5e
Tais foram os deploráveis excessos e
os frutos do fanatismo. No movimento de emancipação suscitado pela Reforma e,
como imensa fogueira ateada no coração da Europa, destinado a promover no seio
da Igreja a reação purificadora, mais tarde objetivada nas deliberações do concílio
de Trento, não é difícil reconhecer-se o impulso providencial de que falamos páginas
atrás, do mesmo modo que aí se patenteia, sempre obstinado e vigilante, em
contraste com a não-vigilância dos reformistas, o predomínio do AntiCristo, que
a ele não renuncia em caso algum.
Se, com efeito, apreciada em seu
conjunto, a obra da Reforma se recomenda pelo saneamento moral que promoveu nos
costumes, tanto como pela divulgação em ampla escala dos ensinamentos do
Evangelho, postos ao alcance de todas as inteligências, no primeiro caso, com a
abolição do celibato do clero e outras medidas disciplinares, reconciliando as
funções eclesiásticas com os nobres e moralizadores deveres da família constituída,
e no segundo, quebrando os grilhões do dogmatismo teológico, pela restituição
das doutrinas do Cristianismo a sua fonte originaria, a atitude de espírito
mantida, entretanto, pelos realizadores daquela obra veio patentear quão longe
estiveram eles dos preceitos fundamentais do Mestre. Esqueceram-se de que Deus
é Amor e ninguém pode agir nem dizer-se autorizado a agir em nome do seu
Cristo, se não se inspira nos ditames desse atributo soberano.
Que é o que fez a glória e assegurou
a imortalidade à obra de Francisco de Assis, quaisquer que fossem as
deturpações contra ela ulteriormente perpetradas pelo sectarismo e as ambições
de Roma, escrava do AntiCristo! Precisamente o ter sido substancialmente
fundada no amor e na humildade.
Ora, a ação dos promotores, como a
dos sectários da Reforma caracterizou-se pela intolerância, filha do ódio, e
nas pelejas sustentadas, para destruir a autoridade pontifícia e
"reformar" o edifício doutrinário da igreja romana, mostrou-se com
frequência inspirada no orgulho. Pretendendo criar uma nova teologia, baseada
no Evangelho, para explicar as relações do homem com Deus e definir a sua
situação no mundo e os seus destinos espirituais depois da morte, em vez de
cingirem-se à Palavra do Senhor Jesus e reconhecerem o grande principio da
salvação universal, estabelecido, entre outras, na parábola do Filho Pródigo e
nas passagens que atestam, como o vimos anteriormente, a pluralidade de existências,
os reformadores erigiram, sob a influencia judaizante do Velho Testamento, essa
monstruosa doutrina da predestinação e da graça, que divide os homens em réprobos
e escolhidos e tantas legítimas repulsas havia de suscitar, incompatível que é
com a justiça, a bondade e a sabedoria do Criador. Daí a deficiência do
movimento reformista, inapto em sua forma e em seu objetivo para satisfazer as
legitimas aspirações da humanidade e encaminhá-la à realização de seus destinos
imortais.
Explica-se, em todo caso, a
obnubilação das inteligências chamadas a intervir naquele movimento, não só
pelo implacável predomínio do AntiCristo, cuja intromissão se nota a cada
passo nos desvarios e exaltações dos reformadores, como pelas próprias
condições do ambiente em que operavam, as quais, de resto, não era estranha,
senão que constituía o seu fator primordial, aquela mesma anarquizadora influência.
E é isso o que, de certo modo, os
absolve.
A época era singularmente agitada e
se, de um lado, o partido político, em cujas mãos se enfeixavam os destinos da
igreja, permanecia refratário à adoção das medidas reclamadas para o
restabelecimento da ordem, pela implantação dos dignificadores preceitos elo
Evangelho, por outro a disposição geral dos ânimos, naquele ambiente social de
Roma, em que as tenebrosas falanges do invisível haviam, por assim dizer,
instalado o seu habitat e operavam desde o tempo dos césares romanos, que lhes
eram dóceis instrumentos, não opunha menos obstinada resistência a qualquer
tentativa de reforma, a menos que se caracterizasse pela violência.
Testemunho disso foi o malogro da
iniciativa tentada por Adriano VI, o escrupuloso e exemplar pontífice que
sucedeu a Leão X e ocupou o trono apenas de 1522 a 1523. "Convencido por argumentos escolásticos -
refere o historiador - da verdade das
doutrinas ortodoxas, não podia acreditar que os reformados procedessem de boa
fé; mas entendia que os rigores os tinham levado a exceder-se. Por outra parte,
educado no estrangeiro, reconhecia os abusos da cúria romana; quando anunciou o
propósito de os extirpar, produziu um duplo efeito: sobressaltou a gente que o
rodeava e, com a confissão desses abusos, acompanhada pela promessa de os
corrigir, tornou os inimigos mais ousados".
A esse tempo, quando o movimento da
Reforma ainda se não extremara nos assuntos de doutrina e não tomara a amplitude
que mais tarde veio a adquirir, ainda teria talvez sido possível, um acordo com
os seus promotores, graças sobretudo ao espírito conciliador de que Melanchton
e Adriano VI eram dotados.
"Mas durante o
governo desse pontífice, Roma patenteou quanto estava realmente corrompida.
Adriano, que, assim como tinha conservado o nome próprio, conservara os antigos
costumes, tinha levado a sua pobre governante, que o servia como dantes... Ora
a sua simplicidade e a exatidão com que todos os dias dizia a sua missa
pareceram ridículas no palácio acostumado ao teor de vida dos Medicis. O papa,
que entre os seus havia sido considerado um protetor das letras, que removera
as dificuldades opostas à fundação do colégio trilíngue de Louvain, foi tido
como um bárbaro pelos literatos que não estipendiava. Quando lhe mostraram o
Laocoente, murmurou: "Ídolos pagãos!" e desviou a vista da nudez clássica.
