sexta-feira, 21 de novembro de 2014

4c. AntiCristo senhor do mundo


4c

            Comecemos por essa monstruosa instituição. Vasto sistema de espionagem e delação, duplicado de uma inconcebível aparelhagem de instrumentos de tortura, que jamais a mente criminosa do homem pudera inventar, sob as inspirações de um espírito verdadeiramente satânico, a Inquisição, sob o pretexto de combater a heresia, realizando a obra infernal do ódio e da vingança e, por três séculos consecutivos, espalhando o terror por quase toda a Europa, com a ceifa de milhares de vidas, não raro por meras e gratuitas suspeitas, convertendo os ministros do altar em algozes de seus semelhantes, ora destruindo os laços da família pela cruel obrigação, imposta aos seus membros, de mutuamente se denunciarem, às vezes caluniosamente, ora sufocando a liberdade de pensamento pela condenação à fogueira dos portadores de ideias novas ou contrárias ao feroz dogmatismo da igreja - Giordano Bruno, João Huss e o próprio Galileu, que teria sido vitimado, se não abjurasse a verdade do movimento da Terra, são casos documentais ilustrativos - a Inquisição, repetimos, invocando sacrilegamente o nome de Deus, isto é, perpetrando as inomináveis atrocidades, que cobriram de treva e sangue as nefandas páginas de sua história, e apregoando, por inaudito sarcasmo, que o fazia "para maior glória de Deus" - ad majorem Dei gloriam - constituiu a mais hedionda aberração do espírito do Cristianismo e, portanto, um triunfo assinalado daquele que tem sido até hoje o seu obstinado algoz.

            Sim, foi sob a pressão do Espírito das trevas, substituindo-se ao sentimento e à consciência dos que se intitulavam representantes de Jesus - príncipe de paz e da misericórdia, evangelho vivo do amor, por cujo sacrossanto ministério viera salvar e não perder os homens, oferecendo em holocausto a sua própria vida - que a igreja, renegando por semelhantes atos o título de cristã, que de resto já vinha progressivamente conspurcando, como o temos visto, se tornou cúmplice na projeção daquela tremenda noite moral sobre a família humana, que veio a ser a Idade Media.

            Não foi, ao demais, nos morticínios somente e nas perseguições desencadeadas nesse tenebroso período, senão também nos escândalos, depravação de costumes e lutas encarniçadas de ambições que se desenvolveram no seio da igreja - verdadeira nau desarvorada em meio de furiosas tempestades - que o Espírito do mal ostentou o seu predomínio sobre os incautos depositários da doutrina do Senhor, banindo-lhes do coração a fé e convertendo-os em filhos do século, escravos das paixões, a cujo influxo disputavam desvairadamente as coisas deste mundo.

            Os dezoito anos de pontificado exercido por Inocêncio III são expressivo testemunho dessa influência dominadora do AntiCristo sobre uma consciência que se descuidara de conservar, com vigilante zelo, a pureza do sentimento cristão, revelado nos primeiros tempos de sua conversão.

            Descendente, com efeito, de uma ilustre família e tendo recebido aprimorada educação, duplicada de sólido preparo intelectual, poeta, escritor, jurisconsulto erudito e estadista, que se revelou mais tarde, compôs, ainda moço, um tratado Do Desprezo do Mundo e Das Misérias da Humana Condição, que foi considerado por críticos competentes "como expressão sincera de elevados sentimentos cristãos". Tanto que, porém, recebeu a investidura pontifícia - aos 37 anos de idade - por forma tal se absorveu no torvelinho dos negócios políticos, que a sua passagem pela suprema direção da igreja patenteou tudo - habilidade, energia de caráter, visão percuciente e oportunista dos sucessos, argúcia, crueldade, espírito autoritário - menos o sugestivo encanto das virtudes evangélicas.

            Preocupado, ao começo, de restabelecer - e com sucesso o fez - a ordem na administração dos negócios eclesiásticos e a disciplina do clero, conseguiu no curso do seu pontificado granjear para a igreja o máximo de autoridade e de poderio mundano, submetendo reis, coroando-os e depondo-os, lançando interdito sobre reinos, se os imperantes ousavam porventura desobedecer-lhe, organizando cruzadas - ao oriente e contra os albigenses - para tudo isso não recuando da prática ele traições e violências, em que o sangue humano, por sua ordem ou com o seu assentimento, foi profusamente derramado.

