para dar de presente ao mestre. Magoada profundamente por este pequeno incidente, orou várias vezes, pedindo a Deus que se dignasse ser o pai e o preceptor de seu filho.

            Quando ele adquiriu em Praga sólidos conhecimentos em literatura, os professores, nele notando muita inteligência e vivacidade de espírito, bem como uma grande atividade pela Ciência, julgaram por bem matriculá-lo no capítulo Universidade que tinha sido fundada em 1247 pelo imperador Carlos VI, rei da Boêmia, e confirmada pelo papa Clemente VI.

            Afastado das diversões da juventude, João Huss empregava suas horas vagas para boas leituras. Lia com prazer sobretudo as dos antigos mártires, Conta-se que um dia, lendo a lenda de São Lourenço, quis experimentar se teria a mesma coragem desse mártir, pondo o dedo no fogo; mas acrescentam que logo o retirou, muito descontente com a sua fraqueza, ou que um de seus camaradas a isto se opôs.

            Seja como for, ao que parece ele não fazia mal em se preparar para o fogo. Aliás, quando quis fazer este ensaio, já estava bastante avançado em idade para que o edito de 1276, pelo qual Carlos VI condenava os heréticos ao fogo, de algum modo lhe desse o pressentimento do que devia acontecer com ele.

            Um grande obstáculo se opunha ao ardor que tinha João Huss de se instruir: a pobreza. Neste apuro, aceitou a oferta que lhe fez um professor, cujo nome é ignorado, de tomá-la ao seu serviço e de lhe fornecer os livros e tudo o que era necessário para prosseguir seus estudos. Embora essa situação fosse bastante humilhante, ele a achava feliz tendo em vista o seu objetivo, e a aproveitou tão bem que satisfez, ao mesmo tempo, seu mestre, cuja amizade ganhou, e sua paixão pelas letras.

            João Huss fez progressos consideráveis na Universidade; por seus livros, parece que era versado na leitura dos Pais gregos e latinos, pois que os cita muitas vezes. Pode-se julgar por seus comentários que sabia grego e tinha noções de hebreu. Com cerca de vinte anos, conquistou o titulo de bacharel e, dois anos depois, o de mestre em artes. Não se sabe quem foram seus mestres, salvo o que ele próprio diz de Stanislas Znoima, que, mais tarde, se tornou um de seus maiores adversários. Ordenou-se sacerdote em 1400 e, no mesmo ano, foi nomeado pregador da capela de Belém. Foi aí que teve oportunidade de exercitar os seus talentos, querido por uns, suspeito e odiado por outros, admirado por todos. Na mesma época foi nomeado confessor de Sofia da Baviera, rainha da Boêmia.

            Foi no período de 1403 a 1408 que João Huss juntamente com Jerônimo de Praga, estudou as obras de Wyclif e de Jacobel e começou a se separar do ensino ortodoxo. Desde o começo, um certo número de discípulos que sempre lhe foram fiéis, mantiveram-se ligados a ele.

            No dia 22 de outubro de 1409 foi nomeado reitor da Universidade de Praga, desobrigando-se desse novo encargo com os aplausos de todo o mundo. Até então, não havia aprovado as doutrinas de Wyclif senão em termos vagos e com cautela. Nessa época começou a falar mais abertamente de suas crenças pessoais.

            Entre suas obras anteriores ao concílio de Constança, nota-se o Tratado da Igreja, de onde foram tirados todos os argumentos para sua condenação. Durante o seu cativeiro, consagrou-se especial e inteiramente à execução de suas últimas obras filosóficas. Foi assim que fez os manuscritos do Tratado do casamento, do Decálogo, do amor e do conhecimento de Deus, da Penitência, dos três inimigos do homem, da ceia do Senhor, etc.

            Todos os historiadores contemporâneos, mesmo entre os seus adversários, rendem homenagem à pureza de sua vida: "Era, dizem, um filósofo, de grande reputação pela regularidade de seus costumes, sua vida rude, austera e inteiramente irrepreensível, sua doçura e sua afabilidade para com todos; era mais sutil que eloquente, mas sua modéstia e seu grande espírito conciliador persuadiam mais que a maior eloquência."

            Não nos permitindo a falta de espaço que nos estendamos tanto quanto desejaríamos, limitar-nos-emos a algumas citações características. Longe de temer a morte, por vezes parecia aguardá-la com impaciência, como o termo de seus trabalhos e o início da recompensa. Tinha o hábito de dizer: "Ninguém é recompensado na outra vida mais do que mereceu nesta, e que os modos e locais de recompensa variavam segundo os méritos." Aos que queriam convencê-lo a se retratar e abjurar, várias vezes deu esta resposta digna de nota: ''Abjurar é deixar um erro que se cometeu; se alguém me ensinar algo melhor do que avancei; estou pronto a fazer de bom grado o que exigis de mim.”

            Terminamos pelo testemunho da Universidade de Praga, dado em seu favor após a sua morte:

            "Dizem que ele tinha, neste terreno, um espírito superior, uma penetração viva e profunda; ninguém era mais apto para escrever de um jato, nem dar respostas mais contundentes às objeções. Ninguém tinha um zelo mais veemente, nem melhor discernimento; jamais o pilharam em erro, a não ser na opinião dos maus, que o atacaram ferozmente por causa de seu amor pela justiça. Ó homem de virtude inestimável, de brilhante santidade, de humilde e piedade inimitáveis, de desinteresse e de caridade inacreditáveis! Desprezava as riquezas no último grau, abria o coração aos pobres; muitas vezes era visto de joelhos, ao pé do leito dos doentes; vencia as naturezas mais indomáveis pela doçura e levava os impenitentes a se desfazerem em lágrimas; tirava das Santas Escrituras, sepultada no esquecimento, motivos novos e poderosos, a fim de exortar os eclesiásticos viciosos a voltarem atrás em seus desregramentos e a cumprirem os compromissos de seu caráter, e para reformar os costumes de todas as ordens com base na Igreja primitiva.

