AntiCristo Senhor do Mundo
por Leopoldo Cirne
Edição – 1939
3a
III.
A ação divina propulsora, causa eficiente da prodigiosa floração cristã e do
heroísmo dos seus mártires. - Ocaso do Cristianismo glorioso e heroico. -
Simultânea manobra, externa e interna, do AntiCristo contra a Igreja. -
Vicissitudes do Evangelho. - Instituição do dogma da existência única, oposto à
doutrina da pluralidade de existências sustentada por Orígenes e sancionada
pelo Cristo.
Depois de assinalar e reconhecer que
o Cristianismo, logo no curso do primeiro século, se propagou com rapidez que
parece miraculosa, Cesar Cantu (1), pesquisando as causas históricas
desse fenômeno em sua dupla irradiação, isto é, assim nas classes elevadas e
cultas da sociedade romana, como no ânimo da plebe, julga encontrar-lhe
suficiente explicação, de um lado, no ambiente social areado no Império por
suas instituições e métodos políticos, por suas leis e costumes e, do outro, no
estado de espirito gerado na massa popular pelos excessos de tirania,
compressora de instintivas aspirações latentes, que o tornavam sumamente
receptivo às sedutoras promessas do Evangelho.
(1) ‘História Universal’, vol. V,
cap. XXV.
Nessa ordem de ideias, de que
daremos apenas resumido extrato, diz ele, com efeito:
“A Grécia e Roma,
os dois grandes agentes da civilização pagã, como que se tinham imposto a
missão inconsciente de preparar o terreno para a sementeira da- fé. A Grécia
oferecera à propaganda uma língua quase universalizada. Roma derruíra as
barreiras que separavam as raças e as nações; suprimira ou enfraquecera as robustas
individualidades políticas e religiosas, facilitara as comunicações e, com
elas, a transmissão das ideias e dos sentimentos; dotara o mundo com
instituições tolerantes. Se o Cristianismo tivesse encontrado a Ásia e a Europa
divididas em pequenos Estados, dirigidos por governos aferrados às tradições,
teria tido que sustentar uma tremenda luta a cada passo que aventurassem os
seus missionários. Se existissem ainda os cultos nacionais radicados nos espíritos e defendidos pelas
corporações sacerdotais, que, como no Egito, por exemplo, tinham sido
verdadeiros centros da vida social, ser-lhe-ia mister, para se expandir, não já
a força que move, mas a que transforma. Bastaria a Judeia dos profetas e dos
Macabeus para o cingir num círculo de ferro.
Felizmente, porém - observa - o que os apóstolos inermes de Jesus
precisariam destruir da velha sociedade, havia-o destruído o império com a sua
politica, com o seu direito civil, com o seu indiferentismo religioso, até com
a devassidão dos seus costumes. É mais fácil passar da incredulidade à crença
do que mudar de crenças, havendo como há no espírito humano uma propensão inata
para crer."
E logo adiante:
"Os velhos deuses
tinham desabado dos altares; pior ainda, tinham-se profanado e envilecido com a
companhia dos Neros e dos Calígulas. Lucianus cuspia para o Olimpo, e havia
muitos Lucianus, senão no talento, na descrença. Os espíritos elevados fugiam
da religião para o asilo da filosofia, inacessível ao vulgo. As superstições
recrutavam prosélitos e se multiplicavam, prova de que os espíritos se não
contentavam com simples negações."
"Os
costumes licenciosos - acrescenta - a tirania dos ricos, dos grandes, dos
senhores sobre os pobres, os humildes, os escravos, também os crimes e as
torpezas da corte imperial, de algum modo, conspiravam em favor do
Cristianismo: conspiravam com a indignação e o desgosto que causavam aos homens
de inteligência e de coração, com os sofrimentos que impunham ao povo, com a
reação moral que promoviam."
Esse conjunto de circunstâncias,
judiciosamente assinaladas - interrompamos aqui a transcrição para, por nossa
vez, observar - prova antes de tudo a oportunidade do momento histórico
escolhido pelo Cristo para baixar a este mundo e, depois das lições intencionais
contidas do início ao termo de sua evangelização, por nós indicadas no capitulo
primeiro, impulsionar a marcha de seus discípulos e continuadores no rumo do
ocidente, admiravelmente preparado "para a sementeira da fé". Prova
ainda que dos próprios desvarios e erros humanos, das ambições e conquistas
levadas a efeito com objetivos puramente egoísticos, sabe o Poder Divino
utilizar-se para a realização de seus fins providenciais, dentro do vasto plano
de harmonia por Ele traçado para a evolução da humanidade.
