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A história da Igreja cristã, nestes
dezenove séculos decorridos, tem sido uma flagrante representação objetiva da
alegoria expressa na parábola do joio entre o trigo, com exclusão apenas do
desfecho, que os sinais do tempo presente anunciam aproximar-se, mas cuja
integral consumação à exiguidade da visão humana ainda se afigura vir distante.
Os que se preocupam, moralistas e
pensadores, com os alarmantes sintomas de dissolução moral, que é a característica
de nossos dias, consequente da irreligiosidade que por toda parte predomina,
gerando o excessivo culto da matéria e a vertiginosa corrida a todos os seus
gozos, reconhecem a necessidade de uma renovação religiosa, que restitua aos
homens o sentimento de seus deveres e de suas responsabilidades, inerente à
crença em seus destinos imortais. Alguns., ou seja obnubilados pelo espírito de
sectarismo, ou por deficiência de apreciação, que lhes não consente discernir a
verdadeira significação da sobrevivência da igreja romana a tantas vicissitudes
seculares, entendem que a volta dos desertores do rebanho católico ao seu grêmio,
de par com a conversão, dos indiferentes ao seu credo, resolveria o angustioso
problema contemporâneo. Outros, ponderando unicamente os graves erros durante séculos
acumulados por essa igreja, o seu espírito reacionário e intolerante,
reconhecem-na falida em sua missão espiritual e só têm para ela palavras de
condenação.
No alvitre ilusório dos primeiros,
como no radicalismo, condenatório dos segundos, há - repetimos – deficiência de
apreciação. Para julgarmos com justiça a igreja, no curso de
suas realizações e de suas graves delinquências, através a história, cumpre discernir
as duas modalidades que nela se acham nitidamente representadas c se não devem confundir num
mesmo julgamento. Uma é o partido politico, formada pelo seu corpo
administrativo, a outra a família cristã propriamente dita, subordinada contudo
à direção daquele.
O primeiro, chefiado pelo papa e
composto não somente do alto clero que constitui a corte pontifícia, mas de
todo o exército eclesiástico, disciplinado e obediente, é o responsável pelos
abusos, prevaricações e atentados contra a doutrina do Senhor, que teria
definitivamente impopularizado, causando a sua ruína irreparável e fazendo soçobrar
a própria igreja, se não tivesse esta sido, em todos os tempos, sustentada
pelos sentimentos religiosos da família cristã.
Sobre esta, de que - apressemo-nos a
acrescentar - têm feito no passado e ainda hoje fazem parte os prelados de
todas as categorias, verdadeiros crentes, portadores das virtudes cardiais -
humildade, fé e caridade - é que o Espirito do Senhor se tem difundido,
mantendo a estabilidade da sua Igreja, composta não apenas - cumpre ainda
advertir - de cristãos professos, mas de todos os homens de boa vontade que,
mesmo não pertencendo a nenhuma confissão religiosa, dotados, porém, de coração
puro e consciência reta, praticam por toda parte o bem, na ordem moral, sem
cogitar de retribuição. Ainda que se nos afigure limitadíssimo o seu número,
esses pertencem de facto à Igreja invisível do Cristo, cujos membros se
distinguem pelas boas obras e não por quaisquer insígnias exteriores.
O partido politico, ao contrário,
que tem o seu quartel general no Vaticano e representação diplomática em todos
os países, preocupa-se antes de tudo com o domínio temporal, só pela violência
se deixou despojar dos Estados pontifícios, sem de todo renunciar à sua
restituição - teremos ocasião de ainda fazer a isso nova referência - corteja a
força e foi, em todos os tempos, aliado dos poderosos, em detrimento dos
humildes. É, numa palavra, e não parece resolvido a deixar de ser, uma potência
exclusivamente mundana, fazendo da religião, que explora e em cujos dogmas
finge hipocritamente acreditar, apenas o pretexto para ostentação do seu
poderio e satisfação de suas insaciáveis ambições. O "tesouro de S.
Pedro" - que de resto "não possuía ouro nem prata"
- é o alicerce da sua grandeza, embora pretenda, para iludir o mundo, ser o
depositário das "chaves elo reino dos céus" e o representante de
Deus, com poderes para absolver e condenar os homens.
