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terça-feira, 30 de dezembro de 2014

7c. AntiCristo senhor do mundo

7c

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            "Voltemos a Roma e visitemo-la de novo. Ela é estreita no espaço, mas infinita no tempo. Não se acaba jamais de percorrer e meditar. Ponhamos ponto nesse capitulo de Pompéia, desdobramento da Roma dos Césares, e, volvidas as idades, entremos agora na Roma católica.
            É a Roma cristã! - Dessa restam apenas alguns quilômetros de catacumbas e as piedosas lembranças de uma remota cristandade, hoje guardadas em alguns museus. Embalde procurareis aqui o sorriso doce do Galileu. Roma adora sempre e por demais a grandeza, a força, a alegria e a violência, para abraçar sinceramente uma religião de humildade. Também era demasiado prematura, para poder frutificar, essa tentativa de espiritualizar a vida, em meio de uma humanidade de tão estreitos apetites. Sim, Roma abraçou o Cristianismo, mas para o afogar nos braços. É isso, aliás, o que sucede sempre em todas as sociedades que adotam uma ideia nova superior a sua índole e educação. Essa religião de um povo de videntes e profetas era tão incompatível com o gênio realista dos romanos que fatalmente havia de morrer ali e tornar-se, em suas mãos, mais um instrumento de domínio. Os vendilhões do templo fraternizaram com o Mestre, para lhe roubar o açoite e chicoteá-lo por sua vez.
            Essa vingança dos deuses, chamada o catolicismo, é que explica como o paganismo irrompe de novo por toda a Roma, que pretende ser cristã. Por isso em toda ela o que há de mais profunda e expressivamente católico é a Basílica de S. Pedro e o Vaticano.
            Esse mundo novo, onde vamos agora penetrar, abre na praça de São Pedro, vasto recinto de clássico e romano sabor, semi circundada como é pelo bosque das centenas de colunas bordando galerias, com o centro marcado pelo fino obelisco de sienite, a cujos lados jorram cataratas as duas grandes fontes de Maderna. Ao fundo o templo enorme e, por de trás, sumindo-se, entrevendo-se, desdobrando-se, imenso e descomunal - o Vaticano.
            Ora, esse templo, a Basílica de S. Pedro, é a mais alta expressão formal do catolicismo. Sendo o maior e mais rico templo do mundo, é também o mais pesado, desgracioso e desconforme. A grandeza maciça das colunas, que dividem as naves, causa uma impressão brutal de esmagamento; o estadear das pompas e riquezas, de grosseiro e profundo, afasta e hostiliza o visitante desprevenido, e a incoerência da sua fachada, recoberta de estátuas descomunais, quase provoca, por grotesca, a hilaridade. Para tornar grandioso aquele templo, Bramante foi aos palácios dos Césares buscar as suas abóbadas, e Miguel Angelo ao Panteão de Agripa a cúpula majestosa. Mas esse mesmo realçar espantoso da cúpula, obra de gênio isolada, porque não joga com o resto e foi mascarada com as piores deformações arquitetônicas, torna o edifício mais abortivo, desmesurado e monstruoso.
            Eis também porque a Basílica de S. Pedro é o coval do Cristianismo...  Quanto mais lhe querem dar a ilusão de vida, mais representam a sua morte. Ele falava de amor - o Cristo - e de humildade e de resignação. Ele exaltava, com o verbo e o ato, os pobres, os fracos, os pequenos. Ali tudo é exibição, vaidade, soberba; tudo a ideia de império e de grandeza, um lisonjear o gosto do fausto e das riquezas. Cantam-no, louvam-no, glorificam-no, mas desmentem-no. E o pobre dos pobres ali jaz, sepulto sob a avalanche dos brocados e diamantes.
            À volta, o Vaticano, com os seus palácios, os seus museus, as suas galerias, é o monumento fúnebre erigido à memória do Cristianismo.
            Sarcófago imenso, lavrado de alegorias, à maneira romana, e qual delas a mais irônica e profunda, O museu egípcio, o museu etrusco, o museu antigo, cheios de estátuas, de vasos e de frisos. Esses são o cortejo dos deuses, desde Isis e Osíris a Apolo Musaxeto e Vênus-Afrodite, que vieram ao grande saimento e cantam a alegria eterna da vida, a glória da Beleza e do Amor sobre o túmulo do Profeta e da  Ideia de renúncia. De galeria a galeria desenrola-se a imensa teoria pagã dos deuses do Olimpo estão ali, palpitando no mármore, os mais belos deuses que é possível sonharem-se. O Júpiter de Otricoli sorri com majestosa onipotência, o Apolo de Belvedere, graça luminosa da vida, paira com a suprema expressão da nobreza máscula; a Vênus de Milo, a curvada, a anadiomenia, fingem com gestos esconder, para maior incêndio do desejo, as maravilhas do corpo desejoso. Depois, na cauda do cortejo, o Mercúrio, o Hercules, o Meleagro, o bando dos faunos e bachantes, ou as caneforas do friso esbelto das ranateneas, harmoniosos, perfeitos, desnudados, celebram o mesmo riso de vitória. Embalde a hipocrisia católica selou com a folha de vinha a nudez divina das Estatuas. Todas elas proclamam, com a beleza das formas; desveladas, os direitos plenos da vida.
