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Voltemos ao patriarca.
Entre as numerosas conversões que
obteve, conta-se, em 1213, a do fidalgo Orlando de Chiusi de Consentino, que
ofertou à Ordem a propriedade do Mont’ Alverne, tornado célebre não somente
pelas demoradas visitas que a ele fez posteriormente o apóstolo, mas pelo fenômeno
de estigmatização, que aí se lhe produziu e de que adiante falaremos.
Prosseguindo a obra de evangelização
com êxito crescente, quer pela entrada de novos irmãos na Ordem, quer pelo
acolhimento que da parte do povo encontrava, operando sensível ressurgimento da
fé e melhorando os costumes, promovendo, numa palavra, uma verdadeira
restauração, pelo menos parcial, da Igreja Cristã, houve que amplia-la a outros
países da Europa e ao Oriente, para onde Francisco enviou alguns de seus
abnegados companheiros, seguindo ele mesmo, em 1219, com outros irmãos para o
Egito, a anunciar a Boa Nova (1).
(1) Dos frutos dessa evangelização nos dão
noticia os trechos seguintes de uma carta de Jacques de Vitry, citada pelo
cronista de cujos depoimentos nos temos socorrido:
"Tenho a dizer-vos que,
Maitre Reynier, prior de S. Miguel, entrou na Ordem dos Irmãos Menores, ordem
que por todos os lados se multiplica muito, porque imita a Igreja primitiva e
segue em tudo a vida dos apóstolos. "O
mestre desses irmãos chama-se o irmão Francisco: é tão amável que se faz
venerar por todos. Vindo para o nosso exército, não temeu, por zelo pela fé, as
iras dos nossos inimigos.
"Colin, o inglês nosso
letrado, entrou na mesma Ordem, assim como dois outros dos nossos companheiros,
Miguel e D. Matheus, ao qual eu tinha confiado o curato da Santa Capela. Castor
e Henrique fizeram o mesmo, bem como outros cujos nomes esqueço."
Antes disso, porém, ocorreu um
sucesso que merece destaque. Levado a Roma pelo cardeal Hugolino, que tomara
como protetor da Ordem, contra a má vontade do sacro colégio, e obrigado a pregar
diante do papa, Francisco de Assis, tendo preparado a sua oração, no momento de
a proferir, esqueceu completamente o que escrevera e humildemente o confessou.
Mas tão inspirado logo se sentiu que improvisou um eloquente discurso, com que
subjugou toda a assistência.
Ali sofreu ele a primeira investida
contra a pureza institucional da sua comunidade. Encontrando-se com o patriarca
da Ordem dominicana, pretendeu este induzi-lo a fundir na dele a Ordem
franciscana, para satisfazer os desejos do papado e também para melhor desse
modo retribuir os favores que da cúria romana recebera, em virtude dos quais não
hesitara em adoptar na sua comunidade a regra de S. Agostinho.
Francisco de Assis opôs-se
formalmente: "queria isolada e simples a sua querida Ordem dos irmãos
menores".
O inimigo, entretanto, não
desanimou. Enquanto Francisco evangelizava no Oriente, o cardeal Hugolino, que
só hipocritamente se fizera protetor dos franciscanos, impunha às
clarissas a regra beneditina, a que tanto se opusera o patriarca, ao mesmo
tempo que os substitutos deste no governo da Ordem, atraiçoando a confiança que
neles fora depositada,
"mitigavam os votos, multiplicavam
as observâncias, precipitavam a Ordem na imitação das antigas, adstringindo-a a
meras prescrições ritualísticas".
Avisado Francisco de Assis do que
ocorria, regressou imediatamente do Egito e ficou desolado, ao encontrar "evidentes sinais de relaxação: os frades já
eram proprietários", violando assim o voto de pobreza absoluta que
haviam feito.
Recorrendo ao cardeal Hugolino,
este, em lugar de apoiar o patriarca, procurou convence-lo de que "convinha entrar a Ordem sem demora no regime
habitual do catolicismo, aceitando as concessões de Roma". O privilégio
das irmãs clarissas foi cassado, e o papa Honório III expediu em 1220 uma bula
modificando os dispositivos da regra franciscana.
Diante desse criminoso desmoronamento
da sua amada comunidade, no que se refere ao espírito em que fundamentalmente a
instituíra, Francisco de Assis, com a alma transpassada
de amargura, reuniu em setembro daquele ano o último capítulo geral, a que
presidiu, e abdicou suas funções em Pedro de Catania, dizendo aos companheiros:
"De ora avante, irmãos, morri para
vós; mas eis aqui o irmão Pedro de Catania, a quem todos vós e eu obedeceremos".
