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sexta-feira, 21 de novembro de 2014

4b. AntiCristo senhor do mundo

4b

            Foi, pois, obedecendo às sugestões malévolas do invisível, que os ministros supremos da igreja cristã, esquecidos da advertência do Mestre: "não podeis servir a Deus e as riquezas", não somente renunciaram à pobreza pessoal e aboliram a singeleza do santuário, mas se empenharam em seu enriquecimento patrimonial e entraram a imiscuir-se nos negócios do século.

            Não é nosso propósito, nem o comportaria a natureza, necessariamente sintética, deste estudo, empreender um exame analítico de todos os erros, deturpações e vicissitudes perpetradas pela igreja ou que acidentaram a sua existência, tão frequentemente tormentosa, associada que esteve a todas as fases de desenvolvimento da organização política dos povos, assim no ocidente como na parte do oriente, sobre que, através os séculos, estendeu ela o seu domínio espiritual, trabalho que, sobre exceder de muito os limites de nossa capacidade, exigiria múltiplos volumes. Queremos tão somente, indicando alguns dos sucessos de maior relevo, significativos do divórcio entre o engrandecimento material da igreja, duplicado do progressivo crescimento do seu prestígio temporal, de um lado, e do outro a singeleza, não destituída de magnitude e profundeza, do ideal que lhe dera origem, apreciar a influência preponderante nesse divórcio exercida pelo Espírito das trevas, sistematicamente empenhado em solapar nos seus fundamentos e contradizer nos seus resultados a obra de progresso e de espiritualização da humanidade, que é o escopo capital da doutrina de Jesus.

            Também nos não movem, neste esboço de crítica retrospectiva, intuitos demolidores da colaboração que, apesar de todos os seus deslizes, a igreja incontestavelmente prestou, sobretudo nos primeiros séculos e em meio das convulsões que assinalaram o soçobro do mundo pagão, à formação e desenvolvimento da civilização ocidental, sob o influxo do pensamento cristão. O nosso objetivo é, antes de tudo, apreciando a ação perturbadora do AntiCristo na existência da igreja - alvo do seu inveterado rancor - do mesmo modo que em todas as manifestações da vida humana, em que essa interferência transparece, colher ensinamentos e advertências para salvaguarda dos que, nesta época de transformações e num radioso futuro que se avizinha, desejem sinceramente seguir a Jesus e necessitam estar apercebidos contra as insidiosas manobras dos que com propriedade são denominados inimigos da luz.

            Isto posto, retomemos a largos traços a enumeração dos acontecimentos que foram visivelmente acentuando o declínio espiritual da doutrina do Senhor, desde a proscrição do ensino relativo à lei providencial das vidas sucessivas - chave da evolução universal dos seres - a que nos referimos no anterior capítulo, ao enriquecimento patrimonial da igreja e pessoal de seus serventuários, tanto mais se engrandecendo uma e os outros, pela acumulação de bens materiais e de poderio mundano, quanto o depósito sagrado, exposto, quase sem defesa, às investidas sorrateiras do inimigo, se conspurcava enleado nas complicações do século.

            Assim é que, fortalecido o papado no século VIII, durante o império carlovingiano, e ganhando autoridade crescente sobre os imperantes, o papa Zacarias, intervindo ostensivamente na órbita das contendas temporais, reconhece como rei Pepino, o Breve, pai de Carlos Magno, e a seu turno o papa Leão III põe, mais tarde, sobre a cabeça desse último a coroa real.

            A essa intromissão nos negócios do século veio juntar-se o inconveniente, ainda mais grave, de converterem a igreja, que se intitulava do Cristo, numa potência mundana, com a formação, permitida pelos carlovingianos, do Estado Pontifício, mediante a doação, feita ao papado, de Ravenna, Pentapolis - reunião de cinco cidades, como o nome o está indicando - que abrangia Fano, Ancona, Pezzaro, Rimini e Sinigaglia, completando-se a incorporação com a cidade de Roma e desse modo ficando consideravelmente acrescidos os domínios territoriais que, desde o século IV, como precedentemente o assinalamos, vinham sendo ofertados aos papas.

            Não viram ou não souberam perceber os incautos detentores da direção da igreja que essa consolidação do seu poderio material representava nada menos que uma réplica vitoriosa, do oculto sugerida pelo AntiCristo, àquela palavra de Jesus, assim formalmente desrespeitada: "Meu reino não é deste mundo".

