AntiCristo Senhor do Mundo
por Leopoldo Cirne
Edição – 1939
3e
Contra esse dogma, entretanto, de
uma existência única se insurgem os próprios textos evangélicos, em mais de uma
de cujas passagens a possibilidade do regresso a este mundo em nova encarnação
ora se acha insinuada como um fato admitido, posto que sob forma ainda obscura
e imprecisa, pelos israelitas, ora explicitamente proclamada, como necessidade
imperiosa, pelo Cristo, o que é mais um indício confirmativo de que os
sucessivos retoques perpetrados pelos papas e concílios não lograram atingir
ensinos fundamentais, como esse, contidos no divino código.
É assim, por exemplo, que no mesmo
episódio, a que aludíamos há pouco, da interrogação de Jesus a seus discípulos:
"Quem dizem os homens que é o Filho
do homem?” a resposta que lhe deram eles: “Uns dizem que João Batista, mas outros que Elias e outros que Jeremias
ou algum dos profetas", põe claramente em relevo a crença popular
na possibilidade
da volta do Espírito, em novo corpo, a este mundo, crença que não parecia
desarrazoada somente aos apóstolos, mas ao próprio Cristo, que de outro modo a
teria - e
o não fez - formalmente desautorizado, Ele que viera ao mundo "para dar testemunho da Verdade".
Da mesma natureza e com igual
significação se apresenta o incidente ocorrido a propósito do cego de nascença
(João, IX, 1 a 3). - "Mestre,
perguntaram-lhe seus discipulos, quem pecou, para que este homem nascesse cego:
ele ou seus pais?
– Nem ele pecou, nem seus pais, respondeu
Jesus, mas isso se deu para que as obras de Deus sejam manifestas.”
Ora, se os apóstolos admitiam a possibilidade
de ser a cegueira de nascença a consequência de pecado cometido pelo indivíduo,
é claro que só o poderia ele ter feito em precedente vida. E o Senhor,
abstendo-se mais uma vez de impugnar como inadmissível essa hipótese,
implicitamente a sancionou, opondo-lhe apenas a asserção de que outro, de ordem
mais elevada, era o motivo da cegueira, isto é, “para que as obras de Deus fossem manifestas”, ensino admirável, que
revela ter aquele Espírito, como tantos outros
no período messiânico, encarnado com a missão de dar testemunho do poder
do Cristo, que lhe restituiria – e de fato restituiu – a visão no mesmo
instante.
Não menos expressiva é a passagem do
Evangelho referente a João Batista.
Acabara de ocorrer a transfiguração
no cimo do Tabor, em que, à vista de Pedro, Tiago e João, que consigo levara, o
Mestre se lhes apresentou envolto em deslumbrante claridade, tornando-se lhe o
rosto "refulgente como o sol e as vestiduras brancas como a neve", surgindo
ao seu lado os Espíritos visíveis de Moisés e de Elias, com os quais se
entreteve a conversar. Admirados da presença deste último, ao descerem do
monte, perguntaram os discípulos: "Porque
dizem então os escribas que importa vir primeiramente Elias?"
Respondeu Jesus: "Elias certamente há
de vir e restabelecerá todas as coisas. Digo-vos, porém, que Elias já veio e
eles não o conheceram, antes fizeram dele quanto quiseram. Assim também o
Filho do homem há de padecer às suas mãos". E o evangelista acrescenta
esta significativa observação: "Então
conheceram os discípulos que de João Batista é que ele lhes falara".
Ao demais, essa alusão de Jesus ao
fato de ser o Precursor a reencarnação do espírito de Elias - o que de resto se
harmoniza com o trecho evangélico relativo ao anúncio feito pelo anjo Gabriel a
Zacarias a cerca do nascimento de João Baptista (Lucas, I:17) - não foi mais
que a confirmação do testemunho explícito por Ele anteriormente dado no mesmo
sentido.
Referindo-se, com efeito, a João, após
a retirada dos discípulos que este, do cárcere, lhe enviara, discorreu o Senhor
sobre os excelsos predicados daquele que era "ainda mais que
profeta" e rematou o seu discurso, asseverando: "Porque todos os profetas
e a Lei até João profetizaram. E se vós o quereis bem compreender, ele mesmo é Elias que há de vir. O que tem ouvidos de ouvir, ouça".
Recordemos por último a entrevista
que Nicodemos teve com o Mestre, de cujos lábios recebeu o ensino formal da
pluralidade de existências, não como um caso particular e esporádico, segundo
parece que seria a crença dos judeus, mas como aplicação de uma lei geral e uma
necessidade a todos imposta, a fim de atingirem o grau superior de evolução
que, no simbolismo evangélico, é designado como a participação ou entrada no
"reino de Deus".
