AntiCristo Senhor do Mundo
por Leopoldo Cirne
Edição – 1935
2f
O primeiro, pois, dos grandes
milagres por que se havia de caracterizar o Cristianismo, em sua conquista
gradual do mundo, se operara. A doutrina do obscuro Filho do carpinteiro,
justiçado entre dois malfeitores pelo inaudito crime de amar os homens e lhes
ter vindo oferecer as leis de redenção por esse mesmo amor, irradiara da
Palestina escravizada e, transmitida de boca em boca e de coração a coração,
penetrara, antes de decorrido meio século, no seio da metrópole dominadora.
Propagada ao começo, numa sombra aparentemente vegetativa, entre os oprimidos e
desprezados pelo patriciado gozador e fátuo, não tardaria em conquistar todas
as classes sociais e ser posta em trágico relevo, mercê das violentas
perseguições movidas pela ferocidade dos Nero e Domiciano, que outra coisa de
fato não lograram senão intensificar lhe a vitalidade, acrescentando lhe à própria
força de incoercível expansão II aureola santificadora do martírio.
Serviu de pretexto à primeira dessas
perseguições em massa o incêndio posto à cidade por ordem de Nero - o artista
das monstruosidades - que, para afastar de si a responsabilidade do inominável
atentado, lembrou-se de atribui-lo aos cristãos.
"Primeiramente
- refere um historiador - os sicários do imperador prenderam muitas pessoas
suspeitas de aditas à seita incriminada e as amontoaram num cárcere que, já de
si, era um suplício. Confessaram a sua fé, e a confissão foi interpretada como
prova de ódio ao Império e aos seus deuses, aos seus soberanos, Essas prisões
acarretaram outras: a autoridade descobriu nas camadas inferiores da população
uma sociedade com vastas ramificações, com prosélitos numerosos, e assustou-se.
As doutrinas dos cristãos, criticadas pelo politeísmo e pelo cesarismo,
pareceram subversivas, odientas, tal foi a opinião de homens esclarecidos, como
Tácito e Suetônio. Se os confessores do Cristo não tinham incendiado Roma, eram
pelo menos uma praga que ameaçava devastar o mundo romano. Nero achou-se
apoiado pela opinião publica quando votou aos suplícios os partidários da nova
e malfazeja superstição."
"Quase
todos os cristãos presos - descreve por sua vez Ernest Renan - eram humiliores, homens do nada. O suplício
desses desgraçados, quando incriminados de lesa-majestade ou de sacrilégio,
consistia em serem entregues às feras ou queimados vivos no anfiteatro, depois
de cruéis flagelações. Uma das particularidades mais hediondas dos costumes
romanos era converterem o suplício em festa e o morticínio em divertimento
publico."
"Roma
- acrescenta mais adiante - poucos dias teve tão extraordinários. O ludus matutinus, consagrado aos
combates de animais, viu um préstito indescritível. Os condenados, cobertos com
peles de feras, foram lançados à arena, onde os despedaçaram matilhas de cães;
outros foram crucificados; alguns, metidos em túnicas embebidas de azeite, pez
ou resina e atados a postes, foram destinados para iluminar as festas noturnas.
Quando declinou o dia, acenderam-se esses fachos vivos. Nero ofereceu para o
espetáculo os magníficos jardins que possuía além do Tibre e que ocupavam o
atual espaço do Burgo,
da praça e da basílica de S. Pedro.
Havia ali um circo começado por Calígula, continuado por Claudio, e que tinha
por marco um obelisco tirado de Heliópolis. Esse lugar já tinha sido teatro de
morticínios à luz de archotes. Calígula ali mandara decapitar, enquanto
passeava ao clarão de fachos, muitos personagens consulares, senadores e damas.
"A
ideia de substituir os brandões (velas grandes) por corpos humanos impregnados
de substâncias combustíveis pode parecer engenhosa. Como suplício, essa maneira
de queimar em vida não era nova: era o castigo usual dos incendiários, o que se
chamava a tunica molesta,(veste
impregnada de material combustível) mas
nunca tinha sido transformada em sistema de iluminação . À luz dessas hediondas
tochas Nero, que tinha posto em moda as corridas noturnas, apresentou-se na
arena, ora confundido com o povo e vestido de jockey, ora guiando um carro e provocando
aplausos.