            Ainda no século VIII um outro fato veio acentuar a tendência materializadora impressa ao culto, primitiva e exclusivamente espiritual adotado nas comunidades cristãs, tornando-o desde então nitidamente idólatra. Referimo-nos ao culto das imagens, cuja permissão foi reconhecida em 787 pelo segundo concilio de Nicéa, possivelmente como uma transigência, julgada necessária, com os hábitos de idolatria dos bárbaros invasores e a fim de assegurar a sua incorporação à cristandade, medida - se o quiserem - nesse ponto de vista defensável, não obstante a formal proibição expressa no Decálogo, sob a condição de transitoriedade, mas que a experiência dos séculos veio, com a sua permanência até aos nossos dias, demonstrar haver sido funesta, como toda transigência, ao demais, na esfera das coisas divinas, equivalente a um retrocesso.

            A resistência contudo, que essa intromissão da idolatria nas cerimonias da igreja e nos hábitos dos fieis encontrou da parte de numerosos bispos, logrando somente aprovação depois de ter sido, por mais de um século, objeto de repetidas controvérsias em diferentes concílios, prova que não somente essa medida não correspondia a uma evidente necessidade, mas que no próprio seio da igreja e entre os seus mais graduados representantes havia servidores vigilantes de Jesus, arautos e defensores do seu pensamento, que não cediam, sem tenazes opugnações, às dissimuladas manobras do AntiCristo, obstinado no seu empenho de comprometer, por todas as formas de desvirtuamento, a obra do Senhor.

            Bem sabia ele que, insinuando-se no animo dos prelados, cujas resistências terminavam por ser, mais cedo ou mais tarde, subjugadas, e afeiçoando-os aos prazeres do luxo, facilmente viria a converte-los numa classe aristocrática, divorciada das necessidades, aspirações e direitos do povo, a quem de preferência, todavia, Jesus pregava o Evangelho (Mateus XI, 5), fraudado assim num de seus objetivos capitais. Não era, com efeito, a fraternidade o dogma fundamental da sua doutrina, tendente a dissipar os antagonismos e rivalidades que dividem os homens, entre eles estabelecendo, com a prática da justiça, a paz e a harmonia?

            Considere-se, entretanto, a atitude do papado em relação ao feudalismo, regime de exploração rural e servidão exercida pelos senhores sobre os miseráveis servos da gleba, reduzidos à condição de irracionais, regime que perdurou do século X até ao fim da Idade Média, mas cujos derradeiros vestígios só vieram a ser extintos pela rajada libertadora da Revolução francesa, e ver-se-á que a igreja, não somente consentindo, mas tomando parte por alguns de seus ministros nessa ignóbil exploração do homem pelo homem, serviu ainda nisso os intuitos antifraternas do Espírito das trevas.

            Encaminhava-se desse modo a sociedade ocidental, que se presumia cristã ou, pelo menos, regida pelos princípios do Cristianismo, para a sua divisão em três classes - clero, nobreza e povo - ocupando a igreja o pináculo da escala, vindo em seguida os senhores feudais e, por último, não propriamente o povo, no sentido igualitário, reivindicado mais tarde pelas conquistas revolucionarias, mas a imensa multidão dos sofredores, dos sem-direitos, designados pejorativamente como a plebe, conservada, com a cumplicidade da igreja, na ignorância e no aviltamento, origem das ulteriores revoltas, que ensanguentaram a Europa.

            Como se não fosse ainda suficiente esse divórcio entre o fraternismo característico do ideal cristão e semelhante organização social, que lhe era odiosa antítese, para ser oposto um novo desmentido aos intuitos pacifistas do Evangelho, empreendem-se as Cruzadas, favorecidas, algumas organizadas mesmo, pela igreja, com o fim de reivindicar a ferro e fogo a posse de Jerusalém para os cristãos e libertar do jugo muçulmano "o santo sepulcro", que ao demais nada continha.

