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Comecemos por essa monstruosa
instituição. Vasto sistema de espionagem e delação, duplicado de uma
inconcebível aparelhagem de instrumentos de tortura, que jamais a mente
criminosa do homem pudera inventar, sob as inspirações de um espírito
verdadeiramente satânico, a Inquisição, sob o pretexto de combater a heresia,
realizando a obra infernal do ódio e da vingança e, por três séculos consecutivos,
espalhando o terror por quase toda a Europa, com a ceifa de milhares de vidas,
não raro por meras e gratuitas suspeitas, convertendo os ministros do altar em
algozes de seus semelhantes, ora destruindo os laços da família pela cruel
obrigação, imposta aos seus membros, de mutuamente se denunciarem, às vezes
caluniosamente, ora sufocando a liberdade de pensamento pela condenação à
fogueira dos portadores de ideias novas ou contrárias ao feroz dogmatismo da
igreja - Giordano Bruno, João Huss e o próprio Galileu, que teria sido vitimado,
se não abjurasse a verdade do movimento da Terra, são casos documentais
ilustrativos - a Inquisição, repetimos, invocando sacrilegamente o nome de
Deus, isto é, perpetrando as inomináveis atrocidades, que cobriram de treva e
sangue as nefandas páginas de sua história, e apregoando, por inaudito
sarcasmo, que o fazia "para maior glória
de Deus" - ad majorem Dei gloriam - constituiu a mais hedionda aberração
do espírito do Cristianismo e, portanto, um triunfo assinalado daquele que tem
sido até hoje o seu obstinado algoz.
Sim, foi sob a pressão do Espírito
das trevas, substituindo-se ao sentimento e à consciência dos que se
intitulavam representantes de Jesus - príncipe de paz e da misericórdia,
evangelho vivo do amor, por cujo sacrossanto ministério viera salvar e não
perder os homens, oferecendo em holocausto a sua própria vida - que a igreja,
renegando por semelhantes atos o título de cristã, que de resto já vinha
progressivamente conspurcando, como o temos visto, se tornou cúmplice na
projeção daquela tremenda noite moral sobre a família humana, que veio a ser a
Idade Media.
Não foi, ao demais, nos morticínios
somente e nas perseguições desencadeadas nesse tenebroso período, senão também
nos escândalos, depravação de costumes e lutas encarniçadas de ambições que se
desenvolveram no seio da igreja - verdadeira nau desarvorada em meio de
furiosas tempestades - que o Espírito do mal ostentou o seu predomínio sobre os
incautos depositários da doutrina do Senhor, banindo-lhes do coração
a fé e convertendo-os em filhos do século, escravos das paixões, a cujo influxo
disputavam desvairadamente as coisas deste mundo.
Os dezoito anos de pontificado
exercido por Inocêncio III são expressivo testemunho dessa influência dominadora
do AntiCristo sobre uma consciência que se descuidara de conservar,
com vigilante zelo, a pureza do sentimento cristão, revelado nos primeiros
tempos de sua conversão.
Descendente, com efeito, de uma
ilustre família e tendo recebido aprimorada educação, duplicada de sólido
preparo intelectual, poeta, escritor, jurisconsulto erudito e estadista, que se
revelou mais tarde, compôs, ainda moço, um tratado Do Desprezo do Mundo e Das Misérias
da Humana Condição, que foi considerado por críticos competentes "como
expressão sincera de elevados sentimentos cristãos". Tanto que, porém,
recebeu a investidura pontifícia - aos 37 anos de idade - por forma tal se
absorveu no torvelinho dos negócios políticos, que a sua passagem pela suprema
direção da igreja patenteou tudo - habilidade, energia de caráter, visão
percuciente e oportunista dos sucessos, argúcia, crueldade, espírito autoritário
- menos o sugestivo encanto das virtudes evangélicas.
Preocupado, ao começo, de
restabelecer - e com sucesso o fez - a ordem na administração dos negócios
eclesiásticos e a disciplina do clero, conseguiu no curso do seu pontificado
granjear para a igreja o máximo de autoridade e de poderio mundano, submetendo
reis, coroando-os e depondo-os, lançando interdito sobre reinos, se os
imperantes ousavam porventura desobedecer-lhe, organizando cruzadas - ao
oriente e contra os albigenses - para tudo isso não recuando da prática ele
traições e violências, em que o sangue humano, por sua ordem ou com o seu
assentimento, foi profusamente derramado.