Fiel aos seus sentimentos de
humildade, não tendo embora senão lágrimas no coração para presenciar a
deturpação da obra que com tanto amor edificara, conservou-se o patriarca na
prometida obediência, assistindo ainda ao capítulo geral de 1221, em que Pedro
de Catania foi, a seu turno, substituído pelo irmão Elias.
Terminara para a Ordem o período de
inspiração e liberdade, entrando ela no regime de absoluta sujeição à igreja.
"O santo - informa o cronista - deixando
a Porciúncula, buscou a solidão nas montanhas da Úmbria. Em 1224 assistiu
ele pela última vez ao capítulo geral, dirigindo-se em seguida, com os irmãos
Masseo, Ângelo e Leão, para o famoso Mont'Alverne". Alí
ocorreu, na manhã de 14 de setembro, após uma longa vigília de penitência e
oração, o fenômeno de estigmatização, a que aludimos.
"Nos
raios quentes do sol a erguer-se, o qual, sucedendo ao frio da noite, vinha
reanimar lhe o corpo, distinguiu de repente o santo uma forma estranha. Um serafim,
asas abertas, voava para ele dos confins do horizonte, inundando-o de alegrias
inexprimíveis. No centro da visão aparecia uma cruz e o serafim estava pregado
nela. Quando a visão desapareceu, sentiu que às delicias do primeiro momento se
juntavam dores pungentes. Profundamente confundido, procurou com ansiedade a
significação de tudo isso e encontrou, impressos em seu corpo, os estigmas do
Crucificado".
Tratou de ocultar humildemente os
sinais glorificadores, passando desde então a andar calçado e escondendo as
mãos nas mangas do hábito, mas não tardou em ser descoberto, daí lhe provindo a
conhecida designação de "São
Francisco das Chagas".
Em fins de setembro deixou para
sempre, com profunda saudade, o Mont' Alverne, dizendo adeus às arvores amigas
e seguindo para a Porciúncula, onde pouco se demorou, entrando em seguida a
evangelizar o sul da Úmbria.
Era já o ocaso da sua missão. Ferido
no amor exuberante com que servia ao Senhor e que se desdobrava enternecido por
todos os seres da criação, não era mais que uma sombra angustiada e errante
daquele jovial condottiere do Bem,
que fraternizava com as aves, entoando, de conserto, hinos de glorificação ao
Criador; que tirava as formigas e as lagartas do caminho, para não serem
pisadas, e agasalhava na manga do hábito as cigarras, que lhe vinham cantar na
palma da mão; que, em sua profunda humildade, não apagava as lâmpadas e as
velas, “para não profanar a luz com o seu
sopro", nem amarfanhava uma folha de papel escrito, porque podia
conter as letras com que se escreve o nome de Jesus. O
poeta, que compusera o maravilhoso "Hino
do Sol", que celebrara as cariciosas belezas da Água, como das mais
preciosas dádivas de Deus às criaturas deste mundo e tecera apaixonados madrigais
a Dona Pobreza, continuava, sim, a bem-dizer e louvar o Criador por tudo e por
todas as coisas, sem exceção do próprio sofrimento, com que exalta e aperfeiçoa
as potencialidades da alma humana, mas não podia esquivar-se à infinita
amargura que lhe resultava de ver lançada por terra a obra com que, no seu expressivo
dizer, "Deus quisera fazer um novo
pacto com o mundo".
Esse traumatismo moral não podia
deixar de afetar-lhe profundamente o organismo. Adoeceu, por isso, mais de uma
vez, gravemente, sendo removido, em busca de melhoras, para a ermida de Monte
Colombo, perdida entre árvores e rochedos, e mais tarde para Siena, sem
resultado, sendo acometido de vômitos de sangue.
Quis então voltar para a Úmbria.
"Tinha pressa em rever a sua Porciúncula
e os mais lugares que se avistam dos terraços de Assis e tão doces recordações
lhe avivavam".
Numa de suas mais agudas crises
viram-no, ardendo em febre, levantar-se de repente na cama e bradar com
desespero: - Onde estão os que me roubaram os irmãos? Onde estão os que me
roubaram a família?
"É necessário recomeçar - pensava alto - criar uma nova família, que não esqueça a humildade: ir servir os
leprosos e, como outrora, pormo-nos sempre, não só em palavras, mas na
realidade, abaixo de todos os homens".
Na PorciúncuJa ditou um testamento
para os irmãos menores e ditou outro para as filhas de santa Clara, "que interessados fizeram desaparecer".
Aproximava-se o desenlace, cujas
particularidades resumimos. Do palácio episcopal de Assis, onde ocorrera a
derradeira crise, foi a seu pedido carregado pelos companheiros para a sua
querida Porciúncula, detendo-se em caminho, para abençoar a cidade e
dirigir-lhe, numa comovida prece ao Senhor Jesus, os últimos adeuses.
