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terça-feira, 30 de dezembro de 2014

7a. AntiCristo senhor do mundo


VII.  Crescente antagonismo entre a religião e a ciência.
– Anarquia do pensamento.
- Movimento libertário da Revolução Francesa levado ao desvario.
– Soçobro do prestígio político da Igreja.
– Perda do poder temporal.
– Roma, túmulo do Cristianismo.
– A crise contemporânea.
– O AntiCristo porfia em tornar odiosa a Religião do Cristo.
– Expectativa de uma Era Nova.


            Porque havia de o AntiCristo renunciar à sua presa? Ele não conseguira certamente obstar que as virtudes do Cordeiro brilhassem de novo, em dilatada escala, entre os escombros da Igreja, fundada outrora na humildade, no espírito de renúncia e caridade, e impedida agora de sucumbir, mercê dos Enviados que, segundo o acabamos de ver, o Senhor havia oportunamente suscitado para, de certo modo, recomeçarem a obra mutilada de Francisco de Assis. Esse reflorescimento valia sem dúvida por uma intrépida afirmação da vida imortal, penetrados de cuja radiosa certeza não hesitavam os seus arautos em desprezar as grosseiras seduções do mundo, para seguir a Jesus, obedecendo aos seus mandatos. Sim, os exemplos dos grandes santos, enfeixados alguns, no brevíssimo resumo que precede, tinham vindo reanimar a cristandade, aureolando de inusitado prestígio a igreja que o perdera e a cujo seio se haviam dignado eles acolher-se. Mas a afirmação de imortalidade e de espiritualidade, que tais exemplos implicitamente revestiam, significando embora uma vitoriosa réplica ao predomínio da incredulidade e do materialismo de que se achavam até então saturados os costumes nas próprias fileiras eclesiásticas, podia quando muito ser considerada um socorro de emergência, não indo a sua repercussão além da espera do sentimento, ao passo que no domínio do pensamento, como obstinada negação dos atributos daquele, em cujo nome eram praticadas tantas obras de amor e de misericórdia, as concepções doutrinárias da igreja, longe de satisfazerem os novos reclamos intelectuais, estimulados pelo movimento emancipador da Reforma, permaneciam estagnadas, negativas, refratárias a toda evolução.
           
            Não vimos, no concílio de Trento ser solenemente ratificado o dogma do pecado original, que torna todo o gênero humano responsável pela ficção da culpa do primeiro casal - outra ficção - e ser do mesmo modo sancionado o não menos iníquo dogma das penas eternas, um e outro blasfematórios e incompatíveis com a bondade e a justiça de Deus?

            Ora, a crítica racionalista, que falava em nome da liberdade, conculcada durante tantos séculos de opressão, formulara as suas exigências, a que os mesmos promotores da Reforma, penetrados de espírito dogmático e intolerante, não se tinham revelado capazes de dar cabal satisfação. Com a sua odiosa doutrina da predestinação e da graça e a negação do livre arbítrio, para contestarem a eficácia das boas obras e sustentarem a salvação exclusiva pela fé, não somente atribuíam a Deus uma clamorosa parcialidade, mas, de seu lado, o tornavam único responsável por todas as ações humanas.

            Essas mesquinhas concepções, que deixavam insolúvel o problema das desigualdades humanas, em face da justiça, da bondade e da sabedoria do Criador, se tinham sido toleradas nas épocas de passividade e de terror, já não podiam ser admitidas quando os estudos científicos, deslocados dos claustros, onde tinham sido exclusivamente cultivados, para as classes consideradas profanas, abriam novos horizontes ao conhecimento, ao mesmo tempo que a razão cada vez mais se emancipava do dogmatismo obsoleto e estacionário.

