Pesquisar este blog

Mostrando postagens com marcador Souza do Prado. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador Souza do Prado. Mostrar todas as postagens

quinta-feira, 13 de agosto de 2020

Res, Non Verba (III, IV e V)



Res Non Verba (Fatos e não palavras)
por Souza do Prado
Reformador (FEB) Setembro 1943

III


Um que vivia sonhando...


            - Ué! ... O senhor já chegou?! ...
            - Como?! ... Se eu já cheguei?! ... Mas... que quer dizer com isso? ... Então, eu passo cinco anos fora do Rio; e, quando acabo de chegar, sem qualquer aviso, o boa-noite que você me dá é perguntar-me se já cheguei?! ... É boa! ... Que história é essa?!
            - É.. O senhor Cardoso já nos tinha dito que o senhor ia voltar...
            Esse diálogo tinha-se estabelecido entre o guarda-noturno de serviço na esquina das ruas do General Câmara e da Quitanda - o velho Marques -, e o Oliveira, que, às onze horas de uma noite de abril de 1919, acabava de desembarcar do Gelria, depois de uma viagem, em que morreram de gripe dezessete passageiros.
            E, daí a nada, chegava o Cardoso, que repetia a pergunta, com a mesma entonação com que o             fizera o Marques: 
            - Ué! ... Você já chegou?! ...
            O Oliveira ficou com cara de parvo.
            - Mas... que diabo de história! ... Já o Marques me perguntou a mesma coisa: e eu não estou percebendo nada... Você não quererá explicar-me o que isso significa? ...
            - É simples... Eu sonhei...
            - Mas... que história de sonho é essa?! Você está maluco?!... Que é que você sonhou! ... De que é que vale você ter sonhado?!
            - ...eu sonhei - continuou o Cardoso - que você se meteu numa revolução, em Matozinhos, chefiando um grupo de civis; que, perdida a revolução, você foi preso perto de Braga; e, tendo escapado, por milagre, de ser fuzilado, conseguiu, por fim, fugir para Espanha. Estava você, então, em Vigo, com intenções de embarcar para o Rio novamente.
            O Oliveira não cabia em si! Estava boquiaberto, com cara de bobo, completamente aparvalhado! ...
            - Mas - ... francamente... é extraordinário que se possa dar um acaso desses! ... - Ele chamava-lhe acaso ..., - Realmente, parece que você andou atrás de mim, há três meses a esta parte! Você tem estado sempre no Rio?! ...
            - Claro ... ainda daqui não saí, desde que, há mais de cinco anos, você embarcou para Portugal...
            Em 1913 para 1914, o Oliveira e o Cardoso tinham sido colegas de escritório, em uma companhia de seguros de vida, à rua da Carioca; e companheiros de quarto, em uma casa de família, à rua do General Câmara. Um dia, no quarto, brigaram os dois. O Cardoso vangloriara-se de ter praticado uma proeza donjuanesca, que, além de naturalmente nojenta, encerrava uma grande covardia; e o Oliveira, indignado, após uma pequena discussão, em que lhe verberara o procedimento, ameaçado por ele, de boxe, quebrara-lhe a cara!
            Com a intervenção das pessoas da casa, a questão ficou por isso mesmo; e os dois, mais tarde, fizeram as pazes, embora não tivesse voltado a reinar entre eles a amizade quase fraternal, que, até ali, os unira.
            O Oliveira, que sempre havia sido muito estimado por todas as pessoas da família, com quem os dois viviam, partira para Portugal, tempos depois, forçado pela doença; e acabava, agora, de voltar ao Rio, novamente, como emigrado político, após uma ausência de mais de cinco anos.
            Na noite da sua chegada, dormiu ele no quarto do Cardoso, por ser, já, demasiado tarde para procurar acomodações noutra parte. No dia seguinte, a dona da casa -- Mme. Louisá - referiu--lhe, como uma confirmação do que ele ouvira na véspera, que, haveria, cerca de um mês, o Cardoso contara, que tinha sonhado com ele, Oliveira, e descrevera, com as mais ínfimas minudências, a revolução em que este tomara parte, o fracasso dessa revolução, a sua prisão perto de Braga, a ameaça de fuzilamento, a fuga para Espanha, e, o que é mais, a própria intenção com que estava de voltar para o Rio!
            E, então - concluiu Mme. Louisá - manifestou um certo receio de que o senhor viesse novamente questionar com ele.
            - Bom; madame, Eu não venho com intenções de brigar com ninguém. O que houve, entre mim e o Cardoso, foi uma questão toda acidental, e provocada por ele. A infâmia que ele me contou fez-me mal aos nervos: a ameaça de me agredir a boxe aumentou a minha irritação, e, então, não me contendo, fui-lhe para a cara. Mas, isso já passou há muito. E a senhora sabe que eu não brigo com ninguém. Só quando me obrigam a isso, É caso liquidado ... O que me está preocupando agora é a história do sonho! É uma coincidência espantosa ... Ter ele sonhado precisamente o que se passou comigo! ... Veja a senhora o que é o acaso! ... 
            - Acaso, coisa nenhuma, seu Oliveira. O Cardoso tem constantemente sonhos dessa espécie, que se confirmam de uma forma surpreendente! Até parece obra do demônio! ...
            - Realmente; madame. - Se assim é, só mesmo por obra do demo.
            - Olhe; o senhor quer ver? Há tempos, o Cardoso contou-nos que tinha sonhado que a sua casa, em Portugal, ardera. Descreveu o incêndio em todas as suas fases; a atuação dos bombeiros e das autoridades policiais; os percalços por que, então, passou a família; tudo, enfim, como se em pessoa, lá tivesse estado! Pois bem. Não se passou um mês, e chega uma carta de Portugal, comunicando que a casa ardera, e descrevendo o incêndio quase pelas mesmas palavras de que ele se servira para nos contar o sonho! De outra ocasião, sonhou ele que o irmão havia morrido. Descreveu o enterro; disse nomes de parentes e de pessoas que lá se encontravam; revelou o percurso seguido pelo préstimo fúnebre ... Tomamos nota de tudo, incluindo os nomes das pessoas, por não se já a primeira vez que ele tinha desses sonhos; e, precisamente três semanas depois, chegou uma, carta, tarjada de luto, com a repetição, quase palavra por palavra, do que ele havia contado!!! ... Só o demônio! ... Concluiu a madame.
            - Só o demônio! ... -- Concordou o Oliveira.
            O Oliveira, como as demais pessoas que participaram dos fatos que estamos narrando, era católico.
            Alguns anos depois, a hora dele chegou ... Queremos dizer: O Oliveira, trazido pelo sofrimento, converteu-se ao Espiritismo. Estudou muito. E, então, achava imensa graça aquele demônio por meio do qual os sonhos do Cardoso davam assim tão certos ...
