quarta-feira, 12 de novembro de 2014

3a. AntiCristo senhor do mundo



AntiCristo Senhor do Mundo
por Leopoldo Cirne
Edição  – 1939

3a


III. A ação divina propulsora, causa eficiente da prodigiosa floração cristã e do heroísmo dos seus mártires. - Ocaso do Cristianismo glorioso e heroico. - Simultânea manobra, externa e interna, do AntiCristo contra a Igreja. - Vicissitudes do Evangelho. - Instituição do dogma da existência única, oposto à doutrina da pluralidade de existências sustentada por Orígenes e sancionada pelo Cristo.

            Depois de assinalar e reconhecer que o Cristianismo, logo no curso do primeiro século, se propagou com rapidez que parece miraculosa, Cesar Cantu (1), pesquisando as causas históricas desse fenômeno em sua dupla irradiação, isto é, assim nas classes elevadas e cultas da sociedade romana, como no ânimo da plebe, julga encontrar-lhe suficiente explicação, de um lado, no ambiente social areado no Império por suas instituições e métodos políticos, por suas leis e costumes e, do outro, no estado de espirito gerado na massa popular pelos excessos de tirania, compressora de instintivas aspirações latentes, que o tornavam sumamente receptivo às sedutoras promessas do Evangelho.

            (1) ‘História Universal’, vol. V, cap. XXV.

            Nessa ordem de ideias, de que daremos apenas resumido extrato, diz ele, com efeito:

            A Grécia e Roma, os dois grandes agentes da civilização pagã, como que se tinham imposto a missão inconsciente de preparar o terreno para a sementeira da- fé. A Grécia oferecera à propaganda uma língua quase universalizada. Roma derruíra as barreiras que separavam as raças e as nações; suprimira ou enfraquecera as robustas individualidades políticas e religiosas, facilitara as comunicações e, com elas, a transmissão das ideias e dos sentimentos; dotara o mundo com instituições tolerantes. Se o Cristianismo tivesse encontrado a Ásia e a Europa divididas em pequenos Estados, dirigidos por governos aferrados às tradições, teria tido que sustentar uma tremenda luta a cada passo que aventurassem os seus missionários. Se existissem ainda os cultos nacionais radicados nos espíritos e defendidos pelas corporações sacerdotais, que, como no Egito, por exemplo, tinham sido verdadeiros centros da vida social, ser-lhe-ia mister, para se expandir, não já a força que move, mas a que transforma. Bastaria a Judeia dos profetas e dos Macabeus para o cingir num círculo de ferro.

            Felizmente, porém - observa - o que os apóstolos inermes de Jesus precisariam destruir da velha sociedade, havia-o destruído o império com a sua politica, com o seu direito civil, com o seu indiferentismo religioso, até com a devassidão dos seus costumes. É mais fácil passar da incredulidade à crença do que mudar de crenças, havendo como há no espírito humano uma propensão inata para crer."

            E logo adiante:

            "Os velhos deuses tinham desabado dos altares; pior ainda, tinham-se profanado e envilecido com a companhia dos Neros e dos Calígulas. Lucianus cuspia para o Olimpo, e havia muitos Lucianus, senão no talento, na descrença. Os espíritos elevados fugiam da religião para o asilo da filosofia, inacessível ao vulgo. As superstições recrutavam prosélitos e se multiplicavam, prova de que os espíritos se não contentavam com simples negações."
            "Os costumes licenciosos - acrescenta - a tirania dos ricos, dos grandes, dos senhores sobre os pobres, os humildes, os escravos, também os crimes e as torpezas da corte imperial, de algum modo, conspiravam em favor do Cristianismo: conspiravam com a indignação e o desgosto que causavam aos homens de inteligência e de coração, com os sofrimentos que impunham ao povo, com a reação moral que promoviam."

            Esse conjunto de circunstâncias, judiciosamente assinaladas - interrompamos aqui a transcrição para, por nossa vez, observar - prova antes de tudo a oportunidade do momento histórico escolhido pelo Cristo para baixar a este mundo e, depois das lições intencionais contidas do início ao termo de sua evangelização, por nós indicadas no capitulo primeiro, impulsionar a marcha de seus discípulos e continuadores no rumo do ocidente, admiravelmente preparado "para a sementeira da fé". Prova ainda que dos próprios desvarios e erros humanos, das ambições e conquistas levadas a efeito com objetivos puramente egoísticos, sabe o Poder Divino utilizar-se para a realização de seus fins providenciais, dentro do vasto plano de harmonia por Ele traçado para a evolução da humanidade.

