6. Salvação pela fé ou pelas obras?
por Romeu A.
Camargo
Empresa
Gráfica da “Revista dos Tribunais - São Paulo SP - 1941
Igreja Reformada ou Protestante - O grande movimento
religioso do século XVI foi o maior acontecimento dos tempos modernos. E a
civilização moderna foi assinalada por quatro grandes invenções: a pólvora, a
bússola, o papel e a imprensa.
E essas invenções determinaram uma mudança nos
costumes e nos destinos do velho mundo. "A pólvora tornou inúteis as fortificações medievais dos castelos, e
das propriedades dos nobres, deu o último golpe no regime feudal e consolidou o
prestigio da realeza (ou dignidade do rei). A bússola, tornando mais seguras as derrotas (ou viagens marítimas),
conduz às grandes descobertas, demonstra a esfericidade do planeta e lança por
terra a antiga concepção geográfica (geocentrismo). O papel, tornando dispensável o caro pergaminho, preserva da
destruição grande número de trabalhos de vulto que servirão para orientar a
humanidade no período moderno, e fornece à imprensa o veículo próprio para a
transmissão dos conhecimentos. Finalmente, a imprensa, vulgarizando as concepções do pensamento humano, torna a
ciência accessível a todos e acaba com o monopólio que as ordens monásticas
(conventos) faziam da instrução. O primeiro livro que se imprimiu foi a Bíblia,
em 1445. A instrução deixou de ser um
privilégio exclusivo das abadias, igrejas e universidades, e teve livre entrada
em todas as mansões.”
A grande revolução religiosa teve, pois, bases firmes
que garantiriam seu triunfo através dos séculos: as grandes descobertas
marítimas, a invenção da imprensa e a renascença das ciências e das artes. “A
essas causas veio-se juntar o. profundo desgosto pela corrupção do clero, seu
luxo, sua insolência e sua ignorância, e a vulgarização dos conhecimentos
científicos pelos leigos (não sacerdotes).”
Como é sabido, a Reforma teve como centro a Alemanha, berço
de Gutenberg, que personifica a imprensa, e de Lutero, que corporiza a
liberdade de pensamento.
Os crentes da Igreja Reformada são os continuadores
daqueles que, orientados e dirigidos pelo ardoroso reformador alemão, protestaram, no séc. XVI (1517), contra
o desvirtuamento da doutrina cristã pela Igreja de Roma.
Os reformados ou protestantes, ou ainda, cristãos evangélicos,
procuraram seguir a Moral do Evangelho e praticá-la. E por assim pensar e
proceder, os protestantes tornaram a linha de frente no caminho do progresso,
deixando os romanistas na retaguarda. Vamos repetir o que dissemos há pouco, em
outro trabalho: por que não se vê espetáculo semelhante ao espanhol (luta
fratricida, de 1936 a 1939) na Holanda protestante, na Suíça mais protestante
que católica, na Dinamarca protestante, na Suécia protestante, na Noruega
protestante, na Inglaterra protestante, na Alemanha feita e formada no
protestantismo, na União Norte Americana protestante? De onde virá esse espírito
de ordem, de disciplina, de respeito à liberdade de consciência, “condição e
fonte de todas as liberdades”? Por que não se verificam, nesses países,
movimentos subversivos, abalos desfibradores da ordem? A causa dessa
superioridade que caracteriza os povos protestantes está na qualidade do
sistema educativo, do sistema de formação mental, do sistema de cultura da alma
do povo, sistema que tem por principal escopo a iluminação do espírito e a
abolição completa do analfabetismo, erva daninha que viceja frondejante no
campo romanista. É essa a explicação da superioridade dos povos protestantes
sobre os povos católicos. E a Espanha foi o espelho fiel onde o mundo viu a falência
completa do sistema católico romano, na formação moral, mental e espiritual de
seus professantes, sim, a Espanha que foi sempre alimentada de catecismo e
dominada pela Igreja. “Repleta de igrejas, cheia de conventos, povoada de
organizações religiosas, a Espanha é a região do planeta onde os dogmas dos
bispos romanos encontraram mais guarida e maior amplitude.” (Emmanuel). (*)
(*)
Ver nosso livro "De cá e de lá", págs. 289 e 441.
