AntiCristo Senhor do Mundo
por Leopoldo Cirne
Edição – 1939
3b
Com intermitências, a que já tivemos
ensejo de aludir, as perseguições aos cristãos, ora postas em pratica sistematicamente,
como no reinado de Trajano e, mais tarde, no de Severo,
ora interrompidas sob Cômodo e seus imediatos sucessores que, por sua tolerância,
permitiram desenvolver-se tranquilamente a Igreja, para serem ulteriormente
renovadas por Décio e, no fim de seu reinado, por Valeriano, suspensas
novamente por Galiano, as perseguições - dizemos - vieram a ter o seu apogeu,
por assim dizer, final sob o imperador Diocleciano que, ouvido um conselho de
notáveis, em cuja opinião "convinha extirpar uma seita que, constituindo
um Estado no Estado, lhe estorvava a ação e podia ameaçar-lhe a existência",
deliberou efetivamente extirpa-la "com todas as raízes".
Dessa fase culminante assim nos dá
noticia o já citado historiador:
"No
dia das festas Terminus (23 de fevereiro de 308) o prefeito do pretório e os
principais funcionários entraram à força na igreja principal de Nicomedia, onde
não encontraram nenhum objeto de culto; depois de terem queimado a Escritura,
derribaram em poucas horas o edifício, que, por ser erguido na parte mais alta
e mais populosa da cidade, dominava o palácio imperial.
"No
dia seguinte promulgou-se o edito de proscrição geral. Em todas as províncias
seriam demolidas as igrejas: pena de morte a quem assistisse a conventículos
secretos; ordem de entregar os livros santos, para serem queimados solenemente;
os bens das igrejas vendidos em praça, ou sequestrados, ou doados a corporações
ou a cortesãos. Demais determinou-se que quem recusasse prestar homenagem aos
deuses de Roma seria castigado, sendo homem livre, com a privação de honras e empregos,
sendo escravo, com a perda do direito de emancipar-se. A lei deixou de proteger
uns e outros; aos juízes cumpria receber quaisquer acusações contra os
cristãos.
“Tal
era, em substância, o decreto, que, se não fosse atestado por muitos
historiadores, pareceria fábula. Envolvia numa perseguição rancorosa uma grande
parte do mundo, permitia e dava liberdade a todas as violências, a todos os ódios
particulares, sem ao menos deixar às vítimas o direito de se queixarem. O juiz,
em vez de ponderar a acusação com as provas, devia tão somente descobrir,
perseguir, martirizar quem fosse cristão ou quisesse salvar um cristão.
"Conta-se
que um fiel, mais generoso que prudente, lendo esse edito afixado em Nicomedia,
rasgou-o e começou a invectivar os césares; ora, como os governos injustos
castigam com a máxima severidade quem lhes conhece e revela os malefícios, esse
infeliz foi queimado a fogo lento, para expiar o ultraje à majestade imperial,
sem nunca - acrescentam as narrativas - se lhe apagar dos lábios o sorriso da
paz, apesar da crueza do tormento.
"Esse
espetáculo e os aplausos, com que os cristãos saudaram o seu herói, enfureceram
Diocleciano. Nesse dia, por duas vezes, pegou fogo no seu palácio de Nicomedia,
e o imperador atribuiu o fato à vingança dos perseguidos, concertada com os
oficiais de sua casa. Galero, simulando encontrar ciladas armadas em toda
parte, não quis demorar-se mais na cidade, e o fraco césar deixou realizarem-se
as mais ferozes execuções. "Encarceravam-se os sacerdotes - diz Lactâncio
- e todos os ministros da religião; depois, sem serem ouvidos, sem sequer serem
interrogados, levavam-nos a morrer. Os cristãos, sem distinção de idade ou
sexo, eram condenados às chamas e, como havia muitos, não iam ao suplício a um
por um: amontoavam-nos sobre os madeiros. Lançavam os escravos ao mar com
pedras ao pescoço; a perseguição a ninguém poupava, e os juízes, estabelecendo
o tribunal no templo, obrigavam todos a sacrificar. As prisões estavam cheias;
imaginaram-se novos gêneros de tortura e, para ninguém escapar a tanta
crueldade, ergueram-se altares defronte das grades das prisões e nos tribunais,
a fim de que os acusados sacrificassem antes de se defenderem: compareciam,
pois, não só na presença dos juízes, mas também na dos deuses".
