Os Evangelhos
segundo Ernest Renan
Parte 1
por Gilberto Campista Guarino
em Reformador (FEB) Julho 1976
Quando se considera a figura sublime de Jesus Cristo, sua vida, seu tempo, sua mensagem que atua no tríplice campo da substância humana – a arguição científica, a especulação filosófica e o transcendentalismo religioso – torna-se impossível deixar de considerar três nomes, onde o tema alcança as cumeadas da grandiloquência: Allan Kardec, Daniel-Rops e Ernest Renan; todos os três missionários, em três sentidos diferentes.
Allan Kardec, espírito de escol, detentor de um dos mais notáveis poderes de síntese de que o homem tem conhecimento, sistematizador absoluto, pesquisador cuja acuidade atinge gradações imprevisíveis, homem que conseguiu, dentro de si mesmo, adestrar a estrutura íntima com o mais perfeito equilíbrio entre os três elementos da substância humana, a que, mais acima, nos referimos. Kardec, universalista por excelência, jamais cindiu o inseparável, nem exterior nem interiormente. Possuía a brandura do coração aliada à lógica imperecível: foi o defensor, em pleno século XIX, do meio-termo.
Daniel-Rops, o pensador católico, o professor de história, o escritor inspirado – poderemos dizer: o historiólogo -, o romancista eminentemente preocupado com o problema do mal. Rops, estudioso dos Evangelhos, nítido apreciador das Epístolas paulinianas – “Morte, onde está a tua vitória?”, título de obra sua, publicada em 1934 – entregou-nos um dos mais belos trabalhos versando sobre a história da Igreja, entrando em pormenores que o espírita estudioso e consciencioso poderá e deverá, mesmo, buscar entender, mergulhando a fundo em suas entrelinhas. Visivelmente preocupado com a figura de Jesus, Rops – que nasceu em Épinal, em 1901 – após “A História do Povo Bíblico”, deu-nos “Jesus no seu tempo”, “A vida quotidiana na Palestina”, obras onde a personalidade de Jesus é tratada, primeiramente, em função da realidade sócio-política-histórica da Palestina, e, em segundo lugar, sobreposta às realidades desse tempo, com o que se demonstra que Jesus não esteve adstrito a tempo, em qualquer sentido se empregue o vocábulo. Isso, todavia, só o pesquisador cristão poderá retirar da contribuição de Daniel-Rops.
Ernest Renan, natural de Tréguier, onde veio ao mundo no ano de 1823, grande filósofo e historiador – e também (e, talvez, principalmente...) historiólogo, eminentemente religioso, dotado de profundo dom de observação, que empregou, basicamente, na crítica dos Evangelhos, das Epístolas de Paulo de Tarso. Publicou ”O Futuro da Ciência”, “Os Apóstolos”, “Marco Aurélio e o Fim do Mundo Antigo”, etc. “Recordações da Infância e da Juventude” foi obra em que ressurge no homem que atingiu a idade adulta a madura reflexão em torno dos sonhos e das realidades dos primeiros tempos, momento em que imensas perspectivas se desenham aos olhos do adolescente, e momentos esses, posteriormente, reconhecidos na medida mais realista e amarga que a vivência sempre impõe ao viajor da Terra.
* * *
Quando Leymarie publicou, em 1890, “Obras Póstumas”, foram inseridas nessa coletânea de papéis e apontamentos do Codificador uma pergunta e uma resposta versando sobre a publicação da obra “A Vida de Jesus” por Ernest Renan. De início, o trabalho de Renan nega, por assim dizer, a divindade do Cordeiro, do Pastor, quase numa revivescência da doutrina de Ário, que afirmava ser Jesus um deus para a Terra, visto que o próprio Jesus dava testemunho de ser o Filho, embora Filho que retratava o Pai, tanto que aquele que o visse veria ao Pai, e aquele que o escutasse escutaria, igualmente, ao Pai. Ário raciocinava, ainda, jogando, sabiamente, com a asserção de que nós somos deuses, assim como Jesus era também deus, neste sentido, tanto que afirmou que nós poderíamos fazer tudo aquilo que Ele fazia, e ainda muito mais. Esse parece ser o melhor entendimento doutrinário, assim como o é aquele que nos ensina ser Jesus a maior essência espiritual, depois de Deus, relativamente à Terra. Se Jesus é Puro por excelência, o entendimento da Evolução (até onde a podemos entender) nos leva a considerar aqueles Espíritos a quem Jesus permaneceu dócil desde o início, sem nos esquecermos de que Deus está constantemente criando. A única diferença existente entre o pensamento de Ário e o de Renan – deixando claro que o pensamento doutrinário é manso e pacífico – é que, enquanto o primeiro, ao negar a divindade de Jesus, deixou patente que essa negação se fazia em termos de Universo, e não de Planeta, pouco ou nada se preocupando com outras doutrinas -, Renan, infelizmente (ou felizmente, o que veremos logo que examinarmos a resposta inserida em “Obras Póstumas”), parece ter permanecido obcecado pela ideia do Logos, em lugar da mente racional humana, a que se referira, séculos antes, Apolinário. O Logos é o verbo, a voz divina.
