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VI.
Efeitos salutares da Reforma. - Sua inferioridade relativamente ao culto
sentimental do catolicismo. - Preponderância dos jesuítas nas deliberações do
concilio de Trento. - Inácio de Loiola e os extravios da sua missão. - O
espirito reacionário e intolerante permanece com o partido politico da Igreja.
- Copérnico, Giordano Bruno, Galileu. – Florescimento espiritual da família
cristã. - Renascimento expansivo da fé. -
Grandes santos. - Missões e catequese. -
- Últimos clarões.
Os efeitos salutares da Reforma não
se fizeram apenas sentir na moralização dos costumes, levada ao seio da igreja
romana, sobretudo após a reunião do concílio de Trento, nem na atividade mental
determinada pela agitação dos assuntos teológicos, que despedaçou os moldes
estacionários do dogmatismo em que se imobilizara o pensamento ocidental, nem
ainda no inestimável benefício de por diretamente o povo em contato com os
ensinamentos do Evangelho, mas se exprimiram por um apreciável desenvolvimento
intelectual, graças à difusão da instrução pública, tornada indispensável ao
estudo e conhecimento pessoal das sagradas letras.
Na Suíça, com efeito, além de
melhorar os costumes, dirigindo-se mais ao povo que propriamente ao clero, o
movimento reformista vulgarizou profusamente a instrução e, com
ela, difundiu preceitos morais, que são a base para a formação do caráter no
indivíduo. "Estabeleceram-se muitas
escolas elementares, e a nação, que havia sido até ali exclusivamente caçadora
e guerreira, aplicou-se aos estudos."
Esses efeitos se acentuaram no
decorrer do tempo. E, assim que, ao fim de séculos e, mesmo numa época vizinha
aos nossos dias, os cantões suíços reformados continuavam a
apresentar visível contraste com os católicos, por um espírito de iniciativa
mais acentuado e pelo adiantamento material e intelectual adquirido, enquanto
os últimos, privados de instrução no mesmo grau, pelo menos com idêntica amplitude,
permaneciam retardatários, acusam notável percentagem de analfabetos. Na
Alemanha, o fenômeno da alfabetização geral, que veio a reduzir mais tarde a
uma cifra quase nula o número dos iletrados e foi o ponto de partida de sua
prodigiosa cultura em todos os ramos dos conhecimentos humanos, não pode ser
dissociado da preponderância exercida pela sua formação e pela sua educação
religiosas.
O mesmo pode dizer-se não tanto da
raça anglo-saxônica, como particularmente do núcleo que, fugindo às
perseguições sectárias e fixando-se em o novo continente, veio a constituir o
povo norte-americano, rival, em pouco mais de um século, da nação germânica,
assim na quase total supressão do analfabetismo, como no vertiginoso
desenvolvimento de suas atividades econômicas, industriais e científicas.
Mas foi principalmente na esfera dos
costumes religiosos, restabelecendo a tradição dos patriarcas e dos apóstolos,
que não consideravam incompatíveis as funções eclesiásticas e o matrimônio,
reconciliando, portanto, como o dissemos, aquelas funções com os nobilitantes
encargos da família honestamente constituída e, desse modo, abolindo o celibato
obrigatório instituído pela igreja - fonte de tantos secretos desregramentos e
escandalosas uniões ilícitas - que a Reforma produziu os mais salutares e
moralizadores efeitos.
Dirigindo-se contudo mais à inteligência
e à razão que ao sentimento e cingindo-se antes literalmente aos imperativos
preceitos do mosaísmo que às misericordiosas e persuasivas doutrinas do
Evangelho, veio, com os seus dogmas da justificação exclusiva pela fé e,
sobretudo, da predestinação e da graça, de que resulta o aniquilamento do livre
arbítrio humano e torna ineficazes as boas obras, a incutir em seus adeptos
essa indiferença, pior ainda, essa implacável e egoística secura de coração
que, não excluindo embora a retidão de caráter, que é o recomendável apanágio
do homem de bem - característico dos pastores como, em geral, do rebanho
protestante - constitui, entretanto, uma flagrante negação do que de mais
sedutor se encontra no Cristianismo: a piedade e o amor ou, em suas mais altas
e radiosas expressões, a Caridade.
Neste sentido a igreja católica -
falamos do espírito dominante na família cristã e não da interesseira influência
do partido político que a explora - se mostrou sempre mais fiel
às inspirações da indulgência, consubstanciada nas lições e nos exemplos do
Senhor Jesus. Mesmo depois que as concepções teológicas, a instituição dos
dogmas, entre os quais o da odiosa condenação aos suplícios eternos, e a adoção
de um culto paganizado, porque duplicado de pomposo ritual, vieram substituir
as puras doutrinas evangélicas e alterar a singeleza das primitivas práticas, o
que na igreja subsistiu do pensamento cristão bastou para entreter nas almas a
ternura dos sentimentos fraternos, expressos em tantas obras de assistência e
de solidariedade humana.
