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"Voltemos a Roma e visitemo-la
de novo. Ela é estreita no espaço, mas infinita no tempo. Não se acaba jamais
de percorrer e meditar. Ponhamos ponto nesse capitulo de Pompéia, desdobramento
da Roma dos Césares, e, volvidas as idades, entremos agora na Roma católica.
É a Roma cristã! - Dessa restam
apenas alguns quilômetros de catacumbas e as piedosas lembranças de uma remota
cristandade, hoje guardadas em alguns museus. Embalde procurareis aqui o
sorriso doce do Galileu. Roma adora sempre e por demais a grandeza, a força, a
alegria e a violência, para abraçar sinceramente uma religião de humildade.
Também era demasiado prematura, para poder frutificar, essa tentativa de
espiritualizar a vida, em meio de uma humanidade de tão estreitos apetites.
Sim, Roma abraçou o Cristianismo, mas para o afogar nos braços. É isso, aliás,
o que sucede sempre em todas as sociedades que adotam uma ideia nova superior a
sua índole e educação. Essa religião de um povo de videntes e profetas era tão
incompatível com o gênio realista dos romanos que fatalmente havia de morrer
ali e tornar-se, em suas mãos, mais um instrumento de domínio. Os vendilhões do
templo fraternizaram com o Mestre, para lhe roubar o açoite e chicoteá-lo por
sua vez.
Essa vingança dos deuses, chamada o
catolicismo, é que explica como o paganismo irrompe de novo por toda a Roma,
que pretende ser cristã. Por isso em toda ela o que há de mais profunda e
expressivamente católico é a Basílica de S. Pedro e o Vaticano.
Esse mundo novo, onde vamos agora
penetrar, abre na praça de São Pedro, vasto recinto de clássico e romano sabor,
semi circundada como é pelo bosque das centenas de colunas bordando galerias,
com o centro marcado pelo fino obelisco de sienite, a cujos lados jorram
cataratas as duas grandes fontes de Maderna. Ao fundo o templo enorme e, por de
trás, sumindo-se, entrevendo-se, desdobrando-se, imenso e descomunal - o
Vaticano.
Ora, esse templo, a Basílica de S.
Pedro, é a mais alta expressão formal do catolicismo. Sendo o maior e mais rico
templo do mundo, é também o mais pesado, desgracioso e desconforme. A grandeza
maciça das colunas, que dividem as naves, causa uma impressão brutal de
esmagamento; o estadear das pompas e riquezas, de grosseiro e profundo, afasta
e hostiliza o visitante desprevenido, e a incoerência da sua
fachada, recoberta de estátuas descomunais, quase provoca, por grotesca, a
hilaridade. Para tornar grandioso aquele templo, Bramante foi aos palácios dos
Césares buscar as suas abóbadas, e Miguel Angelo ao
Panteão de Agripa a cúpula majestosa. Mas esse mesmo realçar espantoso da cúpula,
obra de gênio isolada, porque não joga com o resto e foi mascarada com as piores
deformações arquitetônicas, torna o
edifício mais abortivo, desmesurado e monstruoso.
Eis também porque a Basílica de S.
Pedro é o coval do Cristianismo... Quanto
mais lhe querem dar a ilusão de vida, mais representam a sua morte. Ele falava
de amor - o Cristo - e de humildade e de resignação. Ele exaltava, com o verbo
e o ato, os pobres, os fracos, os pequenos. Ali tudo é exibição, vaidade,
soberba; tudo a ideia de império e de grandeza, um lisonjear o gosto do fausto
e das riquezas. Cantam-no, louvam-no, glorificam-no, mas desmentem-no. E o
pobre dos pobres ali jaz, sepulto sob a avalanche dos brocados e diamantes.
À volta, o Vaticano, com os seus palácios,
os seus museus, as suas galerias, é o monumento fúnebre erigido à memória do Cristianismo.
Sarcófago imenso, lavrado de
alegorias, à maneira romana, e qual delas a mais irônica e profunda, O museu egípcio,
o museu etrusco, o museu antigo, cheios de estátuas, de vasos e de frisos.
Esses são o cortejo dos
deuses, desde Isis e Osíris a Apolo Musaxeto e Vênus-Afrodite, que vieram ao
grande saimento e cantam a alegria eterna da vida, a glória da Beleza e do Amor
sobre o túmulo do Profeta e da Ideia de renúncia.
De galeria a galeria desenrola-se a imensa teoria pagã
dos deuses do Olimpo estão ali, palpitando no mármore, os mais belos deuses que
é possível sonharem-se. O Júpiter de Otricoli sorri com majestosa onipotência,
o Apolo de Belvedere, graça luminosa da vida, paira com a suprema expressão da
nobreza máscula; a Vênus de Milo, a curvada, a anadiomenia, fingem com gestos
esconder, para maior incêndio do desejo, as maravilhas do corpo desejoso.