            No tocante às classes obscuras, isto é, aos pobres e desprezados, aos quais, todavia, de preferência anunciava o Cristo o seu Evangelho, assim se exprime o historiador:

            "Para a parte da sociedade que era vitimada em benefício dos gozos da outra parte o Cristianismo tinha milagrosas seduções. Era a primeira vez que Deus se fazia humilde com os humildes, simples com os simples; era a primeira religião, ao menos a primeira conhecida na Europa, que engrandecia os pequenos e condenava as distinções e as categorias estabelecidas pelas convenções ou pelos fatos sociais."
            "Qual seria o escravo - adverte - que se não sentiria propenso a acreditar que era igual, senão superior, ao tirano, que dispunha da sua personalidade, perante um juiz e uma lei de profunda sabedoria! A ideia cristã tinha consequências e aplicações que transcendiam o foro íntimo e eram admiravelmente acomodadas às aspirações naturais de uma imensa parte do gênero humano."

            No ponto de vista puramente social e histórico, para explicar o entusiástico alvoroço com que os princípios teóricos do Cristianismo e as promessas, que envolviam, de uma vida imortal, subsequente aos erros, injustiças e misérias da presente vida, eram acolhidos e se propagavam por todas as classes da sociedade, parecerão sem dúvida suficientes, ao observador circunscrito à ponderação dos fatores humanos, os motivos psicológicos que aí ficam resumidos. Quando, porém, da superfície dos sucessos se pretenda remontar ao seu determinismo profundo, a deficiência de tais motivos se patenteará não só para explicar a celeridade vertiginosa com que, desajudado de todo prestígio social, que nenhum de seus propugnadores desfrutava, o Cristianismo se propagou do fundo da escravizada Judéia à dominadora e opulenta metrópole romana, mas sobretudo aquela prodigiosa floração de mártires-heróis que, durante séculos, em consecutivas gerações, realizaram a mais deslumbrante, verdadeiramente sobre humana epopeia que jamais se desenrolou no cenário terrestre.

            Não, não eram seres vulgares aquelas criaturas que, abrasadas de fé transfiguradora, desafiavam todas as potências humanas, caminhavam intrépidas para a imolação e se sobrepunham mesmo, algumas vezes, ao mais elevado instinto, como o da maternidade, que enobrece e sublima a nossa espécie, para dar testemunho de sua fidelidade ao Cristo, Salvador e Mestre, nem agiam desamparadas do influxo divino ao entregar a própria vida ou a vida, ainda mais preciosa, de seus filhos em holocausto à ferocidade dos homens, unicamente preocupadas com o beneplácito de Deus.

            Para quem possua, consoante a expressão bíblica, "olhos de ver", a cadeia de sucessos que o já citado historiador denominou "Idade heroica do Cristianismo" só pode ser entendida e satisfatoriamente explicada à luz do seguinte critério espiritualista.

            As gerações humanas, filiadas embora umas às outras segundo as leis da biologia, a cuja luz se explicam os fenômenos de hereditariedade e atavismo, são antes de tudo constituídas por Espíritos nos mais variados graus de evolução, tendo todos um mesmo objetivo: aperfeiçoar-se, mediante os trabalhos, sofrimentos e experiências terrestres, nem sempre contudo, em consequência da complexidade dos fatores externos que sobre elas operam - cósmicos, geográficos, climatéricos, econômicos, etc. - mas sobretudo em virtude da preponderância das forças adversas espirituais, de que iterativamente nos temos ocupado e nos ocuparemos no desenvolvimento deste estudo e em cuja apreciação reside, mesmo, o seu eixo central, nem sempre - dizemos - logrando com segurança orientar-se no sentido de preencher satisfatoriamente aquele objetivo providencial, no rumo da ascensão contínua, que, só a partir de um certo grau de maturidade espiritual, se verifica.

            Relativamente à constituição do mundo antigo, na fase histórica a que nos estamos reportando, as populações do ocidente - à parte os povos bárbaros, que representavam uma reserva de Espíritos, até certo ponto, primitivos, destinados contudo à renovadora irrupção, que mais tarde fizeram, no período de final deliquescência do império romano - apresentavam o espetáculo de uma raça profundamente saturada de materialidade, absorvida exclusivamente na preocupação dos gozos desta vida, sem a noção, elementar sequer, da outra, definitiva e imortal. Eram Espíritos, alguns intelectualmente desenvolvidos, entre os quais fulguravam, nas esferas da filosofia e das letras, certos raros exemplares, portadores de genial intuição das verdades superiores, dotados, porém, os
que constituíam a grande massa, de instintos subalternos, que denunciavam o seu baixo nível evolutivo e os tornavam joguetes facilmente manejáveis pelas forças reacionárias do invisível.

