Significação
da palavra morte
Indalício Mendes
Reformador
(FEB) Novembro 1951
And Life, still wreathing flowers for Death to wear. - Rossetti
Seja lá o que for a vida, é para nós uma abstração: porque essa
palavra constitui um termo geral indicativo duma coisa comum a todos os animais
e plantas, mas não existente de modo direto no mundo inorgânico. Para
compreendermos a vida temos de estudar as coisas vivas e ver o que há nelas de comum.
Um organismo é vivo quando afeiçoa a matéria duma forma especial e utiliza-se
da energia para os seus fins próprios - sobretudo o crescimento e a reprodução.
Um organismo vivo, enquanto permanece vivo, defende a sua complicada estrutura
contra a deterioração e a desagregação.
Morte significa a cessação dessa influência controladora exercida
sobre a matéria e a energia, de modo que a ação física e química retomam o seu
curso. Morte não é apenas ausência de vida; tal palavra significa a partida ou
a separação da vida - o ato de esse princípio abstrato a que chamamos vida
separar-se do resíduo concreto. E a palavra morte só se aplica às coisas que
vivem.
A morte, pois, pode ser considerada uma dissociação, uma dissolução,
uma separação entre a entidade controladora e a substância físico-química dum
organismo; uma separação entre a alma e o corpo.
Morte não quer dizer extinção. Nem a alma nem o corpo se
extinguem, isto é, deixam de existir. O corpo morto pesa tanto como pesava em
vivo; no momento da morte só perde as suas propriedades potenciais. Assim,
também, tudo quanto podemos afirmar do princípio vital que o animava e que já
não anima aquele organismo material: se esse princípio vital conserva a sua
atitude ou não, só estudos ulteriores no-lo poderão informar.
A forma visível do corpo não era acidente; correspondia a uma
realidade, porque causada pela presença da força vivificante; e a afeição inevitavelmente
enlaça não só a verdadeira personalidade do morto como também o que constituiu
o seu veículo material - signo e símbolo de tanta beleza e amor. Os símbolos
falam ao coração humano e qualquer coisa querida e honrada torna-se algo de
valor intrínseco, que não pode ser olhado com indiferença. As velhas bandeiras
dum regimento ao qual os homens fizeram o sacrifício de suas vidas - embora
trocadas por novas - não se recolhem sem dor de coração. E as pessoas de
sensibilidade que contemplam tais relíquias sentem algum eco do passado e
desejam conhecer-lhes a história.
Quando dum corpo dizemos que está morto, podemos estar falando
acertadamente. Mas quando dizemos que uma pessoa está morta, já a nossa
expressão se torna ambígua, porque a referência poderá ser apenas ao corpo
dessa pessoa e só nesse caso estaremos certos. Mas se há também referência à
personalidade, ao caráter, ao que realmente constituía essa pessoa, nesse caso
a expressão "está morto" sofre restrições. A pessoa foi-se, passou;
passou pelo corpo e foi-se", como diz Browning no "Alt Vogler" -
mas não está morta no sentido que aplicamos a palavra morte ao corpo. É
justamente esse ausentar-se da personalidade que permite ao corpo morrer, dissolver-se;
a personalidade em si não está sujeita à dissolução. Ao contrário, emancipou-se
do corpo; libertou-se do peso da matéria, embora com o destacar-se da carne
haja perdido as potencialidades terrestres que
o mecanismo
corporal lhe conferia; e se essa personalidade ainda pode agir na Terra será
com dificuldade e mediante a cooperação das que ainda não se separaram do
corpo, Às vezes tal personalidade pode pôr em ação adequados mecanismos energéticos;
mas o mecanismo que em tempo foi o seu, esse está perdido: continua a existir,
mas fora de ação - morto.
O costume é chamarmos mortos aos que perderam o corpo material.
Não mais os consideramos como vivos - porque na linguagem comum vivos só são os
que ainda se conservam associados ao corpo material. É nesse sentido que
coletivamente falamos dessas personalidades como "os mortos".