No tocante às classes obscuras, isto
é, aos pobres e desprezados, aos quais, todavia, de preferência anunciava o
Cristo o seu Evangelho, assim se exprime o historiador:
"Para a parte da
sociedade que era vitimada em benefício dos gozos da outra parte o Cristianismo
tinha milagrosas seduções. Era a primeira vez que Deus se fazia humilde com os
humildes, simples com os simples; era a primeira religião, ao menos a primeira
conhecida na Europa, que engrandecia os pequenos e condenava as distinções e as
categorias estabelecidas pelas convenções ou pelos fatos sociais."
"Qual
seria o escravo - adverte - que se não sentiria propenso a acreditar
que era igual, senão superior, ao tirano, que dispunha da sua personalidade,
perante um juiz e uma lei de profunda sabedoria! A ideia cristã tinha consequências
e aplicações que transcendiam o foro íntimo e eram admiravelmente acomodadas às
aspirações naturais de uma imensa parte do gênero humano."
No ponto de vista puramente social e
histórico, para explicar o entusiástico alvoroço com que os princípios teóricos
do Cristianismo e as promessas, que envolviam, de uma vida
imortal, subsequente aos erros, injustiças e misérias da presente vida, eram
acolhidos e se propagavam por todas as classes da sociedade, parecerão sem dúvida
suficientes, ao observador
circunscrito à ponderação dos fatores humanos, os motivos psicológicos que aí
ficam resumidos. Quando, porém, da superfície dos sucessos se pretenda remontar
ao seu
determinismo profundo, a deficiência de tais motivos se patenteará não só para
explicar a celeridade vertiginosa com que, desajudado de todo prestígio social,
que nenhum de seus propugnadores desfrutava, o Cristianismo se propagou do
fundo da escravizada Judéia à dominadora e opulenta metrópole romana, mas
sobretudo aquela prodigiosa floração de mártires-heróis que, durante séculos,
em consecutivas gerações, realizaram a mais deslumbrante, verdadeiramente sobre
humana epopeia que jamais se desenrolou no cenário terrestre.
Não, não eram seres vulgares aquelas
criaturas que, abrasadas de fé transfiguradora, desafiavam todas as potências
humanas, caminhavam intrépidas para a imolação e se sobrepunham
mesmo, algumas vezes, ao mais elevado instinto, como o da maternidade, que
enobrece e sublima a nossa espécie, para dar testemunho de sua fidelidade ao
Cristo, Salvador
e Mestre, nem agiam desamparadas do influxo divino ao entregar a própria vida
ou a vida, ainda mais preciosa, de seus filhos em holocausto à ferocidade dos
homens, unicamente preocupadas com o beneplácito de Deus.
Para quem possua, consoante a
expressão bíblica, "olhos de ver", a cadeia de sucessos que o já
citado historiador denominou "Idade heroica do Cristianismo" só pode
ser entendida e satisfatoriamente explicada à luz do seguinte critério
espiritualista.
As gerações humanas, filiadas embora
umas às outras segundo as leis da biologia, a cuja luz se explicam os fenômenos
de hereditariedade e atavismo, são antes de tudo constituídas
por Espíritos nos mais variados graus de evolução, tendo todos um mesmo
objetivo: aperfeiçoar-se, mediante os trabalhos, sofrimentos e experiências
terrestres, nem
sempre contudo, em consequência da complexidade dos fatores externos que sobre
elas operam - cósmicos, geográficos, climatéricos, econômicos, etc. - mas
sobretudo em virtude
da preponderância das forças adversas espirituais, de que iterativamente nos
temos ocupado e nos ocuparemos no desenvolvimento deste estudo e em cuja
apreciação reside, mesmo,
o seu eixo central, nem sempre - dizemos - logrando com segurança orientar-se
no sentido de preencher satisfatoriamente aquele objetivo providencial, no rumo
da ascensão contínua, que, só a partir de um certo grau de maturidade
espiritual, se verifica.
Relativamente à constituição do
mundo antigo, na fase histórica a que nos estamos reportando, as populações do
ocidente - à parte os povos bárbaros, que representavam uma reserva de
Espíritos, até certo ponto, primitivos, destinados contudo à renovadora
irrupção, que mais tarde fizeram, no período de final deliquescência do império
romano - apresentavam o espetáculo de uma raça profundamente saturada de
materialidade, absorvida exclusivamente na preocupação dos gozos desta vida,
sem a noção, elementar sequer, da outra, definitiva e imortal. Eram Espíritos,
alguns intelectualmente desenvolvidos, entre os quais fulguravam, nas esferas
da filosofia e das letras, certos raros exemplares, portadores de genial
intuição das verdades superiores, dotados, porém, os
que
constituíam a grande massa, de instintos subalternos, que denunciavam o seu
baixo nível evolutivo e os tornavam joguetes facilmente manejáveis pelas forças
reacionárias do invisível.
