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sexta-feira, 8 de julho de 2011

03 / 03 'Os Evangelhos segundo Ernest Renan'


Os Evangelhos
                   segundo Ernest Renan
Parte 3 (e final)

por   Gilberto Campista Guarino
em Reformador (FEB) Setembro 1976
           
Até aqui permaneceu fora de foco o Quarto Evangelho, o de João, o Evangelho do Verbo feito carne, que habitou entre os homens, o Evangelho da filiação divina de Jesus.
Renan entende a questão como bem mais difícil do que no caso dos sinópticos. Considerando que Papias (o mesmo bispo de Hierápolis, a quem já nos referimos anteriormente) nada diz a respeito de uma Vida de Jesus escrita por João – ele, Papias, que teria sido, segundo Irineu, um discípulo direto de João, ou, ao menos, um atento seguidor de seus discípulos imediatos -, pondera que ...”poder-se-ia ficar tentado a compreender o Quarto Evangelho como narrações de Ariston de Quios”, que sabemos ser filósofo estóico pregador das virtudes. Ou como produto da tradição legada daquele a quem Papias chamava “o presbítero João”.
Com efeito, tal possibilidade deveria ser, in limine, abandonada. primeiramente porque, como diz o próprio Renan, Papias apresenta essas narrações e tradições como não escritas, o que contraria frontalmente a realidade histórica de ambas as fontes trazidas à tona. Em segundo lugar, Papias não foi, como pretendeu Irineu, nem discípulo direto de João Evangelista, nem discípulo imediato dos discípulos daquele. Mas, sim, um discípulo dos discípulos dos Apóstolos, sem definição de qual Apóstolo fosse.
Como gerador de dúvida quanto à procedência do Quarto Evangelho, Renan ainda levanta o precedente de que Policarpo, o Bispo de Ermirna, e discípulo de João, jamais mencionou um Evangelho deste último.
Com efeito, o problema se agrava neste ponto: João só veio a morrer (e a tradição aponta martírios em óleo fervente, que, historicamente, não se provam) em Éfeso, no ano 100, com avançada idade. A considerar a maturidade e profundidade do Evangelho (para os que não conhecem a mediunidade, ou para os que, propositadamente, a desconhecem, terá ele sido escrito por volta do ano 90, quando o discípulo amado porque muito amou já tinha amadurecido na carne. Se Policarpo houvesse morrido muito cedo, estando, por volta do ano 90 e 100 com muito pouca idade, a controvérsia estaria sanada, definitivamente: Policarpo simplesmente não haveria presenciado aos escritos de João, não podendo deles dar testemunho. O que acontece, porém, é que ele viveu de 69 a 155 a.D., sobrevivendo, portanto, a João, o que faz com que a cena mude completamente. Ora, o estilo do Evangelho Quarto é nitidamente o dos profetas do Antigo Testamento, principalmente do profeta Daniel.  Médium de vastas possibilidades, profundamente bom, cristão, é bem possível que João se referisse ao Evangelho, quando falasse ao próprio Policarpo, em termos de algo que viera de fora dele, e que não era produção sua. Daí, talvez, jamais houvesse o discípulo falado em Evangelho de João. Por outro lado, em termos de mediunidade, conforme explica a doutrina espírita, todo médium contribui com algo de si mesmo na transmissão das comunicações. Em termos de fenômeno, nada mais estranhável. Esses componentes, entretanto, faltam ao pesquisador que, sem ser materialista, ignora, como Renan ignorava, certos mecanismos.
Doutrinariamente falando, ainda, a posição de João é a mais propícia possível para a recepção de uma obra de tal envergadura, escrita com o firme propósito de mostrar Jesus em toda a sua grandiosidade, num planejamento transcendente, inesquecível e insofismável. Só o próprio Cristo poderia despedir-se dos discípulos como o faz nos últimos capítulos do Quarto Evangelho, dizendo a Maria de Nazaré, e a João – que a acompanhava -, do alto da cruz:
- “Mulher, eis aí o teu filho; filho, eis aí a tua mãe.”
Por que teria Jesus escolhido exatamente a figura de João para, em frente de Maria, dizer tais palavras? ... Gratuitamente? Não nos parece. Nada do que o Mestre fez, ele o fez gratuitamente... porque não há gratuidades no planejamento divino que trouxe Jesus à nossa pobre Terra.[1]
Prosseguindo, Renan fala em tendências dogmáticas (?) do Quarto Evangelho. Não é possível entender isso. O Evangelho mediúnico, espiritual, é inteiramente esotérico, muito menos que o Apocalipse, é claro, mas com forte dose de hermetismo, no sentido de que as realidades espirituais são herméticas para os homens. Nada existe ali de dogma, a não ser o que os homens, por não o compreenderem, trataram de dogmatizar. A verdade é que o Quarto Evangelho corresponde a uma outra realidade, não é a da Terra, e nada tem, realmente, de comum com os três sinópticos. Raciocinar, em termos de Evangelho de João, com razões chãs, terra a terra, é permanecer impossibilitado de assimilar um mínimo que seja de tudo o que ele apresenta. Não se pode dizer, como o disse Renan, de momentos, no Quarto Evangelho, em que se sente a realidade da testemunha ocular, paralelamente a uma diferença total, em outras passagens, do Evangelho de Mateus! João apresenta o Cristo falando da Doutrina do Cristo, e do próprio Cristo, após a ascensão, ou seja: é Jesus falando em toda a sua grandiosidade! Não é o Cristo pintado por Mateus, ou por Marcos; nem mesmo o Cristo de Lucas... é o Jesus que os homens até hoje não entenderam, e que custarão muito a entender! É possível raciocinar em termos de que, no Evangelho de João,... “se encontram ideias estranhas a Jesus”. Como julgar o homem das ideias de Jesus, se o próprio Jesus afirmou que muitas coisas tinha ainda para nos dizer, mas que não estávamos preparados para elas?!  Com este tipo de pensamento, terminaremos por concluir da mesma forma que Renan:
“Há, no Evangelho Quarto, afirmações (ele diz indícios) que se chocam com a boa fé do leitor, porque põem em xeque a boa fé do narrador”.
E. como se vê, em breve estaremos duvidando, não da autenticidade da obra, mas das boas intenções de João. E onde iremos parar?...