            - É que, realmente – dizia-nos ele - a história do demônio não pode explicar nada daquilo, por dois motivos principais, além de outros secundários: o primeiro é que, como nós sabemos o demônio não existe; o segundo é que, mesmo que ele existisse, é claro que não lucraria coisa nenhuma com essa brincadeira, e não iria perder o seu precioso tempo com coisas que lhe não dessem proveito. Qual seria o seu lucro em vir contar aqui fatos que se estavam passando a milhares de quilômetros de distância, e que, uma vez confirmadas serviriam tão bem aos espíritas para propagarem as suas teorias? ...
            A psicanálise, por sua vez -- é o Oliveira quem continua falando - só nos explica, com base segura, aqueles mesmos sonhos cuja explicação todos nós já sabíamos sem o auxílio das teorias de Breuer, ampliadas e propaladas por Freud; isto é: os que são o reflexo das proclamações do espírito, o produto daquilo que pensamos insistentemente durante o dia; e uns outros, que são tudo quanto há de mais absurdo e, consequentemente, menos explicável, e em que, portanto, a explicação se limita a indicar a causa que os produz. São os que provém do fato de nos deitarmos com o estômago sobrecarregado. Não há muito, por exemplo - é ainda o Oliveira que fala - eu sonhei que estava no Palácio do Ingá, em conversa muito agradável e muito íntima com o ilustre interventor Amaral Peixoto enquanto sua extremosa esposa, com extraordinária gentileza, e com a maior amabilidade, nos servia chá com biscoitos! Ora, como você compreende, isto é tudo quanto há ele mais tolo; é uma bobagem que não podia estar no meu subconsciente, pelo motivo simplíssimo de que eu nunca pensara em semelhante coisa. Como explicar, então, esse sonho? É que eu comera bem e me deitara logo em seguida; na véspera, assistira, em um cinema, a passagem de uma fita, em que aparecia o Comandante Amaral Peixoto, em visita a uma exposição, em Petrópolis, se a memória me não falha, E, então, em virtude da perturbação digestiva, o espírito associou e misturou todas essas coisas, produzindo, como resultado final, aquele disparate. É aí está o sonho razoavelmente explicado, com psicanálise, ou sem ela... Como explicar, porém, que uma pessoa, que está dormindo no Rio de Janeiro, possa ver, nitidamente e com toda a precisão, o que se está passando em Portugal, chegando até a adivinhar os pensamentos e as intenções das pessoas que lá estão!? É claro que não há psicanálise, nem perturbações digestivas que o expliquem. Telepatia, dirá a ciência. Mas, que é telepatia. É a transmissão do pensamento, à distância, responderá, ainda, a ciência, dando-nos o significado do vocábulo, sem nos poder explicar o fenômeno... Realmente, tal esclarecimento precisa de ser esclarecido; não adianta explicar uma palavra com um jogo de palavras, que não dizem mais nem menos... Adiantaria saber-se como o fenômeno se processa. Mas isso... só o Espiritismo o sabe e pode explicar.
            O Oliveira tinha razão. Realmente, a psicanálise, embora explicando alguma coisa, está muito longe de poder explicar tudo; e o seu mal maior é querer enquadrar todos os sonhos em teorias que estão longe de os poder abranger. No caso dos sonhos do Cardoso, por exemplo, a psicanálise falha inteiramente. E, então, só nos resta abrir o Livro dos Espíritos, no seu oitavo capítulo, e ir lendo o que os Espíritos nos ensinam:
            O Espírito jamais está inativo. Durante o sono afrouxam-se os laços que o prendem ao corpo, e, não precisando este, então, da sua presença, lança-se pelo espaço, e entra em relação mais direta com os outros Espíritos. Quando o corpo repousa tem o Espírito mais faculdades do que no estado de vigília. Lembra-se do passado, e, algumas vezes, prevê até o futuro. Adquire maior potencialidade, e pode pôr-se em comunicação com os demais Espíritos, quer desse mundo, quer do outro. Um sonho extravagante, um sonho horrível é, amiúde, uma recordação dos lugares e das coisas que vemos, que vimos, ou que amua haveremos de ver, em outras existências, ou em outras ocasiões. Quando dorme, o homem encontra-se, por algum tempo, no mesmo estado em que fica permanentemente quando morre.
            O capítulo é muito longo, e não poderíamos traze-lo todo pura aqui, limitando-nos, por isso, a aconselhar a sua leitura aos interessados. Mas, o pouquíssimo que aí fica, é bastante para podermos compreender os sonhos do Cardoso.
            Aliás, os Espíritos têm confirmado em muitos pontos essas lições que Allan Kardec nos transmitiu.
            Emmanuel, por exemplo, em seu livro "O Consolador", que nos deu, por intermédio de Francisco Cândido Xavier, assim se manifesta a esse respeito:
            Em determinadas circunstâncias, como nos fenômenos premonitórios, ou nos de sonambulismo, em, que a alma encarcerada alcança elevada percentagem de desprendimento parcial, o sonho representa a liberdade relativa do Espírito prisioneiro na Terra. É então que se pode verificar a comunicação inter vivos, e as visões proféticas. (Página 37).
            E, referindo-se à psicanálise freudiana, faz o seguinte comentário, repleto de sabedoria:  
            Essas escolas do mundo constituem sempre grandes tentativas para a aquisição das profundas verdades espirituais, mas os seus mestres, com raras exceções, perdem-se na, vaidade dos títulos acadêmicos, ou nas falsas apreciações de valores convencionais. Os preconceitos científicos, por enquanto, impossibilitam a aproximação legítima da psicologia oficial e do Espiritismo. Os processos da primeira falam da parte desconhecida do mundo mental, e chamam-lhe subconsciência, sem definir essa cripta misteriosa da personalidade humana, examinando-a apenas na classificação pomposa das palavras. Entretanto, somente à luz do Espiritismo, poderão os métodos psicológicos aprender que essa zona oculta, da esfera psíquica de cada um, é o reservatório profundo das experiências do passado, em existências múltiplas da criatura, arquivo maravilhoso, onde todas as conquistas do pretérito são depositadas em energias potenciais de modo a ressurgirem no momento oportuno,
            E assim se explicam, claramente certos sonhos, que, de outra forma não teriam nenhuma explicação; e se fica fazendo uma ideia do que seja o subconsciente, de que muitos falam, por aí, sem nos saberem explicar o que isso seja, e sem compreenderem mesmo, o que querem dizer.
            É a tal explicação de palavras com outras palavras, como acima dissemos, em que os fenômenos ficam sem explicação nenhuma...
                                                                                                                                 3-X-1943

Res Non Verba (Fatos e não palavras)
por Souza do Prado
Reformador (FEB) Janeiro 1944


IV

O senhor ganhou; e eu livrei-me de boa! ...