No dia primeiro de outubro (1226)
mandou que, despido, o deitassem na terra: queria morrer nas braços de sua
dama, a Pobreza. Reposto no leito, a todos pedia perdão e abençoava.
Da radiosa serenidade, com que
encarava a sua próxima libertação, pode ajuizar-se pela despedida que antes,
ainda em Assis, dirigira aos companheiros, exortando-os: "Adeus, meus filhos! ficai sempre no temor de
Deus, ficai sempre unidos em Jesus. Grandes provações vos estão reservadas! a
tribulação vem perto. Felizes os que perseverarem como começaram, pois haverá
escândalos e cisões entre vós. Eu vou para o Senhor e para o meu Deus. Sim,
tenho certeza de que vou para Aquele que eu servi".
Depois disso, ainda reuniu ao pé de
si os irmãos Ângelo e Leão e entoou com eles o cântico em louvor da morte
corporal.
O desenlace, porém, só veio a
ocorrer na Porciúncula, como íamos descrevendo, ao cair da tarde de 3 de
outubro, verificando-se por essa ocasião um tocante sucesso, assim narrado
pelo irmão Boaventura:
“À
hora do passamento, as cotovias, aves que amam a luz e temem as sombras do crepúsculo,
juntaram-se em grande número sobre o teto da casa, embora se aproximassem as
sombras da noite, e, esvoaçando com certa alegria desusada, entraram a dar
testemunho, tão gracioso quão evidente, da glória do santo, que costumava
convida-las para louvarem a Deus".
Saudado assim, do lado de cá, por
esse coro de inocentes e delicadas criaturas, que um poder divino punha
indubitavelmente em alvoroço naquele momento, para confusão dos
néscios e edificação dos sapientes, penetrou os umbrais da imortalidade e foi,
do lado de lá, recebido entre hinos glorificadores dos anjos do Senhor, aquele
que, fiel até a morte, O servira com todas as potencialidades de sua alma, ébria
de amor divino, e tudo fizera realmente para cumprir a determinação de
"restaurar a sua Casa, na iminência de ruina".
Pouco importa que, na obnubilação da
consciência, que os infelicitava, não tivessem os detentores da direção visível
da igreja aproveitado a misericordiosa lição e advertência que, pelo humilde
"poverello" de Assis, lhes
enviara o Senhor e de que voltaremos, no próximo capítulo, a ocupar-nos com o
possível desenvolvimento. Nem por isso a obra franciscana, por sua repercussão
nos costumes e na restauração da fé, entre membros do clero e no seio do povo,
deixou de ser uma fecunda tentativa de salvação da igreja, indubitável,
embora temporariamente apenas, obtida, amparando-a contra os mais graves
efeitos da crise que a assoberbava e - tal a pressão oculta que a desorientava
- apenas mitigada, não tardou em recrudescer, como vimos páginas atrás,
desdobrando-se nos séculos imediatos.
Rematemos, por agora, as referências
ao sublime "poverello", por
muitos com justo título denominado "o Cristo da Idade Média",
assinalando que o prestígio de suas virtudes de tal modo universalmente se impusera
que, menos de dois anos após o seu desprendimento, isto é, aos 26 de julho de
1228, com inobservância do interregno para casos tais estabelecido pela cúria
romana, mas tendo em consideração os notórios e abundantes sinais de santidade
patenteados em sua vida, o papa Gregório IX presidia em Assis às cerimônias da
canonização e a 27 colocava a primeira pedra da famosa basílica consagrada S.
Francisco".
Assim - não é possível esquivar-nos
ao oportuno comentário - os infiéis "vigários do Cristo" que, insensíveis
à providencialidade e aos intuitos da obra franciscana, haviam atormentado a
vida do seu excelso fundador, acabrunhando-o de desgostos pela impiedosa
deturpação com que a mutilaram, tanto que o viram libertado, deram-se pressa em
reivindicar para a periclitante igreja, que desgovernavam, a glória daquela
figura incomparável. E eles, que lhe não tinham sabido respeitar as virtudes,
nem muito menos imitá-las, arrogaram-se a autoridade, de resto meramente
convencional e exterior, de conferir-lhe a santificação. Infiéis, todavia, uma
vez mais ao espírito do Cristianismo, outra forma não encontraram, para
glorificar a memória do que fora, antes de tudo, acima de tudo e sempre, o apóstolo
da Pobreza, senão a ereção de uma basílica suntuosa.
Incoerência de cegos, que se
obstinavam em permanecer condutores de cegos!
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