Tentação de Jesus
A Redação Reformador (FEB) 16 Junho 1919
De uma facundia (eloquência) prodigiosa só igualável à própria puerilidade e ousadia, são os argumentos e conceitos de ordinário empregados pelos adversários da doutrina espírita.
Há poucos dias, era um confrade cioso dos créditos do
nosso proselitismo, que chamava a nossa atenção para o trecho de um sermão católico,
no qual se pretendia inferir da passagem evangélica da “tentação de Jesus” a
existência e, mais do que isso - a ascendência do demônio.
Ora, a quem quer que se dê ao trabalho de filosofar
medianamente com a própria inteligência, não será difícil, já agora, concluir que
essa entidade individualizada na acepção comum que lhe empresta o catolicismo
romano, colide – substancialmente com os atributos de suprema bondade e onisciência
de Deus.
Porque de duas uma:-ou Deus criando os anjos não os fez íntegros
em sua pureza, ou não os fez essencialmente iguais. No primeiro caso haveria
imperfeição técnica da obra; no segundo, flagrante injustiça, tanto mais odiosa
quanto irreparável na consumação dos séculos.
Deste dilema não há fugir e quando os que levianamente
estadeiam esses princípios, completam tão falho raciocínio com palavras ocas de
sentido como: - Deus assim quis - esquecem-se
de que são eles, simplesmente eles, que estão querendo que Deus assim quisesse.
E é por estes e outros absurdos correntes em religião,
pela falsa noção de Deus, da criação e dos seus destinos que a humanidade desvaira
e procura em reivindicações de força bruta a solução do problema de sua
felicidade ou infelicidade na Terra.
Que se nos não atribuam exageros de sectarismo ao afirmarmos
que, do conflito incoercível da religião com a filosofia, no que elas têm até
agora realizado, se originam os males da nossa época.
Ninguém
há que, na ignorância ou, pelo menos, na incerteza de alguma coisa para além
desta vida, possa imolar-lhe abnegada e inteiramente o seu ideal de felicidade.
Ninguém pode compreender um Deus onipotentemente voluntarioso,
que deixa morrer os filhos à fome, imperturbável na sua glória, para que outros
filhos realizem desde logo quanto lhes farte, na terra como no céu.
Aí, porém, os divinos procuradores e privilegiados da Verdade são lógicos: este pandemônio terreno não deixa de ter analogia com a sua gênese abstrusa, salvo quanto às perspectivas.
Na Terra, a anomalia é temporária e no mundo espiritual
ela é eterna e definitiva; mas na Terra como nos arcanos do infinito, há seres
ingenitamente privilegiados, homens ou anjos votados ao eterno suplício ou à
eterna felicidade!
Razão de sobra para que os libertários contemporâneos, os
equalitaristas de todos os matizes proclamem que as religiões têm sido e são os
maiores inimigos do homem, da sua liberdade, da sua fraternidade.
É preciso, portanto, proclamar bem alto, também, que a
Religião, indestrutível em si, e inalienável também da natureza humana, como princípio
causal, está pervertida no seu curso, adulterada nos seus fins, incapaz, em suma,
de satisfazer os reclamos da consciência humana nos seus legítimos ditames.
Não somos nós, porém, os criadores de uma nova religião,
não somos sequer, os tarefeiros dessa obra reparadora no que ela tem de mais
elevado e positivo; são os espíritos do Senhor, são os que falam de um mundo
extreme de paixões rasteiras, de prejuízos mesquinhos, que vêm, não já pela
palavra mas pelo fato incontrastável, proclamar e provar a sua oportunidade, reconciliando
a fé com a razão, e integrando Deus nas consciências justamente combalidas ou
simplesmente revoltadas.
A isto pretendem opor-se
os doutos teólogos, de modo gratuito e com a só autoridade da sua tradição. É
justo e por tal não os malsinamos, cônscio de que têm o seu papel assinalado na
evolução que se intensifica e precipita. Da história do mundo, conhecemos o suficiente
para saber quanto custa a demolição de consagrados privilégios e regalias.
Basta lembrar o sangue dos mártires do Cristianismo, sem esquecer o que por “amor”
ao mesmo Cristianismo, se derramou nas guerras religiosas ou por sentenças da
truculenta inquisição.
E tudo para que? Para que ainda hoje “O Cristo” se
conserve desconhecido, inconcebível, ao ponto de o julgarem a ele – Deus - passível
de tentação do maior êmulo (adversário) de Deus, ou seja
de si mesmo.
Quanta puerilidade! Quanta incoerência! Mas não no
alonguemos na explicação do texto evangélico que é o que de perto diz com a
nossa tarefa nesta tribuna doutrinária. Jesus, homem, não poderia jejuar 40
dias no deserto, impunemente; Jesus, Deus, não poderia ser tentado. As suas
palavras ao povo tinham, como de resto muitos dos seus ensinamentos, um sentido
emblemático, visando o futuro das gerações que ele presidiu e preside do alto
da sua glória. Deixando e retomando a vida (no caso o corpo) quando queria, o
Divino Mestre por satisfazer a tradição do povo judeu (1) rarefez os fluidos
que lhe davam a corporeidade tangível e deu, com a sua ausência aparente, mais
uma dessas lições que precisam ser compreendidas em espirito e verdade.
Os tempos aí estão, porém, chegados para a elucidação dos
Evangelhos enterrados há mais de dezesseis séculos, e tanto mais promissores se
nos afiguram os tempos, quanto, para essa obra de remodelação religiosa, os
mensageiros do alto não vão bater às portas de bronze dos templos de pedra, mas
às dos templos vivos nos quais há um altar que se chama - razão, para um só
pontífice que se chama - consciência.
Pontificando nesse altar em ritualismo comprovado por fatos
transcendentes à própria vontade, a humanidade cônscia da perenidade e grandeza
dos seus destinos concluirá logicamente que eles se não resolvem a bombas de dinamite
nem a tiros de canhão, porque há uma justiça indefectível e sobranceira, que
pauta e gradua a sua escalada na realização de todas as conquistas, individuais
ou coletivas, na Terra, no espaço, na Universo enfim.
E dizer-se que isto lá está nesses Evangelhos que a igreja
conhece mas sofisma há vinte séculos!
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