"As
cenas de Nicomedia tiveram imitação nas províncias: as igrejas foram espoliadas
e depois incendiadas. Uma cidade da Frígia, onde se temeram resistências, por
ser grande o numero de cristãos que nela residiam, recebeu um destacamento de
legionários. Quando eles chegaram, os habitantes refugiaram-se na igreja,
deliberados a defender-se ou a morrer: os soldados incendiaram o edifício e
queimaram-nos até o último."
"Os
cristãos foram também acusados, justa ou injustamente, de algumas rebeliões na
Síria e nas fronteiras da Armênia; tanto bastou para que Diocleciano agravasse
o rigor das ordens, parecendo empenhado em abolir o nome cristão.
"A
Espanha, apesar de depender de Constantino, encontrou no governador Daciano um
feroz executor do edito de proscrição. Na Bretanha foi menor o rigor. Na África
a perseguição fez numerosas vítimas e nem poupou Adauto, chefe do tesouro
particular do imperador. Eusébio ouviu dizer que no Egito se cortaram tantas
cabeças num dia que o machado ficou amocegado e os carrascos tiveram de
revezar-se" Depois da condenação de muitos cristãos, viu o mesmo escritor
apresentarem-se outros ao tribunal, confessando a fé e pedindo a morte: os
sentenciados entoavam cânticos jubilosos até expirarem"
"A
igreja de Itália forneceu copiosa colheita de mártires: em Roma, o cômico Genésio,
Pancrácio, de quatorze anos de idade, Inês, de doze, o milanês Sebastião, o
padre Marcelo, o exorcista Pedro ; em Benavente o bispo Januário, tão querido
dos napolitanos; em Bolonha, Agrícola e Vidal, seu escravo; em Milão, Nestor,
Celso, Nabor, Félix, Gervásio e Portais; em Aquileia, Cancio, Canciano e
Cancienilla, da família Anícia, glórias novas de um país onde até então a glória
consistia em matar, não em sofrer.
"A
igreja gaulesa foi fecundada pelo sangue de muitos e ilustres mártires. Os
servos do Cristo residentes em Viena e Lyon escreviam nestes termos a seus
irmãos da Ásia e da Frígia que tinham a mesma fé
e a mesma esperança: "O ódio dos pagãos estava tão exacerbado contra nós
que nos expulsavam das casas, dos banhos, das praças, e em geral não suportavam
que nenhum de nós aparecesse em público. Os mais fracos fugiram, os mais
corajosos arriscaram-se à perseguição." Primeiramente o povo lançava-se
sobre eles, confusamente, em chusmas, com vociferações, arrastando-os,
esfarrapando lhes as roupas, lapidando-os, dilacerando-os, fazendo-os sofrer as
maiores crueldades que o furor pode inventar; depois, conduzidos à praça,
interrogados publicamente pelo tribuno, eram metidos em cárceres, até a chegada
do governador. Compareciam afinal perante esse magistrado. Ora, como ele os
tratasse cruelmente, Vetus Epagatus, mancebo de costumes irrepreensíveis e
ardente fé, não podendo tolerar esse tratamento, pediu que lhe permitissem
apresentar sua defesa e demonstrar que não eram ímpios. Quantos rodeavam o
tribunal, todos se tumultuaram contra ele; o governador, em vez de lhe deferir
a súplica, perguntou-lhe se era cristão. Vetus confessou a fé em altas vozes e
teve lugar entre os mártires com o título de advogado dos cristãos. Houve uns
dez a quem faltou força para resistir, por se não terem de antemão preparado
para o combate. A sua queda nos causou viva aflição e diminuiu a coragem dos
outros que, não estando ainda presos, acompanhavam os mártires e não os
abandonavam, quaisquer penas que houvessem de sofrer. A incerteza em que
estávamos relativamente a sua confissão nos conservava apreensivos, não que os
tormentos nos assustassem, mas porque pensávamos no fim e temíamos que alguns
deles não pudessem resistir às últimas provas."
