sexta-feira, 21 de novembro de 2014

4e. AntiCristo senhor do mundo

4e

            O mesmo se pode, infelizmente para ela, dizer da magnífica obra realizada, com idêntica intenção, no começo do século XIII, por esse outro iluminado, verdadeiro espírito celeste, que se chamou Francisco de Assis.

            À semelhança de Saulo, no período anterior ao desabrochar de sua vocação, mas de um caráter diametralmente oposto ao do convertido de Damasco, pela compassiva doçura e jovialidade, que era o traço fundamental da sua índole, o "poverello" de Assis apresenta um contraste expressivo entre os primeiros anos de sua mocidade, dissipada em estroinices levianas, e a fase imediata, de consagração integral ao serviço do Senhor, em que se revelou a mais completa, a mais fascinante personificação das virtudes evangélicas.

            De origem plebeia, filho que era do mercador Pedro Bernardone, que se enriquecera no comércio de fazendas, escassa foi a instrução que recebeu e que, mesmo depois de convertido, não se preocupou de ampliar além do indispensável ao exercício do seu ministério, conservando assim a mente liberta das sutilezas teológicas e o coração inteiramente livre para amar com fervor e servir com fidelidade a causa de Jesus. Como, por outro lado, nunca veio a receber as ordens sacras, conservando-se sempre um filho do povo, mais propriamente, um leigo militante do Evangelho, essa mesma ignorância, que as efusões transfiguradoras do Senhor iluminavam de sabedoria, o preservou das seduções e do contágio da igreja oficial.

            Até aos 20 anos repartia a sua atividade entre os misteres da loja de seu pai e as estroinices a que o arrastavam a sua imaginação e o pendor para as aventuras, quando, ao rebentar, em 1202, o dissídio entre as cidades de Assis e Perugia, alistou-se e combateu pela causa popular da primeira, caindo, porém, prisioneiro e ficando detido como réfem um ano inteiro.

            Assinada a paz de 1203, foi restituído à liberdade e recomeçou a mesma vida de dissipações, de que lhe resultou adoecer gravemente e ter de pedir aos ares tonificantes das montanhas da Úmbria a restauração das energias combalidas.
           
            Durante essa crise de enfermidade a graça do Senhor o visitou, infundindo-lhe ao começo um desgosto profundo pela "vã saciedade dos prazeres a que se entregara", e, em seguida, mediante sonhos reveladores, despertando-lhe vivo o sentimento de sua vocação, cujo verdadeiro rumo, todavia, não se lhe apresentou senão depois de angustiosas perplexidades e porfiadas lutas interiores.

            Um primeiro sonho pareceu indicar-lhe que estava destinado a combater pela glória do Senhor, incorporando-se aos Cruzados, que por esse tempo se organizavam para ir à Terra Santa reinvidicar o Santo Sepulcro. Alistou-se, por isso, no exército de Gauthier de Brienne, que andava pelejando por conta do papa Inocêncio IIl. Novo sonho, porém, o dissuadiu, mostrando-lhe a inanidade das glórias cavalheirosas e fazendo-lhe sentir que não aos servos, improvisados em guerreiros, mas ao Senhor diretamente, empunhando as únicas armas espirituais e com desprezo do mundo, é que devia obedecer.

            Regressa a Assis, com extrema surpresa dos seus conterrâneos e, retirado do convívio dos companheiros de estroinice, refugia-se frequentemente no ermo, a procurar no recolhimento e na oração as inspirações para a escolha da direção que conviria imprimir a sua vida. A tranquilidade do ambiente, a paz religiosa que sentia penetrar-lhe a alma o induziam a preferir a vida contemplativa como refúgio e defesas contra as seduções e o tumulto do século. A piedade, porém, pelas misérias do mundo e a profunda simpatia humana, que sempre manifestara por todos os sofredores e constituía; por assim dizer, o substrato de sua natureza comunicativa e amorosa, o convidavam à ação. Mas de que modo?

            Nessas dolorosas perplexidades se lhe atribulava o espírito, até que um dia, entrando na pobre e arruinada capela de S. Damião, como tantas vezes o fizera, prosternado em oração diante do altar, julgou receber a orientação que procurava, ouvindo, maravilhado e enternecido, a voz do Senhor que lhe dizia: "Vai, Francisco, restaura a minha casa que como vês, ameaça ruina".

