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Foi, pois, obedecendo às sugestões
malévolas do invisível, que os ministros supremos da igreja cristã, esquecidos
da advertência do Mestre: "não podeis servir a Deus e as riquezas",
não somente renunciaram à pobreza pessoal e aboliram a singeleza do santuário,
mas se empenharam em seu enriquecimento patrimonial e entraram a imiscuir-se
nos negócios do século.
Não é nosso propósito, nem o
comportaria a natureza, necessariamente sintética, deste estudo, empreender um
exame analítico de todos os erros, deturpações e vicissitudes perpetradas
pela igreja ou que acidentaram a sua existência, tão frequentemente tormentosa,
associada que esteve a todas as fases de desenvolvimento da organização política
dos povos, assim no ocidente como na parte do oriente, sobre que, através os séculos,
estendeu ela o seu domínio espiritual, trabalho que, sobre exceder de muito os
limites de nossa capacidade, exigiria múltiplos volumes. Queremos tão somente, indicando
alguns dos sucessos de maior relevo, significativos do divórcio entre o
engrandecimento material da igreja, duplicado do progressivo crescimento do seu
prestígio temporal, de um lado, e do outro a singeleza, não destituída de
magnitude e profundeza, do ideal que lhe dera origem, apreciar a influência
preponderante nesse divórcio exercida pelo Espírito das trevas, sistematicamente
empenhado em solapar nos seus fundamentos e contradizer nos seus resultados a
obra de progresso e de espiritualização da humanidade, que é o escopo capital
da doutrina de Jesus.
Também nos não movem, neste esboço
de crítica retrospectiva, intuitos demolidores da colaboração que, apesar de
todos os seus deslizes, a igreja incontestavelmente prestou, sobretudo nos
primeiros séculos e em meio das convulsões que assinalaram o soçobro do mundo
pagão, à formação e desenvolvimento da civilização ocidental, sob o influxo do
pensamento cristão. O nosso objetivo é, antes de tudo, apreciando a ação
perturbadora do AntiCristo na existência da igreja - alvo do seu inveterado
rancor - do mesmo modo que em todas as manifestações da vida humana, em que
essa interferência transparece, colher ensinamentos e advertências para
salvaguarda dos que, nesta época de transformações e num radioso futuro que se
avizinha, desejem sinceramente seguir a Jesus e necessitam estar apercebidos
contra as insidiosas manobras dos que com propriedade são denominados inimigos
da luz.
Isto posto, retomemos a largos
traços a enumeração dos acontecimentos que foram visivelmente acentuando o declínio
espiritual da doutrina do Senhor, desde a proscrição do ensino
relativo à lei providencial das vidas sucessivas - chave da evolução universal
dos seres - a que nos referimos no anterior capítulo, ao enriquecimento
patrimonial da igreja e
pessoal de seus serventuários, tanto mais se engrandecendo uma e os outros,
pela acumulação de bens materiais e de poderio mundano, quanto o depósito
sagrado, exposto, quase sem defesa, às investidas sorrateiras do inimigo, se conspurcava
enleado nas complicações do século.
Assim é que, fortalecido o papado no
século VIII, durante o império carlovingiano, e ganhando autoridade crescente
sobre os imperantes, o papa Zacarias, intervindo ostensivamente
na órbita das contendas temporais, reconhece como rei Pepino, o Breve, pai de
Carlos Magno, e a seu turno o papa Leão III põe, mais tarde, sobre a cabeça
desse último a coroa real.
A essa intromissão nos negócios do século
veio juntar-se o inconveniente, ainda mais grave, de converterem a igreja, que
se intitulava do Cristo, numa potência mundana, com a
formação, permitida pelos carlovingianos, do Estado Pontifício, mediante a
doação, feita ao papado, de Ravenna, Pentapolis - reunião de cinco cidades,
como o nome o está indicando - que abrangia Fano, Ancona, Pezzaro, Rimini e
Sinigaglia, completando-se a incorporação com a cidade de Roma e desse modo
ficando consideravelmente acrescidos os domínios territoriais que, desde o século
IV, como precedentemente o assinalamos, vinham sendo ofertados aos papas.
Não viram ou não souberam perceber
os incautos detentores da direção da igreja que essa consolidação do seu
poderio material representava nada menos que uma réplica vitoriosa, do oculto
sugerida pelo AntiCristo, àquela palavra de Jesus, assim formalmente
desrespeitada: "Meu reino não é
deste mundo".