            "Os opróbrios, as calúnias, a fome, a infâmia, mil torturas cruéis e, enfim, a morte que padeceu, não só com paciência, mas mesmo com um semblante tranquilo e risonho, tudo isto é o testemunho autêntico de uma virtude a toda prova, de uma coragem, de uma fé e de uma piedade inabaláveis. Julgamos por bem expor todas estas coisas aos olhos da cristandade, a fim de impedir que os fiéis, enganados pelas falsas imputações, maculem o conceito deste homem justo, nem dos que seguem sua doutrina.”

            Evocado por um de nossos médiuns, o Espírito de João Huss deu a seguinte comunicação, que nos apressamos em mostrar aos nossos leitores, bem como uma instrução do Sr. Allan Kardec sobre o mesmo assunto, porque nos parecem bem caracteriza a natureza do homem eminente, que se ocupou com tanto ardor desde o século quinze, a preparar os elementos da emancipação e da regeneração filosóficos da Humanidade.



                                               (Paris, 14 de agosto de 1869)

            A opinião dos homens pode dispersar-se momentaneamente, mas a justiça de Deus, eterna e imutável, sabe recompensar, quando a justiça humana castiga, perdida pela iniquidade e pelo interesse pessoal. Apenas cinco séculos (um segundo na eternidade) se passaram desde o nascimento do obscuro e modesto trabalhador e já a glória humana, à qual ele não se prende mais, substituiu a sentença infamante e a morte ignominiosa, incapazes de abalar a firmeza de suas convicções.

          Como és grande, meu Deus, e como é infinita a tua sabedoria! Sob o teu sopro poderoso minha morte tornou-se um instrumento de progresso. A mão que me feriu alcançou, com o mesmo golpe, os terríveis erros seculares de que se encharcou o espírito humano. Minha voz encontrou eco nos corações indignados pela injustiça de meus algozes, e meu sangue, derramado como um orvalho benfazejo sobre um solo generoso, fecundou e desenvolveu nos espíritos adiantados de meu tempo os princípios da eterna verdade. Eles compreenderam, refletiram, analisaram, trabalharam e, sobre bases informes, rudimentares das primeiras crenças liberais, edificaram, na sucessão das eras, doutrinas filosóficas verdadeiramente generosas, profundamente religiosas e eternamente progressivas.

          Graças a eles, graças aos seus trabalhos perseverantes, o mundo sabe que João Huss viveu, sofreu e morreu por suas crenças; é muito, meu Deus, para os meus frágeIs esforços,  meu espírito reabilitado tem dificuldade em resistir aos sentimentos de reconhecimento e de amor que o arrebatam. Reconhecer que se enganaram ao me condenar, era justiça; as homenagens e os testemunhos de simpatia com que me glorificam são excessivos para os meus fracos méritos.

          O Espírito humano tem caminhado desde que o fogo consumiu meu corpo. Uma chama não mais destrutiva, mas regeneradora, abarca a Humanidade; seu contato purifica, seu calor faz crescer e vivifica. Nesse foco benfazejo vêm reanimar-se todos os feridos pela dor, todos os torturados pela provação da dúvida e da incredulidade. O sofredor se afasta consolado e forte; o indeciso, o incrédulo e o desesperado, cheios de ardor, de firmeza e de convicção, vêm engrossar o exército ativo e fecundo das falanges emancipadoras do futuro.
         
          Aos que me pediam uma retratação, respondi que só renunciaria às minhas crenças diante de uma doutrina mais completa, mais satisfatória, mais verdadeira. Pois bem! desde esse tempo meu Espírito se engrandeceu; encontrei algo melhor do que havia conquistado e, fiel aos meus princípios, repeli sucessivamente o que minhas antigas convicções tinham de errôneo, para acolher as verdades novas, mais largas, mais consentâneas com a ideia que eu fazia da natureza e dos atributos de Deus. Espírito, progredi no espaço; voltando à Terra, progredi também. Hoje, voltando novamente à pátria das almas, estou na fila da frente ao lado de dos os que, sob este ou aquele nome, marcham sincera e ativamente para a verdade e se dedicam, de coração e de espírito, ao desenvolvimento progressivo do espírito humano.

          Obrigado a todos os que reverenciam em minha personalidade terrestre a memória de um defensor da verdade; obrigado, sobretudo, aos que sabem que, acima do homem há o Espírito, libertado pela morte dos entraves materiais, a inteligência livre que trabalha em acordo com as inteligências exiladas, a alma que gravita incessantemente para o centro de atração de todas as criações: o infinito, Deus!

João Huss



(Paris, 17 de agosto de 1869)

            Analisando através das eras a História da Humanidade o filósofo e o pensador logo reconhecem, na origem e no desenvolvimento das civilizações, uma gradação insensível e contínua. - De um conjunto homogêneo e bárbaro surge, em primeiro lugar, uma inteligência isolada, desconhecida e perseguida, mas que, não obstante, faz época e serve de baliza, de ponto de referência para o futuro. - A tribo, ou se quiserdes, a nação, o Universo avançam em idade e as balizas se multiplicam, semeando aqui e ali os princípios de verdade e de justiça que serão a partilha das gerações que chegam. Essas balizas esparsas são os precursores; eles semeiam uma ideia, desenvolvem-na durante sua vida terrena, vigiam-na e a protegem no estado de Espírito, e voltam periodicamente através dos séculos para trazerem seu concurso e sua atividade ao seu desenvolvimento.

            Tal foi João Huss e tantos outros precursores da filosofia espírita.

            Semearam, laboraram e fizeram a primeira colheita; depois voltaram para semear ainda, esperando que o futuro e a intervenção providencial viessem fecundar sua obra.

            Feliz aquele que, do alto do espaço, pode contemplar as diversas etapas percorridas e os trabalhos realizados por amor à verdade e à justiça; o passado não lhe dá senão satisfação, e se suas tentativas foram incompletas e improdutivas no presente, se a perseguição e a ingratidão por vezes ainda vêm perturbar a sua tranquilidade, ele pressente as alegrias que lhe reserva o futuro.

            Glória na Terra e nos espaços a todos os que consagraram a existência inteira ao desenvolvimento do espírito humano. Os séculos futuros os veneram e os mundos superiores lhes reservam a recompensa devida aos benfeitores da Humanidade.

            João Huss encontrou no Espiritismo uma crença mais completa, mais satisfatória que suas doutrinas e o aceitou sem restrição. - Como ele, eu disse aos meus adversários e contraditores: "Fazei algo de melhor e me reunirei a vós."