O leitor tem ao alcance da vista, que lhe oferecemos,
excelente elemento probante, da referida superioridade do sistema educativo
protestante sobre o sistema educativo católico: a estatística. É um documento
de valor, porque é a expressão numérica das forças sociais.
Ilustre escritor patrício, em magnífico artigo
publicado no "O Estado de S. Paulo", do dia 19 Fev. 1938, citou a The Modern Encyclopedia, de cujas
páginas extraiu a relação dos principais países civilizados, com a respectiva
porcentagem de analfabetos.
Baseado naqueles algarismos, imaginemos distribuída em
cidades de 10.000 almas, a população de cada um dos países seguintes.
Países protestantes - Em cada cidade de 10.000 habitantes,
possuiria a Suécia apenas 1 analfabeto, a Suíça 1, a Dinamarca 2, a Alemanha 3,
a Holanda 20, a Inglaterra e Escócia 30, os Estados-Unidos 430.
Países católicos - Em cada cidade de 10.000 habitantes,
a França possuiria 840 analfabetos, a Bélgica 930, a Itália 2.700, a Argentina
3.790, o Uruguai 3.980, o Chile 4.790, o Equador 5.000, a Colômbia 6.000, a
Espanha 6.370, Portugal 6.800, e o Brasil 7.550. (Cálculos baseados nos dados
da The Modern Encyclopedia).
A eloquência do contraste é impressionante. Os países
mais adiantados são exatamente os que procuram ler a Bíblia como a única regra
de fé e prática, o Evangelho, cuja Moral ensina ao homem a compreender o que
faz na terra, porque aqui está, para onde vai, e, sobretudo, ensina ao homem a
amar os seus semelhantes que são seus irmãos. Essa Moral, que faz abrir os
olhos e lhes desvenda os infinitos horizontes da Espiritualidade, leva o homem
a compreender que cada um é responsável por seus pensamentos, por seus atos,
por sua conduta, por seu destino. Dando a cada um a noção e o senso da
responsabilidade individual, é bem de ver que essa Moral não pode ensinar que
João, pecando por pensamento contra José ou Josefina, vá confessar esse pecado
ao ouvido do pastor e este o declara limpo desse pecado.
Diferente do católico que nada diz porque nada abe acerca
da salvação - se pela fé ou pelas obras -, o protestante tem suas diretrizes,
sabe pensar por si. Essa disparidade é um libelo acusatório contra a Igreja
Romana. Como diz um grande filósofo cristão, "dezenove séculos decorreram
desde os tempos do Cristo, dezenove séculos de autoridade para a Igreja, dos
quais doze de poder absoluto. Quais são, na hora presente, as consequências do
seu ensino?
O Cristianismo tinha por missão recolher, explicar,
difundir a doutrina de Jesus, dela fazer o estatuto de uma sociedade melhor e
mais feliz. Soube ela desempenhar essa grande tarefa? Julga-se a árvore pelos
seus frutos, diz a Escritura. Verga ela ao peso de frutos de amor e de
esperança? A árvore, indubitavelmente, se conserva sempre gigantesca, mas, na
sua ramaria, quantos galhos não foram decepados, mutilados, quantos outros não
secaram, quantos não ficaram infecundos!
De que procede o atual estado de coisas? Durante doze
séculos a Igreja dominou, formou a seu talante a alma humana e toda a
sociedade. Em sua mão se concentravam todos os poderes. Todas as autoridades
residiam nela, ou dela procediam. Ela imperava sobre os espíritos como sobre os
corpos; imperava pela palavra e pelo livro, pelo ferro e pelo fogo. Era senhora
absoluta no mundo cristão; nenhum freio, nenhum marco limitava a sua ação. Que
fez ela dessa sociedade? Queixa-se da sua corrupção, do seu ceticismo, dos seus
vícios. Esquece-se de que, acusando-a, acusa-se a si mesma? Essa sociedade é
obra sua; a verdade é que ela foi impotente para a dirigir e melhorar. A
sociedade corrompida e cética do século XVIII saiu de suas mãos. Foram os abusos,
os excessos, os erros do sacerdócio que determinaram o seu estudo ele espírito.