Ainda no século VIII um outro fato
veio acentuar a tendência materializadora impressa ao culto, primitiva e
exclusivamente espiritual adotado nas comunidades cristãs, tornando-o
desde então nitidamente idólatra. Referimo-nos ao culto das imagens, cuja
permissão foi reconhecida em 787 pelo segundo concilio de Nicéa, possivelmente
como uma transigência, julgada necessária, com os hábitos de idolatria dos bárbaros
invasores e a fim de assegurar a sua incorporação à cristandade, medida - se o
quiserem - nesse ponto de vista
defensável, não obstante a formal proibição expressa no Decálogo, sob a
condição de transitoriedade, mas que a experiência dos séculos veio, com a sua
permanência até aos nossos
dias, demonstrar haver sido funesta, como toda transigência, ao demais, na esfera
das coisas divinas, equivalente a um retrocesso.
A resistência contudo, que essa
intromissão da idolatria nas cerimonias da igreja e nos hábitos dos fieis
encontrou da parte de numerosos bispos, logrando somente aprovação depois de
ter sido, por mais de um século, objeto de repetidas controvérsias em
diferentes concílios, prova que não somente essa medida não correspondia a uma
evidente necessidade, mas que no próprio seio da igreja e entre os seus mais graduados
representantes havia servidores vigilantes de Jesus, arautos e defensores do
seu pensamento, que não cediam, sem tenazes opugnações, às dissimuladas
manobras do AntiCristo, obstinado no seu empenho de comprometer, por todas as
formas de desvirtuamento, a obra do Senhor.
Bem sabia ele que, insinuando-se no
animo dos prelados, cujas resistências terminavam por ser, mais cedo ou mais
tarde, subjugadas, e afeiçoando-os aos prazeres do luxo, facilmente viria a
converte-los numa classe aristocrática, divorciada das necessidades, aspirações
e direitos do povo, a quem de preferência, todavia, Jesus pregava o Evangelho
(Mateus XI, 5), fraudado assim num de seus objetivos capitais. Não era, com
efeito, a fraternidade o dogma fundamental da sua doutrina, tendente a dissipar
os antagonismos e rivalidades
que dividem os homens, entre eles estabelecendo, com a prática da justiça, a
paz e a harmonia?
Considere-se, entretanto, a atitude
do papado em relação ao feudalismo, regime de exploração rural e servidão
exercida pelos senhores sobre os miseráveis servos da gleba, reduzidos à
condição de irracionais, regime que perdurou do século X até ao fim da Idade Média,
mas cujos derradeiros vestígios só vieram a ser extintos pela rajada
libertadora da
Revolução francesa, e ver-se-á que a igreja, não somente consentindo, mas
tomando parte por alguns de seus ministros nessa ignóbil exploração do homem
pelo homem, serviu ainda nisso os intuitos antifraternas do Espírito das
trevas.
Encaminhava-se desse modo a
sociedade ocidental, que se presumia cristã ou, pelo menos, regida pelos
princípios do Cristianismo, para a sua divisão em três classes - clero, nobreza
e povo - ocupando a igreja o pináculo da escala, vindo em seguida os senhores
feudais e, por último, não propriamente o povo, no sentido igualitário,
reivindicado mais tarde
pelas conquistas revolucionarias, mas a imensa multidão dos sofredores, dos
sem-direitos, designados pejorativamente como a plebe, conservada, com a
cumplicidade da igreja, na ignorância e no aviltamento, origem das ulteriores
revoltas, que ensanguentaram a Europa.
Como se não fosse ainda suficiente
esse divórcio entre o fraternismo característico do ideal cristão e semelhante
organização social, que lhe era odiosa antítese, para ser oposto um novo
desmentido aos intuitos pacifistas do Evangelho, empreendem-se as Cruzadas,
favorecidas, algumas organizadas mesmo, pela igreja, com o fim de reivindicar a ferro
e fogo a posse de Jerusalém para os cristãos e libertar do jugo muçulmano
"o santo sepulcro", que ao demais nada continha.
Nos dois séculos que durou esse
embate fratricida - de 1076 a 1270 - encarado por alguns como necessário
derivativo ao estado de guerra quase permanente em que mutuamente se empenhavam
os senhores feudais, foram sacrificados muitos milhares de vidas e, mais que
tudo, os métodos, que nunca deveriam cessar de ser persuasivos, do
Cristianismo, sem outro resultado a não ser o dilatarem-se os horizontes do
conhecimento aos guerreiros-crentes em relação às populações orientais, de cujo
contato, entretanto, lhes advieram numerosos vícios e hábitos dissolutos, complemento
inevitável dos instintos de pilhagem, estimulados nessas incursões - quaisquer
que fossem as intenções e os exaltados sentimentos de muitos que se lhes
associavam - positivamente barbarescas. A criação de uma literatura, sem dúvida
original e interessante, formada pelos romances da Cavalaria, em que foram
celebradas as proezas de tais singulares cavaleiros da Cruz, não chega a ser
uma compensação ao pungente desmentido, por semelhantes aventuras marciais,
oposto aos ensinamentos do Evangelho, e não vale uma só das conversões
obtidas,
séculos mais tarde, pelo pacífico ministério e o amor persuasivo de um
Francisco Xavier.
