quarta-feira, 12 de novembro de 2014

3d. AntiCristo senhor do mundo



AntiCristo Senhor do Mundo
por Leopoldo Cirne
Edição  – 1939

 3d

            Já então - cerca de meio século antes - os Evangelhos, que haviam circulado, por cópias, nas primitivas comunidades cristãs, em que eram lidos e comentados, tinham recebido a redação que lhes dera S. Jerônimo, incumbido em 384 pelo papa Dâmaso de redigir uma tradução latina do Velho e do Novo Testamento, a fim de por termo às divergências existentes entre aqueles manuscritos.

            Esse trabalho apresentava consideráveis dificuldades, pois que o tradutor, conforme o declara no prefácio dirigido ao papa Damaso, se encontrava em presença de tantos exemplares do Evangelho quantas eram as cópias. Em todo caso, rematava ele: "Este breve prefacio aplica-se unicamente aos quatro Evangelhos, na seguinte ordem: Mateus, Marcos, Lucas, João. Depois de haver comparado um certo número de exemplares gregos, mas dos antigos, que se não afastam muito da versão itálica, de tal modo os combinamos que, corrigindo somente o que nos parecia alterar o sentido, conservamos o resto como estava".

            Foi sem dúvida esse um trabalho de dupla inspiração: da parte de Dâmaso, chegado o momento de estabelecer a possível uniformidade nos textos atinentes à vida e aos ensinos do Divino Salvador, elegendo aquele espírito estudioso e devotado às verdades religiosas, que era S. Jerônimo, para tarefa que tão escrupulosa isenção de ânimo exigia, e da parte deste, conduzindo-se de modo a escolher, entre a variedade dos manuscritos, o que melhor exprimia fidelidade em relação aos sucessos e às palavras proferidas por Jesus. Nem podiam os mensageiros do Senhor, incumbidos de velar pela propagação de sua doutrina em nosso mundo, abandona-la ao sabor dos caprichos e erros humanos, senão antes preserva-la de alterações que substancialmente a desfigurassem, agindo para esse fim, por via de inspiração, junto aos que receberiam a missão de ser os seus codificadores.

            Fidelidade literal e, por assim dizer, absoluta não seria possível obter-se, dada em primeiro lugar a circunstância de que Jesus nada escreveu, não tendo, em sua divina sapiência, julgado necessário confiar à fragilidade do papel os ensinos de que era a fonte viva e que, ao demais, brotados de seus misericordiosos lábios, ficariam, e ficaram, com todos os sucessos de sua vida, perpetuamente gravados na placa sensibilíssima do éter, constituindo o que é por alguns propriamente denominado "clichês astrais", recolhidos e conservados nos arquivos do infinito. Os seus ensinos foram recordados e repetidos por aqueles que os ouviram e, depois, transmitidos pela mesma forma verbal entre os primeiros cristãos. Ocorre, em seguida, a circunstância de que, assim nessa transmissão oral, como posteriormente, quando passaram a ser grafados e reproduzidos nas sucessivas cópias, que circulavam nas comunidades cristãs, nem sempre se teriam os repetidores e copistas cingido a uma rigorosa fidelidade. A verdade dos sucessos e dos ensinamentos se teria desse modo dispersado numa variedade fragmentária, o que realça o valor do trabalho executado por S. Jerônimo, que - insistiremos - não podia deixar de ser conduzido por uma poderosa e vigilante inspiração do Alto, ao ter de catar, reunir e enfeixar num todo, quanto possível, homogêneo os preciosos fragmentos da mais estupenda história e dos mais transcendentes, ao mesmo tempo que singelos e profundos, ensinamentos que jamais recebera a humanidade.

            E, todavia, a redação dada por S. Jerônimo a sua tradução latina do Antigo e do Novo Testamento, denominada a Vulgata, não teve, no que pelo menos se refere aos Evangelhos, o cunho de definitiva que estava na intenção daquele que ordenara a sua execução e a aprovou, fazendo-a adotar como corpo doutrinário, destinado a servir de regra e fundamento aos ensinos ortodoxos da igreja.

            É assim que - diz um eminente escritor (1) - "o que fora considerado bom do ano 386 a 1586, o que tinha sido aprovado em 1546 pelo concilio ecumênico de Trento, foi declarado insuficiente e errôneo por Sixto V em 1590. Uma nova revisão foi feita por sua ordem: a edição daí resultante e que trazia o seu nome foi, a seu turno, modificada por Clemente VIII”, sendo essa afinal a edição definitiva que serviu de modelo às traduções existentes em diferentes línguas.

            (1) Léon Denis, “Cristianismo e Espiritismo”, cap. II, "Autenticidade dos Evangelhos".

            É indubitável que, depois do trabalho consciencioso e imparcial de S. Jerônimo, calcado no exame comparativo de textos primitivos, cuja relativa autenticidade fora reconhecida e acatada, tais sucessivas revisões só poderiam ter como objetivo, retocando uma ou outra passagem do Evangelho, fortalecer a autoridade e o poder da igreja romana, sem contudo atentar substancialmente contra a fidelidade geral das narrativas e do conjunto doutrinário, graças à vigilante fiscalização, a que aludimos, do Alto exerci da pelos mensageiros do Senhor.