             - Eu queria uma receita; porque eu tenho...
            - Perdão, minha senhora; a mim, nada me interessa saber o que a senhora tem. Aliás, quem sabe o que tem pode se tratar a si mesmo, sem recorrer a terceiros...
            - Não; mas eu queria que o senhor me desse uma receita, para ver se se confirma o que o médico me disse.
            - Ah! Muito bem ... Então, a senhora fará o favor de ir bater a outra porta, porque o meu Guia tem mais que fazer, e... eu também ...
            - Mas, então, o Espiritismo não trata de doentes?!
            - Sem dúvida; daqueles que se querem tratar; não dos que vêm importunar os médiuns, para saber se o que o médico disse está certo. Nós não fazemos concorrência aos médicos, tratando dos doentes que com eles se querem tratar; limitamo-nos a cuidar daqueles que se querem tratar medianimicamente.
            Esse diálogo travava-se entre o Oliveira, e a D. Inesina Lopes de Sá, que fora procurá-lo em seu escritório, ao que parece, com o simples intuito de ver confirmado o diagnóstico, que lhe havia feito o seu médico assistente; mas que, logo de entrada, quase escangalhava tudo, pretendendo dizer o que tinha, ou, melhor: o que julgava ter...
            E, como ela insistisse em querer dizer o que tinha, já agora, ao que afirmou, para se tratar medianimicamente, o Oliveira pediu-lhe que nada dissesse, e explicou:
            - Eu sou médium intuitivo; e, como conheço alguma coisa de homeopatia, se a senhora disser o que julga ter, haverá dois prejuízos: o primeiro é que eu logo me lembraria de vários medicamentos, que poderão ser aplicáveis ao seu caso; e quando me concentrar, se o meu Guia me indicar algum desses medicamentos, não poderei saber se realmente se trata de uma sugestão sua, ou se o nome do medicamento me veio à ideia por eu já ter pensado nele; o segundo é que, como geralmente sucede, a senhora pode estar enganada, e induzir-me a erro. Ao passo que, se nada me disser, estou certo de que os medicamentos, que me vierem à mente, serão exatamente os que a senhora precisa de tomar.
            A doente conformou-se; e o Oliveira, concentrando-se, recebeu a indicação clínica aplicável ao caso. Em seguida, virando-se para a senhora, disse-lhe:
            - Pode falar, agora, à sua vontade; dizer tudo o que quiser.
            - Bom; é que eu estou com apendicite, e queria saber se é mesmo indispensável fazer a operação.
            O Oliveira encarou-a, algum tanto desapontado; e, após uma pequena pausa, disse-lhe, como quem tem plena certeza do que afirma:
            - Mas, a senhora não tem apendicite nenhuma. A única coisa terminada em ‘ite’, que a está molestando, é um princípio de sinusite...
            - Efetivamente, eu sinto, a todo o momento, dores de cabeça; e, à mais leve mudança de temperatura, ou corrente de ar, estou com o nariz correndo; mas, o que me incomoda mais é a dor que sinto aqui.
            E apontou para o lado direito do ventre.
            - Mas, isso, - disse-lhe o Oliveira - é porque o seu fígado também não está bom. No apêndice é que não há nada; posso lhe garantir.
            Então, a D. Inesina voltou-se para o Oliveira, e, com um sorriso, em que se notava uma leve ponta de ironia, respondeu-lhe:
            - É.. meu caro senhor; mas o Dr. F... e pronunciou o nome de um médico muito conhecido - já marcou o dia para a operação; e eu tenho mesmo apendicite! O resultado do exame de raios-X está aqui...
            E estendeu ao Oliveira um cartão, com data de 12-XI-1942, em que ele leu, depois do nome da doente, o seguinte: "Região examinada: Ceco-apêndice. Diagnóstico: Sinais radiológicos de triplo-apendicite, e colite do transverso."
            - Realmente, minha senhora, - disse ele, com a maior calma, e com um sorriso idêntico ao que lhe havia notado - eu conheço pessoalmente esse cirurgião e não tenho notícia de que ele tenha errado qualquer diagnóstico; mas... desta vez, enganou-se...
            - E a radiografia?! ...
            - A radiografia, minha senhora, não quer dizer coisa nenhuma... não há duas pessoas que tenham todos os órgãos colocados precisamente na mesma posição; e, além disso, eles se encontram sobrepostos, e não é possível, pois, olhando através do ventre, ver qualquer deles, ou uma de suas partes componentes, insuladamente. O apêndice aparece confundido com uma grande parte dos intestinos, por baixo do cólon transverso e à esquerda do cólon ascendente, ficando-lhe à retaguarda o rim direito. Distinguir, através de tudo isso, uma simples inflamação no apêndice é coisa um tanto problemática... A radiografia é de efeito seguro para localizar um corpo estranho, como, por exemplo, uma bala; para verificar se existe fratura de algum osso, ou coisa semelhante; para o resto... é pouco mais ou menos...
            Na sua receita não veio nenhum dos medicamentos aplicáveis aos doentes de apendicite; logo... não há apendicite... Tome esses medicamentos durante oito dias, e veja o resultado.
            A doente saiu, e o Oliveira não pensou mais no caso. Isso se passou em 20 de Novembro.
            No dia 30 desse mesmo mês, o médium foi novamente procurado pela D. Inesina, que, muito satisfeita, foi dizendo, logo de entrada:
            - O senhor ganhou; e eu livrei-me de boa!..
            - Muito me conta... - Disse-lhe o Oliveira, um tanto sarcástico. - Mas, que houve?
            - O que houve foi o seguinte: conforme o senhor me aconselhou, eu tomei os remédios daquela receita, e não senti mais nada. Então, ontem, voltei ao médico, e disse-lhe que, como o Natal está próximo, eu desejava adiar a operação para Janeiro. Ele respondeu-me que não podia ser; que o meu estado oferecia cuidados; que, de um momento para o outro, podia manifestar-se a peritonite; e, enfim, que se não responsabilizava pelo que pudesse suceder, mas, então, informei-o de que estava melhor; que não sentia mais nada; e ele respondeu-me que isso não era possível, e pediu-me que me deixasse examinar, eu acedi, e notei que, no seu rosto, se estampava, primeiro a surpresa, e depois a estupefação; e disse-me: “É extraordinário! Vamos fazer outra radiografia.”
            E a outra radiografia está aqui; veja.
            O Oliveira pegou no cartão, e leu:
            “Região examinada: Colecistografia. Diagnóstico: Aspecto normal."
            Conforme ele afirmara, a apendicite não existia...
                                                                                                                      25-XII-43