            Daí o antagonismo entre a religião, que se obstinava no seu erro geocêntrico e no antropomorfismo do Jeová bíblico, zeloso, parcial, vingativo, antitético do Pai misericordioso revelado por Jesus, simbolizado, entre tantos outros ensinos, na parábola do Filho Pródigo, e a ciência, cujas descobertas, que os séculos ulteriores ampliariam, falavam de uma criação infinita, submetida a leis de impecável sabedoria, tal como, por exemplo, pressentira e proclamara Giordano Bruno, condenado por isso a expiar na fogueira o crime de ensinar verdades que não convinham aos detentores da direção espiritual da cristandade. Nem ao AntiCristo, cujo interesse fundamental consiste em manter afastadas de Deus as suas criaturas, a fim de sobre elas exercer pela revolta, que provoca a injustiça, e até pelo terror, o seu implacável predomínio. 

            Se no concilio de Trento, como precedentemente o assinalamos, em lugar de se preocuparem com o fortalecimento da autoridade pontifícia e, portanto, com o aumento do poderio mundano, um largo programa de revisão dos ensinos ortodoxos houvesse prevalecido visando restaurar em sua simplicidade original os ensinos evangélicos, fonte de toda a verdade necessária aos homens, e, por essa forma, encaminha-los a Deus pelo conhecimento de suas leis de misericórdia e de justiça, entre as quais se destaca a da pluralidade de existências, que deixa sempre ao maior culpado a possibilidade de aperfeiçoamento indefinito, após sucessivas jornadas expiatórias e reparadoras, aquele objetivo satânico teria sido sumariamente burlado. Não podia, conseguintemente, o inimigo consentir nessa vitória doutrinaria do Cristianismo, que teria aberto para a humanidade uma nova era de verdadeiro renascimento espiritual. E como havia ele, desde séculos, assentado os seus arraiais na cidade de Roma e, pela tenacidade de suas dissimuladas sugestões, subjugado a mente dos sucessivos depositários do divino legado, não lhe foi difícil, operando sobretudo com a disciplinada falange dos jesuítas, por ele organizada, manter o status quo, ele que do próprio movimento libertário da Reforma se havia apoderado para o transformar num conflito de fanáticos, em que todos os sentimentos se agitaram, menos o da humildade e o do verdadeiro amor a Deus e às suas criaturas.

            Que lhe importava, pois, que algumas almas abrasadas de fé, escolhidas pelo Cristo, e transportadas nos estímulos transfigura dores da caridade viessem recordar aos homens, com a eloquência das obras, os ensinos do Mestre? Ele, que não pudera nem poderia em caso algum impedir essa boa semeadura do "trigo" amoravelmente feita pelo Senhor da messe, bem sabia que tais exemplos - alimento substancial das almas simples - não bastariam para mitigar a fome das inteligências exigentes, que se não resignavam a apagar o lume da razão, para ceder à necessidade puramente sentimental de crer, e era aí que se lhe deparava o propício campo em que semearia, como sempre, o "joio" da incredulidade, suscitada pelas concepções ora pueris, ora terroristas, patrocinadas pelos que se arrogavam a autoridade de exclusivos intérpretes da palavra divina.

            Assim, enquanto a igreja se petrificava na letra bíblica para defender a imobilidade da Terra como centro do universo e sustentar o princípio da criação em sete dias, desconhecendo o simbolismo da narrativa mosaica, os trabalhos de Kepler e Galileu, que seriam mais tarde completados pela hipótese cosmogônica de Laplace, desmoronavam essas teorias infantis, ao mesmo tempo que à pretensão da exclusiva habitabilidade da Terra não tardaria a ciência em opor a dos demais planetas, apoiada na verificação da existência do vapor d'água em sua atmosfera. E, como essa, todas as outras descobertas da ciência no domínio da física, da química e da biologia, penetrando cada vez mais longe nos arcanos da natureza, eram golpes repetidos e desmoralizadores vibrados no edifício dogmático da igreja, tornando-a incompatível com as inteligências cultas.

