AntiCristo Senhor do Mundo
por Leopoldo Cirne
Edição – 1939
3d
Já então - cerca de meio século
antes - os Evangelhos, que haviam circulado, por cópias, nas primitivas comunidades
cristãs, em que eram lidos e comentados, tinham recebido
a redação que lhes dera S. Jerônimo, incumbido em 384 pelo papa Dâmaso de
redigir uma tradução latina do Velho e do Novo Testamento, a fim de por termo às
divergências existentes entre aqueles manuscritos.
Esse trabalho apresentava
consideráveis dificuldades, pois que o tradutor, conforme o declara no prefácio
dirigido ao papa Damaso, se encontrava em presença de tantos exemplares do
Evangelho quantas eram as cópias. Em todo caso, rematava ele: "Este breve prefacio aplica-se unicamente aos
quatro Evangelhos, na seguinte ordem: Mateus, Marcos, Lucas, João. Depois
de haver comparado um certo número de exemplares gregos, mas dos antigos, que
se não afastam muito da versão itálica, de tal modo os combinamos que,
corrigindo somente o que nos parecia alterar o sentido, conservamos o resto
como estava".
Foi sem dúvida esse um trabalho de
dupla inspiração: da parte de Dâmaso, chegado o momento de estabelecer a possível
uniformidade nos textos atinentes à vida e aos ensinos do
Divino Salvador, elegendo aquele espírito estudioso e devotado às verdades
religiosas, que era S. Jerônimo, para tarefa que tão escrupulosa isenção de ânimo
exigia, e da parte deste,
conduzindo-se de modo a escolher, entre a variedade dos manuscritos, o que
melhor exprimia fidelidade em relação aos sucessos e às palavras proferidas por
Jesus. Nem podiam
os mensageiros do Senhor, incumbidos de velar pela propagação de sua doutrina
em nosso mundo, abandona-la ao sabor dos caprichos e erros humanos, senão antes
preserva-la de alterações que substancialmente a desfigurassem, agindo para
esse fim, por via de inspiração, junto aos que receberiam a missão de ser os
seus codificadores.
Fidelidade literal e, por assim
dizer, absoluta não seria possível obter-se, dada em primeiro lugar a circunstância
de que Jesus nada escreveu, não tendo, em sua divina sapiência, julgado necessário
confiar à fragilidade do papel os ensinos de que era a fonte viva e que, ao
demais, brotados de seus misericordiosos lábios, ficariam, e ficaram, com todos
os sucessos de sua vida, perpetuamente gravados na placa sensibilíssima do éter,
constituindo o que é por alguns propriamente denominado "clichês astrais",
recolhidos e conservados nos arquivos do infinito. Os seus ensinos foram
recordados e repetidos por aqueles que os ouviram e, depois, transmitidos pela
mesma forma verbal entre os primeiros cristãos. Ocorre, em seguida, a circunstância
de que, assim nessa transmissão oral, como posteriormente, quando passaram a
ser grafados e reproduzidos nas sucessivas cópias, que circulavam nas
comunidades cristãs, nem sempre se teriam os repetidores e copistas cingido a
uma rigorosa fidelidade. A verdade dos sucessos e dos ensinamentos se teria
desse modo dispersado numa variedade fragmentária, o que realça o valor do
trabalho executado por S. Jerônimo, que - insistiremos - não podia deixar de
ser conduzido por uma poderosa e vigilante inspiração do Alto, ao ter de catar,
reunir e enfeixar num todo, quanto possível, homogêneo os preciosos fragmentos
da mais estupenda história e dos mais transcendentes, ao mesmo tempo que
singelos e profundos, ensinamentos que jamais recebera a humanidade.
E, todavia, a redação dada por S.
Jerônimo a sua tradução latina do Antigo e do Novo Testamento, denominada a
Vulgata, não teve, no que pelo menos se refere aos Evangelhos, o cunho de
definitiva que estava na intenção daquele que ordenara a sua execução e a
aprovou, fazendo-a adotar como corpo doutrinário, destinado a servir de regra e
fundamento aos ensinos ortodoxos da igreja.
É assim que - diz um eminente
escritor (1) - "o que fora considerado bom do ano 386 a
1586, o que tinha sido aprovado em 1546 pelo concilio ecumênico de Trento, foi declarado
insuficiente e errôneo por Sixto V em 1590. Uma nova revisão foi feita por sua
ordem: a edição daí resultante e que trazia o seu nome foi, a seu turno,
modificada por Clemente VIII”, sendo essa
afinal a edição definitiva que serviu de modelo às traduções existentes em
diferentes línguas.
(1) Léon Denis, “Cristianismo e
Espiritismo”, cap. II, "Autenticidade dos Evangelhos".
É indubitável que, depois do
trabalho consciencioso e imparcial de S. Jerônimo, calcado no exame comparativo
de textos primitivos, cuja relativa autenticidade fora reconhecida e acatada,
tais sucessivas revisões só poderiam ter como objetivo, retocando uma ou outra
passagem do Evangelho, fortalecer a autoridade e o poder da igreja romana, sem
contudo atentar substancialmente contra a fidelidade geral das narrativas e do
conjunto doutrinário, graças à vigilante fiscalização, a que aludimos, do Alto
exerci da pelos mensageiros do Senhor.