Res Non Verba (Fatos e não palavras)
por Souza do Prado
Reformador (FEB) Fevereiro 1944

V

Duas curas a um só tempo

            No escritório do Oliveira, entrou um cavalheiro, todo enfatuado, com ares de “sabe com quem está falando!”, e em atitude de quem vai dar ao médium a honra de lhe pedir uma receita; e, empertigando-se o mais que lhe foi possível, começou:
            O meu amigo, Júlio Taveira, disse-me que, se eu aqui viesse, o senhor me daria remédio para a minha doença.
            - Eu, não - que não sou médico -; mas o meu bom Guia espiritual poderá, realmente, indicar-lhe o tratamento que o senhor precisa fazer.
            - O senhor quer, então, ver uma receita para mim?
            - Pois não; com todo o prazer. Como se chama o senhor?
            - Chamo-me Doutor Benedito Ferreira.
            - Nome esquisito. - Disse o Oliveira, que, tendo notado o ar excessivamente pretencioso do visitante, decidira ridicularizá-lo, por entender que era esse o melhor meio de cura para aquela espécie de doença psíquica...
            - Nome esquisito?!... Porquê?
            - Porque eu nunca conheci ninguém, que se chamasse Doutor...
            - Pois, eu não me chamo Doutor! - Retrucou o homenzinho, já meio irritado. - Mas, sou advogado.
            - Ah! bom ... Mas eu não lhe perguntei pela profissão. Só desejava saber como o senhor se chama, para poder tirar a receita.
            Quer dizer, então, que o senhor se chama Benedito Ferreira. Pois, multo bem, senhor Benedito; vamos ver o que me sugere o meu Guia, para o seu caso.
            E o Oliveira, concentrando-se, recebeu, do seu Guia espiritual, as indicações necessárias ao tratamento daquele homem duplamente enfermo...
            - Prontinho; senhor Benedito. O senhor toma esses medicamentos, e Deus há de permitir que o senhor melhore.
            - E, para que servem esses medicamentos?
            - Para tomar dois tabletes, de hora, em hora, alternando...
            - Não é isso! - Voltou o doutor, cujo irritação aumentava, à medida que mais se convencia de que o médium lhe não ligava toda a importância a que ele se julgava com direito. - O que eu quero saber é para que doença são esses medicamentos.
            - Ah! bom ... Agora compreendo. O que o senhor quer é um diagnóstico.
            - Perfeitamente.
            - Pois, muito bem, meu caro senhor Benedito. Em Homeopatia, não há doenças, há doentes; por isso, e por vários outros motivos, que levaria tempo a explicar-lhe, os Espíritos, como os médicos homeopatas conscienciosos, só em raríssimos casos, fornecem diagnósticos clínicos. Tome, meu amigo, esses medicamentos, e verá o resultado. Mesmo, porque, em última análise, o que poderá curá-lo são os remédios, e não os diagnósticos...
            - Mas, é que, como o senhor poderá compreender, se eu obtivesse um diagnóstico certo, naturalmente, me interessaria pelo estudo do Espiritismo; e isso, para a Doutrina, que o senhor adota, seria bastante proveitoso...
            Como se vê, o Dr. Benedito era muito mais tolo do que parecia à primeira vista! Isso fez que o Oliveira reconhecesse a necessidade de ampliar a lição, que já começara a dar-lhe, e com esse intuito, então, respondeu-lhe:             
            - Isso quer dizer que o senhor se convenceu de que o Espiritismo está precisando da sua muita importância?! ... Não, meu amigo; no Espiritismo há pessoas muito mais importantes que o senhor e a Doutrina não depende delas para nada. Como o senhor poderá compreender, Deus não precisa de nós; nos é que precisamos de Deus.
            - Mas, - disse o homenzinho, visivelmente humilhado, e tendo perdido, já pelo menos, a metade da pose com que começara - como me hei de me convencer de que é verdade o que afirmam os espíritas? Só vendo fatos que me demonstrem...
            - E eu lamento sinceramente ter de lhe dizer que o senhor não assistirá a nenhum fato que possa convencê-lo. Os Espíritos não são lacaios que estejam às nossas ordens quando nós queremos, e para o que nós queremos. l!;, depois, eu creio que ao contrário do que o senhor parece supor, eles não estarão assim tão interessados em conseguir a sua adesão a uma Doutrina, que, até agora tem vivido perfeitamente, e progredido de um modo extraordinário, sem o seu importante concurso...
            O caminho terá que ser outro. Desde que o único interessado é o senhor, eu lhe aconselho que vá à Livraria da Federação Espírita, e adquira e leia ‘O Livro dos Espíritos’ e o ‘Livro dos Médiuns’, de Allan Kardec, que são as obras básicas da Doutrina.
            - Allan Kardec?..
            - Sim; Allan Kardec. Esse missionário iluminado, predestinado por Deus para receber dos Espíritos, e coligi as elucidações que serviram de base à Doutrina da Terceira Revelação; esse missionário iluminado, que, não sendo, é claro, um Deus, a quem devamos prestar culto de adoração - visto que é simplesmente um irmão nosso, embora já em outro plano de adiantamento - é, no entanto, e será sempre, a figura primacial do Espiritismo, como seu fundador e codificador. É de seus livros que derivaram, e continuam derivando, todas as outras obras espíritas e, o que estiver em desacordo com eles não será Espiritismo. 
            Em seguida, se, como é provável, o senhor vier a interessar-se pela parte religiosa do Espiritismo, poderá ler, com grande proveito, ‘0s Quatro Evangelhos’, igualmente ditados pelos Espíritos, e recebidos e coligidos por J. B. Roustaing - outro missionário iluminado - cuja obra, segundo palavras do próprio Allan Kardec, “tem o mérito ele não estar, em ponto algum, em contradição com a doutrina ensinada pelo ‘Livro dos Espíritos’ e com o ‘Livro dos Médiuns’; e só não é o complemento da do Codificador, porque, sendo o Espiritismo uma Revelação progressiva, não pode ter um complemento, que, como é lógico, viria pôr um termo no seu desenvolvimento e ao seu progresso.
            O Dr. Benedito saiu completamente desapontado! ... Não era aquilo que ele esperava...
            Mas, como a ciência oficial já o havia desenganado, e ele não tinha mais para quem apelar, resolveu descer do alto das tamancas da sua muita importância, e tomar os medicamentos que um nosso bom
            Melhorou tanto, que resolveu seguir o conselho do médium, quanto à leitura das obras básicas do Espiritismo!..
            Isto foi há dois anos. Hoje, o Dr. Benedito Ferreira está completamente curado da sua doença física; e, quanto à doença psíquica a mudança foi tão radical, que já não diz a ninguém que se chama Doutor e, aquele ar pretensioso, que o tornava extremamente caricato, desapareceu por completo, permitindo-lhe transformar-se numa criatura extraordinariamente simples, amável e boa.
            É, hoje, um grande amigo do médium, e um excelente confrade de todos nós...
            Nesta narração - absolutamente autêntica, como as anteriores - por motivos facilmente compreensíveis, substituímos, por um nome suposto, o verdadeiro nome da personagem principal.