Foi a impossibilidade de crer nos dogmas da Igreja o que impeliu a humanidade
para a dúvida e para a negação.
O materialismo penetrou até a medula no corpo social.
Mas de quem é a culpa? Se as almas tivessem encontrado na religião, tal como lhes
era ensinada, a força moral, as consolações, a direção espiritual de que
necessitavam, ter-se-ia afastado dessas igrejas que em seus poderosos braços embalaram
tantas gerações? Teriam elas deixado de crer, de amar e de esperar?
A verdade é que o ensino da Igreja não conseguiu
satisfazer as inteligências e as consciências. Não pode dominar os costumes;
por toda parte lançou a incerteza, a perturbação do pensamento, de que proveio
a hesitação no cumprimento do dever e, para muitos, o aniquilamento de toda
esperança.
Se, no auge do seu poderio, a Igreja não conseguiu
regenerar a humanidade, como o poderia fazer hoje? A Igreja Romana sempre impôs
o temor de Deus às multidões. Havia nisso um sentimento necessário para
realizar o seu plano de domínio, para submeter a humanidade semibárbara ao
princípio de autoridade, mas um sentimento perigoso, porque, depois de haver
feito por muito tempo escravos, acabou por suscitar os revoltados -, sentimento
nocivo, esse do medo, que, depois de ter levado o homem a temer, o levou a
odiar; que o ensinou a não ver no poder supremo senão o Deus das punições terríveis
e das eternas penas, O Deus em cujo nome se levantaram os cadafalsos e as fogueiras,
em cujo nome correu o sangue nas salas de tortura. Daí se originou essa reação
violenta, essa furiosa negação, esse ódio à ideia de Deus, do Deus carrasco e
déspota, ódio que se traduz por esse grito que hoje em dia ressoa em toda parte,
em nossos lares: nem Deus, nem Senhor!
Ah! Talvez, se a Igreja abandonasse os seus palácios,
as suas riquezas, o seu culto faustoso e teatral, o ouro e a púrpura; se,
cobertos de burel, com o crucifixo na mão, os bispos, os príncipes da Igreja, renunciando
aos seus bens materiais e se tornando, como o Cristo, sublimes vagabundos, fossem
pregar às multidões o verdadeiro evangelho da paz e do amor, então talvez a
humanidade acreditasse neles. Não se mostra disposta a Igreja Romana a desempenhar
esse papel; o espírito do Cristo parece cada vez mais abandoná-la. Nela quase não
resta senão uma forma exterior, uma aparência, sob a qual já não existe mais
que o cadáver de uma grande ideia."
* * *
No tocante à doutrina da salvação, se pela fé ou pelas
obras, a Igreja Reformada, pela voz de todas as suas denominações (Igreja
Metodista, Igreja Presbiteriana, Igreja Batista, Igreja Cristã, etc.) definiu a
sua posição. O pecador se salva pela fé, sem o concurso das boas-obras. Estas
jamais entrariam no plano judicial de Deus. "Pela graça é que sois salvos, mediante a fé, e isto não vem de vós,
porque é um dom de Deus. Não vem das nossas obras, para que ninguém se glorie.”
(Efésios, 2:8, 9). A salvação depende da fé na eficácia expiatória do sangue de
Jesus.
Na Igreja Presbiteriana; pode-se consultar a obra “Esboços de Teologia”, do rev. A. A.
Hodge, prof. de Teologia Sistemática no Seminário Teológico de Princeton, New
Jersey, USA. Leia-se o cap. XI, bem como o cap. XXXIII, págs. 465 a 468, edição
de 1895, sob o título "Da Justificação".