Se assim não fosse, isto é, se a
colaboração posterior dos papas e concílios na estrutura dos textos evangélicos
tivesse logrado acomodá-los inteiramente aos dogmas e orientação reacionária da
igreja, não teriam eles permanecido a antítese e a condenação, que realmente
representam, de tantos de seus métodos, atitudes e ensinos, em flagrante
desacordo com os atos e as palavras do Divino Mestre.
Entre numerosos trechos que o
comprovam, basta citarem-se, por exemplo, os seguintes:
Comunicando-lhes João: "Mestre, vimos um homem expelir demônios em
teu nome e lh'o proibimos, porque não te segue conosco", Jesus lhe
replicou: "Não lh'o proibais, pois quem não é
contra vós é por vós".
Doutrina em franco antagonismo com a atitude sempre intolerante e exclusivista
da igreja, que reclama para si o monopólio da administração espiritual e
pretende que "fora da igreja não há
salvação".
Logo em seguida, não tendo obtido
pousada numa aldeia de samaritanos, que lh 'a recusaram, Thiago e João,
indignados, o consultaram: "Senhor, queres que mandemos descer fogo do céu
para os consumir?" Mas Jesus os repreendeu, advertindo: "Vós não sabeis qual é o espirito de vossa
vocação. O Filho do homem não veio a perder as almas, mas a salva-las":
E foram para outra povoação. Atitude que tão vivamente contrasta com a da
igreja, ora fulminando condenações e anátemas, ora levando a ferro e fogo os
denominados hereges e os insubmissos ao seu jugo dogmático.
Recordemos ainda a recomendação de
Jesus aos seus discípulos e, com eles, através dos séculos, aos continuadores
de sua redentora missão: "Não
queirais ser chamados mestres, porque um só é o vosso mestre, o Cristo, e vós
sois todos irmãos. E a ninguém chameis pai, porque só um é vosso Pai, aquele
que está nos céus". A igreja, entretanto, não somente
vem, desde os primórdios de sua organização, reclamando para os seus membros o
tratamento de pai (padre), mas tolera e aplaude que sejam eles tratados pela
dupla denominação
"padre-mestre".
Por outro lado, no que se refere à
adaptação de algumas passagens do Evangelho ao fortalecimento do poder e da
autoridade da igreja, não é difícil descobrir-se esse intuito, entre outras,
nas palavras atribuídas, um tanto fora de propósito, a Jesus, quando,
interrogando os discípulos: "mas vós
quem dizeis que sou eu?" e respondendo-lhe Pedro: "Tu és o Cristo, o Filho de Deus vivo",
depois de o louvar por esse testemunho, que lhe fora inspirado "não pela carne e sangue, mas pelo Pai que
está nos céus", pretende a narrativa que o Senhor, perpetrando um
trocadilho - artifício que nunca estivera em seus hábitos de linguagem e não se
encontra em nenhum de seus ensinos - teria acrescentado: "Também eu te digo que tu és Pedro, e sobre
esta pedra edificarei a minha igreja, e contra ela não prevalecerão as portas
do inferno. Dar-te-ei as chaves do reino dos céus, e tudo o que ligares sobre a
terra será ligado também no céu, e tudo o que desatares sobre a terra será
desatado também no céu".
Compreende-se que a tendenciosa
decisão do concílio de 431 reunido em Êfeso, que ha pouco assinalámos,
proclamando o pontífice romano "o fundamento da Igreja", convinha
imprimir o cunho divino da palavra do Cristo, a fim de que, fazendo-se, como se
fez, herdeira das prerrogativas de Pedro e deste o seu primeiro papa - função
que, entretanto, ele jamais exerceu, pois nem sequer esteve em Roma - ficasse a
igreja investida daqueles poderes excepcionais, transmissíveis aos seus
pretensos sucessores na cadeira do Vaticano.
Desse modo a sua autoridade se estenderia, incontrastável, para além da terra,
uma vez que lhe era outorgada a faculdade de julgar, absolver e condenar os
homens, cuja sorte
ficaria definitivamente fixada ao fim desta existência, que em tal caso
convinha fosse considerada única para o Espírito.
A esse último objetivo servia
maravilhosamente a deliberação séculos antes adotada pelo Sínodo de Constantinopla,
o qual, dirigido por Justiniano, publicara em 538 um édito,
aprovado em 543 pelo concílio que ali se reuniu, sob a presidência de Menas, em
que foram anatematizados Orígenes e a doutrina dos renascimentos sucessivos da
alma, sustentada
por esse luminar da igreja, falecido no ano 254, anatematizado assim muito
tempo depois de sua morte.
Rezava, com efeito, a decisão do
concilio: "Quem ensinar a preexistência
da alma e a estranha opinião de suas voltas à Terra, seja anátema!"
Funesta decisão, que - observemos -
prevalecendo por mais de treze séculos, isto é, até aos nossos dias, entre os
dogmas da igreja, proscrevia, sepultando-a na treva do esquecimento, a lei
providencial que rege a evolução dos seres e pode, somente ela, conciliar a
justiça, a bondade e a sabedoria de Deus com o espetáculo das flagrantes
desigualdades humanas de toda ordem - intelectuais, morais e sociais - ao mesmo
tempo que resolve o obscuro problema de nossos destinos.
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