Enquanto a Reforma, proscrevendo
rigidamente a doutrina das indulgências e a invocação dos santos, de alguma
sorte isolava os homens neste mundo, colocando-os exclusivamente à mercê das
inflexíveis injunções da Lei, para alcançar a salvação, a igreja, tendo suprimido
a comunhão ostensiva com o mundo espiritual, praticada pelas primeiras gerações
cristãs, como o demonstraremos oportunamente, mas que viera a tornar-se uma
fonte de abusos e superstições, instituiu em seu lugar o culto dos santos, por
cuja intercessão podem os pecadores obter misericórdia, com isso mantendo por
uma outra forma aquela comunhão, graças à qual já se não sente o homem, na sua ínfima
pequenez, tão distanciado da grandeza infinita do Criador e pode com Ele corresponder-se
mediante aquela compassiva escala, desdobrada entre a terra e o céu.
Mais, todavia, que o dos santos, o
culto ela Virgem Maria constituiu sem dúvida e tem, através os séculos,
constituído uma fonte não somente de inexauríveis consolações, mas de
aperfeiçoamento e exaltação dos sentimentos humanos, porque, como o assinala o
historiador, ele que nos temos socorrido, em termos calorosos, que fazemos
nossos:
"O nestorianismo e o concílio que o condenou são memoráveis especialmente porque foram
causa do desenvolvimento que tomou o culto de Maria. Quando os hereges tentaram
derriba-la do seu trono celeste, os católicos redobraram de veneração por ela,
e muitos templos se converteram em igrejas consagradas a Maria. E assim começou
a generalizar-se esse culto simpático, pelo qual o cristão adora a mãe de
Jesus, presta homenagem às virtudes da mulher e dá expansão às ternuras
desabrochadas em sua alma pelos carinhos maternos, pelo amor da esposa, pelo
suave prestígio dos encantos femininos. Maria é uma das mais formosas criações
elo Cristianismo e tem sido porventura uma das suas maiores seduções. Fala aos
sentimentos mais essenciais da natureza humana e, por isso, na antiguidade
auxiliou a Igreja a acabar de converter as gentilidades, e nos tempos modernos
inspira as devoções mais sinceras e ardentes que ainda amparam o catolicismo."
É verdade que a igreja, deificando o
Cristo e, portanto, colocando Maria, como Mãe de Deus, acima do próprio Criador,
veio a tornar, de certo modo, suspeito aos olhos dos puros
teístas, sobretudo depois que o adiantamento dos conhecimentos astronômicos
tanto contribuiu para modificar o conceito interpretativo da divindade de
Jesus, tornar suspeito - dizemos - um culto que, radicado nos mais nobres
impulsos do sentimento humano, foi por ela mesma conduzido aos exageros do que
se denominou por fim "a Mariolatria",
em detrimento da adoração suprema devida ao supremo Autor de todo o Universo e
de todas as criaturas. De tal modo, nessa igreja, vigiada de perto pelo AntiCristo,
as melhores práticas degeneram em abuso e o próprio bem, às vezes, se converte
em mal.
O inverso também, não raro, se
observa, consoante os inescrutáveis desígnios da Divina Providência. A
admissão, por exemplo, das imagens, generalizada e, por último, perpetuada, mas
que fora objeto de impugnação e controvérsias, durante um século, em vários
concílios, como a adoção de outros símbolos materiais, a introdução, nas cerimônias
do culto, de certos acessórios, como a música e o incenso, do mesmo modo que o
uso dos sinos, tudo em suma que lisonjeia os sentidos e constituiu, da parte da
igreja, uma deturpação
materializadora da espiritualidade característica do Cristianismo em suas
primitivas formas, não deixou contudo de atrair para o catolicismo grande número
de almas,
imperfeitamente evoluídas, e contribuiu para conservar em seu seio muitas
outras cuja mente, necessitada ainda de representações objetivas, seria
porventura inacessível a formas
religiosas de requintada espiritualidade.