A seguir, Renan pergunta se terá mesmo sido João, filho de Zebedeu, quem escreveu, em grego, verdadeiras lições de metafísica abstrata, em nada semelhante ao que contém os sinópticos. É mesmo extremamente difícil compreender a revelação divina. Se Jesus, que é Jesus, terminou, aos olhos dos homens, pregado numa cruz, quem seria João para não ser repreendido, quase, por dar lições de metafísica abstrata?... Naturalmente, o homem há de preferir a metafísica de Bossuet, ou de Descartes, porque elas são do mundo, e o homem é do mundo, ainda. Jesus, como sempre, ficará para depois.
Quanto á época em que terá sido escrito, Renan afirma categoricamente que, por volta do ano 170, todos sabem que o Evangelho em questão já existia; e que uma controvérsia irrompida em Laodicéia, a respeito da Páscoa, serviu para trazer a questão da sua procedência à tona. Mas, enquanto conclui com a corrente que atribui a João o Quarto Evangelho, e que é a única que data o seu surgimento depois do ano 90 e antes do ano 100, Renan, preconceituosamente (e incoerentemente com o seu próprio método parte da “certeza” de que João não escreveu o Evangelho, filiando-se, desse modo, pela pesquisa histórica, à corrente que diz ter sido ele, isto sim, composto por volta do século II.[2] Parece, por volta de 170, triunfar a ideia da autenticidade do escrito.Teófilo de Antioquia, Apolinário, Atenágoras, Polícrato, Irineu e o Cânon de Muratori defendem a tesa positiva. Mas, Renan – contraditoriamente – continua aferrado à ideia do dogma, dizendo que “este Evangelho desempenhou papel preponderante no gnosticismo, e no sistema de Valentino, e serviu de pedra angular a todas as controvérsias e a todos os dogmas”. É o roto falando do esfarrapado: o dogma falando do dogma. Além disso, as grandes obras sempre dão origem a grandes controvérsias, que se arrastam pelos séculos, devido ao preconceito e à mesquinhez dos homens, ditos doutos e prudentes.
Terminando suas considerações, Renan conclui que há dúvidas até mesmo entre os discípulos de João, porque Irineu reconhece João no Quarto Evangelho, assim como na Primeira Epístola, mas Policarpo, como já ressaltamos, jamais falou em Evangelho de João. Ele, Renan, não pode esconder que o autor (agora com caixa-baixa) do Evangelho é o mesmo da Primeira Epístola. Mas, simplesmente, começa a dizer que esse autor sempre fala como testemunha ocular (contrariando o que dissera anteriormente...), e que, impossível negar, ele quer fazer-se passar pelo Apóstolo João, sendo que os escritos foram coordenados visando única e exclusivamente aos interesses desse Apóstolo. O impostor (a palavra é nossa) deixava, a cada página, aparecer sua intenção de fortificar a autoridade do filho de Zebedeu, mostrando que ele foi o preferido de Jesus(!)
Como vemos, além de João ter má fé em grau doentio, Jesus tinha preferências!... Além disso, o autor (ainda em caixa baixa) quereria mostrar que, em todos os acontecimentos de clímax da passagem do Cristo sobre a Terra, João ocupava o primeiro plano, junto ao Mestre (!); ou seja, João era um exibicionista, um orgulhoso, um vaidoso, um fútil, que estava brincando com a figura de Jesus. E Jesus muito pior, porque, sendo muitíssimo mais responsável que o discípulo, dava-lhe mão forte, e ainda vinha, por meio de um comparsa de João, cooperar para que este fosse endeusado.
Não para aí a série de sandices. João era rival de Pedro! (Renan acha isso porque está consignado no Quarto Evangelho, Capítulo XVIII, vv. 15-16, a negação de Pedro).
E, o que é muito pior, em vista do que está escrito no Capítulo VI, versículo 65[3], conclui o filólogo e historiador que João tinha raiva de Judas, ...”raiva esta que, aparecendo aqui e ali, parece ser anterior à traição”. 
Ainda, “se Jesus falava como o quer Mateus, jamais poderia falar como o quer João”.
E, dizendo que alguns discípulos de João haviam bebido das fontes de Cerinto, que diferençava Jesus do Cristo, este último tendo descido sobre Jesus, no momento do batismo, para só o deixar na cruz; dizendo isso, que bem pode ter acontecido, sem que o discípulo amado algo tivesse de responsabilidade, conclui que, também por esse fato, o Evangelho – já então, pelo que se vê, considerado como de João, porque Renan, agora, ataca João – não poderia ser aconselhável.
                                                                       ***
Conclusão (de Renan): O Evangelho Quarto foi escrito por outras mãos que não as de João, mas pode ser que João tenha contribuído de alguma forma para a obra, por isso que poderemos chama-la de “Evangelho segundo João”.
O Evangelho de Mateus merece toda a confiança possível quanto ao discurso; existe uma espécie de força divina nas palavras que formam a narrativa. Por outro lado, há muitas lendas que a piedade da segunda geração cristã engendrou.
O Evangelho de Marcos é o mais preciso, o menos interpolado, minucioso, deixando entrever a testemunha ocular; mas é mal escrito, mal planejado.
O Evangelho de Lucas (o Autor...) passa a, contraditoriamente, ser encarado como o mais fraco, porque as palavras de Jesus estão excessivamente bem dispostas (?), e os lugares são indicados com menos rigor do que os dois anteriores (os sinópticos).
                                                                       *
Felizmente, após tanta controvérsia, Renan diz que considera os quatro Evangelhos como documentos sérios[4], e isso após dizer que João era rival de Pedro e tinha raiva de Judas... o mesmo João que ele já admitia como tendo até mesmo informado o Quarto Evangelho.
Eis aí a que leva o desconhecimento das coisas espirituais; eis aí a exatidão das palavras de Erasto, que transcrevemos logo no início deste pequeno estudo: o cego inteligente... “que não compreendendo o mecanismo da visão a distância imagina que só tocando-a se pode conhecer uma coisa”. Renan não é materialista, ... “mas pertence a essa escola que, se nega o princípio espiritual, também não lhe atribui nenhum papel efetivo e direto no encaminhamento das coisas do mundo”.
Teria sido bem mais feliz o nosso amigo, se houvesse compreendido os quatro Evangelhos como um todo inseparável, divino, produto da vida daquele a quem tentou reduzir às condições do mais mesquinho dos homens, e sob cujo peso grandioso terminou esmagado, como esmagada é a formiga sob os nossos pés. A única diferença é que Jesus não pisou em Renan, mas foi a própria consciência deste que se sentiu esmagada à simples passagem do Mestre dos mestres.