Enquanto a ideia cristã é imperecível,
vive no coração dos crentes, como chama divina alimentada pelo próprio Cristo,
e há de regenerar as sociedades humanas, sob a modalidade renovada de que
oportunamente nos ocuparemos, o partido politico, ou a igreja de Roma -
verdadeira criação do AntiCristo, que a tem subjugada ao seu império - encontra-se
em face do seguinte dilema, cujo imperativo só a obstinada cegueira dos seus
orientadores não permitirá reconhecer: ou, para salvar-se do naufrágio e
sobreviver, terá que
radicalmente modificar-se, voltando á edificante simplicidade e às austeras
virtudes dos primeiros tempos apostólicos, ou terá que desaparecer, em época
talvez distante, mas inevitável, arrebatada no tufão demolidor que,
desencadeado na esfera político-social - e os seus rumores crescem dia a dia -
terminará por derrubar os derradeiros tronos, que a esse tempo existirem sobre
a terra.
Ora, essa igreja ou,
indiferentemente, esse partido político, adversário natural do Cristianismo, de
que é a antítese, não parece resolvido a aceitar melhor no futuro; do que o fez
no passado, as suasórias lições que o Senhor; em sua longanimidade, lhe tem
enviado.
Com o apostolado franciscano, que
devia ser para essa igreja, como o foi para a cristandade, uma fonte de
regeneração, já vimos de que modo se conduziu ela. Depois de ter
apunhalado de desgostos o patriarca, deturpando a sua obra e fundindo-a por último
no mesmo regime de quase completa esterilidade das antigas ordens, limitou-se,
como. hipócrita
compensação, a canoniza-lo e erigir-lhe, com desrespeito à humildade de sua
vida, uma suntuosa basílica.
Aniquilada aquela generosa
iniciativa, recrudesceu a dissolução de costumes, e a decadência do
pontificado, que se vinha acentuando desde o começo do século XIV, veio a atingir
o seu período culminante com o grande cisma do ocidente, que se declarou, como
vimos, em 1378.
O concílio de Constança, convocado
em 1414 não somente para pôr termo ao cisma e restabelecer a autoridade pontifícia,
mas para tomar medidas radicais que restaurassem a disciplina
eclesiástica e pusesse cobro aos desregramentos do clero, foi, quatro anos
depois - em abril de 1418 - encerrado pelo papa Martinho V, eleito depois da
sua abertura, sem terem sido feitas as reformas reclamadas.
Ao contrário disso, porque João
Huss, que se fizera intérprete dos clamores populares, prosseguisse em sua
moralizadora propaganda, o escolheu para vítima de sua criminosa incoerência e,
como precedentemente o recordamos, tornou-se cúmplice da sua execução. Porque o
movimento reformador, segundo o atesta a historia, "tinha-se manifestado
de três modos: dentro da própria igreja, nos conselhos dos príncipes seculares
e no seio do povo. Os reformadores mitrados, entretanto, e o reformador
secular, Segismundo, deram-se as mãos para condenar e supliciar o revolucionário
popular".
Preso, por ordem do papa João XXIII,
que a esse tempo (1415) exercia o pontificado e contra quem, de resto, o concílio
formulara "acusações porventura mais
graves e afrontosas que todos os vitupérios de João Huss", foi este,
depois de uma simulada proteção do imperador, entregue ao braço secular,
perecendo intrepidamente na fogueira. A
mesma sorte coube, pouco depois, ao seu discípulo Jerônimo de Praga, com quem
ocorreu o conhecido incidente do camponês que, no momento do suplício, chegava,
com fanático zelo, mais lenha à fogueira, provocando esta serena exclamação do
condenado: "Santa simplicidade! Peca mil vezes mais quem dela abusa!"
Encerrado, como dissemos, o concílio
em 1418, sem terem sido tomadas as medidas reclamadas pela situação anárquica da
igreja, o papa Martinho V convocou outro para Basiléia, morrendo, porém, logo
depois. O concílio foi aberto em 23 de julho de 1431 por ordem do papa Eugenio
IV, que pretendia "extirpar as heresias, estabelecer perpetua paz entre as
nações cristãs, pôr termo ao secular cisma dos gregos e reformar a
igreja". Assustado, porém, com a excessiva atividade dos membros do concílio,
apressou-se em adia-lo. A assembleia contudo prosseguiu em seus trabalhos, citou
Eugenio IV para comparecer, acusou-o de desobediência e declarou-se superior a
ele.
Nesse ambiente agitado foram votadas
várias reformas moralizadoras, mas o dissídio prosseguiu, agravado por novos
incidentes, que omitimos, só vindo a terminar o grande cisma
do ocidente em 1449 e restabelecer-se a paz na igreja, com a ratificação, pelo
papa Nicolau V, da concordata firmada por Felix V com Frederico III e mediante
proposta deste. Paz, em verdade, transitória, que melhor se denominaria trégua,
pois que, não tendo sido postas em prática as medidas radicais tendentes à
moralização dos costumes eclesiásticos, prosseguiram os desregramentos, até que
no começo do século XVI, isto é, aos albores já da Renascença, estalou a grande
crise.
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