Não devemos ter medo da palavra, nem hesitar em seu emprego,
quando os que nos ouvem a recebem neste sentido limitado. Se as ideias
associadas à palavra "morte" fossem sempre judiciosas e sãs, razão
nenhuma teríamos para falar de morte compungidamente. Mas o povo e também os
sacerdotes sempre a usaram tão mal, associando-a apenas aos fatos físicos do
corpo abandonado pela personalidade, que isso tornou admissível, por um tempo,
a sua substituição por outras expressões menos ambíguas, como
"transição" ou "passamento". A mudança ainda vale, hoje,
como protesto contra a política de ater-nos a vermes, túmulos e epitáfios, ou à
ideia duma geral Ressurreição com o retorno à vida de todos os corpos
enterrados. Em antagonismo a essas superstições surge a afirmativa de que
"a morte não existe".
Claro que familiarmente falando a morte existe, e nada adiantaria
negar um fato. Mas ninguém pretende negar fatos; os que afirmam não haver morte
apenas querem desviar o pensamento dum aspecto já muito insistido para pô-la no
outro lado - o que diz respeito à personalidade. O que a expressão "não há
morte" significa é que não há extinção. O processo da morte não passa de
mera separação entre a alma e o corpo - e com isso a alma liberada do corpo
mais ganha do que perde. Só o corpo morre e desagrega-se mas nem para ele há
extinção: há mudança. Já para a outra parte, a personalidade, dificilmente
admitiremos mudança - exceto no que diz respeito ao ambiente, ao meio. Muito
improvável que o caráter e a personalidade estejam sujeitos a súbitas
revoluções ou mutações. Potencialmente poderão diferir em virtude das
diferenças de oportunidades, mas no momento atual conservam-se os mesmos. Como
uma curva; a curvatura muda mas sem descontinuidade.
Morte não é palavra de temer, como não é de temer a palavra
nascimento. Nós mudamos de estado ao nascer, penetrando num mundo de ar e
sensações e de inúmeras existências. Na morte também mudamos de estado,
penetrando num mundo de ... de quê? De Éter, penso, onde teremos a sensação de
ainda mais numerosas existências. Penetramos numa zona onde a comunhão entre os
seres deve recordar isso a que chamamos telepatia. e onde o intercurso dos
seres não é ao modo do nosso físico; zona em que a beleza e o conhecimento são
mais vividos do que aqui; região em que o progresso é possível e em que há mais
“admiração, esperança e amor” do que aqui. E neste sentido podemos dizer, com
Tennyson: "Os mortos não estão mortos, sim mais vivos".
A vida é contínua e as condições da existência em conjunto
permanecem as mesmas de antes. As circunstâncias mudam para o indivíduo que
merece, mas só no sentido de torná-lo capaz de acesso a um diferente grupo de
fatos. A mudança do meio ambiente é subjetiva. Esses fatos diferentes sempre
existiram, ao modo das estrelas que estão no céu em pleno dia, mas fora da
nossa percepção. Com a "passagem", esses fatos novos entram para a
nossa percepção - e os fatos velhos perdem-se em nossa memória.
O Universo é um, não dois. Literalmente, não existe o "outro
mundo". A não ser no sentido restrito em que damos o nome de mundo a
outros planetas, não existe outro mundo. O Universo é uma unidade. Nele
existimos continuamente, por todo o tempo: às vezes, conscientes de um certo
modo; outras vezes, conscientes de outro modo. Durante algum tempo, conscientes
dum grupo de fatos; depois, conscientes de outro grupo de fatos - os fatos do
"outro lado". Mas essa divisão em "lados" é meramente
subjetiva. Permaneceremos a mesma família, enquanto os liames da afeição
persistirem. E para os que dão valor à prece, cessar de orar pelo bem de nossos
amigos só porque com a morte
eles se
tornaram materialmente inacessíveis – embora, talvez, se tenham tornado
espiritualmente mais acessíveis - é sucumbir ao peso residual de velhas abusões
(enganos,
ilusões) eclesiásticas
e perder o ensejo de um bom serviço.
(Cap.
XXI do livro "Raymond", de Oliver Lodge, ed. da Soc. Metapsíquica de
S. Paulo.)
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