                                                                                                                      30-1-944.

            Post scriptum - Alguém telefonou para a redação do REFORMADOR, afirmando, ao que parece, por indicação de um médico, que, no nosso quarto artigo desta série, havia um grave erro, porquanto colecistografia é a radiografia da vesícula e não do apêndice.
            Ora, antes do mais, nós desejamos deixar bem claro que, ao narrar estes fatos - absolutamente autênticos -, não nos move qualquer intuito de menosprezar esta ou aquela classe; caso em que, aliás, nem o REFORMADOR os publicaria. O nosso escopo é demonstrar, ainda uma vez, que o Espiritismo se baseia em fatos; e que os espíritos; e que os espíritos desencarnados podem acertar com tanta facilidade, como os encarnados podem errar, por maior que seja a sua real sabedoria ou prosápia científica.
            Posto isso, seja nos permitido reafirmar que da nossa narrativa, absolutamente autêntica, como acima dizemos, se verifica que, realmente, a doente não tinha apendicite; tanto que o cirurgião, depois de novo exame, mandou fazer outra radiografia, para melhor verificar se havia, ou não, erro no seu diagnóstico anterior; e acabou não operando a doente.
            E nós, que somos jornalista, e nada entendemos de medicina, não conhecendo, pois, a terminologia médica; não sabemos o verdadeiro significado do vocábulo colecistografia, nem dispomos, no momento, de elementos para o decifrar. O que é verdade, porém, é que, se o cirurgião pediu um exame, errado para o caso, ou se o radiologista errou ao fornecer-lhe o exame que ele pediu, há, então, mais esse erro a juntar ao diagnóstico, e a corroborar a sentença errare humanum est. 

quarta-feira, 12 de agosto de 2020

Res, Non Verba




Res Non Verba (Fatos e não palavras)
por Souza do Prado
Reformador (FEB) Setembro 1943

II
Um caso como muitos

            Estava o Silva, sentado à sua escrivaninha, escriturando o grande “Diário”, que tinha, aberto, à sua frente, quando sua atenção foi distraída pelo modo aflitivo com que o Guerra respondia ao que lhe diziam pelo telefone.
            - Mas... como fez você isso?
            - ...
            - Como? Que diz você?!
            - E o médico, que disse?
            - Não escapa?!
            - Dois médicos?!.. Valha-me Deus!.. Eu vou já para aí.
            E o Guerra, completamente transtornado, pousara o auscultador no respectivo gancho.
            - Que foi? Guerra – perguntou ao Silva, muito interessado.
            - Imagine você: a minha sobrinha andava passando mal e minha irmã resolveu leva-la ao médico. Feito o devido exame, receitou-lhe ele umas gotas para tomar, de duas em duas horas e outras para pingar no nariz de manhã e a noite. Minha irmã, aviada a receita, iniciou o tratamento. Infelizmente, a menina começou a piorar, de nora para nora, até que minha irmã já assustada com o estado da filhinha, resolveu mandar chamar o mesmo médico a quem antes a levara. Depois de um demorado exame, disse ele que havia uma intoxicação muito grave e em estado adiantadíssimo: e, após um ligeiro interrogatório, chegou à conclusão de que minha irmã trocara os medicamentos, dando internamente as gotas que deveria pingar no nariz, e vice-versa! Ora, como o medicamento de uso externo era tóxico, ela estivera a envenenar a filhinha, lentamente, de duas em duas horas durante quarenta e oito horas seguidas!
            - O médico propôs que se chamasse um colega, e os dois, em conferência, concluíram que a menina não tem salvação possível!
            Não há mais nada a fazer! - concluiu o Guerra, com as lágrimas a rebentarem-lhe pelos olhos fora.  
            - Espera, filho; tem calma! - disse-lhe, confiadamente, o Silva, que era médium-receitista. - Enquanto há vida, há esperança. E, quando Deus permite, só os absurdos são impossíveis. Se os médicos desenganaram, dessa forma, nada perderemos nós em tentar, por todos os meios ao nosso alcance, salvar a menina, desde que poderemos fazê-lo sem nenhum risco de lhe aumentar os sofrimentos, e, até, pelo contrário, aliviando-lhes, mesmo quando não conseguíssemos salvá-la. Queres que peça uma receita ao meu Guia?
            - Sem dúvida! - respondeu o Guerra. - Se você vê que inda pode fazer alguma coisa,
porque não tentar?..
            E o Silva, concentrando-se, pediu a assistência do seu guia espiritual, e escreveu: “Dissolva sabão em água, e dê a beber, o mais depressa possível. Meia hora depois, dê a beber, o mais depressa possível. Meia hora depois, dê Nux Vomica 5 e Beladona 5, alternados, de meia em meia hora, duas gotas para uma colher de sopa de água, durante seis horas; depois, dê de hora em hora.”
            O Guerra tomou um taxi, correndo à farmácia, em busca dos medicamentos, que, entretanto, o Silva mandou aviar, pelo telefone. E, chegado, que foi, à casa, medicou, de acordo com as instruções que recebera, a doentinha, cujo estado era, realmente, gravíssimo.
            No dia seguinte, o médico, quando chegou, ficou surpreendido com o estado da enferma.
            - Que deram a esta menina?!
            - O que o doutor receitou.
            - Não pode ser! O medicamento que eu receitei destinava-se a minorar lhe o sofrimento, mas não poderia salvar-lhe a vida; e a menina está salva! A. intoxicação desapareceu!
            Não houve outra coisa a fazer senão contarem-lhe o que se passara; e ele, vendo a receita espírita, disse simplesmente, como quem está sonhando:     
            - Água com sabão! ...
            Quarenta e oito horas depois, a doentinha brincava, como se nada lhe tivesse acontecido...
            Conforme sucedeu com a nossa narração anterior - Não há efeito sem causa - também no caso que hoje, narramos, tudo é autêntico, incluindo os nomes dos personagens. O mesmo sucederá - a não ser quando haja qualquer impedimento quanto aos nomes - com todas as narrativas desta série, que nos propusemos a escrever, atendendo a uma gentil sugestão do nosso bom amigo e distinto confrade Almerindo Martins de Castro.
Niterói, 5-IX-1943



