quarta-feira, 12 de novembro de 2014

3c. AntiCristo senhor do mundo



AntiCristo Senhor do Mundo
por Leopoldo Cirne
Edição  – 1939

3c

            Aconteceu, pois, que no ano 312 marchando o imperador Constantino à frente de aguerrido exercito, menos numeroso contudo que o do seu adversário, para combater as tropas de Maxêncio, que exercia tirânico domínio sobre a África e a Itália, aos seus olhos se desenhou no céu, sobre o campo de batalha, uma cruz tendo em volta a célebre inserção: In hoc signo vinces ("com este sinal vencerás") .

            Entendeu o imperador que havia nessa portentosa manifestação do Alto uma promessa de vitória sob a proteção da Cruz e que, de seu lado, cumpria-lhe assumir atitude protetora da religião que aquele símbolo exprimia. De fato, apesar da inferioridade numérica de suas tropas, levou de vencida, desbaratando-as, as de Maxêncio, que não sobreviveu ao desastre, perecendo afogado no Tibre.

            Senhor de Roma, promulgou no ano seguinte Constantino o edito de Milão, estabelecendo a liberdade religiosa, reconhecendo, portanto, oficialmente ao Cristianismo o direito de existência e mandando restituir os bens confiscados aos cristãos, que acolheram com delirante entusiasmo essas medidas. Menos efusivos seriam eles, todavia, nessas demonstrações de jubilo se, numa antevisão do futuro, pudessem reconhecer ter sido essa a primeira acentuada fase do eclipse em que entraria a doutrina, condenada a ir perdendo os seus caracteres de espiritualidade e de pureza, à medida que, aliada ao Estado e tornando-se lhe parasita, como religião oficial, que veio a tornar-se ulteriormente, a Igreja entraria a imiscuir-se nos negócios do século, maculando-se cada vez mais nesse contato corruptor e perdendo de vista, assim a sua missão divina, puramente espiritual, de condutora das almas, como a singeleza de suas práticas primitivas, em que a fé e a caridade, exemplificadas nos costumes dos fiéis, sem distinção de hierarquias, constituíam os seus únicos eficazes elementos de regeneração e de proselitismo.

            É verdade que, quando se consumou o desmoronamento do império romano, a única instituição organizada que os bárbaros vitoriosos encontraram foi a igreja cristã, com autoridade moral suficiente para estabelecer as bases da nova ordem político-social. Teria sido - cabe, entretanto, perguntar - uma fatalidade histórica necessária que a Igreja assumisse esse papel, não apenas de inspiradora, mas de cooperadora prática na organização dos poderes do Estado, ou essa preeminente intervenção, que somente séculos mais tarde lhe seria pela força arrebatada, já era o resultado de haverem muitos de seus representantes e ministros a tal ponto adquirido apego aos bens da terra que não hesitariam em conspurcar na sua posse e administração o ministério sagrado que, em nome do Mestre, lhes cumpria exercer, conservando escrupulosa e inflexivelmente a sua tradição de desprendimento e de pobreza?

            Não os culpemos, todavia - para julgarmos com justiça - a esse respeito como de todos os transvios e deturpações que veio a sofrer a doutrina, senão de haverem afrouxado na oração e vigilância e, por esse descuido, sucumbido às tentações do inimigo que, infatigável na sua ronda sinistra em torno da obra cristã, ora sugeria os assaltos externos de destruição, na pessoa de seus intrépidos propugnadores, ora, insinuando-se no ânimo dos descuidosos, lhes soprava ideias de predomínio e de ambição, que nem sempre a ação oposta, pela mesma forma sugestiva, dos enviados do Senhor conseguia neutralizar.

            Quando, em seguida à adesão de Constantino, veio a encerrar-se definitivamente a fase das perseguições sanguinolentas, foi essa manobra interior; de subjugação das consciências, a adotada pelo AntiCristo, origem, portanto, e razão determinante do eclipse em que foi gradualmente mergulhando o Cristianismo, tanto mais acentuado quanto mais se foram os depositários da doutrina identificando com os negócios do século e as ambições mundanas.

