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"Quando
os franceses invadiram a Navarra - informa
o historiador, aos termos de cuja narrativa nos cingiremos sempre que possível - acharam todas as fortalezas desmanteladas,
à exceção de Pamplona. Estava nessa praça encerrado Inácio
de Loiola, fidalgo de Guipuzcôa, que tinha sido pajem na corte de Fernando e
Isabel e, depois, fora promovido a oficial. Era um moço leviano, formoso,
elegante, bem aceito pelas damas, valoroso como um
cavaleiro andante. Ferido, no empenho de repelir os estrangeiros, a cirurgia da
época lhe infligiu torturas atrozes; tendo ficado mal encanada a perna que
fraturara, o corajoso enfermo ordenou que a
tornassem a quebrar, para se lhe fazer depois mais acertado curativo. Preso ao
leito durante muitos meses consecutivos, entreteve-se a ler o FLOS SANCTORUM, e
essa leitura, impressionando sua alma ardente, lhe
transformou completamente o ideal. Como Lutero, sondou os abismos da alma em luta
consigo mesma e procurou a reconciliação com Deus; mas em vez de se acolher,
como o frade alemão, à terrível doutrina da predestinação, recorreu às obras e
buscou a paz na obediência à Igreja. Sonhou então novas empresas de
heroicidade, de que a Virgem seria a dama inspiradora, e, abandonando a pátria,
pôs se a caminho de Jerusalém, com a ideia de ir arrancar o túmulo de Cristo
das mãos dos infiéis (1524),"
"Chegado
a Monserrat, fez a ‘vigília de armas’ aos pés da Virgem, depôs sobre o altar o
vestuário mundano, envergou o burel de um mendigo e consumiu três dias numa
confissão geral. Para merecer a absolvição, infligiu-se as mais cruéis penitencias.
Em Manresa recolheu-se ao hospital e começou a viver como um faquir. Jejuava a
pão e agua e só aos domingos se permitia o regalo de umas ervas cosidas.
Disciplinava-se três vezes por dia, trazia um cilício sob o burel e uma cadeia
de ferro ao pescoço. Ainda não contente com tais mortificações, meteu-se numa
cova, para se purificar e ser digno da empresa que ia tentar. Nesta solidão teve visões, o
bem e o mal lhe apareciam como guerreiros combatendo na sua alma como na
estacada: um, montado num cavalo de luz, vinha de Jerusalém guiado por Jesus, o
outro, cavalgando um corcel de trevas, partira de Babilônia, impelido por Satanás.
No desespêro produzido por essas alucinações quis matar-se; a fome, as noites
veladas, com a boca cheia de terra e o corpo a escorrer água, a pavorosa luta interior o
enlouqueceram de todo. Deus apareceu-lhe então. Viu a Trindade, desvendaram-se lhe
todos os mistérios das Escrituras. Encontrou a beata de Manresa, uma vidente,
que o próprio rei Fernando consultava;
cobrou alento para continuar a sua peregrinação e partiu iluminado de Barcelona.
"O
ar do mar lhe restaurou a saúde. Atravessou a França e a Itália. Depois de
beijar os pés a Adriano VI, seguiu para Veneza, onde chegou miserável,
descarnado, escarnecido por todos; no navio foi apupado pela marinhagem, que
intentara converter. Na Palestina visitou os lugares santos, chorando
copiosamente; pregou aos infiéis, mas os franciscanos encarregados da guarda do
Sepulcro, receando que o seu zelo irritasse os turcos, o fizeram prender e
transportar para Veneza, donde voltou a Barcelona.
"Essas
aventuras, o que viu na Europa e na Ásia deram uma direção prática ao seu entusiasmo.
Compreendeu que o primitivo projeto que havia formado era quimérico e que urgia
não já resgatar Jerusalém, porém salvar Roma. Não se podia arrastar as multidões
unicamente com o zelo e a pobreza, desde que os homens se tinham policiado e
esclarecido; largou, pois, os andrajos, desistiu das macerações exageradas, volveu às relações sociais,
aplicou-se ao estudo e, aos trinta e três anos, começou corajosamente a
aprender gramática e filosofia. Fez, porém, minguado progresso. Os escritos a
que se aventurou saíram-lhe descosidos, disformes; pregou, todavia, com tanto
fervor que a inquisição desconfiou dele, mandou-o calar e, depois, o meteu num
cárcere . Restituído à liberdade, dirigiu-se a Paris, sempre estudioso e pobre, sempre exaltado.
A Sorbonne também atentou naquela figura singular; interrogou-o, porém, e não
achou que censurar nas suas resposta.
"Combinando
o misticismo do autor da IMITAÇÃO DE CRJSTO com o gênio ativo e cavalheiresco do
seu país, empreendeu então fundar uma nova cavalaria, não já para combater
gigantes, castelãos e monstros, porém os maometanos, os idólatras e os hereges.
Com seis amigos associados aos seus projetos, fez voto, em Montmartre, de se colocar
sob a obediência do papa, a fim de empregar nas missões a sua dedicação heroica.
Confiados nas promessas do Cristo, os sete entusiastas foram para a Itália e aí,
agitando as largas abas dos seus chapéus castelhanos, pregaram a penitência num
italiano espanholado, em que os habitantes estavam costumados a
ouvir ameaças e injurias, Depois submeteram à aprovação de Paulo III o plano de
uma ordem destinada a formar a fé e a propaga-la pela prédica e pelos
exercícios espirituais, pela caridade com os presos e os enfermos (1546). O
papa sancionou esse plano e deu aos novos religiosos o nome de Clérigos da companhia de Jesus, assim como se dizia
soldados da companhia do conde Lando ou de Fra Monriale; Inácio ficou sendo o
seu chefe com o título militar de general
(geral).