            Depois vem a "Stanze", as "Loge", as madonas, a Ressurreição de Rafael. Tentou o grande Pintor fundir a graça e beleza pagãs na idealidade do Cristianismo. E aí tendes esse mundo de visões teológicas de carnações formosas, realizadas com um poder genial de execução, mas tão fantásticas e irreais, umas vezes, que são de uma beleza fria, outras tão reais e humanas, que inspiram apenas voluptuosidade pagã. Rafael é um contemporâneo e um acomodatício, representando uma arte e uma ideia de compromisso.
            Só Miguel Angelo tem um grito profundo de alma religiosa. O sombrio e rude irmão de Dante e Savonarola, que amou Vitoria Colona numa idealização platônica, sempre arredio, casto, sóbrio e revoltado, fala em nome dos puros e dos iluminados.
            A sua voz clama e esbraveja pelas figuras gigantescas do Velho Testamento,
            Os afrescos da Capela Sistina são o único protesto que os homens puderam gravar sobre o grande sarcófago do profeta vencido.
            Desde as cenas até aos atores o gênio de Miguel Angelo increpa e ameaça surdamente a sua época e os seus contemporâneos. Pintando o Gênesis e o Juízo Final, clama a necessidade de voltar às origens, ameaça os homens com a visão dos castigos eternos, refugia-se nos extremos do tempo, como uma reprovação aqueles em que vivia.  E criando uma raça nunca vista de Profetas e Sibilas, de Gênios e Titãs, irosos, pensativos, embotados, dando origem, pelo poder do gênio, a uma nova espécie super-humana, implicitamente condena o seu mísero e degradado semelhante.
            Se ele escolhe, para motivos de arte, a formação do mundo, a criação do homem e da mulher, a expulsão do Paraíso, a embriaguez de Noé e o Dilúvio, é para viver nos profundos símbolos do Gêneses as verdades primaciais e eternas, aborrido pela mentira soberana que o assalta, pela deformação consciente do que há de mais belo no Cristianismo. E, se rodeia depois aquelas cenas de um círculo arrebatado de pitonisas, videntes e cariatides, corpos de gigantes acometidos de cóleras, frontes alumiadas pela visão do futuro, faces sombrias, cheias de mágoa e pensamentos, foi para os fazer esquecer e delirar com a sua dor e indignação.
            O próprio Cristo do Juízo Final é um moço herói, nu e imberbe. Hércules irado que, num gesto sacudido, condena e precipita os maus e os ímpios.
            Eis a alegoria do Passado, a do Presente e a do Futuro.
            A volta do imenso sepulcro, lavrando as paredes da urna funerária, os deuses ou riem as claras nas estátuas da antiguidade, ou as ocultas no mundo de beldades angélicas e bailarinos dolentes e elegantes em que Raphael os disfarçou. Só ali a velha raça semítica, ardorosa e trágica, chora a sorte do mais puro dos seus filhos e parece anunciar ainda na alucinação dos Profetas para algum tempo remoto a vinda de outro iluminado, capaz de abalar com a Ideia Nova os alicerces do velho mundo.
            É a única voz de acento bíblico que ressoa no imenso aglomerado dos palácios. E essa pela boca das imagens e das tintas para os poucos capazes de a entender. Relíquias cristãs propriamente ditas, dentro do Vaticano, existem apenas os restos dos objetos votivos, emblemas, alfaias e adornos encontrados nas catacumbas. Mas - pormenor eloquente - o pequeno museu que os guarda é uma dependência quase ignorada da Biblioteca onde se colecionavam, junto aos velhos papiros, como coisas somente adequadas às escavações dos eruditos.
            E lá no extremo, ao fundo das galerias, no último lanço dos palácios, sobranceiros à Basílica, são os aposentos do Pontífice. Das suas janelas vê a praça e vê o templo. Não sai dali. Última sentinela romana de guarda ao sepulcro, desde que lhe coube a hora de vigia, não mais abandona o posto, até que outro o venha render enfim. É certo que eles empalharam o cada ver e lhe puseram desta vez uma tampa mais pesada que nunca.  Deixa-o . Revezam-se toda a vida naquele alerta.
            Não vá ele ressuscitar segunda vez..."


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