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domingo, 7 de dezembro de 2014

5e AntiCristo senhor do mundo


5e


            Tais foram os deploráveis excessos e os frutos do fanatismo. No movimento de emancipação suscitado pela Reforma e, como imensa fogueira ateada no coração da Europa, destinado a promover no seio da Igreja a reação purificadora, mais tarde objetivada nas deliberações do concílio de Trento, não é difícil reconhecer-se o impulso providencial de que falamos páginas atrás, do mesmo modo que aí se patenteia, sempre obstinado e vigilante, em contraste com a não-vigilância dos reformistas, o predomínio do AntiCristo, que a ele não renuncia em caso algum.

            Se, com efeito, apreciada em seu conjunto, a obra da Reforma se recomenda pelo saneamento moral que promoveu nos costumes, tanto como pela divulgação em ampla escala dos ensinamentos do Evangelho, postos ao alcance de todas as inteligências, no primeiro caso, com a abolição do celibato do clero e outras medidas disciplinares, reconciliando as funções eclesiásticas com os nobres e moralizadores deveres da família constituída, e no segundo, quebrando os grilhões do dogmatismo teológico, pela restituição das doutrinas do Cristianismo a sua fonte originaria, a atitude de espírito mantida, entretanto, pelos realizadores daquela obra veio patentear quão longe estiveram eles dos preceitos fundamentais do Mestre. Esqueceram-se de que Deus é Amor e ninguém pode agir nem dizer-se autorizado a agir em nome do seu Cristo, se não se inspira nos ditames desse atributo soberano.

            Que é o que fez a glória e assegurou a imortalidade à obra de Francisco de Assis, quaisquer que fossem as deturpações contra ela ulteriormente perpetradas pelo sectarismo e as ambições de Roma, escrava do AntiCristo! Precisamente o ter sido substancialmente fundada no amor e na humildade.

            Ora, a ação dos promotores, como a dos sectários da Reforma caracterizou-se pela intolerância, filha do ódio, e nas pelejas sustentadas, para destruir a autoridade pontifícia e "reformar" o edifício doutrinário da igreja romana, mostrou-se com frequência inspirada no orgulho. Pretendendo criar uma nova teologia, baseada no Evangelho, para explicar as relações do homem com Deus e definir a sua situação no mundo e os seus destinos espirituais depois da morte, em vez de cingirem-se à Palavra do Senhor Jesus e reconhecerem o grande principio da salvação universal, estabelecido, entre outras, na parábola do Filho Pródigo e nas passagens que atestam, como o vimos anteriormente, a pluralidade de existências, os reformadores erigiram, sob a influencia judaizante do Velho Testamento, essa monstruosa doutrina da predestinação e da graça, que divide os homens em réprobos e escolhidos e tantas legítimas repulsas havia de suscitar, incompatível que é com a justiça, a bondade e a sabedoria do Criador. Daí a deficiência do movimento reformista, inapto em sua forma e em seu objetivo para satisfazer as legitimas aspirações da humanidade e encaminhá-la à realização de seus destinos imortais.

            Explica-se, em todo caso, a obnubilação das inteligências chamadas a intervir naquele movimento, não só pelo implacável predomínio do AntiCristo, cuja intromissão se nota a cada passo nos desvarios e exaltações dos reformadores, como pelas próprias condições do ambiente em que operavam, as quais, de resto, não era estranha, senão que constituía o seu fator primordial, aquela mesma anarquizadora influência.    E é isso o que, de certo modo, os absolve.

            A época era singularmente agitada e se, de um lado, o partido político, em cujas mãos se enfeixavam os destinos da igreja, permanecia refratário à adoção das medidas reclamadas para o restabelecimento da ordem, pela implantação dos dignificadores preceitos elo Evangelho, por outro a disposição geral dos ânimos, naquele ambiente social de Roma, em que as tenebrosas falanges do invisível haviam, por assim dizer, instalado o seu habitat e operavam desde o tempo dos césares romanos, que lhes eram dóceis instrumentos, não opunha menos obstinada resistência a qualquer tentativa de reforma, a menos que se caracterizasse pela violência.

            Testemunho disso foi o malogro da iniciativa tentada por Adriano VI, o escrupuloso e exemplar pontífice que sucedeu a Leão X e ocupou o trono apenas de 1522 a 1523. "Convencido por argumentos escolásticos - refere o historiador - da verdade das doutrinas ortodoxas, não podia acreditar que os reformados procedessem de boa fé; mas entendia que os rigores os tinham levado a exceder-se. Por outra parte, educado no estrangeiro, reconhecia os abusos da cúria romana; quando anunciou o propósito de os extirpar, produziu um duplo efeito: sobressaltou a gente que o rodeava e, com a confissão desses abusos, acompanhada pela promessa de os corrigir, tornou os inimigos mais ousados".

            A esse tempo, quando o movimento da Reforma ainda se não extremara nos assuntos de doutrina e não tomara a amplitude que mais tarde veio a adquirir, ainda teria talvez sido possível, um acordo com os seus promotores, graças sobretudo ao espírito conciliador de que Melanchton e Adriano VI eram dotados.