            O progresso é a eterna lei dos mundos, mas jamais seremos ultrapassados por ele, porque, do mesmo modo que João Huss, sempre aceitaremos como nossos os princípios novos, lógicos e verdadeiros que cabe ao futuro nos revelar.

Allan Kardec
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sexta-feira, 4 de fevereiro de 2011

Huss - 2 preciosos artigos sobre Jan Huss




Notas Históricas sobre
João Huss
por Celso Martins
Reformador (FEB) Março 1981

Nota da Redação do Reformador:
            “De há muito carecíamos de umas “Notas Históricas sobre João Huss”. O Professor Celso Martins no-las elaborou a fim de tornar menos penoso o esforço de síntese do espírita que precisa de dados para as suas palestras ou artigos, mas que só são encontráveis desde que se compulsem muitos volumes.
            Para que se tenha uma noção disso, basta que se registre ser preciso recorrer a duas obras de grande valor para encontrar o seguinte: “A Bohêmia considera-o a um tempo patriota e mártir da fé. Como escritor, tinha fixado a ortografia e reformado a língua tcheca.” (Grande Enciclopédia Delata Larousse). “Livros em tcheco e latim: Questio de Indulgentiis (1412), Explication de la foi (1412), De Ecclesia (1413), Explication des Saint Évangiles (1413).” (Dictionnaire Universel des Noms Propres - “Petit Robert”, volume 2, p. 885)
            Em setembro de 1869, há um trabalho na Revue Spirite, pp. 264 a 272, que consiste em artigo do Siècle, de 11-7-1869 (a propósito do 5º aniversário de Jean Huss), comentários da redação da RS e mensagens mediúnicas de 14-8-1869 (assinada Jean Huss) e 17-8-1869 (assinada Allan Kardec).
            No Anuário Espírita (1973) foi estampado artigo de Wallace Leal V. Rodrigues: “João Huss na História do Espiritismo”, do qual Reformador colheu algumas gravuras, tendo-o feito igualmente do “Larousse du XXe Siècle”.
            De mensagem ditada pelo Espírito H. de Campos a F. C. Xavier, aos 22-9-1942 (lida no Pacaembu, em S. Paulo, dia 03-10-1942), publicada em “Reformador” de setembro de 1978, p. 239, extraímos os seguintes tópicos:

            “Depois de se dirigir aos numerosos missionários da Ciência e da Filosofia, destinados à renovação do pensamento do mundo no século XIX, o Mestre aproximou-se do abnegado João Huss e falou, generosamente:
            -Não serás portador de invenções novas (...), mas deponho-te nas mãos a tarefa sublime de levantar corações e consciências. (...)
            -Preparam-se os círculos de vida planetária a grandes transformações nos domínios do pensamento. Imenso número de trabalhadores no mundo, desprezando o sentido evolucionário da vida, crê na revolução e nos seus princípios destruidores, organizando-lhe movimentos homicidas. Em breve, não obstante nossa assistência desvelada, que neutralizará os desastres maiores, a miséria e o morticínio se levantarão no seio das coletividades invigilantes. A tirania campeará na Terra, em nome da liberdade, cabeças rolarão nas praças públicas em nome da paz, como se o direito e a independência fossem frutos da opressão e da morte. Alguns condutores do pensamento, desvairados de personalismo destruidor, convertem a época de transição do orbe em turbilhão revolucionário, envenenando o espírito dos povos. O sacerdócio organizado em bases econômicas não pode impedir a catástrofe. A Filosofia e a Ciência intoxicaram as próprias fontes de ação e conhecimento!...
            É indispensável estabelecer providências que amparem a fé, preservando os tesouros religiosos da criatura. Confio-te a sublime tarefa de reacender as lâmpadas da esperança no coração da humanidade.
            O Evangelho do Amor permanece eclipsado no jogo de ambições desmedidas dos homens viciosos!... Vai, meu amigo. Abrirás novos caminhos à sagrada aspiração das almas, descerrando a pesada cortina de sombras que vem absorvendo a mente humana. Na restauração da verdade, no entanto, não esperes os louros do mundo, nem a compreensão de teus contemporâneos.
            Meus enviados não nascem na Terra para serem servidos, mas por atenderem às necessidades das criaturas. Não recebem palmas e homenagens, facilidades e vantagens terrestres, contudo, minha paz os fortalece e levanta-os, cada dia...
            (...) Ante a emoção dos trabalhadores do progresso cultural do orbe terreno, o abnegado João Huss recebeu a elevada missão que lhe era conferida, revelando a nobreza do servo fiel, entre júbilos de reconhecimento.
            Daí a algum tempo, no alhor do século XIX, nascia Allan Kardec em Lyon, por trazer a divina mensagem.”

            Amaral Ornellas, responsável, à época, pela Secretaria de Reformador, publicou em 3-10-1920 trabalho de sua lavra intitulado “O Codificador”, que encerrou desta maneira:

            “Quem conhece a biografia de Kardec e sabe com que serenidade estóica ele enfrentou os ódios da inimizade intransigente, da calúnia, da inveja e do ciúme, armas terçadas pela inquisição moderna contra aqueles que pairam acima das trivialidades mundanas, tem a consoladora certeza de que esse elevado Espírito soube cumprir com galhardia a missão que Jesus lhe confiara.
            Glorioso Rivail, nós aguardamos a tua volta, se é que ainda não estás no planeta acumulando forças para novos empreendimentos!
            E quando, no velho ou no novo mundo, aparecer um filósofo que venha continuar a tua obra de evangelização, nesse gigante do pensamento, em qualquer parte do Universo em que nos encontrarmos, saudaremos o João Huss que ardeu na fogueira de Constança e o inesquecido Kardec a quem a inquisição retardatária feriu com o seu último auto-de-fé, mandando incinerar-lhe as obras, por ordem de um bispo, numa colina em que pereciam os condenados à morte, na católica cidade de Barcelona.
            Assim, após essas terríveis convulsões sociais, nascidas dessa tremenda expiação coletiva que foi a guerra, uma aurora de paz e de concórdia despontará no planeta e, como fortalecido pela fé, um Denizard Rivail mais alentado pelo amor, unindo todos os credos filosóficos à palavra do Cristo, para que se estabeleça na Terra a verdadeira fraternidade.”  (Reproduzido em 1977, pp. 297 a 299)
                                   *
            Por tudo quanto foi aqui exposto, o contributo de Celso Martins é benvindo: ele nos coloca no contexto da época de João Huss, dentro dos episódios históricos e diante das personalidades que cercaram o inolvidável missionário que efetivamente representa a gênese de um movimento que ainda continua no mundo, com outro nome, pregando a volta do Cristianismo à pureza simples dos tempos apostólicos e dos mártires da fé.                            A Redação