"Houve
contudo alguns sinais de compaixão, Mesmo os que julgavam criminosos os cristãos
e reconheciam terem merecido a morte, se horrorizaram com tão cruéis
divertimentos. Os homens sensatos teriam desejado que se fizesse unicamente o
que a utilidade publica exigia, que se limpasse a cidade de homens perigosos,
mas que não parecesse que se sacrificavam culpados à ferocidade de um só."
E, depois de outras minuciosas e não
menos impressionantes descrições, comenta Renan: "Assim se exordiou esse
poema extraordinário do martírio cristão, essa epopeia do anfiteatro, que havia
de durar duzentos e cinquenta anos e da qual saíram o enobrecimento da mulher e
a reabilitação do escravo".
As perseguições não foram, todavia,
prosseguidas sistematicamente desde logo, mas interrompidas e recomeçadas a espaços,
consoante os instintos ferozes ou benignos dos imperantes. É assim que, depois
da chacina do ano 64 a que nos referimos, ordenada por Nero, houve uma trégua
até o reinado de Domiciano (81 a 96), "o Nero calvo", que aterrorizou
com o seu delírio sanguinário a população de Roma. Foi sob o reinado de Trajano
(98 a 117) que "começaram as perseguições sistemáticas, inteligentes,
políticas".
"O imperador que se propusera restabelecer a
legalidade - observa o já aludido historiador - não podia perdoar atentados
contra a fé religiosa; o patriota devia forçosamente ser rigoroso para com
associações de caráter cosmopolita."
Foi então que a doutrina de Jesus
pareceu condenada, na pessoa de seus intrépidos confessores, a um completo e sistemático
aniquilamento. Da rapidez com que se propagara e que na opinião do citado
historiador parece miraculosa, dá ele testemunho assinalando que "no tempo
de Nero, trinta e três anos depois da morte do Cristo, já havia em Roma
numerosos cristãos, que se distinguiam bem dos judeus; já haviam penetrado em
províncias afastadas e eram tantos que se considerou um triunfo o seu suposto
extermínio". E acrescenta: "Lucianus achou o Ponto, sua pátria,
inçado de epicuristas e cristãos; cerca do ano 80 queixava-se Plínio de estarem
desertos os templos, as vítimas
sem
compradores, e acusava desse estado de coisas a superstição cristã, espalhada
até nas choupanas e nos vilarejos. E os prosélitos não eram já exclusivamente
homens do povo: Plínio encontrou-os, de todas as condições e de todas as
idades". Tertuliano declarou ao proconsul que " se continuasse a
perseguir os cristãos de Cartago, teria de dizimar a cidade e acharia entre os
criminosos muitas pessoas da sua classe, matronas, senadores, amigos. O edito
do imperador Valeriano supõe a conversão
de senadores, cavaleiros romanos e senhoras de alta hierarquia".
Para aniquilar, pois, a doutrina do
Senhor, considerada uma perigosa superstição, toda sorte de violências pareceu
legítima.
"Dado o exemplo das
perseguições aos cristãos por um imperador como Trajano, não mais foi possível
faze-las cessar de todo. Quando os césares as não ordenavam e os seus
delegados
as não iniciavam, exigia-as a plebe nas grandes assembleias ruidosas e
tumultuarias, nos dias de festa do paganismo, na embriaguez sanguinária do anfiteatro,
gritando: "os cristãos às feras! Os cristãos à fogueira!"
Então, excluídos do amparo das leis
e postos fora da sociedade, dir-se-ia mesmo que degradados da espécie humana
como seres singularmente malfazejos, espionados e perseguidos, os confessores
de Jesus ora se refugiavam nas catacumbas de Roma, para celebrar, na comunhão
de seus corações abrasados de fé, o inefável "mistério do reino dos céus",
ora a plena luz, em presença de seus implacáveis algozes, ostentavam a intrepidez
da convicção imortal que os animava, em lances de heroísmo verdadeiramente
sobre humano, jamais igualado em qualquer outra época da historia. Os seguintes
episódios, respigados entre os mais expressivos ou comovedores, podem dar uma
ideia do que foi, durante séculos, esse espantoso conflito entre as forças
tenebrosas do mal, a que serviam de instrumento as desvairadas multidões,
encabeçadas pelos seus cruéis dominadores, e as invisíveis hostes do Senhor,
inspirando, fortalecendo e sustentando aqueles que se haviam proposto ser, na
vida e na morte, os destemidos arautos de sua redentora doutrina.