Nós sabemos, deixando à margem problemas de menor importância, que – conquanto não fosse divino, em termos de Universo, como dizia Ário -, Jesus representava a palavra de deus para a Terra, O Espírito, já sendo antes que o mundo fosse, que orientou a evolução planetária de nosso orbe, como membro da comunidade de Espíritos Puros, no dizer de Emmanuel. Renan, por seu turno, numa nítida reação ao espectro do apolinarismo – que considerava Jesus como portador de um corpo físico, de uma alma, ou princípio animal, e tudo isso dirigido pelo Logos, no lugar da mente racional humana, sem perceber a real amplitude do problema, o que aliou a uma profunda reação à fé cega em que tentaram educa-lo, prendeu-se a pormenor sem alcançar o todo.
Vamos a “Obras Póstumas”, página 311, 13ª edição da FEB; a comunicação foi obtida em Paris, no dia 14 de outubro de 1863 (a publicação de “Vida de Jesus” é do mesmo ano...):
“Pergunta (a Erasto) – Que efeito produzirá a “Vida de Jesus”, de Renan?
“Resposta – Enorme efeito. Grande será a repercussão no clero, porque esse livro derroca os fundamentos do edifício em que ela se abriga há dezoito séculos. Não se trata de um livro irrepreensível, longe disso, porque reflete uma opinião exclusiva, que se circunscreve no circulo acanhado da vida material. Todavia, Renan não é materialista, mas pertence a essa escola que, se não nega o princípio espiritual, também não lhe atribui nenhum papel efetivo e direto no encaminhamento das coisas do mundo. Ele é desses cegos inteligentes que explicam a seu modo o que não podem ver; que, não compreendendo o mecanismo da visão à distância, imaginam que só tocando-a se pode conhecer uma coisa. Por isso é que reduziu o Cristo às proporções do mais vulgar dos homens, negando-lhe todas as faculdades que constituem atributos do Espírito livre e independente da matéria.
“Entretanto, a par de erros capitais, sobretudo no que concerne à espiritualidade, o livro contém observações muito justas, que até aqui haviam escapado aos comentadores e que, de certo ponto de vista, lhe dão grande alcance. Seu autor se inclui nessa legião de Espíritos encarnados que se podem classificar como demolidores do velho mundo, tendo por missão nivelar o terreno sobre o qual se edificará um mundo novo mais racional. Quis Deus que um escritor, justamente conceituado entre os homens, do ponto de vista do talento, viesse projetar luz sobre algumas questões obscuras e eivadas de preconceitos seculares, a fim de predispor os Espíritos às novas crenças. Sem o suspeitar, Renan achanou o caminho para o Espiritismo.
* * *
O testemunho de Erasto não é contrário a Renan mas a favor de Renan. Não o considera um materialista, e talvez o considere, sem o dizer, um desiludido, sem que o exima da responsabilidade, porque o homem que alimenta uma fé raciocinada não se desilude, porque posiciona a substância da fé acima das posições do mundo, e respira numa outra dimensão de vida. Considera-o como um demolidor do velho mundo, muito embora não deixe de expender opinião no sentido de que ele (Renan) reduziu o Cristo às proporções do mais vulgar dos homens, o que nos permite concluir que, para que algo seja transformado, conquanto haja necessidade de demolição, não existe imperiosidade de profanação das figuras e dos valores que nos escapam à compreensão, por não entendermos as coisas de Deus. Mas, é o que se depreende das sábias palavras de Erasto, só mesmo atitudes drásticas sanam erros que, secularmente, não admitem reprimendas, e que se estabeleceram na jaula do dogma, ameaçando aprisionar a mente humana.
O fato é que, como disse Erasto, a reação ao livro foi violentíssima. Paralelamente ao gigantesco sucesso estabeleceu-se o escândalo nos meios cultos e preconceituosos da época, e Renan foi destituído da cátedra que ocupava. Mas, além de se cumprir uma profecia de Erasto, mais um passo era dado rumo à falência integral da Igreja, com a decretação. por Pio IX, que teve toda a sua ilogicidade ressaltada pelo Bispo Strossmayer, num brilhante discurso.
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