segunda-feira, 10 de agosto de 2020

Não há efeito sem causa





Não há efeito sem causa
por Souza do Prado
Reformador (FEB) Agosto 1943

            - Coitados! Imagine Você, que infelicidade! Morreu, ontem, um estivador, que eu conhecia, e deixou a mulher e dois filhinhos, um de seis, e outro de oito anos, na mais extrema miséria.
            Quem assim falava era Loureiro, que acabava de chegar da rua, do serviço de cobrança, dirigindo-se ao guarda-livros, o Silva, que havia algum tempo ingressara no Espiritismo.
            - Ora, meu amigo - respondeu este último - não se aflija; ninguém faz falta, neste mundo. Nós só pagaremos o que devermos; e não me consta que seja crime dos filhos o fato de lhes morrerem os pais.
            - Não entendo!
            - É fácil de entender. Há uma lei de causa e efeito segundo a qual nada pode suceder sem uma causa determinada. De acordo com essa lei é que nós reencarnamos, para pagar as faltas cometidas em encarnações anteriores; e, pois, nada do que nos sucede neste mundo é obra do acaso ou da fatalidade, mas sim a consequência dos atos que tivermos praticado no passado. Não poderemos, portanto, sofrer, seja o que for, senão em consequência dos nossos próprios atos. Essas duas crianças, a que você se referiu, nada sofrerão, pois, pelo fato de lhes ter morrido o pai. Se praticaram faltas graves, terão que as pagar, e pagá-las-iam com o pai vivo ou morto; se as não praticaram, não irão sofrer somente pelo fato de o pai ter morrido.
            - Coisas muito bonitas em teoria. Mas... o pior é que, na prática, não adiantam nada.
            - Não é bem isso, Loureiro. Você conhece, certamente, muitas crianças, órfãs de pai, a quem nada falta; e muitas outras que, com os pais vivos, se fartam de passar fome e privações de toda a espécie. Porque será que isso sucede?
            - Bom; eu não sei porque isso sucede. O que sei é que esses dois meninos, embora pobremente, iam vivendo; e, agora, que o pai lhes faltou, irão passar muita fome.
            - Pode ser que isso suceda, meu caro Loureiro. Não digo o contrário; somente afirmo que, se suceder, não será devido ao fato de o pai lhes ter morrido. A previdência dos homens nada vale, meu amigo. Por isso, diz a sabedoria popular que o homem põe e Deus dispõe. Você não conhece nenhum caso de pessoas, que pagaram prêmios de seguros, anos seguidos, sem que nada lhes tenha sucedido; mas que, tendo-se, atrasado, um dia, no pagamento do prêmio do seguro, a casa ardesse precisamente nesse momento? Não conhece? Pois, conheço eu. Já tive conhecimento de três casos desses. Eram pessoas que tinham que passar por essa provação e... passaram, a despeito de todas as previdências humanas.
            - Mas, Silva, isso é fatalismo! ...
            - Não; não é. É a certeza de que pagaremos tudo o que devermos, e de que não pagaremos nada que não devamos. O que temos a fazer é, naturalmente, lutar por todos os meios honestos, para fugir às provações; mas, se, a despeito disso, as não pudermos evitar, resignemo-nos, lembrando-nos de que estamos pagando o que fizemos e não o que qualquer outra pessoa faça ou tenha feito.
            Nesse momento, abriu-se a porta do escritório e o chefe da casa, o Sr. Maurice, entrando, dirigiu-se aos dois, que assim conversavam, perguntando-lhes:          
            - Vocês, por acaso, conhecerão uma mulher honesta, que saiba cozinhar umas coisas simples - o trivial - e que quisesse ir para minha casa, para ficar tomando conta da minha garotinha, quando tenho que sair com minha mulher?
            - Conheço - informou imediatamente o Silva. Conheço uma, mas tem dois filhos ainda pequenos.
            - Tanto melhor - disse o Sr. Maurice.
            Eu me encarregarei da educação dos filhos e assim, ela será mais dedicada.  
            - Então, o Silva, com a alma vibrando de emoção, voltou-se para o seu companheiro de trabalho, dizendo-lhe:
            - Loureiro, mande, amanhã mesmo à casa do Sr. Maurice, aquela senhora, viúva do seu amigo estivador...

sábado, 9 de maio de 2020

Não há efeito sem causa



Não há efeito sem causa
por Souza do Prado  
Reformador (FEB) Agosto 1943

            - Coitados! Imagine Você, que infelicidade! Morreu, ontem, um estivador, que eu conhecia, e deixou a mulher e dois filhinhos, um de seis, e outro de oito anos, na mais extrema miséria.

            Quem assim falava era o Loureiro, que acabava de chegar da rua, do serviço de cobrança, dirigindo-se ao guarda-livros, o Silva, que havia algum tempo ingressara no Espiritismo.

            - Ora, meu amigo - respondeu este último - não se aflija; ninguém faz falta, neste mundo. Nós só pagaremos o que devermos; e não me consta que seja crime dos filhos o fato de lhes morrerem os pais.

            - Não entendo!

            - É fácil de entender. Ha uma lei de causa e efeito, segundo a qual nada pode suceder sem uma causa determinada. De acordo com essa lei é que nós reencarnamos, para pagar as faltas cometidas em encarnações anteriores; e, pois, nada do que nos sucede neste mundo é obra do acaso ou da fatalidade, mas sim a consequência dos atos que tivermos praticado no passado. Não poderemos, portanto, sofrer, seja o que for, senão em consequência dos nossos próprios atos. Essas duas crianças, a que você se referiu, nada sofrerão, pois, pelo fato de lhes ter morrido o pai. Se praticaram faltas graves, terão que as pagar, e paga-las iam com o pai vivo ou morto; se as não praticaram, não irão sofrer somente pelo fato de o pai ter morrido.

