“Poetas
do Outro Mundo”
Humberto de Campos
Reformador
(FEB) Maio 1955
Sob
o título acima, o brilhante acadêmico e inesquecível cronista Humberto de
Campos escreveu no “Diário Carioca” de 10 de Julho de 1932, uma página de
crítica referente à primeira edição do "Parnaso de Além-Túmulo", obra
psicografada pelo médium Francisco Cândido Xavier.
Ei-la,
na íntegra:
"Francisco Cândido Xavier é o nome de um moço
de origem humilde, nascido em Pedro Leopoldo, Estado de Minas Gerais, em 1910.
Após um estágio na escola primária de sua terra, entrou, como operário e órfão,
para uma fábrica de tecidos e, em seguida, para um estabelecimento comercial. E
como este mundo não lhe parecesse dos mais amáveis, começou a pensar no outro,
aderindo ao espiritismo, com as altas funções e responsabilidades de
"médium".
Lidando nesta vida, com os espíritos medíocres
que frequentam a casa de comércio em que trabalha, resolveu Francisco Cândido
Xavier tornar-se mais exigente no reino das sombras, buscando, nele, para
conversar, inteligências superiores, homens de letras e, especialmente, poetas,
que já haviam passado por este mundo. Nessas palestras em que a boca se
mantinha em silêncio, transmitiam-lhe os seus novos amigos algumas poesias
elaboradas depois de desencarnados, e que o jovem caixeiro de Pedra Leopoldo ia
escrevendo mecanicamente, sem esforço do braço ou da imaginação. Esses
espíritos eram, ordinariamente, Guerra
Junqueiro, Antero do Quental, Augusto dos Anjos, Castro Alves, Casimiro de
Abreu, João de Deus, Auta de Souza, Pedro lI, Souza Caldas, Júlio Diniz, Cruz e
Souza, Casimiro Cunha, poeta vassourense. Às vezes aparecia, também, um
anônimo, cuja modéstia não desaparecera nem no outro mundo. E cada um deles
escrevia o seu soneto, ou a sua poesia, com a pena de Francisco Cândido Xavier,
o qual, reunindo-as, acaba de publicar o "Parnaso de Além-Túmulo",
editado pela Federação Espírita Brasileira. O primeiro pensamento que assalta o leitor, antes de examinar o
merecimento literário da obra, é a ideia de que, nem no outro mundo, estará livre dos poetas. A
poesia é uma predestinação de tal modo fatal, irremediável, que a vítima não se
livra dessa maldição nem, mesmo, depois da morte. Quem fez sonetos ou
redondilhas neste planeta, está condenado a faze-las em todos os pontos do
espaço e da eternidade a que o leve o dedo divino. E sem mudar de estilo. E sem
variar de temas. E sem modificação de ritmos, de rimas ou de inspiração.
Admitindo essa verdade, a vida literária no outro mundo deve ser mais variada,
embora mais fatigante, do que neste. Lá estão, ainda, Anchieta, a celebrar a
Virgem Maria em língua tupi; Botelho de Oliveira a cantar no estilo da
"Ilha da Maré" e da "Música do Parnaso". Cláudio Manoel da
Costa, escrevendo sonetos clássicos; Gonçalves Dias, com a sua lira romântica;
e os parnasianos; e os simbolistas; e os futuristas, que morreram antes do
futurismo morrer. A
vantagem apresentada por essa reunião de escolas ficará, todavia, comprometida
pela eternidade da produção. A superioridade que esta
vida apresenta sobre as outras, está, precisamente, no seu caráter
transitório. Quando um indivíduo, entre nós, dizendo-se benquisto dos deuses, empunha a lira,
ficamos certos, desde logo, que ele um dia emudecerá. E é esse consolo que não
têm os habitantes do Astral, os quais se acham condenados a escutar os maus
poetas até a consumação dos séculos.
O Inferno Católico é, nesse particular, mais
bem organizado do que os mundos em que o espiritismo coloca os mortos. Quando
Dante nele penetrou, lá encontrou Virgílio, e outros mestres latinos e medievais.
Travou, com eles, palestras, sobre a existência que levavam e, nenhum lhe
recitou versos novos, - fato que prova, e sobejamente, que os Demônios lhes
tomaram a lira, a bem da ordem interna do estabelecimento, no momento da
entrada.
O "Parnaso de Além-Túmulo" do Sr.