1 - A Idade Média ou Medieval

            Por idade Média ou Medieval entendemos o período da História da Humanidade que vai do século V até o século XV. Segundo alguns historiadores, teria início no ano de 395, quando o Império Romano se dividiu em Império do Ocidente e Império do Oriente ou Império Bizantino. E terminaria em 1453, quando os turcos otomanos tomaram Constantinopla, a
capital do Império Bizantino. Para outros pesquisadores, a Idade Medieval começaria em 476, quando Roma (capital do Império do Ocidente) foi submetida aos bárbaros; e findaria em 1492, quando Colombo descobriu o Novo Mundo.
            São da Idade Média as Cruzadas, atirando cristãos (católicos, para dizer melhor) contra os maometanos. É desta fase histórica a ação dos chamados bárbaros, ou seja o ataque dos hunos, dos vândalos, dos lombardos, dos visigodos, entre outros, contra as nações cristãs do continente europeu. Da Idade Medieval são figuras famosas as de Maomé, Carlos Magno, Constantino, Ricardo Coração de Leão, João Sem Terra, Francisco de Assis, Joana  D’ Arc, etc. Por fim, é da Idade Média a Guerra de Cem Anos, entre a França e a Inglaterra. Encontramos ainda nesta época os Principados e os Ducados Russos, o Reino da Suécia, o da Noruega, das Castela, de Aragão, da Polônia, da Hungria, etc.
            Submetida em parte pelos árabes, adeptos do Islamismo de Maomé, a Europa medieval estava também dividida em feudos, sendo que, não raro, os proprietários destas grandes extensões territoriais detinham muito mais autoridade do que os próprios reis. Muito influente na época, de igual maneira, a Igreja Católica, que, através de seus dignatários, controlava em larga escala a política então vigente.

2. - A Boêmia

            Numa tentativa de centralização, formou-se a partir de 1254 o Sacro Império Romano Germânico, sob a liderança da Germânia (futura Alemanha), reunindo regiões como a Áustria, a Morávia, inúmeras cidades italianas, etc. Desse Sacro Império Romano Germânico fazia parte a Boêmia, sendo que o referido Império perdurou até 1808.
            Conquistada no século V pelos eslavos,  a Boêmia constituiu-se em reino independente até 1556, quando foi anexada à Áustria. Em 1919 passou a integrar a Tchecoeslováquia, o que se dá até os nossos dias, com ligeira interrupção entre 1939 e 1944, quando esteve anexada à Alemanha Nazista.

3 - O Descontentamento dos Boêmios

            Jan Hus (que em tcheco quer dizer ganso) nasceu filho de camponeses, em 1369, na pequena cidade de Husinec, pertencente à Boêmia. Devido à pobreza de seus pais, João Huss só pode estudar por ser dotado de viva inteligência, granjeando a simpatia de alguns monges. Por estes amparado, em 1398 Huss formou-se em artes, pela Universidade de Praga, e começou a lecionar Teologia, fazendo-se bastante conceituado nos meios universitários. Conseguiu ser nomeado deão da Faculdade de Filosofia e, mais tarde, reitor da Universidade. Data de 1400 a sua ordenação como padre católico.
            Mas acontece que, naquela ocasião, havia um grande descontentamento entre os habitantes da Boêmia. Primeiramente, porque o feudalismo estava como que entravando o pleno desenvolvimento do comércio. As corporações dos artesãos e as ligas dos mercadores deveriam pagar altas taxas aos senhores feudais, o que encarecia as mercadorias em geral. É a situação se fazia mais crítica porque a maior parte dos senhores feudais eram alemãs, uns bispos e outros simplesmente leigos. Os boêmios desejavam- libertar-se da dominação germânica. A própria Universidade de Praga (fundada em 1247, por Carlos VI) era constituída de duas nações germânicas (bávaros e saxões) e de duas nações eslavas (boêmios e poloneses). Por ela se tentava levar a Teologia dos alemães para os eslavos, mas não conseguindo, porém, pois eram constantes as brigas entre estudantes em plena Praga, já capital do Reino da Boêmia.
            O outro grande motivo de descontentamento derivava da desmoralização generalizada da Igreja, sob cujo poder espiritual estava a Boêmia submetida.

4 - Da História da Igreja

            Em 1305 o Papa Benedito XI se viu obrigado a retirar-se da Itália por sentir-se ali ameaçado por seus inimigos, fixando residência em Avignon, na França. Esta cidade ficou sendo a sede dos papas até 1377, quando Gregório XI, atendendo aos apelos que lhe vinham de todas as partes, sobretudo da Itália, resolveu terminar com o que os italianos chamavam de ‘cativeiro de Babilônia’. Resolveu voltar para os Estados da Igreja, fixando-se em Roma.
            Falecendo Gregório XI no ano seguinte (1378)  diversos cardeais elegeram Urbano VI. Dezesseis  outros cardeais, no entanto, não endossaram tal eleição e elegeram o francês Clemente VII, que ficou, de novo, em Avignon. Morrendo um e outro, novos sucessores foram eleitos, um em Roma e outro em Avignon, agravando-se a cisão do mundo católico, pois a cada papa de sua parte se considerava o legítimo representante de Deus na Terra, junto aso homens, e dizendo ser o outro o antipapa. De seu lado, os reis arrogavam-se o direito de escolher qual dos dois sumos pontífices seus súditos deveriam servir.
            Assim é que, em 1398, o Rei Venceslau, da Germânia (Alemanha), acertou com o Rei da França a abolição daquela situação bipapal. Foram os dois abolidos. Mas os cardeais não aceitaram esta intromissão dos reis citados. Reuniram-se em Pisa, no ano de 1409, depuseram Gregório XII, de Roma e Benedito XIII, de Avignon. E elegeram um terceiro (!) papa, na pessoa do grego Alexandre V.
            O arcebispo de Praga, a princípio, obedecia a Gregório XII. Quando, entretanto, percebeu que o Reino da Boêmia era fiel ao novo papa de Pisa (Alexandre V), reconheceu-o também. Para demonstrar-lhe gratidão por este gesto, o terceiro papa ordenou a queima das obras de Wiclef e proibiu ao Mestre João Huss pregar.
            A par desse descalabro nas altas esferas da Igreja, o clero também não dava exemplos dignos de ser seguidos. Ao invés de espiritualizar-se e espiritualizar o povo, a maioria dos sacerdotes caiu nas baixezas mundanas. Levavam uma vida de aventuras amorosas, de riscos guerreiros, de prazeres do estômago, muito distantes das virtudes cristãs. Muitos andavam armados como se soldados fossem e exerciam cargos civis, auferindo, assim, rendimentos consideráveis.