E, todavia, se o seu pontificado
marca o apogeu da influência e do prestígio secular da igreja na Idade Media,
foi também durante ele que a verdadeira Igreja elo Cristo - diferente
e antitética da igreja romana - por aqueles mesmos fatos e pela extrema
dissolução dos costumes, que faltava uma legitima autoridade moral para
refrear, conheceu uma de suas mais profundas crises, de que só logrou salvar-se
pela intervenção de um excelso Enviado do Senhor, a que aludimos incidentemente
páginas atrás e de quem voltaremos a ocupar-nos em seguida.
Morto lnocêncio III em 1216, quando
se dispunha, e o prometera, a pôr-se à frente dos guerreiros, em a nova cruzada
que organizara para ir à Terra Santa, e que veio a ser, como as outras, mais um
desastre, recomeçou a desordem no seio da igreja romana, trabalhada por
dissenções internas e agressões externas, que a política ambiciosa e autoritária
do extinto papa havia de necessariamente provocar, enredando-a na rivalidade
das ambições e nas competições dos imperantes, em que interviera. De sorte que,
no começo do século seguinte, sentindo-se ameaçado por seus súditos em Roma, o
papa Clemente V deliberou refugiar-se em Avignon, para onde foi transferida a corte
pontifícia, ali permanecendo ela 68 anos - de 1309 a 1377 - em meio de relativa
tranquilidade e opulência, sob a proteção dos reis de França, indiferente à
sorte do rebanho católico, agitado por perturbações e lutando com a miséria.
Para ter-se uma ideia aproximada da
amoralidade dos costumes e da carência de escrúpulos de alguns dos intitulados
"vigários do Cristo" que ali reinaram, basta atentar-se
nos seguintes episódios, que a história registrou:
"A Clemente V sucedeu (1316), depois de uma
vigorosa oposição Jacques d 'Euse, de Cahors, que tomou o nome de João XXII e
teve porfiadas contendas com Luís da Baviera. Também se empenhou num grave
pleito com os franciscanos, que sustentavam, em disputa com os dominicanos, que
o Cristo e seus discípulos nada tinham possuído nem como indivíduos nem como
Igreja. "Coisa singular -
comenta o historiador - os papas,
cumulados de riquezas, condenavam as pessoas que reclamavam para si o direito
de serem pobres!"
"Como era natural, a causa dos frades menores tornou-se popular e a luta
desprestigiou o papa, contra o qual, por outra parte, o imperador publicava
escritos violentos, encontrando apoio não só nos franciscanos, mas também da
parte de muitos doutores, que se tinham aplicado a investigar os títulos e a
examinar as bases da supremacia papal".
"João
foi acusado de simonia e avidez; não se sabe, porém, até que ponto as acusações
foram inspiradas pelo ódio. Conta-se que costumava prover as dignidades em
prelados da ordem imediatamente inferior, para desse modo abrir uma série de
vagaturas e fazer uma série de nomeações rendosas para a câmara apostólica.
Estabeleceu os preços das dispensas e outras concessões;
quando morreu tinha em cofre dezoito milhões de florins de ouro.
"Sucedeu-lhe
Jacques Fournier de Saverdun, com o nome de Bento XII (1334), homem tão humilde
quanto piedoso e erudito, que disse aos cardeais: "Elegestes o mais burro
de todos". Esmerou -se em corrigir quanto possível os abusos do reinado
precedente. Limpou a corte pontifícia dos parasitas dotados com pingues benefícios,
para nada fazerem, e emendou muitos desacertos.
"Pedro Roger, natural do Limousin, eleito depois dele com o nome de
Clemente VI (1342), prometeu mercês a todos os clérigos pobres que se lhe
apresentassem no prazo de dois meses. Apareceram-lhe perto de cem mil, e ele
teve que dar a todos, graças às economias feitas pelos seus predecessores e aos
muitos benefícios que haviam deixado vagos. Matheus Villani fala nestes termos
de Clemente VI: "Tem a sua casa montada regiamente, conservando sempre uma
mesa coberta de iguarias delicadas, além de outras mesas para cavalheiros e
escudeiros, e muitos cavalos na estrebaria. Andava muitas vezes a cavallo por
seu gosto e sustentava numerosa comitiva de cavalheiros e escudeiros. Gostava
muito de fazer dos parentes altos personagens e lhes comprou vastos baronatos
em França. Encheu a igreja de cardeais de sua família e nomeou alguns tão novos
e de costumes desregrados que daí resultaram grandes abominações; a pedido do
rei de França nomeou outros, alguns dos quais nem tinham a idade requerida.