[1] Meditemos sobre a sutileza dessas “coincidências”.
[2] Concluirá, mais tarde, que o documento foi escrito antes do ano 100, filiando-se definitivamente à primeira tendência, embora – quanto à procedência – adote o ponto de vista do segundo. Ou seja, para Renan, o Quarto Evangelho foi escrito em vida de João, mas não por este.
[3] “Mas, alguns há, dentre vós, que não creem. Porque, desde o princípio, Jesus sabia quais os que criam e qual o que o trairia”.
[4] Ao invés de “documentos sérios”, parecer-nos-ia bem melhor “obra séria”.



quarta-feira, 6 de julho de 2011

02/03 'Os Evangelhos segundo Ernst Renan'


‘Os Evangelhos
 segundo Ernest Renan’
Parte 2

por   Gilberto Campista Guarino
em Reformador (FEB) Agosto 1976
           
Renan inicia a obra por uma consideração de que os Evangelhos tem algo de legendário, muito embora lhes confira inestimável valor, “... porque  eles nos reconduzem ao meio século que se seguiu à morte de Jesus, assim como ao trato com as testemunhas oculares das suas ações”.
O Evangelho de Lucas, o Evangelho da Natividade, é, para Renan, inicialmente, o mais autêntico.
“O Evangelho de Lucas é uma obra de composição regular, embasada em documentos anteriores” (o que é de enorme relevância para Renan). Neste ponto, refere-se ele ao Capítulo I, vv. 1 a 4:
- “Muitas pessoas tendo empreendido escrever a história das coisas realizadas entre nós, de acordo com o que nos transmitiram aqueles que desde o começo as viram com seus próprios olhos e foram ministros da palavra, pareceu-me, excelentíssimo Teófilo, conveniente, depois de me ter informado exatamente de todas essas coisas desde o seu início, narrar vos toda a série delas, a fim de que conheçais a verdade acerca do que aquelas pessoas hão dito, o que tudo sabeis.”

