AntiCristo Senhor do Mundo
por Leopoldo Cirne
Edição – 1939
3c
Aconteceu, pois, que no ano 312
marchando o imperador Constantino à frente de aguerrido exercito, menos
numeroso contudo que o do seu adversário, para combater as tropas
de Maxêncio, que exercia tirânico domínio sobre a África e a Itália, aos seus
olhos se desenhou no céu, sobre o campo de batalha, uma cruz tendo em volta a célebre
inserção: In hoc signo vinces ("com este
sinal vencerás") .
Entendeu o imperador que havia nessa
portentosa manifestação do Alto uma promessa de vitória sob a proteção da Cruz
e que, de seu lado, cumpria-lhe assumir atitude protetora da religião que
aquele símbolo exprimia. De fato, apesar da inferioridade numérica de suas
tropas, levou de vencida, desbaratando-as, as de Maxêncio, que não sobreviveu
ao desastre, perecendo afogado no Tibre.
Senhor de Roma, promulgou no ano
seguinte Constantino o edito de Milão, estabelecendo a liberdade religiosa,
reconhecendo, portanto, oficialmente ao Cristianismo o direito de existência e
mandando restituir os bens confiscados aos cristãos, que acolheram com
delirante entusiasmo essas medidas. Menos efusivos seriam eles, todavia, nessas
demonstrações de jubilo se, numa antevisão do futuro, pudessem reconhecer ter
sido essa a primeira acentuada fase do eclipse em que entraria a doutrina,
condenada a ir perdendo os seus caracteres de espiritualidade e de pureza, à
medida que, aliada ao Estado e tornando-se lhe parasita, como religião oficial,
que veio a tornar-se ulteriormente, a Igreja entraria a imiscuir-se nos negócios
do século, maculando-se cada vez mais nesse contato corruptor e perdendo de
vista, assim a sua missão divina, puramente espiritual, de condutora das almas,
como a singeleza de suas práticas primitivas, em que a fé e a caridade,
exemplificadas nos costumes dos fiéis, sem distinção de hierarquias, constituíam
os seus únicos eficazes elementos de regeneração e de proselitismo.
É verdade que, quando se consumou o
desmoronamento do império romano, a única instituição organizada que os bárbaros
vitoriosos encontraram foi a igreja cristã, com autoridade
moral suficiente para estabelecer as bases da nova ordem político-social. Teria
sido - cabe, entretanto, perguntar - uma fatalidade histórica necessária que a
Igreja assumisse esse papel, não apenas de inspiradora, mas de cooperadora prática
na organização dos poderes do Estado, ou essa preeminente intervenção, que somente
séculos mais tarde lhe seria pela força arrebatada, já era o resultado de
haverem muitos de seus representantes e ministros a tal ponto adquirido apego
aos bens da terra que não hesitariam em conspurcar na sua posse e administração
o ministério sagrado que, em nome do Mestre, lhes cumpria exercer, conservando
escrupulosa e inflexivelmente a sua tradição de desprendimento e de pobreza?
Não os culpemos, todavia - para
julgarmos com justiça - a esse respeito como de todos os transvios e
deturpações que veio a sofrer a doutrina, senão de haverem afrouxado na
oração e vigilância e, por esse descuido, sucumbido às tentações do inimigo
que, infatigável na sua ronda sinistra em torno da obra cristã, ora sugeria os
assaltos externos de destruição,
na pessoa de seus intrépidos propugnadores, ora, insinuando-se no ânimo dos
descuidosos, lhes soprava ideias de predomínio e de ambição, que nem sempre a
ação oposta, pela mesma forma sugestiva, dos enviados do Senhor conseguia
neutralizar.
Quando, em seguida à adesão de
Constantino, veio a encerrar-se definitivamente a fase das perseguições
sanguinolentas, foi essa manobra interior; de subjugação das consciências, a
adotada pelo AntiCristo, origem, portanto, e razão determinante do eclipse em
que foi gradualmente mergulhando o Cristianismo, tanto mais acentuado quanto
mais se foram os depositários da doutrina identificando com os negócios do século
e as ambições mundanas.