"Ao terminar Adriano a
esplendida habitação de Tibur, celebrou, para a inaugurar, sacrifícios
pomposos. Mas as vítimas, os auspícios, os agouros ou não davam sinais, ou só
os
davam sinistros. Os deuses, interrogados por meio de evocações mais poderosas,
responderam: "Como havemos de proferir oráculos, se Sinforosia e seus sete
filhos todos os dias nos ultrajam, invocando o seu deus!" - O imperador
mandou chamar a acusada e perguntou-lhe quem era. Respondeu: "Meu marido Getúlio
e seu irmão Amâncio, tribunos
militares,
sofreram por Jesus Cristo e preferiram ser decapitados a sacrificar aos deuses,
alcançando opróbrio na terra e glória entre os anjos". Tendo-lhe Adriano
ordenado
que
escolhesse entre sacrificar e morrer, não hesitou, dizendo que queria ir
juntar-se ao esposo. Conduziram-na a um templo de Hercules, onde a esbofetearam
e suspenderam pelos cabelos, sem lhe abalarem a constância. Afinal foi lançada às
cascatas, que os cantos voluptuosos de Horácio celebraram. Os filhos imitaram lhe
a firmeza."
- "Quando Sinforiano, em Autum, foi levado ao suplicio, sua mãe gritou-lhe do
alto das muralhas: "Meu filho, eleva
teu coração ao céu. Não perdes a vida; vais
troca-la
por outra melhor". Felicidade,
matrona de nascimento ilustre, também exortou os filhos a morrerem
corajosamente, e assistiu a sua execução, para logo depois os seguir".
- "O ministro das perseguições
de Valens, em Edessa, perguntou a uma mulher: "Aonde corres com tanta
pressa? - À Igreja. - Não sabes que serão mortas quantas pessoas lá estiverem?
- Por isso vou. - E essa criança? Quero que também ela participe do martírio."
- "Durante a perseguição de
Diocleciano um pequeno de sete anos chamado Barulas confessou o
Cristo e recusou-se a adorar outro deus. O juiz o mandou açoitar até escorrer
sangue,
em presença da mãe, que, intrépida, quando já os espectadores choravam, o
exortava à constância. Quando o ouviu condenar à morte, levou-o ela própria ao
lugar do
suplício
e o entregou ao carrasco. Depois estendeu o vestido para lhe receber o sangue e
a cabeça, que levou consigo."
- "Orila, menino de Cesareia,
tinha sempre nos lábios o nome de Jesus e por isso começaram a odiá-lo outras
crianças da sua idade e o próprio pai o expulsou de casa, deixando-o sem
socorro. O juiz o chamou a sua presença e experimentou afagos e ameaças, mas só
lhe arrancou estas palavras: "As repreensões me alegram, porque Deus me
louvará; expulso de minha casa, tenho outra melhor". Nem a vista da fogueira
o intimidou, e morreu resignado."
- "É tradição que no tempo de
Diocleciano toda a legião Tebeana sofreu martírio no Valais, defronte da majestosa
cascata de Pissavache, por não ter querido perseguir os cristãos. "Somos
soldados - disseram - e de vós recebemos soldo; mas
recebemos de Deus a vida e devemos conserva-la inocente. Quereis que usemos das
espadas contra o inimigo? Fá-lo-emos; mas não as voltaremos contra inocentes.
Temos armas nas mãos e, todavia, não vos opomos resistência alguma, porque
preferimos morrer imaculados a viver perjuros". Distinção desconhecida aos
soldados da antiguidade e que parecia anunciar os tempos novos, nos quais a
obediência é racional."
- "Em Sebaste, durante a
perseguição de Licínio, quarenta
soldados de diferentes países, que se declararam cristãos, foram, por um novo
requinte de crueldade, expostos toda uma noite aos rigores da invernia num
banho gelado, tendo junto de si um banho tépido, que os convidava a aliviarem
nele os sofrimentos. Só um fraquejou: os outros se animaram reciprocamente como
em dia de combate. No dia seguinte foram todos lançados ao fogo. Os algozes,
intencionalmente, deixaram um como esquecido, esperando que abjurasse; mas sua
mãe o impeliu, dizendo-lhe: "Vai e termina com teus irmãos a obra que tão
bem começaste, para não seres o último a comparecer diante de Deus."