            Se assim não fosse, isto é, se a colaboração posterior dos papas e concílios na estrutura dos textos evangélicos tivesse logrado acomodá-los inteiramente aos dogmas e orientação reacionária da igreja, não teriam eles permanecido a antítese e a condenação, que realmente representam, de tantos de seus métodos, atitudes e ensinos, em flagrante desacordo com os atos e as palavras do Divino Mestre.

            Entre numerosos trechos que o comprovam, basta citarem-se, por exemplo, os seguintes:

            Comunicando-lhes João: "Mestre, vimos um homem expelir demônios em teu nome e lh'o proibimos, porque não te segue conosco", Jesus lhe replicou: "Não lh'o proibais, pois quem não é contra vós é por vós". Doutrina em franco antagonismo com a atitude sempre intolerante e exclusivista da igreja, que reclama para si o monopólio da administração espiritual e pretende que "fora da igreja não há salvação".

            Logo em seguida, não tendo obtido pousada numa aldeia de samaritanos, que lh 'a recusaram, Thiago e João, indignados, o consultaram: "Senhor, queres que mandemos descer fogo do céu para os consumir?" Mas Jesus os repreendeu, advertindo: "Vós não sabeis qual é o espirito de vossa vocação. O Filho do homem não veio a perder as almas, mas a salva-las": E foram para outra povoação. Atitude que tão vivamente contrasta com a da igreja, ora fulminando condenações e anátemas, ora levando a ferro e fogo os denominados hereges e os insubmissos ao seu jugo dogmático.

            Recordemos ainda a recomendação de Jesus aos seus discípulos e, com eles, através dos séculos, aos continuadores de sua redentora missão: "Não queirais ser chamados mestres, porque um só é o vosso mestre, o Cristo, e vós sois todos irmãos. E a ninguém chameis pai, porque só um é vosso Pai, aquele que está nos céus". A igreja, entretanto, não somente vem, desde os primórdios de sua organização, reclamando para os seus membros o tratamento de pai (padre), mas tolera e aplaude que sejam eles tratados pela dupla denominação "padre-mestre".

            Por outro lado, no que se refere à adaptação de algumas passagens do Evangelho ao fortalecimento do poder e da autoridade da igreja, não é difícil descobrir-se esse intuito, entre outras, nas palavras atribuídas, um tanto fora de propósito, a Jesus, quando, interrogando os discípulos: "mas vós quem dizeis que sou eu?" e respondendo-lhe Pedro: "Tu és o Cristo, o Filho de Deus vivo", depois de o louvar por esse testemunho, que lhe fora inspirado "não pela carne e sangue, mas pelo Pai que está nos céus", pretende a narrativa que o Senhor, perpetrando um trocadilho - artifício que nunca estivera em seus hábitos de linguagem e não se encontra em nenhum de seus ensinos - teria acrescentado: "Também eu te digo que tu és Pedro, e sobre esta pedra edificarei a minha igreja, e contra ela não prevalecerão as portas do inferno. Dar-te-ei as chaves do reino dos céus, e tudo o que ligares sobre a terra será ligado também no céu, e tudo o que desatares sobre a terra será desatado também no céu".

            Compreende-se que a tendenciosa decisão do concílio de 431 reunido em Êfeso, que ha pouco assinalámos, proclamando o pontífice romano "o fundamento da Igreja", convinha imprimir o cunho divino da palavra do Cristo, a fim de que, fazendo-se, como se fez, herdeira das prerrogativas de Pedro e deste o seu primeiro papa - função que, entretanto, ele jamais exerceu, pois nem sequer esteve em Roma - ficasse a igreja investida daqueles poderes excepcionais, transmissíveis aos seus pretensos sucessores na cadeira do Vaticano. Desse modo a sua autoridade se estenderia, incontrastável, para além da terra, uma vez que lhe era outorgada a faculdade de julgar, absolver e condenar os homens, cuja sorte ficaria definitivamente fixada ao fim desta existência, que em tal caso convinha fosse considerada única para o Espírito.

            A esse último objetivo servia maravilhosamente a deliberação séculos antes adotada pelo Sínodo de Constantinopla, o qual, dirigido por Justiniano, publicara em 538 um édito, aprovado em 543 pelo concílio que ali se reuniu, sob a presidência de Menas, em que foram anatematizados Orígenes e a doutrina dos renascimentos sucessivos da alma, sustentada por esse luminar da igreja, falecido no ano 254, anatematizado assim muito tempo depois de sua morte.

            Rezava, com efeito, a decisão do concilio: "Quem ensinar a preexistência da alma e a estranha opinião de suas voltas à Terra, seja anátema!"

            Funesta decisão, que - observemos - prevalecendo por mais de treze séculos, isto é, até aos nossos dias, entre os dogmas da igreja, proscrevia, sepultando-a na treva do esquecimento, a lei providencial que rege a evolução dos seres e pode, somente ela, conciliar a justiça, a bondade e a sabedoria de Deus com o espetáculo das flagrantes desigualdades humanas de toda ordem - intelectuais, morais e sociais - ao mesmo tempo que resolve o obscuro problema de nossos destinos.


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