Constituiu indubitavelmente um dos fenômenos
característicos dessa obnubilação o enriquecimento patrimonial da igreja, que
desde o século IV começou a adquirir consideráveis bens territoriais, doados
pelos imperadores aos papas.
De par com esse fortalecimento
material, ou antes, no período que o antecedeu, já vinha sendo a igreja
trabalhada pelas competições pessoais, resultantes da sua organização hierárquica.
"A
ambição do primeiro lugar - assinala, por isso, com razão o historiador
citado - era o grande mal das igrejas
cristãs, o que mais desgosto causava aos simples fieis. Julgou-se poder
conjurar o perigo, supondo que Jesus, em tais circunstâncias, diria às partes contendoras,
mostrando lhes uma criança: "Eis o maior". Assegurava-se que o
Mestre, por mais de uma vez, opusera a primazia eclesiástica, toda fraternal, à
dos depositários da autoridade profana, acostumados a mandar".
Em lugar, porém, desse critério de
humildade e desambição, estabelecido pela clarividência do Divino Mestre e que
tinha vigorado para a escolha, por aclamação, dos chefes das primitivas
comunidades cristãs, o que veio posteriormente a prevalecer na organização hierárquica
da igreja foi a transmissão do poder e da autoridade de uns a outros chefes,
sem intervenção dos fieis, isto é, do rebanho popular, em obediência à
orientação firmada a esse respeito por Clemente Romano em a famosa epístola aos
coríntios, que lhe é atribuída e veio a constituir a doutrina em tal caso
formalmente adotada,
graças ao prestígio que, pela energia de caráter de que era dotado, desfrutava
o seu autor no seio da cristandade.
"Na
segunda metade do século II - refere ainda o mesmo historiador - quando
Hegesipo viajou por todo o mundo cristão, já não viu senão os bispos
estabelecidos por sucessão canônica: o sentimento vivo das igrejas já não
existia. Houve alguns protestos contra esse estado de coisas; algumas vozes se
levantaram para sustentar a igualdade primitiva dos presbíteros; mas, não
obstante, a tendência aristocrática prevaleceu."
Prevaleceu advirtamos - porque os
depositários do divino legado se esqueceram de que, onde não há humildade, não
está presente o Espírito do Senhor Jesus. Cediam, indubitavelmente, à pressão
oculta sobre eles exercida muito antes, como se vê, do período de pacificação a
que nos vínhamos referindo. Por isso dissemos páginas atrás que, em seguida à
idade heroica do Cristianismo, essa manobra do AntiCristo no seio da igreja, não
era uma mudança de tática, senão antes o seu desenvolvimento em mais larga e
intensiva escala.
Banido,
com efeito, de seus dirigentes o espírito de humildade, a ação do inimigo teria
que, logicamente, orientar-se no sentido de tornar a igreja uma instituição de
caráter cada vez mais acentuadamente faustoso e mundano, levando-a por isso a
enriquecer-se de bens materiais de toda natureza, estimulando nos seus
representantes o sentimento de orgulho e, com ele, a preocupação de aumentar a
autoridade e o poder do supremo representante da hierarquia eclesiástica.
Foi assim que, sob aquela funesta
inspiração, que visava divorciar por todas as formas a igreja do espírito que
presidira a sua fundação, o concílio ecumênico de Efeso, reunido em 431, veio a
proclamar o pontífice romano "o príncipe,
a cabeça, a coluna da fé, o fundamento da Igreja, desse modo praticando uma
desvairada usurpação, com que esperava fortalecer o papado aos olhos dos
homens, mas de fato lavrando a sua irremediável condenação perante Deus,
porquanto substituía por uma autoridade temporal, visível e precária, porque
humana, a autoridade eterna, invisível e divina do Cristo, única sob cujo
amparo ficaria abroquelado contra as investidas do Espirito das trevas.
Nenhum comentário:
Postar um comentário