A Bíblia de Jerusalém comenta, no rodapé da página 1367, que, em primeiro lugar, o vocabulário e o estilo desses primeiros versículos são semelhantes aos dos historiadores da época helenista. Ora, nós sabemos que Lucas, além de grande inspirado, era médico, um homem dotado de grande cultura.[1] A seguir, considera aquele adjetivo “... muitas” ((de muitas pessoas) como enfático, devendo ser entendido como “algumas”. Consideração extremamente ponderada, porque sabemos hoje que o Evangelista não se embasou numa multidão de comentários e de depoimentos, mas que (e a Bíblia de Jerusalém o considera) existe um nexo causal insofismável entre o trabalho de Lucas e o de Marcos, porque Marcos dedicou-se a narrar os fenômenos produzidos pelo Cristo, e Lucas ocupou-se com as parábolas e com o nascimento do Mestre.[2] Ora, tanto o nascimento de Jesus quanto os seus ensinamentos se acham eivados da mais vasta e complexa fenomenologia, científica e filosoficamente falando, o que forma uma unidade indivisível entre os dois evangelistas.
Mateus, muito embora os estudiosos o considerem sem vinculações diretas com Lucas, não pode ser globalmente entendido sem este último, porque – a considerar que os três Evangelhos encaram três realidades da múltipla grandeza do Cristo – nenhum deles pode ser tomado em conta isoladamente.[3]
A seguir, Renan – como se ainda fosse possível por em dúvida a identidade de autoria entre o Evangelho da Natividade e os Atos dos Apóstolos, afirma:
“O autor deste Evangelho (refere-se a Lucas) é com toda a certeza o mesmo do Atos dos Apóstolos” (O parênteses é nosso).
E prossegue, evidenciando o enorme apreço e valor que empresta a Paulo, justamente considerado pela cristandade como aquele que, investido de enormes conhecimentos de mediunidade, a par de invulgares considerações em torno do Antigo Testamento, levou o Cristianismo ao campo do mundo, pondo lhe em relevo toda a pujança, oculta aos olhos dos homens. Eis Renan, como dizíamos:
“Ora, o Autor dos Atos de fato parece um companheiro de São Paulo, e, a partir do Capítulo XVI, versículo 10, dos Atos, se apresenta como testemunha ocular, título, aliás, que serve como uma luva a Lucas”.
O raciocínio de Renan é coonestado pela Bíblia de Jerusalém, na página 1478, comentando o versículo 10, Capítulo XVI, dos Atos, que assim está grafado: “Assim que teve esta visão (refere-se a Paulo) procuramos imediatamente partir para a Macedônia...”
Comenta a Bíblia de Jerusalém:
- “ A redação passa bruscamente para a primeira pessoal do plural.” Logo, Lucas acompanhava Paulo.
E termina Renan, ainda quanto à identificação de autoria:
“Sei que mais de uma objeção pode ser oposta a este raciocínio; mas, ao menos uma coisa permanece fora do terreno da dúvida: o Autor do terceiro Evangelho e doa Atos é um homem pertencente à segunda geração apostólica, o que é suficiente para que alcancemos nosso objetivo.”
Curiosamente, Ernest Renan não se refere a Lucas, como autor, senão em caixa-alta: Autor. Não conseguiu camuflar sua profunda admiração pelo evangelista médico.
Finalizando, na introdução, considera a obra como de enorme unidade e perfeição.
Já quanto aos Evangelhos de Marcos e de Mateus, a atitude de Renan é, in limine, de desconfiança. Expressões como – “quanto aos Evangelhos ditos de Marcos e de Mateus...” deixam claro o tratamento dúbio que o escritor empresta às narrativas, especialmente se considerarmos o enfoque do trabalho de Lucas. Por exemplo, ao citar Pápias, o abade de Hierápolis, Renan, embora não endosse a sua tese de que haveria tão somente dois escritos sobre os Atos e as palavras do Cristo: um escrito de Marcos, interpretado por Pedro, e uma coleção de frases escritas por Mateus, em dialeto semítico -, não deixa de considerar o Evangelho de Mateus como caracterizado por períodos longos, ao passo que trata o escrito de Marcos como “acima de tudo anedótico”, bem mais exato a respeito de pequeninas ocorrências do que o de Mateus, objetivo a ponto de raiar pela secura, pobre discursivamente e muito mal estruturado”.
Enquanto os escritos que lera Pápias eram inteiramente distintos, os dois Evangelhos sinóticos apresentam formas paralelas e mesmo idênticas , o que, para Renan, deixa entrever que... “ou o redator definitivo do primeiro tinha o segundo sob os olhos, ou que o redator definitivo do segundo do mesmo modo tinha o primeiro”.
Com isso, usando o termo definitivo, com rara felicidade, Ernest Renan mostra que, como é óbvio, houve uma série de modificações e versões sobre o texto dos dois Evangelhos sinóticos, que a Igreja sempre considerou como autênticos, a mesma igreja que anatematizou Renan.
Após levar em conta uma outra conclusão, a que ambos os Evangelhos poderiam ser cópias do mesmo protótipo, vem a, definitivamente, optar pela teoria de que... “nem no que concerne a Mateus, nem no que tange a Marcos, estamos diante da redação original; ambos os Evangelhos são arranjos, cujas lacunas se pretendeu preencher ora com o texto de um, ora com o de outro”.
Mais adiante, dentro da mesma linha de pensamento, até mesmo um tanto ou quanto “trocista”, Renan passa a dizer, sempre considerando as interpolações “providenciadas” para os textos originais – o que, em sua opinião, ocorreu, inegavelmente -, que... “cada um dos “arranjadores” dos dois Evangelhos parecia querer possuir um exemplar completo, num só. Nessa lógica, no Evangelho segundo Mateus aparecem todas as anedotas (particularidades históricas) de Marcos, assim como neste último estão, atualmente, contidos muitos traços característicos das Logia (ditos, parábolas), encontradas em Mateus”.