Foi, de mistura com essa vasta escória
do gênero humano, de preferência aglomerada na capital do Império, que o Cristo
- não o anunciara Ele: "eu vos envio
como cordeiros entre os lobos"? - para o tormentoso e glorificador prosseguimento
de sua obra redentora, fez baixarem as legiões de espíritos escolhidos, que
formaram as gerações cristãs dos três primeiros séculos, incumbidos de levantar
bem alto, naquelas renhidas pelejas contra as agressivas trevas morais, em que
o mundo jazia amortalhado, o sacrossanto lábaro da Cruz.
Mergulhados, todavia, na espessura
obscurecedora da encarnação material, que os expunha ao contágio deletério do ambiente
social com que eram postos em contato, poderia o Cristo abandonar às suas
exclusivas energias aqueles Espíritos de escol, e seriam estas suficientes para
oporem à apregoada irresistibilidade da "influência mesológica" o
eloquente desmentido assim da pureza irrepreensível de seus costumes como da
vivacidade de suas convicções imortalistas?
Era, pois, tutelar e vigilante, o
Espírito do Senhor Jesus que, ora diretamente, ora por intermédio de seus angélicos
mensageiros, não somente inflamava a fé naqueles corações fiéis,
mas, na hora suprema da glorificação pelo martírio, tornando-os impermeáveis às
torturas morais ou físicas, os transportava em lances de sobre humana heroicidade,
que bastaria
para converter em massa todas as populações espalhadas nas diferentes províncias
do Império e a da sua própria capital, se sobre elas não pesasse, com a
peculiar fragilidade e as propensões materiais, oriundas de seu inferior
desenvolvimento espiritual, a sombra funesta do AntiCristo e de seus auxiliares
tenebrosos.
Ilustrações daquela ação divina
propulsora? Dois únicos exemplos, de singular relevo, bastarão, a esse título,
entre os milhares que a história registrou e dos quais um exíguo pugilo
ficou reproduzido no final do anterior capítulo.
Seja o primeiro aquela valorosa mãe
de Sinforiano
que, ao ver levarem-lhe, caminho do suplício, mais que um pedaço de sua carne,
a própria vida, no filho de suas entranhas, longe de fraquejar ou sucumbir,
lança lhe, do alto das muralhas de Autum,
o brado comovedor, que nem a distância dos séculos consegue amortecer e ainda
hoje, e sempre, há
de suscitar estremecimentos de assombro: "Meu filho, eleva teu coração ao céu; não perdes a vida, vais troca-la
por outra melhor."
Seja o segundo a mãe de Barulas,
aquele menino de 7 anos que confessa o Cristo, a qual não somente resiste ao
dilacerante espetáculo da flagelação do filho e, mais corajosa que os
assistentes, emocionados até às lagrimas diante da inominável crueldade,
proferida a condenação pelo juiz, não deserta o seu posto, não procura
arrebatar a criança, em nome do sacrossanto e vulnerado amor materno, mas,
abrasada na mesma fé cristã e na mesma certeza da ressurreição, entrega o filho
ao carrasco e, no momento da execução, tem apenas o gesto compassivo e heroico:
estende o vestido e recolhe o sangue e a cabeça do mártir, que levou consigo.
Quem ousará dizer que semelhantes
atitudes, em que a fragilidade humana desaparece numa transfiguração ele excelsas
energias espirituais, não eram inspiradas e sustentadas pelos Poderes
superiores do invisível, únicos capazes de, sob a suprema direção do Cristo,
assim levantar, sem dúvida, os mais nobres exemplares da nossa espécie, ainda
amortalhados, todavia, no sudário da matéria, à verdadeira condição de
semideuses?
E era preciso que assim
permanecessem infatigáveis os Enviados do Senhor, em sua misericordiosa assistência
junto aos heróis mártires, a fim de que pudesse a ideia cristã resistir
vitoriosa à formidável pressão exercida pelo AntiCristo no sentido de a aniquilar
mediante as repetidas chacinas por ele suscitadas contra os seus gloriosos
portadores, enquanto durou a "idade heroica", em seguida à qual,
mudando de tática, ou antes, desenvolvendo-a em mais larga e intensa escala,
passou a operar no seio da própria Igreja organizada, insinuando-se no ânimo de
seus representantes.
Não é difícil a demonstração.
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