Nessa época não se tinha em atenção a ciência nem a virtude: tratava-se apenas
de satisfazer a ambição de possuir o chapéu vermelho. Foi um homem medianamente
ilustrado, muito cavalheiroso, pouco religioso. Emquanto arcebispo não somente
se não guardou das mulheres, senão que foi além dos costumes dos barões
seculares. Quando papa, não soube conter-se nem ocultar-se mais que dantes,
pois que as altas senhoras entravam nos seus aposentos como os prelados e,
especialmente, uma condessa de Turenne, tão do seu agrado que era por
intercessão dela que o papa concedia a maior parte das graças. Quando estava
doente, as damas serviam-no e o
dirigiam, como fazem aos seculares as suas próximas parentas. Distribuiu com
mãos largas os tesouros da igreja".
"Inocêncio
VI (Estevão Aubert de Mont), que lhe sucedeu (1352), diligenciou restaurar o
poder pontifício na Itália; moderou o luxo de sua corte e o dos prelados,
expulsou os parasitas e as mulheres de má vida que tinham dado escandalosa
celebridade a Avignon. Enriqueceu os sobrinhos e deixou a tiara a Guilherme de
Grimoald, de Beauvais, pontífice ilustrado e bom cristão, que governou com o
nome de Urbano V (1362)".
Esse papa, cinco anos depois, fez
uma tentativa de transferência da corte pontifícia para Roma, onde foi recebido
com grandes festas, aí permanecendo realmente algum tempo, mas voltando afinal
para a Provença, onde morreu (1370).
Tais eram os costumes, como se vê,
frequentemente dissolutos com que se edificava o povo; tais foram algumas das
vicissitudes que acidentaram, nessa época, o papado, até que estalou o formidável
escândalo do "grande cisma do Ocidente".
Assim se podem resumir os
antecedentes, que imediatamente o prepararam.
"Gregório XI (Pedro Roger), da família dos condes
de Belfort e de Turenne, sucessor de Inocêncio VI, foi um homem virtuoso,
modesto, sábio e liberal. Impressionado com os males que presenciara, com as
exortações de Catarina de Senna, com as revelações que lhe comunicava Brígida,
regressou a Roma, apesar da oposição do rei e dos cardeais, e estabeleceu residência
no Vaticano; mas, se não tornou a passar os Alpes, foi porque a morte lhe não
deu tempo (1378).
"Tinha autorizado os cardeais a elegerem o novo
papa por maioria de votos, sem esperarem pelos colegas ausentes, no intuito de
abreviar a vagatura o mais possível. Ora, os romanos, temendo que o novo eleito
voltasse para Avignon, cercaram o conclave de armas e tumulto, gritando:
"Queremos um papa romano!" Tocaram a rebate e ameaçaram entrar à
força, para fazerem as cabeças dos cardeais tão vermelhas como os seus chapéus,
se eles não elegessem um italiano. Os sufrágios recaíram, pois, em Bartolomeu
Prignano, de Nápoles, que tomou o nome de Urbano VI (9 de abril de 1378). Era
homem instruído e consciencioso, melancólico e severo, muito mais severo do que
o desejariam os cardeais; por isso, eles mesmos protestaram contra a eleição,
com o fundamento de que não tinha sido livre. E, aceitando a proteção de
Bernardo de Sala, chefe de aventureiros vasconços e bretões, que facilmente
subjugou os romanos, matando muitos, elegeram, em Fondi, Roberto de Genebra,
que se ficou chamando Clemente VII (21 de setembro).
Foi esse o começo do grande cisma,
que durante meio século - de 1378 a 1429 - atormentou a existência da igreja,
mas cujas fases não interessa acompanharmos, bastando-nos, para o objetivo que
nos preocupa, assinalar alguns de seus efeitos e sucessos principais.
Reconhecido Urbano VI na Itália,
Alemanha, Inglaterra, Dinamarca, Suécia, Polônia e no norte dos Países Baixos,
e Clemente VII em Nápoles, França, Escócia, Saboia, Portugal, Lorena e Castela,
enquanto as outras potências se conservavam hesitantes, ficou "dividida a cristandade em dois partidos
inimigos, que se combateram com todas as armas e reciprocamente se
acusaram de usurpação e heresia", com sensível perda de prestigio
para o papado, cuja autoridade os príncipes aproveitaram o ensejo para cercear.