5 - As Idéias de Wiclef

            Na Inglaterra viveu, de 1320 a 1384, João Wiclef (ou John Wycliffe).
            Desde 1337 aquele Reino estava se debatendo em luta com o da França  (Guerra de 100 anos). Em razão das operações militares, várias mudanças sociais foram sacudindo o povo inglês. Entre estas transformações da sociedade ressaltou-se a oposição que se fazia aos impostos eclesiásticos: admitiam os britânicos que o dinheiro arrecadado pelos padres iria enriquecer os seus adversários franceses, de vez que o papa  (um deles) estava em Avignon.
            Wiclef, reitor do Colégio Balliol, em Oxford (desde 1356), e guardião de Canterbury (1365), ilustre teólogo, colocou-se ao lado do Rei Eduardo III contra os impostos papais. Em verdade, durante sua vida elaborou nada menos do que 96 obras em latim (idioma oficial da Igreja), 65 em inglês e ainda traduziu a Bíblia para a língua nacional, a fim do pô-la ao alcance do povo.. No trabalho intitulado Sobre a Eucaristia, por exemplo, negava terminantemente o milagre da transubstanciação, isto é, não aceitava a transformação do vinho em sangue nem do pão em corpo de Cristo, pela consagração. Ora, era a mais grave das heresias, pois atingia em cheio um dos mais importantes dogmas da Igreja Católica.
            Mais tarde, Wiclef passou a atacar o alto clero porque ele não exercia mais atividades de caridade nem observava o voto de pobreza. Ao contrário, sendo os seus componentes elementos que vinham da nobreza, viviam em alto luxo, gozando os benefícios das ricas heranças das famílias feudais, metendo-se em negócios do Estado, enquanto o baixo clero, formado de elementos oriundos do seio do povo, continuava pobre e analfabeto.
            Em 1376 lançou o livro Sobre a Propriedade Privada, onde declarava que as terras da Igreja deveriam ser tomadas pelo Estado, já que no seu entender a Igreja deveria cuidar exclusivamente de assuntos espirituais.
            O Papa Gregório XI tentou silenciá-lo. No entanto, contando com o apoio do Parlamento inglês, Wiclef logrou defender-se sempre. E de fato teve tanta liberdade de ação que se voltou contra aquela situação anômala de dois papas simultâneos. Voltou-se ainda contra outros dogmas, como o da absolvição dos pecados e até mesmo contra a hóstia.
            Termina então a Guerra dos Cem Anos com a derrota inglesa. O rei se viu na obrigação de proteger os interesses da nobreza e teve de agir sobre as classes pobres, de vez que a miséria se alastrava por todo o país. Os camponeses tentaram reagir mas foram, por fim, submetidos a um regime de servidão. Esta derrocada do povo desprestigiou a Igreja pobre. Não obstante, Wiclef continuou em sua luta propugnando uma reforma religiosa, morrendo em virtude de um derrame cerebral nas últimas horas do ano de 1384.
            Seus seguidores foram perseguidos, mas na Boêmia é que vai surgir a figura de seu adepto mais fervoroso, na pessoa de João Huss.