"Itália
e Portugal os admitiram logo. Claudio de Jay foi combater a heresia em Brescia
; Brouet dirigiu-se a Senna para reformar um mosteiro que dava escândalo; Bobadilha
partiu para a ilha de Isquia, encarregado de aplacar inimizades
ferozes; Lefevre exerceu o apostolado em Parma; Lainez tratou na Alemanha de
negociações delicadíssimas; Nufiez foi escolhido para patriarca da Abissínia;
Francisco Xavier, que queria juntar um santo à
série de heróis que ilustravam a sua ascendência, partiu para as Índias orientaies,
investido, diz a bula de sua canonização, "em todos os sinais da virtude
celeste, do dom de profecia, das línguas, dos
milagres de toda espécie". Depressa se multiplicaram os noviciados, os colégios
e as concessões do papa, que viu quanto lhe podia ser útil uma ordem toda
dedicada a sua
autoridade."
Tais foram os primórdios da milícia,
que tão poderosa e decisiva influência havia de exercer na reforma que
urgentemente se impunha à igreja católica; tal, em rápidos traços, a
psicologia do seu criador, cuja exaltada sinceridade não pode ser posta em dúvida,
mas em quem a ausência da humildade e do amor verdadeiramente cristão
contribuiu para extraviá-lo
da missão evangélica, a que o induziriam os pendores místicos despertados em
sua alma pela sugestiva leitura da vida dos santos, para o converter, e a sua
ordem, num instrumento
antagônico dos princípios do Cristianismo.
Vamos ver, no prosseguimento da
narrativa referente à obra realizada e aos métodos empregados pelos jesuítas,
quanto, abstendo-se embora de odiosas violências ostensivas, como as praticadas
pela inquisição, sem deixar de contribuir com apreciáveis benefícios para o
aperfeiçoamento das inteligências, o seu papel contudo foi dos mais funestos,
dada a natureza das armas de que se utilizavam - a astúcia, a dissimulação,
postas ao serviço de uma vontade inflexível - não para tornar amada dos homens
a doutrina de Jesus, mas para impor à cristandade e ao mundo a autoridade
humana, intolerante, do papado e, com ela, a supremacia de seus interesses
temporais. Exigindo de seus membros, como regra absoluta, a obediência passiva,
que os tornava automáticos pela abolição da personalidade, a Companhia, ou
aquele que, do oculto, a manobrava contra a sociedade em proveito de uma
classe, tinha em vista, fazendo dessa obediência uma força de coesão molecular,
como
nos corpos brutos da natureza, constituir-se um bloco de projeção e de domínio
irresistível, para realização dos seus objetivos. Tudo o que há de contrário ao
espírito cristão.
Porque o Cristo, que é amor -
expressão viva do Pai - e que nos veio libertar de toda lei de servidão, quer
ser amado e livremente obedecido, com o consenso da razão e do sentimento.
Paulo proferiu esta profunda
verdade, que havemos de ainda, em outra oportunidade, e no curso desta obra,
recordar: "o Senhor é Espirito, e
onde há o Espírito do Senhor, aí há liberdade". Esta definição é o
libelo condenatório da milícia jesuítica. Posta em paralelo, assim nos métodos
de admissão às suas fileiras como em sua finalidade, com a Ordem
franciscana, tal como primordialmente a instituiu o seu excelso criador, o
contraste ressalta veemente. Enquanto a obra de Francisco de Assis, fundada na
humildade e no amor,
visava converter os homens a Jesus e fazia da pobreza, individual e coletiva,
jubilosamente preferida, um ensinamento prático de renúncia, sem outra coisa
exigir dos que na Ordem quisessem ingressar, senão um propósito sincero, ao
mesmo tempo que aos seus membros assegurava o patriarca plena liberdade de ação
- característicos todos nitidamente evangélicos - a milícia jesuítica foi em
torno do papado que arregimentou a sua dedicação incondicional: se impunha aos
seus membros os votos de pobreza, obediência e castidade, reservava para si,
praticamente, o direito da riqueza e da dominação, e, cerceando lhes
absolutamente a liberdade no domínio da ação e do pensamento, só os admitia ao
fim de longos anos de preparação, depois de neles completamente aniquilada a
personalidade, prontos a fazer um dogma do odioso e amoralíssimo princípio de
que "os fins justificam os meios". Se a primeira, em tais condições é
obra de Jesus, a outra não pode ter sido mais que uma calculada manobra do AntiCristo,
bastante astucioso em suas pérfidas sugestões para dissimular com algumas
realizações benfazejas os seus intuitos, ou - o que é talvez mais verdadeiro -
incapaz de impedir, graças à fiscalizadora vigilância do Senhor, que ao lado
dos seus tenebrosos fins, alguns apreciáveis benefícios fossem realizados pela
milícia, no domínio da instrução e da beneficência, com aproveitamento das
aptidões e - porque não admiti-lo? - da sinceridade de propósitos de muitos de
seus membros. Que ainda nesse episódio da existência da igreja católica o joio
e o trigo, da parábola evangélica, andaram associados.
É o que se evidencia do testemunho
da história, no prosseguimento das referencias à obra jesuítica.
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