- "Como o juiz lançasse em
rosto a Afra, prostituta da Recia, a sua passada ignomínia,
respondeu-lhe ela que tinha distribuído o dinheiro mal ganho pelos pobres, que
só
a
custo haviam aceitado esse preço de sua infâmia; compreendia agora -
acrescentou - que Jesus Cristo viera para chamar a si os pecadores, pois lhe
permitia confessar o seu santo nome diante da morte e pedir misericórdia para
os pecados que cometera."
- "Potamiana, formosíssima
escrava egípcia, foi denunciada como cristã pelo senhor, a cujas solicitações lúbricas
resistira. O prefeito Aquila não se pejou de desempenhar um papel ignóbil,
insistindo com ela para ceder. Repelido, condenou-a a ser mergulhada em pez (Substância
resinosa do pinheiro)
fervente, depois de violada pelo
carrasco. Potamiana suplicou-lhe que a poupasse a esse maior suplício :
"Pela vida do imperador - dizia
- vos peço, vos suplico não me deixeis despir
e expor nua antes me mergulhem a pouco e pouco na caldeira, coberta com os meus
vestidos."
- "Sete virgens de Aneira,
respeitáveis pelos anos e pela santidade, antes de serem afogadas, foram
expostas aos insultos de uma chusma de libertinos. Tecusa, a mais idosa,
tirando
o véu e mostrando os cabelos brancos ao miserável que a queria ultrajar, lhe
disse: "Talvez tenhas mãe, com os cabelos
brancos como os meus. Deixa-nos as nossas lágrimas
e guarda para ti a
esperança do perdão, que Jesus Cristo te concederá."
- "Em Cartago, Perpétua
e Felicidade
se tornaram famosas pelo seu heroísmo. A primeira, nascida de nobre família, de
vinte e dois anos de idade, tendo uma criança de peito, vivia com o pai, a mãe
e dois irmãos; a outra era escrava e estava grávida.
O pai de Perpétua, pagão zeloso, queria que ela sacrificasse aos deuses.
Como tinha passado algum tempo (diz ela, contando o que sofreu) sem ver meu pai,
dei graças a Deus, e a sua ausência me permitiu respirar livremente. Durante
esses poucos dias nos batizamos, e ao sair da água implorei a Deus paciência
nos sofrimentos físicos. Pouco tempo depois fomos metidas no cárcere, o que me
assustou, porque nunca tinha visto semelhantes trevas. Que dias horríveis! Que
calor produzia a aglomeração! Os soldados nos maltratavam e eu estava inquieta
por meu filho. Então os diáconos Tertius e Pomponius, que nos
assistiam, obtiveram, a peso de ouro, permissão para tomarmos ar durante
algumas horas. Saímos, e cada qual pensava em si. Dei o peito a meu filho,
recomendando-o a minha mãe, e consolei meu irmão. Afligia-me, contudo, pensando
em quanta dor lhes causava, e passei muitos dias sobre esta cruz...
"Correu voz de que íamos ser
interrogadas, meu pai veio da cidade à prisão e, no auge da angústia, me disse:
"Filha, piedade para os meus cabelos brancos! piedade para teu pai! Se
mereço este nome, se te eduquei até essa idade, se te preferi a meus outros
filhos, não me cubras de opróbrio. Pensa em tua mãe, lembra-te dessa criança
que amamentas e que te não poderá sobreviver. Desiste dessa obstinação, para nos
não perderes a todos, porque nenhum de nós ousaria mais erguer a cabeça, se te
sucedesse alguma desgraça!"
"Assim me falou enternecido,
beijando-me as mãos, ajoelhando aos meus pés, chorando, chamando-me não já sua
filha, mas sua senhora. Estava compadecida, lembrando-me que de toda a família
seria ele o único que não se regozijaria com o nosso martírio e, para o
consolar, disse: "Será o que Deus
quiser, porque não estamos em nosso poder, mas no seu!" Saiu consolado.
"No dia seguinte, à hora do
jantar, nos vieram chamar para o interrogatório. A noticia logo se espalhou nos
bairros vizinhos e atraiu muita gente. Subimos ao tribunal. O procurador Flavianus
me disse: "Lembra-te da velhice de teu pai, da fraqueza de teu filho;
sacrifica pela prosperidade dos imperadores". - "Tal não farei",
respondi. E ele: "És cristã?" - "Sou cristã", lhe tornei.