            Foi, de mistura com essa vasta escória do gênero humano, de preferência aglomerada na capital do Império, que o Cristo - não o anunciara Ele: "eu vos envio como cordeiros entre os lobos"? - para o tormentoso e glorificador prosseguimento de sua obra redentora, fez baixarem as legiões de espíritos escolhidos, que formaram as gerações cristãs dos três primeiros séculos, incumbidos de levantar bem alto, naquelas renhidas pelejas contra as agressivas trevas morais, em que o mundo jazia amortalhado, o sacrossanto lábaro da Cruz.

            Mergulhados, todavia, na espessura obscurecedora da encarnação material, que os expunha ao contágio deletério do ambiente social com que eram postos em contato, poderia o Cristo abandonar às suas exclusivas energias aqueles Espíritos de escol, e seriam estas suficientes para oporem à apregoada irresistibilidade da "influência mesológica" o eloquente desmentido assim da pureza irrepreensível de seus costumes como da vivacidade de suas convicções imortalistas?

            Era, pois, tutelar e vigilante, o Espírito do Senhor Jesus que, ora diretamente, ora por intermédio de seus angélicos mensageiros, não somente inflamava a fé naqueles corações fiéis, mas, na hora suprema da glorificação pelo martírio, tornando-os impermeáveis às torturas morais ou físicas, os transportava em lances de sobre humana heroicidade, que bastaria para converter em massa todas as populações espalhadas nas diferentes províncias do Império e a da sua própria capital, se sobre elas não pesasse, com a peculiar fragilidade e as propensões materiais, oriundas de seu inferior desenvolvimento espiritual, a sombra funesta do AntiCristo e de seus auxiliares tenebrosos.

            Ilustrações daquela ação divina propulsora? Dois únicos exemplos, de singular relevo, bastarão, a esse título, entre os milhares que a história registrou e dos quais um exíguo pugilo ficou reproduzido no final do anterior capítulo.

            Seja o primeiro aquela valorosa mãe de Sinforiano que, ao ver levarem-lhe, caminho do suplício, mais que um pedaço de sua carne, a própria vida, no filho de suas entranhas, longe de fraquejar ou sucumbir, lança lhe, do alto das muralhas de Autum, o brado comovedor, que nem a distância dos séculos consegue amortecer e ainda hoje, e sempre, há de suscitar estremecimentos de assombro: "Meu filho, eleva teu coração ao céu; não perdes a vida, vais troca-la por outra melhor."

            Seja o segundo a mãe de Barulas, aquele menino de 7 anos que confessa o Cristo, a qual não somente resiste ao dilacerante espetáculo da flagelação do filho e, mais corajosa que os assistentes, emocionados até às lagrimas diante da inominável crueldade, proferida a condenação pelo juiz, não deserta o seu posto, não procura arrebatar a criança, em nome do sacrossanto e vulnerado amor materno, mas, abrasada na mesma fé cristã e na mesma certeza da ressurreição, entrega o filho ao carrasco e, no momento da execução, tem apenas o gesto compassivo e heroico: estende o vestido e recolhe o sangue e a cabeça do mártir, que levou consigo.

            Quem ousará dizer que semelhantes atitudes, em que a fragilidade humana desaparece numa transfiguração ele excelsas energias espirituais, não eram inspiradas e sustentadas pelos Poderes superiores do invisível, únicos capazes de, sob a suprema direção do Cristo, assim levantar, sem dúvida, os mais nobres exemplares da nossa espécie, ainda amortalhados, todavia, no sudário da matéria, à verdadeira condição de semideuses?

            E era preciso que assim permanecessem infatigáveis os Enviados do Senhor, em sua misericordiosa assistência junto aos heróis mártires, a fim de que pudesse a ideia cristã resistir vitoriosa à formidável pressão exercida pelo AntiCristo no sentido de a aniquilar mediante as repetidas chacinas por ele suscitadas contra os seus gloriosos portadores, enquanto durou a "idade heroica", em seguida à qual, mudando de tática, ou antes, desenvolvendo-a em mais larga e intensa escala, passou a operar no seio da própria Igreja organizada, insinuando-se no ânimo de seus representantes.

            Não é difícil a demonstração.


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