            Constituiu indubitavelmente um dos fenômenos característicos dessa obnubilação o enriquecimento patrimonial da igreja, que desde o século IV começou a adquirir consideráveis bens territoriais, doados pelos imperadores aos papas.

            De par com esse fortalecimento material, ou antes, no período que o antecedeu, já vinha sendo a igreja trabalhada pelas competições pessoais, resultantes da sua organização hierárquica.

            "A ambição do primeiro lugar - assinala, por isso, com razão o historiador citado - era o grande mal das igrejas cristãs, o que mais desgosto causava aos simples fieis. Julgou-se poder conjurar o perigo, supondo que Jesus, em tais circunstâncias, diria às partes contendoras, mostrando lhes uma criança: "Eis o maior". Assegurava-se que o Mestre, por mais de uma vez, opusera a primazia eclesiástica, toda fraternal, à dos depositários da autoridade profana, acostumados a mandar".

            Em lugar, porém, desse critério de humildade e desambição, estabelecido pela clarividência do Divino Mestre e que tinha vigorado para a escolha, por aclamação, dos chefes das primitivas comunidades cristãs, o que veio posteriormente a prevalecer na organização hierárquica da igreja foi a transmissão do poder e da autoridade de uns a outros chefes, sem intervenção dos fieis, isto é, do rebanho popular, em obediência à orientação firmada a esse respeito por Clemente Romano em a famosa epístola aos coríntios, que lhe é atribuída e veio a constituir a doutrina em tal caso formalmente adotada, graças ao prestígio que, pela energia de caráter de que era dotado, desfrutava o seu autor no seio da cristandade.

            "Na segunda metade do século II - refere ainda o mesmo historiador - quando Hegesipo viajou por todo o mundo cristão, já não viu senão os bispos estabelecidos por sucessão canônica: o sentimento vivo das igrejas já não existia. Houve alguns protestos contra esse estado de coisas; algumas vozes se levantaram para sustentar a igualdade primitiva dos presbíteros; mas, não obstante, a tendência aristocrática prevaleceu."

            Prevaleceu advirtamos - porque os depositários do divino legado se esqueceram de que, onde não há humildade, não está presente o Espírito do Senhor Jesus. Cediam, indubitavelmente, à pressão oculta sobre eles exercida muito antes, como se vê, do período de pacificação a que nos vínhamos referindo. Por isso dissemos páginas atrás que, em seguida à idade heroica do Cristianismo, essa manobra do AntiCristo no seio da igreja, não era uma mudança de tática, senão antes o seu desenvolvimento em mais larga e intensiva escala.

            Banido, com efeito, de seus dirigentes o espírito de humildade, a ação do inimigo teria que, logicamente, orientar-se no sentido de tornar a igreja uma instituição de caráter cada vez mais acentuadamente faustoso e mundano, levando-a por isso a enriquecer-se de bens materiais de toda natureza, estimulando nos seus representantes o sentimento de orgulho e, com ele, a preocupação de aumentar a autoridade e o poder do supremo representante da hierarquia eclesiástica.


            Foi assim que, sob aquela funesta inspiração, que visava divorciar por todas as formas a igreja do espírito que presidira a sua fundação, o concílio ecumênico de Efeso, reunido em 431, veio a proclamar o pontífice romano "o príncipe, a cabeça, a coluna da fé, o fundamento da Igreja, desse modo praticando uma desvairada usurpação, com que esperava fortalecer o papado aos olhos dos homens, mas de fato lavrando a sua irremediável condenação perante Deus, porquanto substituía por uma autoridade temporal, visível e precária, porque humana, a autoridade eterna, invisível e divina do Cristo, única sob cujo amparo ficaria abroquelado contra as investidas do Espirito das trevas. 

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