            "Mas durante o governo desse pontífice, Roma patenteou quanto estava realmente corrompida. Adriano, que, assim como tinha conservado o nome próprio, conservara os antigos costumes, tinha levado a sua pobre governante, que o servia como dantes... Ora a sua simplicidade e a exatidão com que todos os dias dizia a sua missa pareceram ridículas no palácio acostumado ao teor de vida dos Medicis. O papa, que entre os seus havia sido considerado um protetor das letras, que removera as dificuldades opostas à fundação do colégio trilíngue de Louvain, foi tido como um bárbaro pelos literatos que não estipendiava. Quando lhe mostraram o Laocoente, murmurou: "Ídolos pagãos!" e desviou a vista da nudez clássica. Não foi preciso mais nada para se tumultuarem os homens de letras escandalizados. Pasquino o representou na figura de um pedagogo castigando os cardeais como se fossem colegiais. Se tivesse querido suprimir as vendas simoníacas, teria lesado e exasperado os que tinham adquirido legalmente o direito de as fazer. A abolição das sobrevivências às dignidades eclesiásticas cercou-lhe muitos inimigos. Como estrangeiro que era, faltavam-lhe relações de família e não formou relações novas, porque, antes de conceder benefícios, refletia tanto que adiava indefinidamente os provimentos. Só e sem apoio, exclamava: "É uma desgraça haver tempos em que o homem de melhores intenções se vê na necessidade de sucumbir!"

            E o historiógrafo remata com esta edificante observação:

            "Este pontífice, pio e zeloso, chegou a ser considerado um mal ainda mais funesto do que a peste, que então grassava. Quando morreu, houve públicas demonstrações de regozijo e suspenderam-se coroas à porta ao seu médico com a inserção: Ob urbem servatam."
                       
            A Reforma era, pois, necessária, como necessários e únicos eficazes eram os meios revolucionários, e não suasórios, que empregou, infelizmente conduzidos aos extremos da crueldade e das violências pessoais.

            Do livre exame contudo, da liberdade na interpretação individual das Escrituras o que veio a resultar não foi, como teria acontecido, se os reformadores obedecessem às inspirações do Espírito Divino, o consenso unânime no restabelecimento da Palavra do Senhor, mas a multiplicação e a rivalidade das seitas, mais empenhadas em fazer prevalecer as opiniões dos seus chefes, edificadas sobre motivos teológicos e disciplinares, do que os ensinamentos da Verdade. E como esta não pode, simultaneamente, residir em campos adversos e irreconciliáveis, como "todo reino dividido não poderá subsistir", a conclusão a tirar-se é que a Reforma, fracionaria e antagônica em seus diferentes ramos representativos, não esteve nem estará reservada à tarefa de restabelecer o Cristianismo na integralidade do seu espírito e de suas transfiguradoras realizações.

            Coube-lhe, sim, a função histórica e oportuna de sacudir o torpor da igreja romana, abrir uma válvula momentânea ao pensamento religioso comprimido, inaugurar uma era de liberdade espiritual, que, todavia, os seus promotores, sob a reacionária pressão dos servidores do AntiCristo, se encarregaram de mutilar e restringir a golpes de intolerância e fanatismo sectário. Mas nem por isso o movimento cessou de adquirir uma poderosa irradiação, que terminou, como estava nos desígnios da Providência, por impressionar os detentores dos destinos da igreja.

            Ao fim de quarenta anos, com efeito, "a Reforma tinha-se propagado desde os Pireneus até a Islândia, desde a Finlândia até aos Alpes, ocupando o espírito dos pensadores e convertendo nações inteiras. No território alemão dominava na Saxônia, no Brandeburg, no ducado de Brunswick, na Hesse, no Mecklenburg, em Holstein e noutras províncias setentrionais; ao sul, no palatinado, Baden, Wurtenberg e muitas cidades imperiais; como, porém, se dirigia mais à razão que à imaginação, tinha feito aí menos conquistas do que no norte. Um embaixador de Veneza calculava, em 1558, que na Alemanha só um décimo dos habitantes eram católicos e, na Áustria, só um terço. As universidades, que tantos campeões haviam dado à antiga religião, abriam-se à crença nova. Durante vinte anos nem um só estudante da universidade de Viena tomou ordens; em Ingolstadt chegou a não haver candidatos a certos cargos que nunca tinham sido exercidos senão por eclesiásticos. Em Colônia, depois de se ter procurado por muito tempo um novo regente, descobriu-se que o que tinha sido eleito era protestante. Na universidade de Dilligen, fundada precisamente para se opor às novas opiniões, faltou quem regesse as cadeiras; noutras partes quase todos os professores eram protestantes, e a mocidade bebia com o leite a aversão às instituições católicas."

            "A Reforma foi introduzida na Hungria por Martinho Ciriaci de Lotse, e os senhores debalde lhe opuseram o ferro e o fogo. Muitos mancebos magiares iam estudar a Wittenberg, donde saíam numerosos missionários. Formaram em Buda uma comunidade. Pedro Pereny fundou em Patak a primeira igreja, e a Bíblia foi traduzida em húngaro por Gabriel Panonius. Favorecidos pela conivência de Fernando da Áustria, recrutaram grande numero de prosélitos e, num sínodo celebrado em Eperies, em 1546, redigiram uma profissão de fé em harmonia com a de Augsburgo; mas os calvinistas, que em grande quantidade se introduziram no país, publicaram outra em Czenger."

            Até na Transilvânia, "apesar de comprometida ao começo pelos rigores de João Zapoly", a Reforma se propagou com extrema rapidez.

            Em resumo: "a Igreja, que na Idade Média tinha exercido legitimamente a suprema direção dos espíritos e havia sido a regra de todas as consciências e a fonte de todos os poderes, estava então sendo alvo de terríveis hostilidades, e parecia iminente a vitória do individualismo, não somente em matéria de crenças e de culto, senão também nos domínios da moral."

            Era tempo, conseguintemente, de que, a impulsos do instinto de conservação, em seu próprio seio se operasse a razão.


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