6 - O Mestre João Huss

            Nomeado pregador da Capela de Belém, desde cedo mostrou-se o mestre Huss favorável às idéias de Wiclef. Entre outras coisas, não admitia a ocorrência de milagres. O clero se irritou com isto e tomou-lhe logo o cargo de pregador. E o citou perante a Cúria Romana. A Rainha Sofia, porém, por gostar dele, contribuiu para torná-lo chefe do partido nacional. E Huss não compareceu perante o papa para defender-se de seus acusadores.
            O Reino de Boêmia, por questão de prudência, talvez, a princípio não se meteu na briga entre Gregório XII e Alexander V. Mas quando este último (sediado em Pisa) começou a perseguir os adeptos de Wiclef, todo o clero inferior, a Universidade de Praga e mesmo o povo da Boêmia se colocaram ao lado de João Huss, que continuou a pregar, apesar da proibição expressa em bula pelo Papa Alexandre V. Prosseguiu sua vida de bondade e de fidelidade às leis de Deus.
            A 15 de março de 1411, por ordem do Arcebispo Zbynek foi anunciada em Praga a excomunhão, decretada pelo Cardeal Oton de Colona, contra Huss, pelo fato de ele não ter comparecido ao tribunal do papa, agora não mais Alexandre V, ao que consta envenenado, mas sim João XXIII.
            O Rei da Boêmia, Venceslau IV, se irritou com o papa que não atendeu aos seus apelos (bem como os da Rainha Sofia), no sentido de anular as exigências do falecido pontífice. Ausentando-se de Praga o Arcebispo Zbynek castiga os padres da cidade, que apoiavam Huss. Em represália, Venceslau IV favorece os wiclefistas, confiscando os bens do arcebispo, atirando-o a uma situação financeira precária. Para por fim àquelas disputas, o Rei criou um tribunal conciliatório (6 de julho de 1411): de um lado João Huss e seus adeptos submetiam-se ao arcebispo e este, então, diante da confissão de fé de Huss, intercederia em seu favor, com o apoio real, junto ao papa. Doutra parte, os bens do eclesiástico ser-lhe-iam devolvidos integralmente.
            João Huss aceitou a decisão do tribunal de conciliação. O arcebispo chegou a preparar uma carta para o papa. Como, porém, o Rei demorasse muito em fazer-lhe a devolução dos bens. Zbynek vai buscar auxílio de Sigismundo, Rei da Hungria e imperador da Alemanha, por sinal irmão do próprio Venceslau. Não chegou, no entanto, o arcebispo até a corte de Sigismundo - morreu em viagem, em 28 de setembro de 1411. E seu sucessor (Albik), amigo de Venceslau, deixa Huss em paz!
            Ocorre que, tendo subido à cadeira papal em Pisa a 4 de maio de 1410, o napolitano João XXIII passou a hostilizar abertamente seu colega Gregório XII (sediado em Roma); entrou em guerra contra o Rei de Nápoles, de nome Ladislau. E assim, a 12 de abril de 1411, João XXIII se apoderou de Roma; em junho do mesmo ano obrigou Ladislau a reconhecê-lo como legítimo representante de Deus junto aos homens e ainda em setembro de 1411, por não confiar em Ladislau, acaba por excomungá-lo.
            Como se tudo isso não bastasse, o novo papa pregou uma cruzada contra o pobre Rei de Nápoles e promulgou indulgências a todos que, pessoalmente, ou por meio de dinheiro (sic), o auxiliassem naquela campanha!
            Vários sacerdotes, então, foram encarregados de vender tais indulgências. Os seus compradores estariam remidos das penas purgatoriais enchendo de moedas e mais moedas os cofres da Igreja de Roma!... Evidentemente, tal comércio gerou indignação e tumultos por todos os lados. Os teólogos da Universidade de Praga, do qual João Huss fazia parte, não se definiram claramente se deveriam ou não cooperar com o papa naquela empresa. João se insurge abertamente declarando que só Deus tem o poder de dar indulgências. Os padres podem anunciá-las, jamais vendê-las! No que foi seguido por um discípulo chamado Jerônimo, mais tarde conhecido como Jerônimo de Praga.
            Em torno do assunto, na Boêmia, levantou-se tanta confusão, que os emissários do papa para recolher o dinheiro não eram mais respeitados. Mesmo porque o povo estava instruído por João e por Jerônimo.
            Sabendo das lutas travadas em Praga contra a venda vergonhosa das indulgências, João XXIII indeferiu as apelações a favor de Huss, entregando o processo ao Cardeal Pedro degli Stefaneschi, o qual na verdade confirmou a bula anterior excomungando-o, proibindo-o de celebrar missas e casamentos e determinando fosse a bula lida em todas as igrejas.
            Novas determinações perseguiram seus amigos, parente e até criados.  Em setembro chegou a ordem de demolição da Capela de Belém; e mais - chegou a ordem de prender João Huss, onde quer que estivesse, julgá-lo e queimá-lo vivo porque era um herege. Como se sabe, o Tribunal da Inquisição, que tanta gente levara à fogueira, fora  instalado no século XIII, por determinação do Papa Inocêncio III. Novos distúrbios se verificaram na capital da Boêmia, pois o povo não aceitava as ordens papais. Huss, para evitar inúteis tumultos, refugiou-se no Sul do país, na fortaleza de um amigo, onde escreve canções religiosas, obras teológicas e morais em língua tcheca, destinadas ao povo ao qual ainda falava, nos castelos, nas aldeias, nas vilas, até mesmo à beira das estradas, quando os padres não lhe abriam as portas de suas capelas.

7 - O Concílio de Constança

            Contando com apoio do Rei Sigismundo, João XXIII resolveu convocar para 1º de novembro um Concílio na cidade alemã de Constança, a fim de dar solução a questões de costumes e de direitos eclesiásticos, bem como esclarecer a unificação da Igreja Católica Romana, repartida entre 3 papas.
            Prometendo protegê-lo, Sigismundo consegue convencer João Huss a comparecer ao referido Concílio para defender-se das acusações de que estava sendo vítima. Antes, porém, de seguir viagem, nem o inquisidor de Parga (Bispo Nicolau) nem um sínodo do clero convocado para este fim, em agosto de 1414, encontraram provas contra o pregador tcheco. O próprio Arcebispo Conrado, interpelado pela Assembléia Nacional, em setembro do mesmo ano, declarou que não considerava aquele sacerdote de modo algum um herege. Ao contrário, foi reconhecido como verdadeiro cristão.
            Assim, acompanhado de fiéis amigos (mais ainda, fiado num salvo-conduto do Rei), partiu para Constança. Mal sabia ele que seu maior inimigo estava ali em Praga mesmo, na pessoa de Estevão Palec, doutor em Teologia da mesma Universidade, autor de um Tratado da Igreja, o qual não se conformava em ser sobrepujado por Huss em popularidade. Muito embora fosse antes amigo de João, com o tempo a inveja e o despeito fizeram-no seu adversário ferrenho, e que tudo faria em Constança para vê-lo obrigado a retratar-se, humilhar-se, abrir mão de suas idéias wiclefistas. Se isso ocorresse, então as suas idéias, dele, Palec, ganhariam popularidade entre os doutores e mesmo entre o povo da Boêmia.
            A 3 de novembro João Huss chega à Constança, onde já se encontrava o papa desde 28 de outubro, com um séquito de mil homens. Aliás, a cidade fervia de gente. Contava com a presença de 3 patriarcas, 29 cardeais, 33 arcebispos, 150 bispos, 300 teólogos, 108 abades, e priores, deães, cônegos, além de 3 eleitores, um margrave[1], 39 duques, 32 condes, muitos embaixadores, cavaleiros, fidalgos, bacharéis, estudantes, num total de 150 mil pessoas e 30 mil cavalos!
            Levados por amigos fiéis, como Wenceslau de Dubá, Henrique Lacemborck e João de Chium, Huss compareceu perante o papa, dele recebendo promessa de total proteção. Mas, na primeira oportunidade, o papa fugiu à palavra dada: instigado por Estevão Palec, por Miguel de Causis e pelo Bispo João de Litomysle, João XXIII consente em sua prisão, declarando que o fazia porque era os próprios compatriotas de Huss que o exigiam. E a prisão se dá em 28 de novembro a despeito do salvo-conduto do Rei Sigismundo, que lhe garantiria voltar à Boêmia. Os cardeais pouco valor deram ao documento real e João Huss foi atirado a uma cela onde, embora ficando seriamente doente, escreveu várias cartas aos companheiros distantes.
            Mas o Concílio ia tendo lugar. E a mais espantosa ocorrência se deu quando os cardeais obrigaram João XXIII a renunciar, se os outros papas fizessem o mesmo (Benedito XIII e Gregório XII). João XXIII foge para Schafhausen, aí decretando a dissolução do concílio. Os cardeais não acatam esta decisão papal e depuseram os três pontífices e, com o auxílio dos soldados de Sigismundo, a 5 de junho de 1415 prenderam o ex-Papa XXIII.