Francisco Cândido Xavier torna-se, por isso mesmo, interessante para os poetas
vivos, embora constitua uma terrível ameaça para os que detestam a língua
rimada ou ritmada. "Lasciate ogni
speranza, voi ch'entrate!" Lá dentro, no reino da Morte, há poetas, e
eles cantam. E cantam como cantavam aqui, sem omissão, sequer, da linguagem
preciosa que aqui utilizavam. "Muitas vezes - confessa o
"médium" no prefácio da obra -, muitas vezes, ao recebermos uma
destas páginas, era necessário recorrermos ao dicionário, para sabermos os
respectivos sinônimos das palavras nela empregadas, porque tanto eu como os
meus colegas as desconhecíamos em nossa ignorância." Não obstante a mudança de clima, cada um conserva,
por lá, as suas virtudes e defeitos literários.
- Eu faltaria, entretanto, ao dever que me é
imposto pela consciência, se não confessasse que fazendo versos pela pena do Sr.
Francisco Cândido Xavier, os poetas de que ele é intérprete apresentam as
mesmas características de inspiração e de expressão que os identificavam nesse planeta.
Os temas abordados são os que os preocupavam em vida. O gosto é o mesmo. E o verso
obedece, ordinariamente, à mesma pauta musical. Frouxo e ingênuo em Casimiro,
largo e sonoro em Castro Alves, sarcástico e variado em Junqueiro, fúnebre e
grave em Antero, filosófico e profundo em Augusto dos Anjos, sente-se, ao ler
cada um dos autores que veio do outro mundo para cantar neste instante, a
inclinação do Sr. Francisco Cândido
Xavier para escrever "à Ia manière
de... " ou para traduzir o que aqueles altos espíritos sopraram ao
seu.
Essa identificação
será todavia objeto de outro artigo. (*) Por enquanto eu quero, apenas, pôr de
sobreaviso os poetas vivos contra o perigo que a todos nos ameaça com a ideia que
tiveram os mortos de voltar a escrever neste mundo em boa hora abandonado por
eles. Se eles voltam a nos fazer concorrência com os seus versos perante o
público e, sobretudo, perante os editores, dispensando-lhes o pagamento de
direitos autorais, que destino terão os vivos que lutam hoje com tantas e tão
poderosas dificuldades?
(*) Este outro artigo foi publicado no mesmo jornal, em 12 de Julho,
com o título - "Como cantam os mortos ... ". Humberto de Campos, após
rápida análise do estilo de alguns dos poetas constantes no
"Parnaso", transcreve, parcial ou totalmente, uma poesia mediúnica de
cada um deles, mostrando a identidade das ideias dos comunicantes desencarnados
com as ideias deles quando vivos. A crônica terminava assim: "O Parnaso de
Além-Túmulo me parece, como se vê, a atenção dos estudiosos, que poderão dizer
o que há, nele, de sobrenatural ou de mistificação. No primeiro caso, o outro
mundo deve ser insuportável, com os poetas que lá se acham E pior será, ainda,
se houver, também, por lá, declamadoras... " (Nota de "Reformador.)
Quebre pois cada espírito a sua lira na
tábua do caixão em que deixou o corpo. Ou, então, encarne-se outra vez, e venha
fazer a concorrência aqui em cima da terra, com o feijão e o arroz pela hora da
vida.
Do contrário, não vale."
Outra
não poderia ter sido, naquela época, a linguagem do celebrado escritor
maranhense, pontilhada de chiste, graça, ironia e descrença, mas, como viram os
leitores; Humberto de Campos reconheceu a perfeita identidade das poesias
mediúnicas com as que subscreveram os seus autores quando encarnados.
Se
ele houvesse conhecido pessoalmente o médium, e o visse receber as poesias,
certamente que não levantaria a primeira hipótese, a do "pastiche"
pois logo concordaria com as palavras do seu amigo, o renomado crítico Agripino
Grieco, que, havendo presenciado, em 1939, o "modus operandi' do recebimento das produções mediúnicas de Francisco Cândido
Xavier, assim se externava: “Tendo lido
as paródias de Albert Sorel, Paul Reboux e Charles Muller, julgo ser difícil
(isso o digo com a maior lealdade) levar tão longe a técnica do ‘pastiche’.”
Riscando,
por improvável, a hipótese ‘à la manière
de...’,só restaria então a Humberto de Campos pender para a segunda
hipótese por ele enunciada, a da realidade das comunicações de além-túmulo, no
qual, dois anos depois, ele ingressaria, e do qual, meses mais tarde, ele
também voltaria, como ‘escritor do outro
mundo’.
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