            E, todavia, se o seu pontificado marca o apogeu da influência e do prestígio secular da igreja na Idade Media, foi também durante ele que a verdadeira Igreja elo Cristo - diferente e antitética da igreja romana - por aqueles mesmos fatos e pela extrema dissolução dos costumes, que faltava uma legitima autoridade moral para refrear, conheceu uma de suas mais profundas crises, de que só logrou salvar-se pela intervenção de um excelso Enviado do Senhor, a que aludimos incidentemente páginas atrás e de quem voltaremos a ocupar-nos em seguida.

            Morto lnocêncio III em 1216, quando se dispunha, e o prometera, a pôr-se à frente dos guerreiros, em a nova cruzada que organizara para ir à Terra Santa, e que veio a ser, como as outras, mais um desastre, recomeçou a desordem no seio da igreja romana, trabalhada por dissenções internas e agressões externas, que a política ambiciosa e autoritária do extinto papa havia de necessariamente provocar, enredando-a na rivalidade das ambições e nas competições dos imperantes, em que interviera. De sorte que, no começo do século seguinte, sentindo-se ameaçado por seus súditos em Roma, o papa Clemente V deliberou refugiar-se em Avignon, para onde foi transferida a corte pontifícia, ali permanecendo ela 68 anos - de 1309 a 1377 - em meio de relativa tranquilidade e opulência, sob a proteção dos reis de França, indiferente à sorte do rebanho católico, agitado por perturbações e lutando com a miséria.

            Para ter-se uma ideia aproximada da amoralidade dos costumes e da carência de escrúpulos de alguns dos intitulados "vigários do Cristo" que ali reinaram, basta atentar-se nos seguintes episódios, que a história registrou:

            "A Clemente V sucedeu (1316), depois de uma vigorosa oposição Jacques d 'Euse, de Cahors, que tomou o nome de João XXII e teve porfiadas contendas com Luís da Baviera. Também se empenhou num grave pleito com os franciscanos, que sustentavam, em disputa com os dominicanos, que o Cristo e seus discípulos nada tinham possuído nem como indivíduos nem como Igreja. "Coisa singular - comenta o historiador - os papas, cumulados de riquezas, condenavam as pessoas que reclamavam para si o direito de serem pobres!"
            "Como era natural, a causa dos frades menores tornou-se popular e a luta desprestigiou o papa, contra o qual, por outra parte, o imperador publicava escritos violentos, encontrando apoio não só nos franciscanos, mas também da parte de muitos doutores, que se tinham aplicado a investigar os títulos e a examinar as bases da supremacia papal".
            "João foi acusado de simonia e avidez; não se sabe, porém, até que ponto as acusações foram inspiradas pelo ódio. Conta-se que costumava prover as dignidades em prelados da ordem imediatamente inferior, para desse modo abrir uma série de vagaturas e fazer uma série de nomeações rendosas para a câmara apostólica. Estabeleceu os preços das dispensas e outras concessões; quando morreu tinha em cofre dezoito milhões de florins de ouro.
            "Sucedeu-lhe Jacques Fournier de Saverdun, com o nome de Bento XII (1334), homem tão humilde quanto piedoso e erudito, que disse aos cardeais: "Elegestes o mais burro de todos". Esmerou -se em corrigir quanto possível os abusos do reinado precedente. Limpou a corte pontifícia dos parasitas dotados com pingues benefícios, para nada fazerem, e emendou muitos desacertos.
            "Pedro Roger, natural do Limousin, eleito depois dele com o nome de Clemente VI (1342), prometeu mercês a todos os clérigos pobres que se lhe apresentassem no prazo de dois meses. Apareceram-lhe perto de cem mil, e ele teve que dar a todos, graças às economias feitas pelos seus predecessores e aos muitos benefícios que haviam deixado vagos. Matheus Villani fala nestes termos de Clemente VI: "Tem a sua casa montada regiamente, conservando sempre uma mesa coberta de iguarias delicadas, além de outras mesas para cavalheiros e escudeiros, e muitos cavalos na estrebaria. Andava muitas vezes a cavallo por seu gosto e sustentava numerosa comitiva de cavalheiros e escudeiros. Gostava muito de fazer dos parentes altos personagens e lhes comprou vastos baronatos em França. Encheu a igreja de cardeais de sua família e nomeou alguns tão novos e de costumes desregrados que daí resultaram grandes abominações; a pedido do rei de França nomeou outros, alguns dos quais nem tinham a idade requerida. Nessa época não se tinha em atenção a ciência nem a virtude: tratava-se apenas de satisfazer a ambição de possuir o chapéu vermelho. Foi um homem medianamente ilustrado, muito cavalheiroso, pouco religioso. Emquanto arcebispo não somente se não guardou das mulheres, senão que foi além dos costumes dos barões seculares. Quando papa, não soube conter-se nem ocultar-se mais que dantes, pois que as altas senhoras entravam nos seus aposentos como os prelados e, especialmente, uma condessa de Turenne, tão do seu agrado que era por intercessão dela que o papa concedia a maior parte das graças. Quando estava doente, as damas serviam-no  e o dirigiam, como fazem aos seculares as suas próximas parentas. Distribuiu com mãos largas os tesouros da igreja".
            "Inocêncio VI (Estevão Aubert de Mont), que lhe sucedeu (1352), diligenciou restaurar o poder pontifício na Itália; moderou o luxo de sua corte e o dos prelados, expulsou os parasitas e as mulheres de má vida que tinham dado escandalosa celebridade a Avignon. Enriqueceu os sobrinhos e deixou a tiara a Guilherme de Grimoald, de Beauvais, pontífice ilustrado e bom cristão, que governou com o nome de Urbano V (1362)".