            - Coisas... muito bonitas em teoria. Mas... o pior é que, na prática, não adiantam nada.

            - Não é bem isso, Loureiro. Você conhece, certamente, muitas crianças, órfãs de pai, a quem nada falta; e muitas outras que, com os pais vivos, se fartam de passar fome e privações de toda a espécie. Porque será que isso sucede?

            - Bom; eu não sei porque isso sucede. O que sei é que esses dois meninos, embora pobremente, iam vivendo; e, agora, que o pai lhes faltou, irão passar muita fome.

            - Pode ser que isso suceda, meu caro Loureiro. Não digo o contrário; somente afirmo que, se suceder, não será devido ao fato de o pai lhes ter morrido. A previdência dos homens nada vale, meu amigo. Por isso, diz a sabedoria popular que o homem põe e Deus dispõe. Você não conhece nenhum caso de pessoas, que pagaram prêmios de seguros, anos seguidos, sem que nada lhes tenha sucedido; mas que, tendo-se, atrasado, um dia, no pagamento do prêmio do seguro, a casa ardesse precisamente nesse momento? Não conhece? Pois, conheço eu. Já tive conhecimento de três casos desses. Eram pessoas que tinham que passar por essa provação e... passaram, a despeito de todas as previdências humanas.

            - Mas, Silva, isso é fatalismo! ...

            - Não; não é a certeza de que pagaremos tudo o que devermos, e de que não pagaremos nada que não devamos. O que temos a fazer é, naturalmente, lutar por todos os meios honestos para fugir ás provações; mas, se, a despeito disso, as não pudermos evitar, resignemo-nos, lembrando-nos de que estamos pagando o que fizemos e não o que qualquer outra pessoa faça ou tenha feito.

            Nesse momento, abriu-se a porta do escritório e o chefe da casa, o Sr. Maurice, entrando, dirigiu-se aos dois, que assim conversavam, perguntando-lhes:

            - Vocês, por acaso, conhecerão uma mulher honesta, que saiba cozinhar umas coisas simples - o trivial - e que quisesse ir para minha casa, para ficar tomando conta da minha garotinha, quando tenho que sair com minha mulher?

            - Conheço - informou imediatamente o Silva. Conheço uma, mas tem dois filhos ainda pequenos.

            - Tanto melhor - disse o Sr. Maurice. Eu me encarregarei da educação dos filhos e, assim, ela será mais dedicada.  

            - Então, o Silva, com a alma vibrando de emoção, voltou-se para o seu companheiro de trabalho, dizendo-lhe:

            - Loureiro, mande, amanhã mesmo à casa do Sr. Maurice, aquela senhora, viúva do seu amigo estivador...

*

            Oito dias depois, o Loureiro estava plenamente convencido de que o Silva tinha razão. O seu amigo estivador, morrendo, nada contribuíra para o sofrimento dos filhos. Até se tivesse contribuído, seria para o contrário. Daí em diante, os dois pequenos só andavam de automóvel; tinham brinquedos dos melhores e foram educados no Liceu Francês!           

            É claro que o Loureiro, embora impressionado com o caso, não deixava de afirmar que tudo aquilo sucedera por acaso... É natural. O pior cego é o que não quer ver.

            Nesta história, tudo é verdadeiro, até os nomes dos personagens.


quinta-feira, 30 de abril de 2020

Os vendilhões do templo



Os vendilhões do templo
por Souza do Prado
Reformador (FEB) Junho 1929

            No nosso artigo anterior, afirmamos que “infelizmente, não é só no Catolicismo que se verifica a exploração das crenças alheias, visto que também, entre os que se dizem Espiritistas, há quem pretenda explorar a religião”, e prometemos, então, tratar destes últimos no presente artigo.

            E o que vimos fazer, não deixando, porém, de frisar novamente.- para que se lhe atribuam ao Espiritismo crimes que se lhe não podem atribuir - que, enquanto a Igreja Católica é a única responsável pela exploração do Catolicismo, porquanto é ela mesmo quem estabelece a tabela de preços para os serviços religiosos; no Espiritismo não se dá o mesmo, porque, quem receber qualquer importância a troco de preces, de receitas ou de quaisquer outros serviços medianímicos, está em completo desacordo com a doutrina, que nos manda “dar de graça o que de graça recebemos”, e, consequentemente, não é Espiritista.

            Somos daqueles que estão convencidos de que é necessário abrir os olhos ao povo, para que se não deixe explorar pelos charlatães de todas as religiões, o que não só o prejudica enormemente, como também faz que ele contribua, com o seu dinheiro e com a sua presença, para que se perpetuem crimes - chamemos-lhes assim, porque é esse o seu verdadeiro nome -; que, de há muito deveriam ter deixado de ser cometidos.

            Reputamos, pois, como verdadeiro serviço prestado à humanidade, o esclarecer aqueles que - por ignorância, por falta de tempo, ou por despreocupação absoluta por coisas que muito lhes deveriam interessar - desconhecem o erro em que caem, a exploração de que são vítimas e o indevido concurso que, contra os seus próprios interesses, prestam a tais abusos, e a quem conscientemente os comete.

            “Prometemos não citar os nomes, e não os citaremos, não só porque isso nos faria descambar para o terreno do ataque pessoal - que é o que mais desejamos evitar, por preferirmos combater fatos a combater pessoas -, mas também porque, se citássemos nomes, poderia alguém supor-nos o propósito de prejudicar aqueles a quem nos referíssemos, em proveito de outros a quem deixássemos de nos referir por nem sabermos que eles existem.

            Nas nossas palavras, pois, não há qualquer propósito - nem poderia havê-lo - que não seja o de “expulsar os vendilhões do Templo”, para que os incautos se não deixem explorar por eles.

            Há cerca de um mês, vimos, no ‘Jornal do Brasil’ - que, nas páginas cuja matéria ele paga, faz a defesa cerrada do Catolicismo, enquanto que, nas páginas cuia matéria lhe pagam, publica anúncios, que poderiam ser mui prejudiciais ao Espiritismo, se alguma coisa houvesse que pudesse prejudicar a causa de Deus - um anúncio, que dizia assim: “MÉDICO ESPÍRITA - Dr. Fulano (o nome de um médico completamente desconhecido) - Rua (uma das ruas mais centrais da cidade, perto da Avenida Rio Branco) - Das 13 às 16 horas.”

