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Em meio ao tumulto das armas, ao
aviltamento dos costumes e ao crepitar das fogueiras, com que a
"santa" Inquisição insultou as pacíficas tradições do Cristianismo,
naquele tormentoso período, em que muitos se detêm a admirar a construção,
indubitavelmente maravilhosa, das catedrais, como expressão do pensamento
religioso insculpido em arabescos de pedra, o que, a nosso ver, sobressai e
permanecerá como incomparáveis contribuições para a obra da civilização
verdadeiramente cristã, são: a Imitação
de Cristo e o apostolado de Francisco de Assis.
Escrita no silencio do claustro por
um frade, cujo nome se conservou ignorado, pois que ele mesmo se absteve,
humilde e cuidadosamente, de o lançar no manuscrito, encontrado só depois de
sua morte, a Imitação de Cristo,
pela singeleza do estilo em que está vasada e que tanto, ainda nisso, a
aproxima do Evangelho, tornando-a a muitos respeitos o seu complemento natural,
mas sobretudo pelos lampejos de inspiração divina
que nela perpassam não obstante refletir frequentes vezes o ambiente sombrio da
época e do meio claustral, constitui um brado exortativo a todas as consciências,
um convite misericordioso do Senhor a todas as almas famintas de libertação e
de socorro.
Nesse verdadeiro manual da perfeição
cristã, o seu iluminado autor, se algumas vezes flagela, com amargura espiritual,
que não com virulência, os desregramentos do seu tempo,
em frases como esta: "Ah! Se tanto zelo empregassem em extirpar os vícios
e plantar virtudes, como em ventilar questões, tantos escândalos não haveria
entre o povo, nem
tanta relaxação nos claustros!" - aplica-se de preferência a atrair os
homens para as excelsitudes da vida
interior, levantando-lhes as aspirações para as realidades eternas com desprezo
das coisas transitórias. Identificado com o pensamento do Mestre, a tal ponto
que chega a dele fazer-se, iterativamente, a expressão pessoal, autorizada e
viva, quando exorta: "Filho, do céu baixei por tua salvação; assumi tuas
misérias, não obrigado, só por amor: para ensinar-te a paciência e a sofreres
sem revolta as presentes misérias", ora entremostra os arcanos da
Sabedoria pela iluminação interior, mediante uma vida imaculada: "Bem aventurado aquele a quem a Verdade
ensina, não por figuras e vozes que passam, mas por si
mesma e como em si é,"
ora, penetrado do sentimento de renúncia, em que culmina a iniciação do crente,
e advertido de que o padecer dores no corpo ou no espírito - inseparável
contingência de toda criatura humana - representa lei inevitável numa esfera de
aperfeiçoamento como a Terra, traça aquele magistral capítulo, "Do real caminho da
Santa Cruz", em que faz eloquente apologia do sofrimento e acena a todos,
que sob ele vergam, com as radiosas compensações que o futuro lhes reserva.
"Diante foi o Senhor com a cruz às costas - diz ele - e por teu amor na cruz morreu, para que tu
também leves a tua cruz e aspires a morrer na cruz; porquanto, se com Ele morreres, com Ele
também viverás, e se fores seu companheiro na pena, também o serás na glória".
Pois bem, esse livro, que tem
atravessado os séculos e conta maior número de edições e de traduções em todas
as línguas que outro qualquer até hoje publicado, esse livro, que tem derramado
no mundo tantas consolações e dissipado tantas perplexidades, pois que em
qualquer página que, ao acaso, seja aberto por uma criatura aflita, lhe
oferecerá sempre uma advertência, um oportuno esclarecimento e um conforto,
esse livro - repetimos - dir-se-ia que escrito pelo Senhor, servindo-se da mão
e do cérebro de um de seus mais humildes, estudiosos e fieis discípulos, parece
não ter exercido a mínima influência nos ministros da igreja, aos quais, em
grande parte, era evidentemente dirigido, prosseguindo eles nos seus desvarios,
sempre obcecados pelas ideias de grandeza e ambições materiais, escravizados
que se conservaram sempre às tenebrosas sugestões do AntiCristo.
Quando muito, o apreço que teriam
ligado àquele admirável conjunto de ensinamentos da mais pura moral cristã,
parece ter consistido em introduzir lhe, com profanadora mão, alguns enxertos e
acréscimos, sobretudo no derradeiro, dos quatro "livros", que remata
o volume, com a visível intenção de o acomodar às práticas devocionais, em que
o clero interesseiro fez timbre em conservar de preferência obediente o
rebanho católico.
Um exame atento daquela obra
divinamente inspirada, em cujo "Livro primeiro" são dados "Avisos
para a vida espiritual", no segundo, "Exortações à vida
interior", cujo "Livro
terceiro" trata "Da interna consolação" e o quarto e último
"Do S.S. Sacramento", revela, com efeito, nalguns lugares, em que a
pureza do estilo se patenteia adulterada, e
sobretudo no derradeiro "livro" uma preocupação exclusivista de
atrair os crentes menos para a identificação com o pensamento evangélico, do
que para a observância de práticas exteriores, cuja inutilidade, entretanto, o
verdadeiro autor da Imitação de Cristo
põe de relevo em mais de uma passagem dos anteriores capítulos de sua indubitável
redação. Compreende-se
que, se um instintivo respeito coagiu os representantes da igreja a manter
intactos os grandes ensinamentos espirituais do iluminado autor, embora
considerando-os porventura unicamente aproveitáveis para "pessoas crédulas",
nenhum inconveniente, a seu ver, resultaria de adaptarem por último a divina oferenda
aos interesses particularistas da igreja.
Damos nisto uma impressão pessoal,
que a nossa consciência e sinceridade nos impunham exprimir, submetendo-a contudo
ao critério dos estudiosos imparciais que, como nós, busquem a verdade sem
preocupações e exclusivismos apriorísticos, impressão que a histeria da igreja
e sua contumaz infidelidade ao pensamento do Mestre e aos seus ensinos
autoriza, sem temor de gratuitas suspeitas.
De todo modo, o que os fatos
demonstram é que, a não ser a criminosa deturpação de que as apontadas circunstâncias
denunciam ter sido objeto a Imitação de
Cristo, nenhum outro apreço mereceu da igreja o divino convite à
reconciliação com o espírito do Cristianismo, que suas páginas imortais, de
fato, encerram.
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