8 - O Processo contra Huss

            Se quisesse, o Rei Sigismundo poderia libertar João Huss. Mesmo porque nenhum cardeal pessoalmente desejava cuidar do caso. Nem mesmo o bispo de Constança. Mas o Rei insistiu em deixar o assunto a cargo do Concílio, de sorte que Huss ficou na dependência de uma comissão de 4 membros, presididos pela arcebispo de Ragusa.
            Em abril de 1415, veio a ter a Constança o discípulo fiel Jerônimo de Praga. Recomendado por amigo a que regressasse à Boêmia, o jovem tentou o regresso, mas foi aprisionado, metido em dura prisão e - para encurtar a história - queimado no ano seguinte (1416).
            Chegando aos boêmios a notícia da prisão de Huss, 250 aristocratas daí e da Morávia se manifestaram contra o Rei Sigismundo, de nada valendo, porém, esta manifestação dos seus patrícios. Agora, sob a presidência do Cardeal João de Brogni, o processo foi ganhando seqüência durante audiências a que João Huss só era admitido depois de feitas as acusações, sem lhe ser dada a oportunidade de defesa. Novo julgamento a 7 de junho de 1415, na presença de seus amigos João de Chlum, Wenceslau de Dubá e Pedro Mladenovice, presidido pelo Cardeal Pedro de Ailly, durante o qual, como antes, Huss não tem ocasião de defender-se, quer dizer, um julgamento tipicamente inquisitorial Ciente da sorte que o aguardava, o intrépido pregador da Boêmia a 10 de julho de 1415 escreveu aos seus patrícios sua última carta na qual conclamava o povo de Praga a respeitar e ouvir a palavra de Deus; a levar uma vida digna e reta, voltada para o estudo e para o trabalho, tendo em vista a glória de Deus, o melhoramento da comunidade e a salvação de suas almas; a orar ao Criador pelo Rei e pela Rainha; mas também a acautelar-se contra homens astutos e sacerdotes indignos que por fora são ovelhas e, por dentro, lobos vorazes!

9 - Atirado às Chamas

            Finalmente, a 6 de julho de 1415, cardeais, arcebispos, bispos, prelados, doutores em Teologia, membros do Concílio se reúnem na Catedral, na presença do Cardeal João de Grogni e do Imperador Sigismundo, João Huss deve ser condenado como herege e, por isso mesmo, queimado vivo! Depois do sermão, o Bispo Henrique de Pino, procurador do Concílio, leu em voz alta a sentença. Huss tentou defender-se, mas se viu proibido de falar. Diante da intolerância, o incansável pregador caiu de joelhos e implorou perdão de Deus para seus implacáveis inimigos. Enquanto isso, numa fogueira armada perto da igreja e diante do cemitério, seus livros são queimados.
            Em seguida o arcebispo de Milão comanda a sua desordenação: Huss é desvestido das vestes sacerdotais. E, tendo recebido uma ridícula coroa de papel, onde aparece o epíteto de ‘heresiarca’, é entregue ao Conde palatino Luís que, por sua vez, entrega-o ao alcaide (prefeito) da cidade, a fim de ser queimado. Note-se que João Huss não súdito de Sigismundo e sim de Venceslau, a quem deveria ser entregue. Mas isto pouco importa aos seus algozes. Desejavam queimá-lo e pronto! E assim, guardado por mais de 3 mil homens armados, seguido por grande massa popular, foi levado à fogueira medieval. Quando se aproximava do lugar do suplício, vendo que uma pobre velhinha acrescentava gravetos à lenha empilhada, o mártir, com um sorriso de amor, exclamou: -Santa simplicidade!”
            Tendo ajoelhado, pediu a proteção de Deus e rejeitou a confissão final, declarando que não lhe pesava nenhum pecado mortal. O carrasco preparava a queima da madeira enquanto o grande apóstolo do Cristo, recitando salmos, profetiza o advento de Martin Luthero, o famosos reformador alemão, declarando:
            “-Assais agora um ganso; mas daqui a anos virá um cisne que não podereis assar.” Como se viu, a palavra Huss significa, em tcheco, exatamente ganso.
            As chamas são acesas e lhe cobrem o corpo. O valente pregador de Husinec continuou a orara a Deus, implorando perdão pelo ato dos seus inimigos, e se negou a qualquer idéia de retratação.
            Queimaram o corpo de Huss. Mas não queimaram suas idéias de reforma dos costumes da Igreja. Não queimaram o ideal superior das almas que seguem sempre os ensinamentos da verdadeira Igreja do Cristo de Deus. Não queimaram da memória e da gratidão da Humanidade a lembrança de um de seus maiores vultos.

10 - Nota Final

            Consta que através da mediunidade de Ermance Dufaux foi dito que Allan Kardec teria sido o mesmo João Huss, evidentemente em vida anterior. Tal registro estaria guardado em documento da Livraria de Leymarie, chegando a ser visto pelo pesquisador patrício Canuto Abreu. Mas veio a invasão nazista, na última guerra mundial, e tal documento foi destruído.