Como meu pai tentasse tirar-me do tribunal, Flavianus o mandou
expulsar: até lhe deram com uma vara, e eu senti a pancada como se a tivesse
recebido. Estava tão aflita, por ver meu pai maltratado na velhice! Então Flavianus
sentenciou, ordenando que fôssemos lançadas às feras. Voltamos alegres para a
prisão, e eu mandei o diácono Pomponius pedir a meu pai o filho
das minhas entranhas, que estava acostumado a ficar junto de mim e a mamar o
meu leite; mas não o pude obter, e Deus permitiu que a criança não procurasse o
meu peito e que o leite me não incomodasse."
"A piedade de pessoas que lhes
sobreviveram assim descreveu os últimos momentos das heroínas:
"Felicidade estava grávida
de oito meses. Vendo aproximar-se o dia do espetáculo, vivia em grande
apreensão de que o seu martírio fosse adiado, porque era proibido executar
mulheres gravidas. Os companheiros do seu sacrifício também se afligiam com a
ideia de a deixarem só no caminho das suas esperanças comuns. Todos se
reuniram, pois, para orar e chorar juntos, três dias antes do espetáculo.
Apenas acabou a prece, logo Felicidade sentiu as dores e, como o
parto é naturalmente mais doloroso no oitavo mês, sofreu muito e gemeu. Por
isso lhe disse o carcereiro: "Se agora te lamentas, que será quando
estiveres exposta às feras!" Deu à luz uma menina, que uma cristã criou
como sua. Os irmãos e todos os outros tiveram licença para entrar na prisão e a
animaram. O carcereiro estava convertido. Na véspera do combate lhe serviram,
segundo o uso, o banquete livre, que
era público; mas os mártires o converteram num ágape e falaram ao povo com a
costumada liberdade, dizendo: "Olhai bem para nós, a fim de nos
conhecerdes no dia do juízo."
"Quando soou a hora da luta, os
mártires saíram da prisão para o anfiteatro como para o céu, serenos e mais
alegres do que assustados: seguia-os Felicidade com passo firme e a fisionomia
risonha, como pessoa pertencente a Jesus Cristo, baixando os olhos, para
ocultar aos assistentes o seu fulgor. Sentia-se feliz por ter dado à luz e
poder já afrontar as feras. Chegados à porta quiseram obriga-los a aceitar os
adornos dos que figuram em tais espetáculos: eram, para os homens, o manto
vermelho dos sacerdotes de Saturno;
para
as mulheres, as fitas que usam na cabeça as sacerdotisas de Ceres. Mas os mártires
recusaram as librés da idolatria.
"Quando despiram Perpétua
e Felicidade,
para as envolver em redes e expô-las a uma vaca raivosa, o povo estremeceu de
horror ao ver uma tão delicada, a outra mal convalescida do parto. Foram, pois,
retiradas e cobertas com amplas roupas. Perpétua, atacada primeiro, caiu de
costas; sentou-se logo na arena e, vendo que de um lado se lhe tinham rasgado
as roupas, puxou-as para cobrir uma coxa, mais ocupada do pudor que do
sofrimento. Juntou os cabelos que se lhe tinham soltado, para não parecer estar
de luto, e vendo Felicidade estendida, deu-lhe a mão, para a ajudar a erguer-se.
As mártires foram assim para a porta Sana Vivaria, onde Perpétua
foi recebida por um catecúmeno chamado Rusticus. Ali, como desperta de um
profundo sono, pôs-se a olhar em volta de si, dizendo: "Quando é que me
expõem a essa vaca bravia?" Informada do que se passara, não o quis
acreditar
senão quando viu no corpo e no fato os vestígios do que sofrera.
"Apareceu-lhe o irmão. Perpétua
lhe disse, assim como a Rusticus: "Perseverai na fé; amai-vos uns aos outros e não vos escandalizem os nossos
sofrimentos". O povo tornou a chama-las ao anfiteatro, onde as duas mártires
se apresentaram por impulso próprio,
depois
de terem trocado o beijo de paz. Perpetua coube a um gladiador
inexperiente, que a feriu entre os ossos e a fez gritar. Os suplícios dos
pacientes moribundos eram o noviciado dos gladiadores. Por fim, dirigiu ela
própria à garganta o braço mal seguro do seu algoz".
"Com essa heroicidade - comenta
o historiador - sabiam fracas mulheres agradecer ao Cristo a emancipação e
nobilitação do seu sexo".
*
Esses fatos, que assombram e
confundem a tibieza dos meio-crentes de todas as épocas, têm uma significação e
reclamam um comentário.
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