Não há dúvida que desse atraso
mental cabe principalmente a culpa à própria igreja, desde que, renunciando aos
superiores métodos persuasivos da conversão pela fé e os exemplos
vivos da caridade, e assim se divorciando das instruções e do pensamento do
Divino Mestre, entrou a substituir no ânimo entibiado dos seus ministros o
essencial pelo
acessório e a fazer desse acessório, cuja transitoriedade apenas seria admissível,
o instrumento permanente do seu apostolado. Esquecida de que o Cristianismo é
uma doutrina essencialmente dinâmica, destinada a caminhar na vanguarda do
progresso humano, como agente de todas as suas transformações para melhor, e
não um sistema religioso de acomodações retardatárias, a tal ponto consentiu no
estacionamento dos seus métodos educativos e das suas práticas que deixou converter-se
numa necessidade o que devera ser contido nos limites apenas de uma condescendência
transitória. É por isso que, durante o movimento reformista na Suíça, "quando Zwinglio, Engelhard e Leão Judas se
puseram a declamar contra as imagens, manifestou-se oposição popular"
e o seu uso não foi abolido senão depois de vivas controvérsias. De tal modo se
haviam os crentes identificado, ao fim de quase dez séculos de tolerância, com
a integração da idolatria em seus hábitos de religiosidade.
Como quer que seja e para não
recusarmos o testemunho de nossa imparcialidade ao que pode considerar-se uma
inevitável contingência dos tempos e da situação peculiar de certos espíritos,
conviremos em que os símbolos materiais teriam contribuído para atrair ao seio
da igreja povos incultos e grosseiros como os bárbaros do norte, ao termo de
sua invasão no ocidente, e mais tarde as populações selvagens da África e da América,
substituindo nestas os objetos do culto fetichista por outras expressões de
natureza semelhante, mas de significação mais elevada.
O grande mal que debilitava a
igreja, ameaçando de irremediável colapso a sua influência espiritual, na época
a que nos reportamos, não era tanto o se haver obstinado na conservação de práticas
cultuais materializadas, senão, em seus efeitos dissolventes, os abusos
extorsivos da cúria e os exemplos desmoralizadores com que o clero, em seus
desregramentos, escandalizava o povo, abalando, quase destruindo os estímulos
da fé, que havia geralmente perdido e lhe cumpria, entretanto, alimentar no espírito
das multidões.
A esses males viscerais é que urgia
serem opostos eficazes e prontos remédios, reclamados pelo próprio instinto de
conservação e tornados imperiosos pelo movimento revolucionário e oportuno da
Reforma. Se, além disso, não pesasse sobre a igreja a ação obnubiladora do AntiCristo
e aos seus dirigentes fosse, de outro modo, permitida uma clara visão das
necessidades do futuro, teriam eles compreendido que uma série de medidas, no
sentido liberal, se impunha igualmente em seus ensinos dogmáticos, substituindo
as concepções terroristas de uma teologia, que fora porventura adequada ao período
de formação das sociedades ocidentais, por novas concepções em harmonia com o
adiantamento das ciências e, portanto, com as tendências racionalistas dos espíritos
cultos, que já se não poderiam satisfazer com os velhos moldes de uma teodiceia
obsoleta.
O impulso de renovação introduzido
pela Renascença na literatura e nas artes devia forçosamente propagar-se ao domínio
religioso. A ânsia de liberdade, que fora dos mais poderosos motivos da extensa
repercussão adquirida pela Reforma, a rapidez com que daí em diante se efetuaria o progresso intelectual,
graças à amplitude na circulação das ideias promovida pela imprensa, tudo isso
estava a indicar que, ao lado das medidas moralizadoras e disciplinares
reclamadas para reabilitação do clero e sua reintegração na estima e no
conceito populares uma reforma igualmente se impunha nas concepções doutrinárias
da igreja, pondo-as em concordância com os ensinamentos do Evangelho e, assim,
com a Justiça, a Bondade e a Sabedoria de Deus, em torno das quais giram todos
eles. E não apenas em suas concepções teóricas, senão que a primeira medida que
se impunha era a abolição do sinistro aparelho de torturas - monstruoso
testemunho negativo do espírito do Cristianismo - que era a Inquisição.
Por essa e não por outra forma,
satisfazendo, além das modestas necessidades da crença popular, as legítimas
aspirações das inteligências esclarecidas e pondo termo, igualmente, ao odioso
contraste daquela nefanda instituição com as misericordiosas doutrinas do Redentor
e não exterminador dos homens, é que a igreja lograria sobrepujar a profunda e
extensa crise que a atribulava, restituindo-lhe, com a missão apostólica e
tutelar, de que se vinha, há séculos, divorciando, a quase perdida influência
espiritual sobre a cristandade e o mundo, em vésperas de grandes
transformações.
Vejamos até que ponto lhe consentiu,
ou se porventura o consentiu, a pressão escravizadora do AntiCristo por em prática
esse programa libertador.
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