João Huss


Inaldo Lacerda Lima
Pág. 294 Reformador (FEB) 1993

            Uma das mais autênticas figuras do Cristianismo, na Idade Média, foi, sem dúvida, o sacerdote e filósofo Jan Huss, nascido em Husinec (donde lhe veio o nome), na Boêmia, em 1369.
            Embora filho de pais camponeses, conseguiu completar seus estudos na Universidade de Praga, formando-se em Teologia, em 1394, e Artes, em 1396.
            Em 1400, ordenou-se sacerdote com o objetivo de servir ao Cristo com o coração. E, já em 1402, passava a ocupar o cargo de reitor da referida Universidade, dedicando ao magistério superior todo o devotamento possível.
            Um fato, porém, começava a inquietar a alma e o coração do jovem sacerdote: a decepção com a conduta de seus superiores eclesiásticos, que emprestavam à Igreja uma posição que muito o desagradava, principalmente a ele que devotava profundo respeito pelas coisas sagradas, sobretudo pelo culto da verdade.
            Assim, na mesma ocasião em que assumia o cargo de reitor da Universidade em que se graduara  em Teologia e Artes, alguns anos antes, travava conhecimento com a obra do  reformador inglês John Wycliff, passando a considerar-se  seu fiel discípulo.
            Exatamente no mesmo ano em que tomava conhecimento da obra de Wycliff, era nomeado pregador da Capela de Belém, em Praga. Não é difícil aquilatar os conflitos espirituais que passavam, então, a acicatar a mente desse homem extraordinário.
            Diante disso, a pouco e pouco iam-se escapando de seus sermões críticas ao clero, o que, ao mesmo tempo, punha em evidência as simpatias de Huss pelas idéias do odiado reformador inglês.
            Desse modo, não obstante as advertências que recebia em face de seu obstinado combate à cobrança de indulgências e à confissão auricular, foi em 1410, finalmente, excomungado. Enquanto isso, crescia a admiração pelo seu trabalho honesto, levando toda a população de Praga, em tumulto incontido, a proclamá-lo com o título de Herói Nacional, sob a proteção do Rei Venceslau da Boêmia.
            Isso fez crescer ainda mais a onda de perseguições dentro da Igreja contra João Huss, decretando o Vaticano nova excomunhão contra ele, em 1412. É que Huss passara a afirmar dos púlpitos que as escrituras sagradas deviam ser as únicas regras a ser obedecidas pela Igreja do Cristo e que somente ao Cristo considerava soberano único da Igreja.
            Diante de tal situação, foi João Huss premido a abandonar a cidade de Praga, onde sempre vivera.
            Roma, no entanto, utiliza-se de mais uma estratégia sagaz para exterminar a vida do ousado reformador. Decreta a realização do Concílio de Constança, em 1414. E, para ele, João Huss é convidado sob a garantia de um salvo-conduto do Imperador Sigismundo da Alemanha e Rei da Hungria. A Igreja  mostrava-se democrata e desejosa de melhor conhecer as idéias de Huss.
            Desse modo, o grande reformador e precursor da Reforma que ocorreria no século seguinte, tendo em vista as ponderações ardilosas, resolveu comparecer, intimorato, ao referido Concílio, mantendo aí os seus pontos de vista sem se arreceiar diante das ameaças, logo que percebeu ter sido vítima de uma armadilha.
            A grande verdade é que foi condenado à morte pelo fogo, pois esse,  e não outro, fora o objetivo da famigerada assembléia, uma vez que falso foi o salvo-conduto do Imperador da Alemanha.
            Assim sendo, e percebendo baldos os esforços pela sobrevivência, fez questão de enfatizar as suas idéias, e submeteu-as à terrível fogueira, expirando no dia 6 de julho de 1415, numa das praças de Constança.
                                   *
            Possivelmente, nenhum dos circunstantes presentes no sórdido e hediondo espetáculo representado por um homem indefeso, no alto de uma fogueira criminosa, percebia que, ali, na figura daquele homem sério e superior ocultava-se a alma de um grande missionário.
            Graças, todavia, à mediunidade sublimada de Francisco Cândido Xavier, tivemos a oportunidade e saber que homem era aquele que há cinco séculos e setenta e oito anos foi pela Igreja queimado vivo numa cerimônia espetacular.
            Conforme o relato mediúnico de Humberto de Campos, em 22 de setembro de 1942, na psicografia de Francisco Cândido Xavier, reproduzido na revista O Revelador, de São Paulo (SP) e, mais tarde, na revista Reformador, da FEB, de setembro de 1978 (págs. 293-294), ali estivera, na fogueira, sobranceiro, o Espírito que renasceria, em Lyon, na França de Joana d’Arc, a 3 de outubro de 1804, para o cumprimento de mais uma luminosa missão dignificando e imortalizando pelos séculos futuros o nome de Allan Kardec.
            Para melhor conhecimento dos espiritistas de nossos dias, citemos alguns trechos rápidos do relato acima mencionada:

            “Depois de se dirigir aos numerosos missionários da Ciência e da Filosofia, destinados à renovação do pensamento do mundo no século XIX, o Mestre aproximou-se do abnegado João Huss e falou, generosamente:
            -Não serás portador de invenções novas, não te deterás no problema de comodidade material à Civilização, nem receberás a mordomia do dinheiro ou da autoridade temporal, mas deponho-te nas mãos a tarefa sublime de levantar corações e consciências. (...)
            É indispensável estabelecer providências que amparem a fé, preservando os tesouros religiosos da criatura. Confio-te a sublime tarefa de reacender as lâmpadas da esperança no coração da Humanidade. (...)
            É preciso, porém, erigir o santuário da fé e caminhar sem repouso, apesar de perseguições, pedradas, cruzes e lágrimas!...
            Ante a emoção dos trabalhadores do progresso cultural do orbe terreno, o abnegado João Huss recebeu a elevada missão que lhe era conferida, revelando a nobreza do servo fiel, entre júbilos de reconhecimento.”
                                   *
            O restante de história nós, espíritas, já conhecemos. Cumpre, porém, não esquecermos a nossa modesta mas indispensável contribuição: servir à Doutrina do Consolador com coragem, confiança e a imprescindível disposição de ânimo.
            Urge sejamos todos, pela conduta e pelo coração, o espelho em que os homens se possam mirar. Quanto às fogueiras, já não temos que temê-las. Elas se apagaram para sempre. Mas é necessário mantenhamo-nos ao calor de novo fogo representado pela chama da fé viva, hoje, no amanhã e para todo o sempre.
           
 



[1] Título que outrora se dava aos príncipes soberanos de certos estados fronteiriços da Alemanha. (Nota do Compilador.)