            Era, com efeito, a deslumbradora revelação, que o Senhor lhe fazia, da missão espiritual a que o destinava. Amortalhado contudo nas obscuridades da matéria, não tendo ainda aberto o entendimento à nítida percepção das divinas verdades, interpretou Francisco literalmente a amorosa intimativa e entrou resolutamente a trabalhar pela restauração material do pequenino templo, logrando mediante esmolas, que diligentemente pedia, ver, no prazo de três anos, concluída não, somente essa obra, mas as da igreja de S. Pedro e do santuário de Nossa Senhora dos Anjos, ou da Porciúncula, para as quais do mesmo modo trabalhou.

            Foi somente ao fim desse tempo, isto é, em 1209 que, assistindo à missa nessa mesma igreja da Porciúncula, a verdadeira natureza da sua missão, como súbita claridade, lhe penetrou o espirito, ao ouvir o celebrante ler os seguintes versículos do Evangelho, contendo as instruções dadas por Jesus aos seus discípulos:

            "Ide e pregai, dizendo que está próximo o reino dos céus. -Curai os enfermos, ressuscitai os mortos, limpai os leprosos, expeli os demônios, dai de graça o que de graça recebestes. Não possuais ouro nem prata, nem tragais dinheiro nas vossas cintas, nem alforje para o caminho, nem duas túnicas, nem calçado, nem bordão; porque digno é o trabalhador do seu alimento."

            Compreendeu então o sentido espiritual daquelas palavras que o Senhor lhe fizera ouvir na capela de S. Damião: a Casa, na iminência de ruína, que Ele lhe ordenara saísse a restaurar, não eram os templos de pedra, mas a Igreja cristã, em sua verdadeira significação - ecclesia - formada pela comunhão dos crentes, periclitante, de um lado, pelas deturpações e pelos exemplos desmoralizadores dos ministros do culto, do outro e como consequência, pelo declínio da fé e da caridade patenteado na dissolução dos costumes e na indiferença religiosa que lavravam, como sintomas alarmantes, entre o próprio povo.

            Quis, não obstante, obter uma confirmação da verdade que se lhe patenteara e, encaminhando-se pouco depois, com dois companheiros, Bernardo de Quintavalle e Pedro de Catania, cônego da catedral de Assis, à igreja de S. Nicolau, "tomou do altar o Evangelho e lhes releu o trecho que decidira de sua vocação, tendo tido o cuidado de se recolherem previamente, a fim de receberem, pela prece, a inspiração que desejavam.

            Assentindo eles, com ânimo resoluto, aquele programa de ação, Francisco de Assis formulou solenemente o compromisso, dizendo-lhes: "Irmãos, eis a nossa vida e a nossa regra e de todos que se nos queiram agregar".

            Assim deliberados, Bernardo de Quintavalle distribuiu pelos pobres os bens que possuía e, em companhia de Pedro de Catania e do patriarca - informa um seu biógrafo - que lhes lançou o hábito, composto de uma túnica de burel e uma corda", encaminharam-se os três para a Porciuncula onde construíram pobres cabanas, para se abrigarem, tendo em volta uma sebe que lhes servia de muro. O claustro - e que melhor lugar para o recolhimento e a oração a Deus - era a floresta em torno.

            Com essa absoluta singeleza estava criada a Ordem franciscana ou, mais propriamente, dos "irmãos menores", como a denominou intencionalmente o seu fundador, empenhado em fazer da Humildade e da Pobreza, que imortalizaram o seu ministério e o seu nome, os alicerces do edifício - renovação do primitivo - em que vinha convidar a abrigar-se a cristandade, na iminência de extravio.

            E como um tímido veio d’água, que em breve se faria caudal irresistível, começou a obra de evangelização pela prédica e o exemplo, não sem molestas resistências iniciais, opostas pela ignorância popular. Para obterem o alimento, ora ajudavam os agricultores nos trabalhos de colheita, ora esmolavam pelas ruas, expostos à irreverencia dos garotos.

            "Quando mendigavam pela cidade, sofriam não poucos vexames, sobretudo das famílias dos penitentes, as quais lhes não perdoavam a perda das riquezas". Deles se ocupa a Lenda dos Três Companheiros, nestes termos:

            "Muitos tomavam os irmãos por mariolas ou doidos e se recusavam a recebe-los em casa, com receio de serem roubados. Assim, em muitas localidades, depois de terem recebido toda a sorte de ultrajes, não achavam outro refugio, à noite, senão os portais das igrejas ou das casas.

            "Havia pessoas que lhes atiravam lama, outras lhes metiam dados nas mãos e os convidavam a jogar; outras se lhes penduravam do capuz e deixavam-se arrastar assim. Vendo, porém, que os irmãos estavam cheios de alegria no meio das tribulações, que não recebiam nem levavam dinheiro e, pelo amor uns aos outros, se faziam reconhecer como verdadeiros discípulos do Senhor, muitos sentiam-se arguidos no coração e lhes vinham pedir perdão das ofensas. Eles lhes perdoavam de todo o coração, dizendo-lhes: "O Senhor vos perdoe". E lhes davam piedosos conselhos sobre a salvação da alma".