Esse versículo da carta de Paulo aos Efésios é o eixo
em torno do qual gira toda a doutrina que forma a estruturação religiosa do
Protestantismo.
De acordo com o ensino da Igreja Presbiteriana, Deus é
Pai de amor infinito. É ensino de aceitação geral. Vejamos outro, não geral. É
do Presbiterianismo. Antes de formar a Terra, ou melhor, antes de criar os
milhões de estrelas, de planetas e de nebulosas ou poeiras de estrelas que rolam
no Infinito -, Ele, que é onisciente, escolheu as criaturas que ainda não
existiam, umas para o gozo da bem-aventurança eterna, e outras, em número muito
maior, para o fogo de tormentos sem fim.
É o dogma da predestinação divina. Segundo este dogma,
“os fiéis são salvos não por um exercício da sua livre vontade, nem por seus
próprios merecimentos, porque não há livre-arbítrio em face da soberania de
Deus, mas por efeito de uma "graça" que Deus concede a seus eleitos.
Acompanhando este argumento em todas as suas consequências lógicas, poder-se-ia
dizer: é Deus quem atrai os escolhidos; é Deus quem endurece os pecadores. Tudo
se faz pela predestinação divina. Adão, por conseguinte, não pecou por seu
livre-arbítrio; quem não tem liberdade, não tem responsabilidade.” “A liberdade
e a responsabilidade são correlativas no ser e aumentam com sua elevação; é a
responsabilidade do homem que faz sua dignidade e moralidade. Sem ela, não seria
mais do que um autômato, um joguete das forças ambientes: a noção de moralidade
é inseparável da de liberdade. A responsabilidade é estabelecida pelo
testemunho da consciência, que nos aprova ou censura segundo a natureza de
nossos atos. A sensação do remorso é uma prova mais demonstrativa que todos os argumentos
filosóficos. Para todo espirito, por pequeno que seja o seu grau de evolução, a
Lei do dever brilha como um farol, através da névoa das paixões e interesses.
Por isso, vemos todos os dias homens nas posições mais humildes e difíceis
preferirem aceitar provações duras a se abaixarem a cometer atos indignos.” - Se
Adão foi predestinado à queda, a Lei do dever era então um farol apagado e ele
não poderia fugir á queda; consequentemente, não era ou não foi responsável,
visto que Deus, absoluto e soberano, o predestinou à queda...
E, a queda de Adão induz fatalmente à pesquisa sobre a
origem dessa entidade pessoal que o levou a cair, conduzido pelo braço de sua
companheira. De onde veio o tentador, diabo ou satanás? Se no Éden ou paraíso
terreal só existia o casal, duas criaturas puras e inocentes -, como explicar a
existência, ali, de uma entidade pessoal, disfarça da sob a pele de serpente,
com autoridade ou poder superior ao de Deus, pois que seu palavreado prevaleceu
sobre a ordem divina e o casal caiu na tentação da desobediência, comendo do
fruto proibido? (Gen., 2:16, 17 e cap. 3, vers. 1 a 13),
Essa inquirição admite esta alternativa: ou esse ser
foi criado ou não foi criado; se foi criado, é criatura de Deus e nesse caso é
a negação da Bondade Infinita, mas não deixa de ser irmão do casal claudicante
(e tio da descendência); se não foi criado, então é incriado ou eterno; mas,
seria o cúmulo dos absurdos admitir a ideia de duas Eternidades ou dois
Infinitos, um, o Infinito do bem, derrotado em seus planos pelo Infinito do
mal.
Deixemos de analisar essa questão filosófica, para não
entrarmos nos domínios da metafísica, pois sairíamos dos limites desta obrinha.
Podemos dizer, de escantilhão e à guisa de reportagem, que é promissor o
movimento que já se vai operando no seio das congregações evangélicas, a prol
da revisão de seus postulados.