            Pareceu-nos que aquele anúncio encobria uma exploração torpe e fomos verificar.         

            Introduzido no “consultório” do médico - um cavalheiro de idade madura, com uma barbicha que o faz parecer alemão -, dissemos-lhe que, tendo consultado os melhores médicos do Rio de Janeiro, por nos encontrarmos muito doente, tínhamos já desanimado da cura, porque cada vez nos sentíamos pior; mas que, tendo visto o seu anúncio, resolvêramos tratar-nos pelo Espiritismo e, assim, o tínhamos ido procurar para lhe pedir uma receita.

            - Sim, senhor; - disse-nos o suposto esculápio - queira sentar-se.

            - Mas - dissemos-lhe nós - eu desejava, antes de o Dr. Receitar, que fizesse o obséquio de me informar se costuma cobrar as receitas Espiritistas.

            - Sim, Senhor! - tornou o “médico espírita” - cobro trinta mil réis por cada receita!

            E nós, que nem nos sentáramos mas que já sabíamos o que desejávamos saber, dissemos simplesmente:

            - Nesse caso, voltarei em outra ocasião, visto que não estou prevenido para lhe pagar...

            Queríamos poder ter-lhe dado uma lição de moral, dizendo-lhe meia dúzia de verdades, mas, infelizmente, o asco que nos causou o cinismo do charlatão, impediu-nos de proferir mais qualquer palavra.

            Porque, diga-se de passagem, para que o fiquem sabendo aqueles que desconhecem o significado das palavras da língua portuguesa: charlatães não são os que gratuitamente recebem receitas dos Espíritos, e as dão pelo mesmo preço aos que delas necessitam; Charlatães são os que por qualquer forma e sob qualquer pretexto, exploram a credulidade alheia.

            E é o que faz o tal “médico espírita”; não tendo competência nem capacidade para ganhar a vida honestamente servindo-se do que aprendeu - se é que aprendeu alguma coisa – anuncia receitas espíritas, para explorar o Espiritismo, de que inda entende menos do que de medicina...

*
            Numa rua que desemboca em Haddock Lobo, perto da Rua Campos Salles, há um outro -- esse não é “médico espírita”, é simplesmente “médium” -, que recebe os doentes,
mui confidencialmente, no seu palacete, construído talvez à custa dos papalvos (tolos), e que, depois de ouvir do doente toda a descrição de seus padecimentos, se recolhe a um outro aposento, segundo diz, “para consultar os espíritos”. No entanto, o que vai fazer é consultar qualquer desses vulgaríssimos guias de medicina homeopática, enquanto o doente previamente industriado por quem lhe indicou o “médium”, coloca dez ou vinte mil réis em um vaso posto, para esse fim, sobre uma coluna existente no “consultório” ...

            E, não contente com essa exploração, inda receita em papel com o timbre de uma farmácia do centro da cidade, para, segundo presumimos, ir depois receber a sua comissão sobre os medicamentos vendidos por seu intermédio.

            O que é interessante, porém, é que o “médium”, quando sai do aposento, onde vai tirar a receita, volta de óculos, o que nos faz concluir que, para consultar os “espíritos”, precisa de os ver através das vidraças...

            Dessa exploração fomos nós vítimas quando inda éramos Católico. Podemos, pois, afirmar, sem receio de desmentido.

*

            Numa farmácia homeopática, situada bem próximo à Federação Espírita Brasileira, dá consultas um outro charlatão - esse é coxo e usa muleta-, que receita, com grande espalhafato, medicamentos homeopáticos, de mistura com um óleo e outras drogas de seu fabrico. Indo cada receita a trinta ou quarenta mil reis.

            O dono dessa farmácia, que se diz Espiritista e médium receitista, interpelado por nós a esse respeito, disse-nos, um dia, que “bem sabia que aquilo era charlatanismo, mas que essa era a parte comercial do negócio”!

            Realmente ele vive muito melhor depois que começou essa exploração, do que vivia até aí, e só nos admiraram as suas palavras até o dia em que deixamos de gastar dessa farmácia, por termos visto uma receita dele mesmo, do “médium receitista” que assim nos falara, que dizia o seguinte, a seguir ao nome da doente: “Laurus persea (tintura mater), - Persea gratissima (tintura mater), para alternar de hora em hora durante 6 dias.

            Foi então que nós compreendemos como é que esse “espírita) podia admitir o “outro” explorando a credulidade alheia dentro de sua própria farmácia ; é que ele mesmo também é “charlatão”; também explora a credulidade de seu próximo, visto que Laurus persea e Persea gratissima são sinônimos, são a tintura das folhas do Abacateiro; o que quer dizer que aquele “médium receitista”, quando está recebendo receitas, está pensando na melhor forma de extorquir ao doente seis mil reis, em vez de, três!..

            Ou, então, o “espírito” que lhe dá as receitas não entende nada do assunto, e ele, em vez de farmacêutico, não passa de simples lavador de frascos... 

*

            Nem só esses, porém, são dignos de lástima - que é caso mais para os lastimar que para os condenar. Há um outro assunto digno de atenção. São as “cartomantes espíritas”.

            Só em uma página do ‘Jornal do Brasil’, e seguidinhos na mesma coluna encontramos nós nada menos de doze anúncios, qual deles o mais cheio de sandices, chamando a freguesia, a quem se propõem dizer o passado e o presente, e revelar o futuro, a troco de quantias que variam entre dois e cinco mil reis!

            E, enquanto a polícia e a medicina oficial perseguem os verdadeiros médiuns, porque, com todo o direito praticam a Religião da Caridade, “dando de graça o que de graça recebem”, esses outros, os exploradores da medicina, da farmácia, do Espiritismo e da credulidade alheia, proliferam por aí, como verdadeiras quadrilhas, enchendo as algibeiras, e rindo-se daqueles que, preocupando-se de mil futilidades, se desinteressam lamentavelmente de saber donde vieram, ao que vieram e para onde vão. 

            Se se preocupassem de o saber estudariam necessariamente a doutrina Espiritista, e  ficariam, assim, aptos a defender-se da exploração desses “vendilhões”, que é necessário “expulsar do Templo”, a todo transe, para que se não julgue o Espiritismo conivente com eles...

            É com esse intuito que estamos prevenindo os incautos contra as explorações das cartomantes espíritas, dos médicos espíritas, e dos farmacêuticos espíritas, que nunca foram nem são e jamais serão senão, simples charlatões, exploradores da boa-fé dos que “andam no mundo por ver andar os outros”...