"Os dois pontífices se excomungaram
um ao outro. Clemente VII, estabelecido em Avignon, multiplicou os cardeais,
prodigalizou expectativas, converteu o Estado pontifício em Reino de Adria, em favor de Luiz
d'Anjou, tudo para angariar partidários e arranjar dinheiro. Por sua parte,
Urbano VI, atormentado pela desconfiança, sustentava-se exercendo rigores
sanguinários, ordenando suplícios como um tirano feroz sem ter a menor
consideração pelo caráter ou pela idade dos prelados e cardeais, acumulando excomunhões
escandalosas e decretos mais escandalosos ainda, inspirados pelo seu próprio
interesse e não pela conveniência da igreja."
Por sua morte, os prelados que lhe
tinham sido fieis elegeram Bonifácio IX - (novembro de 1389), que ocupou a viva
força a cidade de Roma e as outras possessões da igreja, todas dilaceradas
pelas facções e devastadas pelos bandos de aventureiros". Em setembro de
1394, os cardeais que sustentavam Clemente VII, falecido este, elevaram, por
seu turno, ao trono pontifício Bento XIII (Pedro de Luna) , "um ambicioso
astuto", que só tratou, como o seu rival, de consolidar-se no poder e
enriquecer os seus partidários.
Nesse conflito de ambições, chegou
um momento em que houve três papas simultaneamente: Bento XIII, Gregório XII e
Alexandre V.
O concílio convocado para Constança
e aí reunido em 1414, com o objetivo de por termo ao cisma e operar uma reforma
radical nos costumes da igreja, em lugar do esperado sucesso,
contribuiu para lançar novos germens de perturbações, uma de cujas consequências
foi a condenação de João Huss à fogueira, como agitador popular, que reclamava as
reformas, cuja necessidade todos reconheciam e fora mesmo, como fica dito, um
dos motivos da convocação do concilio.
Os efeitos desmoralizadores,
resultantes da anarquia que se estabelecera no papado, podem ser, entretanto,
assim resumidos:
"Os papas, empenhados em angariar partidários a
todo custo, prodigalizaram privilégios, fizeram-se cúmplices de abusos e
usurpações e, injuriando-se uns aos outros, perderam o prestígio, que era uma
das suas maiores forças. Os símbolos deixaram de ter significação logo que a
sociedade se tornou inteiramente prática, e todos viam com desgosto a corte
pontifícia, que, vivendo no mundo, se deixara dominar pelas paixões mundanas,
contraíra os costumes dos poderes seculares; fazia da religião um meio de
governo, especulava com as coisas santas e traficava com títulos reservados,
provisões apostólicas, anuidades, rendimentos intermediários e outras coisas
desse gênero.
"A
depravação da corte de Avignon, onde parecia costume o que noutras partes é
vicio, onde a impureza se associava à perfídia e à baixeza, tinha feito recair
desprezo sobre o que antigamente era venerado, e o povo ia perdendo o espirito
de obediência à proporção que os pontífices perdiam a autoridade moral para
mandar."
Não é necessário, por novas, pormenorizadas
citações, carregarmos nas cores sombrias desse quadro, para ficar demonstrada,
como o assinalávamos há pouco, a pressão exercida pelo AntiCristo no seio da
igreja, em que imperava como soberano e quase sem contraste.
Arrebatados, com efeito, no
turbilhão do século, haviam se extinguido na consciência dos pontífices e do
clero em geral, para cederem de preferencia às sugestões do Tentador, os
derradeiros ecos daquela advertência de Jesus aos seus discípulos: "Sabeis que os príncipes das gentes dominam
os seus vassalos e que os que são maiores exercitam sobre eles seu poder. Assim
não será entre vós outros; mas entre vós o que quiser ser o maior, seja o que
vos sirva. E entre vós o que quiser ser o primeiro, seja esse o vosso servo."
Não era o contrário disso, como
temos visto, o que praticavam os infiéis depositários da doutrina do Senhor? De
tal modo se lhes havia obdurado o entendimento, que permaneceram surdos e
cegos, não apenas ao que poderiam considerar os longínquos ensinamentos do Evangelho,
mas a uma grande lição e a um eloquente exemplo de atualidade que, naquela
mesma tenebrosa Idade Media, o Senhor, em sua infatigável misericórdia,
entendeu lhes enviar.
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