Na Inglaterra, por exemplo, o protestantismo está revelando
acentuado interesse por uma revivificação espiritual. Será certamente o
primeiro fruto dessa acurada e profunda investigação em torno de ensinos
tradicionais, como o da ressurreição dos corpos, o da unicidade da existência,
o do inferno eterno. Quem lê revistas e jornais ingleses pode acompanhar esse
movimento evolutivo. Não nos referimos a publicações particulares ou de
associações, mas aos grandes órgãos da imprensa britânica, The Times, Daily
Express, em cujas colunas se encontram frequentemente artigos, notícias e
fotografias, de fundo nitidamente religioso, em busca da verdade, sem peias de
preconceitos ou de dogmatismos, antes, com base no testemunho irretorquível da
experimentalidade objetiva dos fatos, no vastíssimo campo das investigações
psíquicas.
7. Salvação pela fé ou pelas obras?
por Romeu A.
Camargo
Empresa
Gráfica da “Revista dos Tribunais - São Paulo SP - 1941
Pela fé ou pelas obras?
Paulo e Tiago estarão em desacordo
quanto ao método de salvação?
AMBOS, DENTRO DO EVANGELHO.
O leitor precisa conhecer um ponto importante, sim,
importante para quem crê no Evangelho e o adota como única regra de vida. É
aquele ponto em que parece haver divergência entre esses dois grandes
apóstolos, quanto ao plano de salvação dos homens. Essa divergência - dizem os
intérpretes ou exegetas bíblicos - é aparente e não real.
Paulo fala da justificação (digamos logo salvação)
pela fé, sem as obras; Tiago fala da Justificação pelas obras e não pela fé.
A Reforma, pela voz de Lutero e de Calvino, concentrou
o plano de salvação ou iluminação do homem no pensamento vazado nestes dois
versículos: “Pela graça é que sois salvos
mediante a fé, e isto não vem de vós, porque é um dom de Deus. Não vem das
nossas obras, para que ninguém se glorie". "O justo vive da fé.” “(Epístolas
de Paulo: aos Efésios, cap. 2 v. 8; aos Gálatas, cap. 3 V. 11).
Está firmado o plano de salvação. Meditado, examinado
e analisado, quer dizer: a salvação é dom ou dádiva de Deus. Não depende da
vontade do homem. Está condicionada entre outros dois dons, ou, flutua entre
outras duas dádivas de Deus: a graça e a fé.
As obras do pecador nada valem diante da graça e da
fé. Deus não as vê, como também não vê o esforço e o trabalho do homem para se
salvar. Segundo Calvino (fundador do calvinismo ou presbiterianismo) serão
salvos da condenação eterna não todos os homens, mas os predestinados ou
eleitos por Deus. Eleger, bem o sabemos, é escolher, preferir; logo, é
parcializar ou escolher uma parte e deixar a outra parte. Mas, racionalmente,
ninguém ousaria atribuir a Deus a fraqueza de querer ser parcial.
Pergunta-se: não quer toda a humanidade a salvação?
Sim. E por que não se salvam todos os homens? Porque depende isso da “graça”
que Deus concede, não a todos os filhos, mas aos seus eleitos ou preferidos que
são os predestinados à salvação. Logo, a salvação ou iluminação não depende da
vontade do pecador, faça o que fizer, viva ele a vida que viver, de provação,
de privação, de paciência, de resignação, de inflexível moralidade, amando e
praticando a beneficência.
E porquê tudo isso nada vale? Simplesmente porque a
salvação depende exclusivamente da graça
e da fé, dois dons, duas dádivas, conferidas
a quem é eleito ou escolhido por Deus. Ganha-as, não quem quer, mas aquele a
quem Deus quer.
Como está vendo o leitor, essas reflexões giram em torno
da palavra de Paulo, mas palavra isolada do resto da sua palavra no resto das
suas epístolas. Examinemos a questão.