            Recordemos ainda o seu dogma, no fundo acentuadamente materialista, da "ressurreição da carne" - expressão que, de resto, se não encontra em nenhuma passagem das Escrituras, onde o que se lê é a "ressurreição dos mortos", o que é muito diferente - a qual, não obstante, fez ela inserir no denominado Símbolo dos Apóstolos, como um dos artigos do Credo. Pretendeu assim que, para o julgamento final, todas as almas retomariam posse de seus corpos materiais, a fim de neles sofrerem as penas e recompensas merecidas pelas suas obras, desse modo atribuindo à carne corruptível importância capital na vida eterna, com o que não somente se colocou em oposição à doutrina espiritualista de Paulo, que sustenta não poder a corrupção herdar a incorruptibilidade, mas condenou-se ao desmentido com que as observações da ciência respondem a essa grosseira concepção; provando a sua impossibilidade.

            É sabido, com efeito, que os elementos constitutivos do corpo humano não se dissociam apenas, transformados em gases, por ocasião da morte, para voltarem ao grande laboratório da natureza e entrarem na composição de novos corpos, nos reinos vegetal e animal -- processo que se vai indefinidamente repetindo na sucessão dos tempos e que torna irrealizável, no ponto de vista da identidade pessoal, a reintegração orgânica e histológica de um mesmo indivíduos mas essa mesma integridade e identidade de células componentes do corpo humano nem sequer se verifica para o mesmo indivíduo no curso da existência, pois que a todo momento, pelo trabalho de desassimilação e assimilação vital, o nosso corpo se vai constantemente renovando, de tal sorte que, ao fim de um período aproximadamente de sete anos, as suas células, desde as partes moles do cérebro até a estrutura óssea, foram totalmente substituídas. Como, pois, se reunirem, segundo a infantil concepção, no minúsculo vale de Josafá, as almas das humanidades, milenariamente desaparecidas, aos seus corpos, há tanto tempo dispersos no turbilhão universal, e como reintegrá-los nos seus elementos tantas vezes substituídos?

            Em presença de tais concepções, a ciência tinha o direito não apenas de sorrir, mas de insurgir-se.

            E não era somente no domínio intelectual que a igreja, por sua retrógrada obstinação, contribuía para o crescente antagonismo entre a religião e a ciência. Tendo na própria esfera da influência espiritual, com aplicação às relações sociais dos indivíduos, abandonado o ideal democrático e fraterno do Cristianismo, para fazer-se a aliada dos poderosos e dos reis e, em tais condições, tornar-se cúmplice da opressão por eles exercida sobre os pobres e os pequenos, forjou e meteu nas mãos dos pensadores a arma de combate que contra ela veio a representar o monumento filosófico da Enciclopédia, erigido por Diderot e d'Alembert, com a principal colaboração de Montesquieu, Voltaire e Rousseau, em meados do século XVIII, e que serviria de ponto de partida, ou, pelo menos, como fonte inspiradora do movimento libertário desencadeado pela Revolução Francesa.

            Que podia, com efeito, resultar da erupção de ideias novas sobre que parecia aqueles clarividentes pensadores deverem ser plasmados os destinos dos povos, senão a onda insurrecional que derrubou a dinastia dos Capeto e, subvertendo a ordem político-social, em cujos destroços arrastou os derradeiros vestígios do feudalismo, havia de ganhar foros de universalidade com a sua proclamação dos direitos não do cidadão francês, mas dos "direitos do homem?"

            Despedaçados os grilhões na órbita política, não foi de estranhar que, obedecendo ao irreprimível impulso inicial, a subversão se propagasse à própria esfera religiosa, E, pois, que a igreja, pretendendo representar o pensamento e a vontade de Deus na terra, o havia sacrilegamente associado a todas as tiranias, de que se fizera cúmplice, a lógica dos acontecimentos não tardou em conduzir os revolucionários aos extremos da consumação prática do lema, teoricamente iconoclasta, "Nem Deus nem rei", isto é, ao desvario de entronizar no lugar do primeiro a "Deusa Razão".


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