AntiCristo Senhor do Mundo
por Leopoldo Cirne
Edição – 1935
2c
Encontra-se,
com efeito, em a narrativa dos Atos dos Apóstolos, logo no capitulo II, esta
significativa passagem:
"E todos os
que criam estavam unidos, e tudo o que cada um tinha era possuído em comum por
todos. Vendiam as suas propriedades e os seus bens e os distribuíam por todos,
segundo a necessidade que cada um tinha."
Mais adiante (cap. IV) insiste o
narrador:
"E da multidão
dos que criam o coração era um e a alma uma: e nenhum dizia ser sua coisa
alguma daquelas que possuía, mas tudo entre eles era comum. E os apóstolos, com
grande valor, davam testemunho da ressurreição de Jesus Cristo, nosso Senhor, e
havia muita graça em todos eles. E não havia nenhum necessitado entre eles;
porque todos quantos eram possuidores de terras ou de casas, vendendo-as,
traziam o preço do que vendiam e o depositavam aos pés dos apóstolos; e repartia-se
a cada um conforme a sua necessidade."
Haviam desse modo criado um núcleo
de comunismo, social e prático, fundado no desinteresse e naquele tocante amor
espiritual que os vinculava, auspicioso gérmen associativo, cuja continuidade e
desenvolvimento não tardaram, todavia, em ser mutilados, logo no primeiro século,
em consequência das perturbações que a nação judaica vinha padecendo,
agravadas sobretudo e rematadas no tremendo epílogo, que foi o cerco de Jerusalém,
com a sua definitiva e irremediável dispersão.
Embora nunca mais renovada, na
sucessão dos séculos, por força mesmo das ulteriores vicissitudes que haviam de
transviar a obra do Cristianismo de sua primitiva orientação social e humana,
essa tentativa, de que o ascetismo de certas ordens religiosas e as comunidades
claustrais posteriores não são mais que uma deturpação exclusivista e estéril,
convinha ser recordada não só como um testemunho documental de que no Evangelho
de Jesus se encontram em gérmen os fundamentos da mais adiantada forma de
organização da sociedade, como para estabelecer-se um instrutivo paralelo, mais
que nunca oportuno em nossos dias, entre aquele comunismo pacífico da primeira
geração cristã, espontâneo em seus métodos de realização (1), e o comunismo revolucionário
contemporâneo, violento em seus processos e que, a pretexto de igualitárias
reivindicações - no fundo indubitavelmente legítimas - outra coisa não
pretende, nem realizou até agora com a subversiva experiência consumada na Rússia,
que não seja uma brusca inversão de posições entre as classes sociais, tornando
opressora a que fora oprimida até a véspera e, em lugar da fraternidade, que
nem mesmo entre os seus adeptos é sinceramente praticada, contribuindo para
mais profundo tornar o dissidio entre cidadãos de uma mesma pátria.
(1) Veja-se Atos, cap. V. 4.
A diferença fundamental consiste em
que o primeiro se inspirava no Amor, associado ao respeito pela liberdade
natural do homem - únicos princípios em que se pode esteiar uma união
verdadeiramente fecunda e solidaria entre todos eles - e, considerando a
transitoriedade desta vida, focalizava na Imortalidade as suas aspirações, ao
passo que o
outro, materialista e irreligioso, inspira-se no ódio de classes, que erige
mesmo em bandeira de combate, e, banindo toda preocupação imortalista, faz da
vida presente e da apropriação
dos bens efêmeros que lhe são peculiares a finalidade do destino humano. É uma
obra construída na areia movediça das contingências terrestres e não sobre
aquela rocha
viva de que falou Jesus, aludindo à aplicação de sua palavra - que o é de vida
eterna - aos atos da vida humana, individual e coletiva. Obra do AntiCristo,
que visa perpetuar a divisão entre os homens, alimentando-lhes as paixões
inferiores, enquanto o comunismo, ou melhor, o socialismo cristão, que há de
ser um dia a forma definitiva de sua organização econômica e politica, tende a
reuni-los em um largo espirito de verdadeiro cooperativismo fraterno, sem
odiosas exclusões.
O núcleo constitui do pela primeira
geração cristã, é certo que não passou de um esboço rudimentar, em sua feição
particularista, sem nenhuma repercussão na esfera político-administrativa, em
cuja atividade, ao demais, estavam excluídos de participar aqueles imediatos
continuadores de Jesus, em sua quase totalidade pertencentes à nação judaica, reduzida
a mera tributaria do Império Romano omnipotente, mas tendo começado pela
abolição voluntária - a tanto equivalente a alienação, que efetuavam - da
propriedade territorial justamente considerada apropriação criminosa de um bem
comum a todos, representou por isso mesmo, na singeleza de seus moldes, um
precedente exemplificador do que hão de ser, no futuro, as sociedades humanas
organizadas segundo os enobrecedores princípios do Evangelho.
Mais tarde veremos como as largas
doações de terras, pelos imperadores romanos feitas ao papado, contribuíram
para precipitar a decadência do Cristianismo, convertendo-o progressivamente
numa instituição de caráter acentuadamente mundano, em contra posição aos desígnios
de seu Divino Instituidor, que lhe havia traçado a altruística diretriz,
formalmente proclamando: "Meu reino
não é deste mundo". Por agora cumpria apenas indicarmos a origem
cristã da grande reforma social, que os turbulentos pregoeiros de nossos dias
se esforçam em levar à prática, não somente renegando essa origem, mas
promovendo guerra de extermínio à Doutrina em cujos princípios se inspiraram os
seus primeiros desinteressados realizadores.
Encerremos, pois, aqui este parêntesis
e prossigamos na enumeração de alguns dos mais significativos episódios que assinalaram
a incoercível marcha do Evangelho, rumo do Ocidente,
sobretudo no que se refere aos lances de heroísmo praticado pelos seus destemidos
portadores e que tanto haviam de contribuir para a sua edificante e gloriosa
consolidação.
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