O fato de estarem ambos intimamente relacionados com a tradição oral, tanto quanto à origem, como no que toca às invenções dos hermeneutas tendenciosos, parece incomodar Renan. Sua linha de raciocínio não sobrevive fora da pesquisa apoiada sobre documentos históricos: ele busca avidamente uma fonte escrita. Isso, se – por um lado – convém a um pesquisador, a um historiógrafo, não pode – se excessivamente – favorecer a um exegeta, a um historiólogo. Por isso, Renan peca por algumas vezes, e, na busca de uma base escrita, termina por se tornar em algo aproximado do dogma, embora não possa ser tomado como um apologista seu.
Todas as considerações em torno das narrativas de Mateus e de Marcos se acham pontilhadas de veneração votada a Lucas, com citações frequentes do Evangelho e dos Atos dos Apóstolos. Diga-se, a propósito, que, embora essa adoração seja inegável, Renan não é daqueles apaixonados, e, em momento algum se pode dizer que ele escolhe pretextos para citar Lucas. Disso é um bom exemplo o comentário ainda em torno do problema da tradição oral:
“Os Evangelhos de Mateus e de Marcos apoiavam-se, aliás, e largamente, na tradição oral que os circundou. Mas, esta tradição é tão vasta e se acha tão afastada, em sua totalidade, dos Evangelhos, que os Atos dos Apóstolos e os mais antigos Patriarcas relembram um sem número de palavras de jesus, as quais parecem inteiramente autênticas, e que não se encontram nos Evangelhos que possuímos.”  
 Habilmente, Renan criticou, mais uma vez, a ortodoxia religiosa, que considerou apócrifos inúmeros livros de revelação eminentemente espiritual. Não que ele, Renan, os considerasse todos autênticos! Muito pelo contrário. Renan, por exemplo, não aceitou jamais o Apocalipse de João Evangelista; não aceitou o Quarto Evangelho, o essencialmente mediúnico e espiritual, no dizer de Clemente de Alexandria, opinião esta partilhada por Daniel-Rops; tampouco pode aceitar a Epístola dos Hebreus, uma verdadeira sequencia de comunicações que Emmanuel nos apresenta como um escrito que, por vezes, arrancava lágrimas a Paulo, e o qual ele fez questão de grafar valendo-se de seus próprios recursos, muito embora – como todas as Epístolas, consideradas por Emmanuel como de essência crística -, não lhe faltasse o concurso de Estevão, que ao Doutor permaneceria mais conchegado, transmitindo-lhe os pensamentos do Senhor. Assim, do mesmo modo, o Apocalipse, que vem a ser revelação do Cordeiro. Mas, se o seu desconhecimento da vida espiritual o impedia de enxergar mais adiante, seu método essencialmente positivo e até mesmo drástico, no que concerne a documentos, não lhe permitia outras leviandades:  o estudo de Renan apenas sofria uma constrição – aquela imposta pelo fato de ser ele, na palavra de Erasto, um ...”desses cegos inteligentes que explicam a seu modo aquilo que não podem ver”. Mas, Renan não foi, propriamente, cego guia de cegos; auxiliou  a preparar os homens para o advento das novas crenças. O que ele desejou dizer, em termos de largueza da tradição oral, foi que a palavra de Jesus – a quem ele observa com profundo respeito – não se contém numa determinada época história: ele é precedente e superveniente. Foi, aliás, Ernest Renan que afirmou, comovedoramente, que Jesus dividiu a história em duas partes: antes dele e depois dele.
Resumindo, eis como Renan compreende os dois Evangelhos, sempre deixando à parte o de Lucas:
“Em outras palavras, o sistema de vida de Jesus nos Evangelhos sinóticos repousa em dois documentos originais:
“Os discursos de Jesus colecionados pelo Apóstolo Mateus;
“O conjunto de particularidades históricas (anedotas) e de ensinamentos pessoais que Marcos escreveu, a partir das recordações de Pedro. Pode dizer-se que esses documentos  ainda existem misturados a ensinamentos de origem diversas, nos dois primeiros Evangelhos, os quais são – com toda a razão – chamados de ‘Evangelho segundo Mateus” e “Evangelho segundo Marcos”.
Para Renan, nesses dois escritos, existe uma base de Mateus e uma outra base de Marcos; tudo o mais surgiu a partir de e segundo esses pontos de apoio. Mateus apresenta um planejamento sistemático, porém com frases longas, repetitivas; Marcos é mal dirigido, mal sistematizado, embora possua força interior; Lucas ocupa lugar de destaque, é escrito em estilo fascinante que revela uma alma extremamente inteligente, culta e dedicada, um espírito acostumado a lidar com pensamentos, senhor de uma exposição segura e coerente, não cansativa e jamais contraditória. A mesma é a opinião dos elaboradores da Bíblia de Jerusalém: Marcos, repleto de aramaísmos e incorreto, porém com vivacidade que empresta à obra um cunho de popularidade. Mateus, também aramaizante, mas bem mais cuidado, menos pictórico, e mais correto. Lucas é de qualidade excelente, perfeito quando diz respeito a si mesmo, quando fala por si próprio, embora um tanto ou quanto impreciso quanto a suas fontes. [4]  Está maravilhosamente vazado no estilo bíblico dos setenta.
É Kardec quem comparece com o meio termo: os três Evangelhos se completam. Todos os três devem ser estudados.