Coloquemos a epístola de Paulo aos Gálatas em frente
da de Tiago, outro apóstolo, este, companheiro inseparável de Jesus. Que
resulta desse confronto? Ouçamos Tiago:
“Que aproveitará, irmãos meus, a um que diz que tem
fé, se não tem obras? Acaso podê-lo-á salvar a fé? Se um irmão, porém, ou uma
irmã estiverem nus, e lhes faltar o alimento quotidiano, e lhes disser algum de
vós: ide em paz, aquentai-vos e fartai-vos; e não lhes derdes o que hão de mister
para o corpo, de que lhes aproveitará? Assim também a fé, se não tiver obras, é morta em si mesma.
Poderá logo algum dizer: Tu tens a fé e eu tenho as
obras; mostra-me tu a tua fé sem obras; e eu te mostrarei a minha fé pelas
minhas obras. Tu crês que há um só Deus. Fazes bem, mas também os demônios o creem, e estremecem. Queres, pois tu
saber, ó homem vão, que a fé sem obras é morta? Não é assim que nosso pai
Abraão foi justificado pelas obras, oferecendo a seu filho Isaac sobre o altar?
Não vês como a fé acompanhava as suas obras, e que a fé foi consumada pelas
obras? Não vedes como pelas obras é justificado o homem, e não pela fé somente?
Do mesmo modo até Rahab, sendo uma prostituta, não foi ela justificada pelas
obras, recebendo os mensageiros (ou espiões de Josué) e fazendo-os sair por
outro caminho?
Porque, bem como um corpo sem espirito é morto, assim
também a fé sem obras é morta." (Cap. 2, vs. 14 a 26).
* * *
Esses treze versetos, por si sós, dissipam qualquer
dúvida sobre a questão... A linguagem de Tiago é clara, claríssima, sem ambiguidade,
sem sentido figurado. Mas, continuemos a considerar o assunto, posto que está
entre a palavra de Paulo e a de Tiago.
8. Salvação pela fé ou pelas obras?
por Romeu A.
Camargo
Empresa
Gráfica da “Revista dos Tribunais - São Paulo SP - 1941
SALVAÇÁO PELA FÉ - DIZ PAULO
SALVAÇÁO PELAS OBRAS - DIZ TIAGO
Sim, cada um no seu ponto de vista. Não há antinomia
ou contradição.
Acompanhe-nos o leitor na elucidação do assunto.
Dispa-se, porém, de qualquer ideia preconceituada. Preconceito é conceito
antecipado, e com ele ninguém poderá julgar, porque será mau observador, e mau
observador nunca poderá ser bom julgador. É que o preconceito não permite ao
homem reflexionar nem comparar ideias. É espirito de partido, de sistema, que
se afasta da opinião geral para formar a sua opinião. Nesse estado mental, o
sectário não poderá ler isto que estamos escrevendo, porque seus olhos lerão
antes o que ele traz no cérebro e não o que estas linhas dizem.
Varia entre os homens a ideia acerca da finalidade da
obra de Jesus. E não podia deixar de ser assim, desde que o modo de entender ou
de apreender está proporcionado à capacidade mental que é capacidade intelectiva,
e a inteligência varia de indivíduo a indivíduo. Sabe-se que entre os seres
criados, animados e inanimados, não há dois iguais, e o grande Charles Richet,
o maior mestre em Fisiologia (“ciência dos fenômenos da vida e das funções dos
órgãos, tanto dos animais como dos vegetais”), afirmou que não existe igualdade
entre duas coisas, nem mesmo entre dois átomos de hidrogênio. “A inteligência compreende como pode, não
como se quer. Forçar os espíritos a crer, sob o pretexto de unidade de fé, é
enganar-se de domínio, submetendo o espírito a força, que é lei da matéria.”
Consequentemente, quem diz “conhecimento”, “capacidade",
e as capacidades geram a “diversidade”. Daí, aquela inspirada pergunta de
Bossuet, o ilustre bispo de Meaux (França) e célebre orador: “Que diríeis de um homem que não soubesse ler
uma carta? Não seria, de certo, que a carta não exista, mas que ele a não sabe
ler. Porque negais as verdades que não podeis entender?”