            Esse papa, cinco anos depois, fez uma tentativa de transferência da corte pontifícia para Roma, onde foi recebido com grandes festas, aí permanecendo realmente algum tempo, mas voltando afinal para a Provença, onde morreu (1370).

            Tais eram os costumes, como se vê, frequentemente dissolutos com que se edificava o povo; tais foram algumas das vicissitudes que acidentaram, nessa época, o papado, até que estalou o formidável escândalo do "grande cisma do Ocidente".

            Assim se podem resumir os antecedentes, que imediatamente o prepararam.

            "Gregório XI (Pedro Roger), da família dos condes de Belfort e de Turenne, sucessor de Inocêncio VI, foi um homem virtuoso, modesto, sábio e liberal. Impressionado com os males que presenciara, com as exortações de Catarina de Senna, com as revelações que lhe comunicava Brígida, regressou a Roma, apesar da oposição do rei e dos cardeais, e estabeleceu residência no Vaticano; mas, se não tornou a passar os Alpes, foi porque a morte lhe não deu tempo (1378).
            "Tinha autorizado os cardeais a elegerem o novo papa por maioria de votos, sem esperarem pelos colegas ausentes, no intuito de abreviar a vagatura o mais possível. Ora, os romanos, temendo que o novo eleito voltasse para Avignon, cercaram o conclave de armas e tumulto, gritando: "Queremos um papa romano!" Tocaram a rebate e ameaçaram entrar à força, para fazerem as cabeças dos cardeais tão vermelhas como os seus chapéus, se eles não elegessem um italiano. Os sufrágios recaíram, pois, em Bartolomeu Prignano, de Nápoles, que tomou o nome de Urbano VI (9 de abril de 1378). Era homem instruído e consciencioso, melancólico e severo, muito mais severo do que o desejariam os cardeais; por isso, eles mesmos protestaram contra a eleição, com o fundamento de que não tinha sido livre. E, aceitando a proteção de Bernardo de Sala, chefe de aventureiros vasconços e bretões, que facilmente subjugou os romanos, matando muitos, elegeram, em Fondi, Roberto de Genebra, que se ficou chamando Clemente VII (21 de setembro).

            Foi esse o começo do grande cisma, que durante meio século - de 1378 a 1429 - atormentou a existência da igreja, mas cujas fases não interessa acompanharmos, bastando-nos, para o objetivo que nos preocupa, assinalar alguns de seus efeitos e sucessos principais.

            Reconhecido Urbano VI na Itália, Alemanha, Inglaterra, Dinamarca, Suécia, Polônia e no norte dos Países Baixos, e Clemente VII em Nápoles, França, Escócia, Saboia, Portugal, Lorena e Castela, enquanto as outras potências se conservavam hesitantes, ficou "dividida a cristandade em dois partidos inimigos, que se combateram com todas as armas e reciprocamente se acusaram de usurpação e heresia", com sensível perda de prestigio para o papado, cuja autoridade os príncipes aproveitaram o ensejo para cercear.