[1] Na obra “Lucas, o médico escravo”, de Eurico Branco Ribeiro, edição da Livraria Martins, está bosquejada tese bem composta e documentada.
[2] Esclarece Emmanuel que o Evangelho de Lucas é aquele  que constava nos projetos de Paulo, Apóstolo, nos termos de uma “biografia de Jesus”, p´rojeto este que, se não surgido quando de sua visita visita à Excelsa Mãe Santíssima, foi avidado pelas sublimes narrativas daquela que parecera “um anjo vestido de mulher”, concernentes à noite do nascimento do Mestre. Posteriormente, regressando a Éfeso, “interessado na feitura do Evangelho decalcado nas recordações de Maria”, (Paulo e Estevão, pág. 436). viu-se atribulado a tal ponto pelas perseguições e ciladas dos inimigos, que partiu antes do tempo previsto; Inquirido por João (o filho de Zebedeu, o futuro evangelista) de suas intenções sobre o Evangelho... “consoante as recordações de Maria”, Paulo replica dizendo ser preciso partir, ao mesmo tempo que assegura enviar um companheiro para essa tarefa, caso não a possa realizar ele mesmo.
Noticia Emmanuel, mais adiante, que Lucas foi o indicado para esse trabalho. Eis, na meridiana explicação do mentor, a origem do Evangelho da Natividade.
[3] Consultem-se os apontamentos de Antônio Luiz Sayão, na grande obra “Elucidações Evangélicas”.
[4] Essa opinião, defendida pelos organizadores da Bíblia de Jerusalém, é, inicial e implicitamente não aceita por Renan. Mas, na lista de suas compreensíveis contradições, passará a ser por ele partilhada, como adiante veremos.