Uma vez contudo obliterado o senso
de suas responsabilidades, e arvorada a Cruz não como símbolo de redenção, mas
de perseguição e de combate, não se detiveram aí as iniciativas
truculentas da igreja, senão que, para dar uma nova demonstração do espírito
evangélico invertido que a animava, é organizada, em 1207, por determinação do
papa Inocêncio III, a "cruzada" de extermínio contra os albigenses,
prosseguida implacavelmente durante vinte e dois anos.
Em que consistia, entretanto, a
heresia desses díscolos? Uma versão, com
visos de tendenciosa, além de lhes atribuir a crença na existência de dois Criadores,
o do bem e o do
mal, eternamente antagônicos e, por natureza, irreconciliáveis, agindo cada um
sobre seu mundo e suas criaturas, mediante sua adequada revelação, ainda lhes
imputava a negação da existência humana do Cristo e dos caracteres teológicos
de sua missão, bem como do dogma da ressurreição da carne, fazendo-os ainda
partilhar a opinião pessimista de ser considerada crime a reprodução da espécie
humana, cuja extinção desse modo propugnariam, com o que pretende semelhante versão
porventura justificar o extremo rigor empregado pela igreja em exterminar os
portadores de tais heterodoxas concepções. Constituindo, porém, os albigenses
uma das ramificações sectárias dos cátaros, deviam ser idênticos aos por estes
adotados os seguintes pontos fundamentais de sua doutrina: - coexistência de
dois princípios das coisas, o bom e o mau, como explicação do perpétuo conflito
entre essas duas modalidades; as almas, criaturas do bom princípio, sucumbiram às
tentações do segundo, sendo que - na opinião de partidários da seita, menos radicais
- o principio mau começara sendo bom e decaíra por orgulho; - Jesus é um anjo,
enviado para salvar os homens pela revelação de sua verdadeira natureza; o
característico geral desses sectários consistia na extrema pureza de costumes;
- ascética era a moral que praticavam e o culto simples, consistindo em pregar
e abençoar; - possuíam um episcopado, a que só ascendiam os
"perfeitos", que haviam recebido o batismo do espírito.
Foi, pois, a tais pacíficos
dissidentes, entre cujos princípios teogônicos se encontram alguns, como se vê,
senão idênticos, pelo menos semelhantes aos da igreja, como a doutrina, por
esta sustentada, dos anjos decaídos, convertidos em demônios, e a do resgate do
gênero humano por mediação do Cristo, que entendeu a igreja, levar a condenação
e a morte,
fazendo do seu extermínio um título de consolidação do seu poderio intolerante
e exclusivo, de nada valendo, como atenuante sequer, a pureza de costumes dos
"heréticos" e somente preocupada ela, a igreja, em impor, com a
unidade de seus dogmas, a uniformidade de suas práticas, complicadas de ritos
pagãos, a que opunha expressivo contraste a simplicidade, aos seus olhos
odiosa, do culto praticado pelos albigenses.
Contra eles, em lugar da persuasão -
apenas com intermitências empregada por alguns missionários da Palavra, como,
entre outros, o excelso Antônio de Pádua - foram, portanto,
sistematicamente brandidas as armas homicidas. E para concluir a obra de extermínio,
que ainda não parecera suficientemente eficaz em seus resultados, o concilio de
Tolosa decretou, em 1229, o estabelecimento do Tribunal, por ironia, denominado
da "santa" Inquisição. Ali de começo instalado, com o objetivo
imediato de extirpar "a heresia dos
albigenses", foi mais tarde pelo papa Gregório IX, que o organizara,
ampliado o seu funcionamento aos demais países que tinham a infelicidade de
estar sob o domínio de Roma. Porque esta, à medida que decorriam os anos, tinha
a infelicidade, a seu turno, de estar sob o jugo cada vez mais opressivo do
AntiCristo.
Os fatos que, em reforço do que
precede, passamos sucintamente a enumerar, demonstrarão que não exageramos.
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