Depois, na cauda do cortejo, o Mercúrio, o Hercules, o Meleagro, o bando dos
faunos e bachantes, ou as caneforas do friso esbelto das ranateneas,
harmoniosos, perfeitos, desnudados, celebram o mesmo riso de vitória. Embalde a
hipocrisia católica selou com a folha de vinha a nudez divina das Estatuas.
Todas elas proclamam, com a beleza das formas; desveladas, os direitos plenos
da vida.
Depois vem a "Stanze", as
"Loge", as madonas, a Ressurreição de Rafael. Tentou o grande Pintor
fundir a graça e beleza pagãs na idealidade do Cristianismo. E aí tendes esse
mundo de visões teológicas de carnações formosas, realizadas com um poder
genial de execução, mas tão fantásticas e irreais, umas vezes, que são de uma
beleza fria, outras tão reais e humanas, que inspiram apenas voluptuosidade pagã. Rafael
é um contemporâneo e um acomodatício, representando uma arte e uma ideia de compromisso.
Só Miguel Angelo tem um grito
profundo de alma religiosa. O sombrio e rude irmão de Dante e Savonarola, que
amou Vitoria Colona numa idealização platônica, sempre arredio, casto, sóbrio e
revoltado, fala em nome dos puros e dos iluminados.
A sua voz clama e esbraveja pelas
figuras gigantescas do Velho Testamento,
Os afrescos da Capela Sistina são o único
protesto que os homens puderam gravar sobre o grande sarcófago do profeta
vencido.
Desde as cenas até aos atores o gênio
de Miguel Angelo increpa e ameaça surdamente a sua época e os seus contemporâneos.
Pintando o Gênesis e o Juízo Final, clama a necessidade de voltar às origens, ameaça os
homens com a visão dos castigos eternos, refugia-se nos extremos do tempo, como
uma reprovação aqueles em que vivia. E
criando uma raça nunca vista de Profetas e Sibilas, de Gênios e Titãs, irosos,
pensativos, embotados, dando origem, pelo poder do gênio, a uma nova espécie
super-humana, implicitamente condena o seu mísero e degradado semelhante.
Se ele escolhe, para motivos de
arte, a formação do mundo, a criação do homem e da mulher, a expulsão do
Paraíso, a embriaguez de Noé e o Dilúvio, é para viver nos profundos símbolos
do Gêneses as verdades
primaciais e eternas, aborrido pela mentira soberana que o assalta, pela
deformação consciente do que há de mais belo no Cristianismo. E, se rodeia
depois aquelas cenas de um círculo arrebatado de pitonisas, videntes e
cariatides, corpos de gigantes acometidos de cóleras, frontes alumiadas pela
visão do futuro, faces sombrias, cheias de mágoa e pensamentos, foi para os
fazer esquecer e delirar com a sua dor e indignação.
O próprio Cristo do Juízo Final é um
moço herói, nu e imberbe. Hércules irado que, num gesto sacudido, condena e
precipita os maus e os ímpios.
Eis a alegoria do Passado, a do
Presente e a do Futuro.
A volta do imenso sepulcro, lavrando
as paredes da urna funerária, os deuses ou riem as claras nas estátuas da
antiguidade, ou as ocultas no mundo de beldades angélicas e bailarinos dolentes
e elegantes em que Raphael os disfarçou. Só ali a velha raça semítica, ardorosa
e trágica, chora a sorte do mais puro dos seus filhos e parece anunciar ainda
na alucinação dos Profetas para algum tempo remoto a vinda de outro
iluminado, capaz de abalar com a Ideia Nova os alicerces do velho mundo.
É a única voz de acento bíblico que
ressoa no imenso aglomerado dos palácios. E essa pela boca das imagens e das
tintas para os poucos capazes de a entender. Relíquias cristãs propriamente
ditas, dentro do Vaticano, existem apenas os restos dos objetos votivos,
emblemas, alfaias e adornos encontrados nas catacumbas. Mas - pormenor
eloquente - o pequeno museu que os guarda é uma dependência quase ignorada da
Biblioteca onde se colecionavam,
junto aos velhos papiros, como coisas somente adequadas às escavações dos
eruditos.
E
lá no extremo, ao fundo das galerias, no último lanço dos palácios,
sobranceiros à Basílica, são os aposentos do Pontífice. Das suas janelas vê a
praça e vê o templo. Não sai dali. Última sentinela romana de guarda ao
sepulcro, desde que lhe coube a hora de vigia, não mais abandona o posto, até
que outro o venha render enfim. É certo que eles empalharam o cada ver e lhe
puseram desta vez uma tampa mais pesada que nunca. Deixa-o . Revezam-se toda a vida naquele alerta.
Não vá ele ressuscitar segunda vez..."
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