terça-feira, 5 de julho de 2011

01/03 'Os Evangelhos segundo Ernest Renan'


Os Evangelhos
segundo Ernest Renan
Parte 1

por   Gilberto Campista Guarino
em Reformador (FEB) Julho 1976
           
Quando se considera a figura sublime de Jesus Cristo, sua vida, seu tempo, sua mensagem que atua no tríplice campo da substância humana – a arguição científica, a especulação filosófica e o transcendentalismo religioso – torna-se impossível deixar de considerar três nomes, onde o tema alcança as cumeadas da grandiloquência: Allan Kardec, Daniel-Rops e Ernest Renan; todos os três missionários, em três sentidos diferentes.
Allan Kardec, espírito de escol, detentor de um dos mais notáveis poderes de síntese de que o homem tem conhecimento, sistematizador absoluto, pesquisador cuja acuidade atinge gradações imprevisíveis, homem que conseguiu, dentro de si mesmo, adestrar a estrutura íntima com o mais perfeito equilíbrio entre os três elementos da substância humana, a que, mais acima, nos referimos. Kardec, universalista por excelência, jamais cindiu o inseparável, nem exterior nem interiormente. Possuía a brandura do coração aliada à lógica imperecível: foi o defensor, em pleno século XIX, do meio-termo.
Daniel-Rops, o pensador católico, o professor de história, o escritor inspirado – poderemos dizer: o historiólogo -, o romancista eminentemente preocupado com o problema do mal. Rops, estudioso dos Evangelhos, nítido apreciador das Epístolas paulinianas – “Morte, onde está a tua vitória?”, título de obra sua, publicada em 1934 – entregou-nos um dos mais belos trabalhos versando sobre a história da Igreja, entrando em pormenores que o espírita estudioso e consciencioso poderá e deverá, mesmo, buscar entender, mergulhando a fundo em suas entrelinhas. Visivelmente preocupado com a figura de Jesus, Rops – que nasceu em Épinal, em 1901 – após “A História do Povo Bíblico”, deu-nos “Jesus no seu tempo”, “A vida quotidiana na Palestina”, obras onde a personalidade de Jesus é tratada, primeiramente, em função da realidade sócio-política-histórica da Palestina, e, em segundo lugar, sobreposta às realidades desse tempo, com o que se demonstra que Jesus não esteve adstrito a tempo, em qualquer sentido se empregue o vocábulo. Isso, todavia, só o pesquisador cristão poderá retirar da contribuição de Daniel-Rops.
Ernest Renan, natural de Tréguier, onde veio ao mundo no ano de 1823, grande filósofo e historiador – e também (e, talvez, principalmente...) historiólogo, eminentemente religioso, dotado de profundo dom de observação, que empregou, basicamente, na crítica dos Evangelhos, das Epístolas de Paulo de Tarso. Publicou ”O Futuro da Ciência”, “Os Apóstolos”, “Marco Aurélio e o Fim do Mundo Antigo”, etc. “Recordações da Infância e da Juventude” foi obra em que ressurge no homem que atingiu a idade adulta a madura reflexão em torno dos sonhos e das realidades dos primeiros tempos, momento em que imensas perspectivas se desenham aos olhos do adolescente, e momentos esses, posteriormente, reconhecidos na medida mais realista e amarga que a vivência sempre impõe ao viajor da Terra. 