Respondendo, com efeito, logo às
primeiras palavras com que Nicodemos o abordara, Jesus abertamente proclamou: “Em
verdade, em verdade te digo que, se alguém não nascer de novo, não pode ver o
reino de Deus", para em seguida, sem deter-se a explicar o mecanismo do fenômeno,
que parecia, em si mesmo e não em sua providencialidade, incompreensível ao
interlocutor, insistir categoricamente: "Em verdade, em verdade te digo que, se alguém não nascer da água e do
Espírito, não pode entrar no reino de Deus. O que é nascido da carne é carne e
o que é nascido do Espírito é espírito". E para dissipar toda vacilação
com o testemunho de sua autoridade, repete: "Não te maravilhes de eu te dizer: Necessário vos é nascer de novo".
Empenhados em sustentar o dogma da
existência única, é certo que os exegetas não somente da igreja católica, mas
de todos os ramos em que se fraccionou a Reforma, têm pretendido identificar a
expressão "nascer da água" com o que eles chamam a "regeneração
pelas águas do batismo", esquecidos de que a água, para os hebreus,
significava o elemento primordial, a origem somática por excelência. É assim
que no primeiro
capitulo da GÊNESE, a propósito da formação do mundo, se encontram
repetidamente as expressões: "o Espírito
de Deus era levado sobre as águas" (vers. 2); - "disse também Deus: Faça-se o firmamento no
meio das águas e separe umas águas das outras águas" (vers. 6); -
"e fez Deus o firmamento e dividiu
as águas que estavam por baixo do firmamento das que estavam por cima do
firmamento" (vers. 7); - "disse
também Deus: As águas que estão debaixo do céu ajuntem-se num mesmo lugar, e o
elemento árido apareça, e assim se fez" (vers. 9); - "disse também Deus: produzam as águas répteis
de alma vivente e aves que vem sobre a terra, debaixo do firmamento do céu"
(vers. 20).
Não está aí, para quem saiba
entender o sentido, tão frequentemente alegórico, da Bíblia e a peculiaridade
das suas expressões, que o sopro do Alto fecundava, uma clara alusão
à substância, ou fluido cósmico primitivo, de que, por sucessivas condensações
e transformações, veio a constituir-se a matéria em todos os seus estados
diferenciais, inclusive os seres "de alma vivente" que povoam o
planeta? E dessa mesma "água" não são, portanto, originados os corpos
animados pelo Espírito, em suas repetidas incursões terrestres, pouco
importando que a cerca da formação do homem use a Bíblia de um simbolismo, em
sua interpretação, reservado aos sapientes?
Não nos deteremos contudo em
esclarecer nem desenvolver, em seus múltiplos aspectos, esse tema, aqui
meramente acidental, da pluralidade de existências, uma vez que noutro lugar (1) já o fizemos com a possível
amplitude. O nosso objetivo agora é, pondo de relevo esse fato, essa lei
providencial, plenamente sancionados no Evangelho, assinalar que a sua omissão,
mais que isso, a sua proscrição dentre os ensinos da igreja foi ainda um
produto das inspirações reacionárias do AntiCristo, gerando, ao longo dos séculos,
a revolta nos
espíritos inscientes contra o Autor da vida, em presença da iniquidade que
parece governar o mundo, expressa nos absurdos "caprichos do
destino", ao passo que à luz daquele princípio soberano todas as anomalias
e obscuridades se dissipam, o destino humano, em suas magnificas realizações,
se apresenta lógica e sabiamente planejado e a sabedoria, a bondade e a justiça
de Deus, que "dá a cada um segundo
as suas obras", esplendem por forma a despertar a admiração, o
reconhecimento e a adoração que lhe devem todas as criaturas.
(1) Veja-se ‘Doutrina e Prática do Espiritismo’, volume 1°, capítulos V e VI.
Assim também, e somente assim,
considerada a brevidade da existência humana e a complexidade dos fatores
adversos que embaraçam o progresso do Espírito, como desafio e estímulo ao
desenvolvimento de suas faculdades, torna-se compreensível, em seus luminosos
fundamentos e exequibilidade, a exortação do Senhor Jesus: "Sede perfeitos como vosso Pai celestial é
perfeito".
Como seria, realmente, possível por
essa exortação em prática, senão vencendo, penosa e gradativamente, a
acidentada escarpa do aperfeiçoamento, cada um de cujos degraus se conta por
uma existência planetária!
Certo é que uns, não raro, muitos
desses degraus se esboroam e inutilizam, representando as existências - ai de
nós! - em tão grande número dissipadas e, por conseguinte, estacionárias. Razão
de mais para a ilimitada repetição do retorno à sombria estância deste mundo,
até que, lecionado por suas experiências, tanto mais salutares quão mais
dolorosas, se resolva o Espírito a acelerar, pela renúncia - termo e coroamento
de seu aprendizado - a marcha interior, ascensional, que o conduza à integração
na Unidade Divina, em que hão de, por fim, ser todos consumados.
Ou teria Jesus proposto ao homem um
programa de perfeição irrealizável?
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