            Com esse poder incoercível do amor e da humildade conseguiram não somente vencer as desconfianças e oposições da turba ignorante, mas ver aumentar o número dos irmãos, como eles, resolvidos a adoptar a mesma vida de renúncia, para prédica e exemplificação dos ensinos de Jesus. Francisco de Assis, entretanto, guiado sempre pelas inspirações do Alto, pressentindo o perigo que haveria para a sua obra em desenvolver-se á revelia e sem permissão da autoridade pontifícia, no ano seguinte, isto é, em 1210 partiu para Roma, com alguns companheiros, a fim de pedir a Inocêncio IV a aprovação da "regra" que organizara para a comunidade. Repelido ao começo com rudeza, terminou por obter a desejada aprovação, graças a uma expressiva alegoria com que, descrevendo a investidura da missão que o Senhor lhe havia dado, logrou vencer a resistência do pontífice.

            De regresso a Assis, já não teve que pregar diante de auditórios improvisados, que se formavam nas ruas e nas praças publicas, aos quais - informa ainda o cronista - "se juntavam membros do clero secular, monges, homens instruídos e mesmo ricos, nem todos certamente se convertendo, mas sendo-lhes impossível esquecer aquele desconhecido que um dia tinham encontrado no caminho e em algumas palavras lançara a perturbação e o temor até ao fundo de seus corações".

            A situação mudara. As pessoas que o tinham como herege, a ele e aos seus companheiros, se tranquilizavam, sabendo-o munido de autorização do sumo pontífice, e Francisco entrou a pregar na igreja de São Jorge, em breve tornada insuficiente para conter a multidão que acorria a ouvi-lo, de sorte que teve de transferir as suas prédicas para a catedral de Assis, crescendo sempre o número dos que a sua palavra inspirada convertia à fé e ao serviço do Senhor.

            As pobres cabanas, por isso, já não bastavam também para abrigar o crescente número dos irmãos que entravam para a Ordem, valendo-lhes nessa conjuntura a generosidade dos beneditinos, que lhes fizeram doação do santuário da Porciúncula, para uso perpétuo da nova comunidade.

            A glória, o esplendor perfeito da Ordem dos irmãos menores aí se expandiu durante 10 anos, período em que viveu santamente impregnada do espírito cristão, consoante a regra de 1210, a qual, vasada em preceitos e versículos do Evangelho, "derivava quase unicamente da fascinação exercida pelo santo" - refere um seu biógrafo. - "Segui-la, era imita-lo; aceita-la, era crer nas suas palavras com uma fé interior perfeita e ardente."

            "Tudo - prossegue - se passava com simplicidade inaudita. Em teoria, a obediência ao superior era absoluta; na prática, vemos a cada instante Francisco dar aos companheiros completa liberdade de ação. Entrava-se na Ordem sem noviciado de espécie alguma: bastava dizer a Francisco que se queria levar com ele a vida de perfeição evangélica e prova-lo, dando aos pobres tudo o que se possuísse."

            Em 1212 ingressaram na Ordem os mais notáveis companheiros do patriarca: Silvestre, João, Masseo, Junipero, Rufino e Leão.

            Nesse mesmo ano, a jovem Clara, da família dos Sciff, que se extasiara a ouvir Francisco pregar na catedral de Assis, resolvida a abandonar a vida faustosa da sociedade a que pertencia e dedicar-se ao serviço da pobreza, abandona a casa paterna, em companhia de duas amigas, e faz perante o patriarca o voto de consagrar-se à vida de caridade cristã. Contava 18 anos de idade.

            Com a nova doação, feita pelos monges de S. Bento, da capela de S. Damião, poude santa Clara instalar a sua comunidade, cuja residência era um hospital, para onde Francisco de Assis enviava os enfermos, principalmente leprosos.

            Aí - para resumirmos estas indispensáveis referencias - durante quarenta e dois anos realizou a santa, ou melhor, a irmã Clara uma fecunda obra de evangelização pelo fato, paralela à de Francisco de Assis, induzindo as pessoas do seu sexo a renunciar como ela às vaidades do mundo, não para se engolfarem na vida exclusivamente contemplativa, mas, alternando a ação com a contemplação, para operarem prodígios de caridade cristã, pela assistência aos leprosos, com que imortalizaram, por sua parte, o apostolado franciscano.

            

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