*   *    *

            Quando Leymarie publicou, em 1890, “Obras Póstumas”, foram inseridas nessa coletânea de papéis e apontamentos do Codificador uma pergunta e uma resposta versando sobre a publicação da obra “A Vida de Jesus” por Ernest Renan. De início, o trabalho de Renan nega, por assim dizer, a divindade do Cordeiro, do Pastor, quase numa revivescência da doutrina de Ário, que afirmava ser Jesus um deus para a Terra, visto que o próprio Jesus dava testemunho de ser o Filho, embora Filho que retratava o Pai, tanto que aquele que o visse veria ao Pai, e aquele que o escutasse escutaria, igualmente, ao Pai. Ário raciocinava, ainda, jogando, sabiamente, com a asserção de que nós somos deuses, assim como Jesus era também deus, neste sentido, tanto que afirmou que nós poderíamos fazer tudo aquilo que Ele fazia, e ainda muito mais. Esse parece ser o melhor entendimento doutrinário, assim como o é aquele que nos ensina ser Jesus a maior essência espiritual, depois de Deus, relativamente à Terra. Se Jesus é Puro por excelência, o entendimento da Evolução (até onde a podemos entender) nos leva a considerar aqueles Espíritos a quem Jesus permaneceu dócil desde o início, sem nos esquecermos de que Deus está constantemente criando. A única diferença existente entre o pensamento de Ário e o de Renan – deixando claro que o pensamento doutrinário é manso e pacífico – é que, enquanto o primeiro, ao negar a divindade de Jesus, deixou patente que essa negação se fazia em termos de Universo, e não de Planeta, pouco ou nada se preocupando com outras doutrinas -, Renan, infelizmente (ou felizmente, o que veremos logo que examinarmos a resposta inserida em “Obras Póstumas”), parece ter permanecido obcecado pela ideia do Logos, em lugar da mente racional humana, a que se referira, séculos antes, Apolinário. O Logos é o verbo, a voz divina.
Nós sabemos, deixando à margem problemas de menor importância, que – conquanto não fosse divino, em termos de Universo, como dizia Ário -, Jesus representava a palavra de deus para a Terra, O Espírito, já sendo antes que o mundo fosse, que orientou a evolução planetária de nosso orbe, como membro da comunidade de Espíritos Puros, no dizer de Emmanuel. Renan, por seu turno, numa nítida reação ao espectro do apolinarismo – que considerava Jesus como portador de um corpo físico, de uma alma, ou princípio animal, e tudo isso dirigido pelo Logos, no lugar da mente racional humana, sem perceber a real amplitude do problema, o que aliou a uma profunda reação à fé cega em que tentaram educa-lo, prendeu-se a pormenor sem alcançar o todo.
Vamos a “Obras Póstumas”, página 311, 13ª edição da FEB; a comunicação foi obtida em Paris, no dia 14 de outubro de 1863 (a publicação de “Vida de Jesus” é do mesmo ano...):

“Pergunta (a Erasto) – Que efeito produzirá a “Vida de Jesus”, de Renan?
“Resposta – Enorme efeito. Grande será a repercussão no clero, porque esse livro derroca os fundamentos do edifício em que ela se abriga há dezoito séculos. Não se trata de um livro irrepreensível, longe disso, porque reflete uma opinião exclusiva, que se circunscreve no circulo acanhado da vida material. Todavia, Renan não é materialista, mas pertence a essa escola que, se não nega o princípio espiritual, também não lhe atribui nenhum papel efetivo e direto no encaminhamento das coisas do mundo. Ele é desses cegos inteligentes que explicam a seu modo o que não podem ver; que, não compreendendo o mecanismo da visão à distância, imaginam que só tocando-a se pode conhecer uma coisa. Por isso é que reduziu o Cristo às proporções do mais vulgar dos homens, negando-lhe todas as faculdades que constituem atributos do Espírito livre e independente da matéria.
            “Entretanto, a par de erros capitais, sobretudo no que concerne à espiritualidade, o livro contém observações muito justas, que até aqui haviam escapado aos comentadores e que, de certo ponto de vista, lhe dão grande alcance. Seu autor se inclui nessa legião de Espíritos encarnados que se podem classificar como demolidores do velho mundo, tendo por missão nivelar o terreno sobre o qual se edificará um mundo novo mais racional. Quis Deus que um escritor, justamente conceituado entre os homens, do ponto de vista do talento, viesse projetar luz sobre algumas questões obscuras e eivadas de preconceitos seculares, a fim de predispor os Espíritos às novas crenças. Sem o suspeitar, Renan achanou o caminho para o Espiritismo.

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            O testemunho de Erasto não é contrário a Renan mas a favor de Renan. Não o considera um materialista, e talvez o considere, sem o dizer, um desiludido, sem que o exima da responsabilidade, porque o homem que alimenta uma fé raciocinada não se desilude, porque posiciona a substância da fé acima das posições do mundo, e respira numa outra dimensão de vida. Considera-o como um demolidor do velho mundo, muito embora não deixe de expender opinião no sentido de que ele (Renan) reduziu o Cristo às proporções do mais vulgar dos homens, o que nos permite concluir que, para que algo seja transformado, conquanto haja necessidade de demolição, não existe imperiosidade de profanação das figuras e dos valores que nos escapam à compreensão, por não entendermos as coisas de Deus. Mas, é o que se depreende das sábias palavras de Erasto, só mesmo atitudes drásticas sanam erros que, secularmente, não admitem reprimendas, e que se estabeleceram na jaula do dogma, ameaçando aprisionar a mente humana.
            O fato é que, como disse Erasto, a reação ao livro foi violentíssima. Paralelamente ao gigantesco sucesso estabeleceu-se o escândalo nos meios cultos e preconceituosos da época, e Renan foi destituído da cátedra que ocupava. Mas, além de se cumprir uma profecia de Erasto, mais um passo era dado rumo à falência integral da Igreja, com a decretação. por Pio IX, que teve toda a sua ilogicidade ressaltada pelo Bispo Strossmayer, num brilhante discurso.