            Nos dois séculos que durou esse embate fratricida - de 1076 a 1270 - encarado por alguns como necessário derivativo ao estado de guerra quase permanente em que mutuamente se empenhavam os senhores feudais, foram sacrificados muitos milhares de vidas e, mais que tudo, os métodos, que nunca deveriam cessar de ser persuasivos, do Cristianismo, sem outro resultado a não ser o dilatarem-se os horizontes do conhecimento aos guerreiros-crentes em relação às populações orientais, de cujo contato, entretanto, lhes advieram numerosos vícios e hábitos dissolutos, complemento inevitável dos instintos de pilhagem, estimulados nessas incursões - quaisquer que fossem as intenções e os exaltados sentimentos de muitos que se lhes associavam - positivamente barbarescas. A criação de uma literatura, sem dúvida original e interessante, formada pelos romances da Cavalaria, em que foram celebradas as proezas de tais singulares cavaleiros da Cruz, não chega a ser uma compensação ao pungente desmentido, por semelhantes aventuras marciais, oposto aos ensinamentos do Evangelho, e não vale uma só das conversões
obtidas, séculos mais tarde, pelo pacífico ministério e o amor persuasivo de um Francisco Xavier.

            Uma vez contudo obliterado o senso de suas responsabilidades, e arvorada a Cruz não como símbolo de redenção, mas de perseguição e de combate, não se detiveram aí as iniciativas truculentas da igreja, senão que, para dar uma nova demonstração do espírito evangélico invertido que a animava, é organizada, em 1207, por determinação do papa Inocêncio III, a "cruzada" de extermínio contra os albigenses, prosseguida implacavelmente durante vinte e dois anos.

            Em que consistia, entretanto, a heresia desses díscolos?  Uma versão, com visos de tendenciosa, além de lhes atribuir a crença na existência de dois Criadores, o do bem e o do mal, eternamente antagônicos e, por natureza, irreconciliáveis, agindo cada um sobre seu mundo e suas criaturas, mediante sua adequada revelação, ainda lhes imputava a negação da existência humana do Cristo e dos caracteres teológicos de sua missão, bem como do dogma da ressurreição da carne, fazendo-os ainda partilhar a opinião pessimista de ser considerada crime a reprodução da espécie humana, cuja extinção desse modo propugnariam, com o que pretende semelhante versão porventura justificar o extremo rigor empregado pela igreja em exterminar os portadores de tais heterodoxas concepções. Constituindo, porém, os albigenses uma das ramificações sectárias dos cátaros, deviam ser idênticos aos por estes adotados os seguintes pontos fundamentais de sua doutrina: - coexistência de dois princípios das coisas, o bom e o mau, como explicação do perpétuo conflito entre essas duas modalidades; as almas, criaturas do bom princípio, sucumbiram às tentações do segundo, sendo que - na opinião de partidários da seita, menos radicais - o principio mau começara sendo bom e decaíra por orgulho; - Jesus é um anjo, enviado para salvar os homens pela revelação de sua verdadeira natureza; o característico geral desses sectários consistia na extrema pureza de costumes; - ascética era a moral que praticavam e o culto simples, consistindo em pregar e abençoar; - possuíam um episcopado, a que só ascendiam os "perfeitos", que haviam recebido o batismo do espírito.

            Foi, pois, a tais pacíficos dissidentes, entre cujos princípios teogônicos se encontram alguns, como se vê, senão idênticos, pelo menos semelhantes aos da igreja, como a doutrina, por esta sustentada, dos anjos decaídos, convertidos em demônios, e a do resgate do gênero humano por mediação do Cristo, que entendeu a igreja, levar a condenação e a morte, fazendo do seu extermínio um título de consolidação do seu poderio intolerante e exclusivo, de nada valendo, como atenuante sequer, a pureza de costumes dos "heréticos" e somente preocupada ela, a igreja, em impor, com a unidade de seus dogmas, a uniformidade de suas práticas, complicadas de ritos pagãos, a que opunha expressivo contraste a simplicidade, aos seus olhos odiosa, do culto praticado pelos albigenses.

            Contra eles, em lugar da persuasão - apenas com intermitências empregada por alguns missionários da Palavra, como, entre outros, o excelso Antônio de Pádua - foram, portanto, sistematicamente brandidas as armas homicidas. E para concluir a obra de extermínio, que ainda não parecera suficientemente eficaz em seus resultados, o concilio de Tolosa decretou, em 1229, o estabelecimento do Tribunal, por ironia, denominado da "santa" Inquisição. Ali de começo instalado, com o objetivo imediato de extirpar "a heresia dos albigenses", foi mais tarde pelo papa Gregório IX, que o organizara, ampliado o seu funcionamento aos demais países que tinham a infelicidade de estar sob o domínio de Roma. Porque esta, à medida que decorriam os anos, tinha a infelicidade, a seu turno, de estar sob o jugo cada vez mais opressivo do AntiCristo.

            Os fatos que, em reforço do que precede, passamos sucintamente a enumerar, demonstrarão que não exageramos.


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