Nessa furiosa arremetida,
caracterizada pelo ódio conjugado da populaça e dos agentes do imperador, a
influência das forças reacionárias do invisível se patenteia com evidência
igual à da pressão de idêntica natureza exercida sobre a plebe de Jerusalém,
quando amotinada em frente ao pretório vociferava contra a Grande Vítima o
"crucifica-o!" a que não saberia resistir a pusilanimidade de Pilatos.
Que razões teria, com efeito, num e noutro caso a multidão para tamanho ódio?
Ainda os césares e seus interesseiros instrumentos poderiam, hipócrita ou
sinceramente, invocar as conveniências da "razão de Estado" para a
feroz perseguição a criaturas, cujo único delito - é certo - consistia no seu
grande idealismo e na pureza de seus irrepreensíveis costumes, mas que por isso
mesmo constituíam protesto vivo e elemento de perturbação no ambiente dissoluto
que tanto convinha aos dominadores, podendo mesmo, na lógica insensata do
conselho de notáveis, a que Diocleciano recorrera, "ameaçar a segurança do
império ". O povo, a cujos direitos, conculcados pelos opressores, tão
admirável agasalho oferecia o código cristão, fraternista e igualitário, é que
não tinha um motivo de consciência para o furor, em tais condições, gratuito e
injustificável com que se lançava às vítimas inermes da perseguição" Só a
sua ignorância, o nível inferior, a que aludimos, de sua evolução moral o
tornava presa fácil das tenebrosas forças do invisível empenhadas, sob a implacável
direção do AntiCristo, em impedir por todas as formas o florescimento do ideal
cristão em nosso mundo"
Já era tempo, todavia, de ser posto
um paradeiro àquele sanguinolento batismo de três séculos, a que, violentamente
submetido, o Cristianismo resistira com vitalidade incoercível. As últimas
denodadas legiões de escolhidos Espíritos, enviados pelo Senhor a darem
testemunho do seu nome e da imortalidade em presença da morte, haviam, como se
vê, dado exemplar desempenho a sua missão. E se, entre eles, alguns porventura,
na hora suprema, fraquejaram, é que nem todos eram da mesma têmpera, ou - o que
é mais certo - segundo a exata expressão da carta enviada pelos fiéis de 'Viena
e Lyon aos seus irmãos da Ásia e da Frígia, não se tinham "de antemão
preparado para o combate", isto é, para receber, mediante a oração e vigilância,
o socorro divino que os sustentaria, na serenidade e intrepidez, até o fim de
seu martírio.
Como quer que fosse, uma trégua se
impunha, a fim de que a Árvore da Vida, fecundada pelo sangue de tantos mártires,
frondejasse tranquilamente, alimentando com os seus frutos as gerações que se
haviam de suceder na Terra e que só a sua acolhedora sombra poderiam prosseguir
no trabalho de aperfeiçoamento e de progresso que seriam chamadas a realizar.
É certo que a cessação das
perseguições marcaria o ocaso do Cristianismo glorioso e heroico. A partir de
então, começaria o seu declínio interior. Não era esse, todavia, o inevitável
destino que lhe estava reservado, em conflito com as forças reacionárias que,
do invisível, o vinham sistematicamente combatendo e não têm cessado de o
combater até agora?
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