Não foi preciso mais nada para se tumultuarem os homens de letras escandalizados.
Pasquino o representou na figura de um pedagogo castigando os cardeais como se
fossem colegiais. Se tivesse querido suprimir as vendas simoníacas, teria
lesado e exasperado os que tinham adquirido legalmente o direito de as fazer. A
abolição das sobrevivências às dignidades eclesiásticas cercou-lhe muitos
inimigos. Como estrangeiro que era, faltavam-lhe relações de família e não
formou relações novas, porque, antes de conceder benefícios, refletia tanto que
adiava indefinidamente os provimentos. Só e sem apoio, exclamava: "É uma
desgraça haver tempos em que o homem de melhores intenções se vê na necessidade
de sucumbir!"
E o historiógrafo remata com esta
edificante observação:
"Este pontífice, pio e
zeloso, chegou a ser considerado um mal ainda mais funesto do que a peste, que
então grassava. Quando morreu, houve públicas demonstrações de regozijo e
suspenderam-se coroas à porta ao seu médico com a inserção: Ob urbem servatam."
A Reforma era, pois, necessária,
como necessários e únicos eficazes eram os meios revolucionários, e não suasórios,
que empregou, infelizmente conduzidos aos extremos da crueldade e das violências
pessoais.
Do livre exame contudo, da liberdade
na interpretação individual das Escrituras o que veio a resultar não foi, como
teria acontecido, se os reformadores obedecessem às inspirações do Espírito
Divino, o consenso unânime no restabelecimento da Palavra do Senhor, mas a
multiplicação e a rivalidade das seitas, mais empenhadas em fazer prevalecer as
opiniões dos seus chefes, edificadas sobre motivos teológicos e disciplinares,
do que os ensinamentos da Verdade. E como esta não pode, simultaneamente,
residir em campos adversos e irreconciliáveis, como "todo reino dividido não poderá subsistir", a conclusão a
tirar-se é que a Reforma, fracionaria e antagônica em seus diferentes ramos
representativos, não esteve nem estará reservada à tarefa de restabelecer o
Cristianismo na integralidade do seu espírito e de suas transfiguradoras
realizações.
Coube-lhe, sim, a função histórica e
oportuna de sacudir o torpor da igreja romana, abrir uma válvula momentânea ao
pensamento religioso comprimido, inaugurar uma era
de liberdade espiritual, que, todavia, os seus promotores, sob a reacionária
pressão dos servidores do AntiCristo, se encarregaram de mutilar e restringir a
golpes de intolerância e fanatismo sectário. Mas nem por isso o movimento
cessou de adquirir uma poderosa irradiação, que terminou, como estava nos
desígnios da Providência, por impressionar os detentores dos destinos da
igreja.
Ao fim de quarenta anos, com efeito,
"a Reforma tinha-se propagado desde os Pireneus até a Islândia, desde
a Finlândia até aos Alpes, ocupando o espírito dos pensadores e convertendo
nações inteiras. No território alemão dominava na Saxônia, no Brandeburg, no
ducado de Brunswick, na Hesse, no Mecklenburg, em Holstein e noutras províncias
setentrionais; ao sul, no palatinado, Baden, Wurtenberg e muitas cidades
imperiais; como, porém, se dirigia mais à razão que à imaginação, tinha feito aí
menos conquistas do que no norte. Um embaixador de Veneza calculava, em 1558,
que na Alemanha só um décimo dos habitantes eram católicos e, na Áustria, só um
terço. As universidades, que tantos campeões haviam dado à antiga religião,
abriam-se à crença nova. Durante vinte anos nem um só estudante da universidade
de Viena tomou ordens; em Ingolstadt chegou a não haver candidatos a certos
cargos que nunca tinham sido exercidos senão por eclesiásticos. Em Colônia,
depois de se ter procurado por muito tempo um novo regente, descobriu-se que o
que tinha sido eleito era protestante. Na universidade de Dilligen, fundada
precisamente para se opor às novas opiniões, faltou quem regesse as cadeiras;
noutras partes quase todos os professores eram protestantes, e a mocidade bebia
com o leite a aversão às instituições católicas."
"A Reforma foi introduzida na Hungria por Martinho Ciriaci de Lotse, e
os senhores debalde lhe opuseram o ferro e o fogo. Muitos mancebos magiares iam
estudar a Wittenberg, donde saíam numerosos missionários. Formaram em Buda uma
comunidade. Pedro
Pereny fundou em Patak a primeira igreja, e a Bíblia foi traduzida em húngaro por
Gabriel Panonius. Favorecidos pela conivência de Fernando da Áustria,
recrutaram grande numero de prosélitos e, num sínodo celebrado em Eperies, em
1546, redigiram uma
profissão de fé em harmonia com a de Augsburgo; mas os calvinistas, que em
grande quantidade se introduziram no país, publicaram outra em Czenger."
Até na Transilvânia, "apesar de comprometida ao começo pelos
rigores de João Zapoly", a Reforma se propagou com extrema rapidez.
Em resumo: "a Igreja, que na Idade Média tinha exercido
legitimamente a suprema direção dos espíritos e havia sido a regra de todas as consciências
e a fonte de todos os poderes, estava
então sendo alvo de terríveis hostilidades, e parecia iminente a vitória do
individualismo, não somente em matéria de crenças e de culto, senão também nos
domínios da moral."
Era tempo, conseguintemente, de que,
a impulsos do instinto de conservação, em seu próprio seio se operasse a razão.
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