            "Os dois pontífices se excomungaram um ao outro. Clemente VII, estabelecido em Avignon, multiplicou os cardeais, prodigalizou expectativas, converteu o Estado pontifício em Reino de Adria, em favor de Luiz d'Anjou, tudo para angariar partidários e arranjar dinheiro. Por sua parte, Urbano VI, atormentado pela desconfiança, sustentava-se exercendo rigores sanguinários, ordenando suplícios como um tirano feroz sem ter a menor consideração pelo caráter ou pela idade dos prelados e cardeais, acumulando excomunhões escandalosas e decretos mais escandalosos ainda, inspirados pelo seu próprio interesse e não pela conveniência da igreja." 

            Por sua morte, os prelados que lhe tinham sido fieis elegeram Bonifácio IX - (novembro de 1389), que ocupou a viva força a cidade de Roma e as outras possessões da igreja, todas dilaceradas pelas facções e devastadas pelos bandos de aventureiros". Em setembro de 1394, os cardeais que sustentavam Clemente VII, falecido este, elevaram, por seu turno, ao trono pontifício Bento XIII (Pedro de Luna) , "um ambicioso astuto", que só tratou, como o seu rival, de consolidar-se no poder e enriquecer os seus partidários.

            Nesse conflito de ambições, chegou um momento em que houve três papas simultaneamente: Bento XIII, Gregório XII e Alexandre V.

            O concílio convocado para Constança e aí reunido em 1414, com o objetivo de por termo ao cisma e operar uma reforma radical nos costumes da igreja, em lugar do esperado sucesso, contribuiu para lançar novos germens de perturbações, uma de cujas consequências foi a condenação de João Huss à fogueira, como agitador popular, que reclamava as reformas, cuja necessidade todos reconheciam e fora mesmo, como fica dito, um dos motivos da convocação do concilio.

            Os efeitos desmoralizadores, resultantes da anarquia que se estabelecera no papado, podem ser, entretanto, assim resumidos:

            "Os papas, empenhados em angariar partidários a todo custo, prodigalizaram privilégios, fizeram-se cúmplices de abusos e usurpações e, injuriando-se uns aos outros, perderam o prestígio, que era uma das suas maiores forças. Os símbolos deixaram de ter significação logo que a sociedade se tornou inteiramente prática, e todos viam com desgosto a corte pontifícia, que, vivendo no mundo, se deixara dominar pelas paixões mundanas, contraíra os costumes dos poderes seculares; fazia da religião um meio de governo, especulava com as coisas santas e traficava com títulos reservados, provisões apostólicas, anuidades, rendimentos intermediários e outras coisas desse gênero.
            "A depravação da corte de Avignon, onde parecia costume o que noutras partes é vicio, onde a impureza se associava à perfídia e à baixeza, tinha feito recair desprezo sobre o que antigamente era venerado, e o povo ia perdendo o espirito de obediência à proporção que os pontífices perdiam a autoridade moral para mandar."

            Não é necessário, por novas, pormenorizadas citações, carregarmos nas cores sombrias desse quadro, para ficar demonstrada, como o assinalávamos há pouco, a pressão exercida pelo AntiCristo no seio da igreja, em que imperava como soberano e quase sem contraste.

            Arrebatados, com efeito, no turbilhão do século, haviam se extinguido na consciência dos pontífices e do clero em geral, para cederem de preferencia às sugestões do Tentador, os derradeiros ecos daquela advertência de Jesus aos seus discípulos: "Sabeis que os príncipes das gentes dominam os seus vassalos e que os que são maiores exercitam sobre eles seu poder. Assim não será entre vós outros; mas entre vós o que quiser ser o maior, seja o que vos sirva. E entre vós o que quiser ser o primeiro, seja esse o vosso servo."

            Não era o contrário disso, como temos visto, o que praticavam os infiéis depositários da doutrina do Senhor? De tal modo se lhes havia obdurado o entendimento, que permaneceram surdos e cegos, não apenas ao que poderiam considerar os longínquos ensinamentos do Evangelho, mas a uma grande lição e a um eloquente exemplo de atualidade que, naquela mesma tenebrosa Idade Media, o Senhor, em sua infatigável misericórdia, entendeu lhes enviar.


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