Não andará errado quem se propuser descobrir no
Evangelho, no espirito e não na letra desse maravilhoso livro, o verdadeiro
caráter e a verdadeira finalidade da obra realizada pelo Mestre.
É com esse propósito que nos apresentamos. Desprezamos
toda a sabedoria de fora, desde que não esteja de acordo com a palavra de Jesus,
seja sabedoria encasacada pela filosofia ou abatinada pelo cientificismo
teológico, mas sempre sabedoria inclinada á “infalibilidade, que é uma tirania intelectual.” Preferimos dar
pouco, muito pouco, mas do que é real, a fazer transfusão de ideias anuviadas,
máxime no campo da fé, que estamos palmilhando.
Na aquisição do conhecimento do Evangelho que é o
pensamento de Jesus ou o pensamento de Deus, obedecemos ao conselho de ilustre
escritor francês: “Pelo que toca ao conhecimento de Deus, não peçais a cada um,
senão “segundo a medida de fé que Deus mediu para cada um, escreveu formalmente
S. Paulo, “somente essa fé constitui uma
adoração racional" (Rom., XII 1 a 3). E Deus mede a cada um, diz Jesus,
segundo a capacidade de cada um” (Mat., XXV, 15).
Dito isso, passemos adiante. Vejamos a suposta
disparidade entre as duas epístolas.
Lendo o prefácio dessas cartas,
ressalta logo à nossa vista o seguinte: Paulo escreveu cartas particulares, a
certas e determinadas igrejas ou agrupamentos de crentes, e até a determinadas
pessoas, como iremos ver daqui a pouco -, ao passo que Tiago escreveu carta ou
Epístola Católica (isto é, Universal) “às doze tribos que estão dispersas” ou
sejam os Judeus convertidos e espalhados pelo mundo. Não se dirige a uma igreja,
a uma congregação, a um indivíduo, mas a todos os cristãos, vindos do Judaísmo.
É epístola de caráter universal, e como tal, todas as instruções, todos os
ensinos, todos os conselhos ali encerrados, têm este endereço: a toda a
cristandade. O autor dessa carta generalizou as suas instruções, que serviriam
aos cristãos da Palestina, da Etiópia, da Grécia ou da China. Um padrão para
todo crente.
Este traço distintivo é de importância
capital. Outro é o objetivo das cartas paulistas, que visam núcleos locais, ora
na Europa (Roma, Corinto, Tessalônica, Filipos), ora na Ásia (Colossos, Éfeso, Galácia).
Essas cartas, segundo o teor de cada uma, obedeciam a interesses
locais, ocasionais, o que diferenciou a natureza delas, pois o conteúdo mostra
a diversidade do assunto.
Para radicar no espírito do leitor a certeza da
particularidade e não generalidade das epístolas de Paulo, vamos examinar rapidamente
algumas delas. Vejamos em primeiro lugar a Epístola de Filemon. Citaremos
sempre a tradução do Padre Antônio Pereira de Figueiredo, pelo motivo declarado
no começo desta obrinha. Servimo-nos da edição católica do revm. Santos
Farinha, a qual encerra algumas anotações do editor.
A Epístola a Filemon é única no gênero. Carta
particular, de caráter íntimo. De Roma escreveu Paulo a Filemon, homem de
posição que vivia em Colossos (Ásia), convertido ou pelo próprio Paulo ou por
seu discípulo Epafras, Paulo remete Onésimo, escravo de Filemon, que fugira de
casa do seu senhor com receio de ser castigado, acolhendo-se em Roma sob a
proteção do apóstolo, que o instruiu na fé. Terminada a obra de conversão do
escravo, remeteu-o com todas as provas de consideração, recebendo-o Filemon de
braços abertos e cooperando ambos na difusão do Evangelho.
As três Epístolas aos discípulos Timóteo e Tito, “epístolas
pastorais”, tratam de assuntos referentes ao ministério pastoral, e em
particular à escolha, aos deveres e virtudes dos pastores de almas.
Vejamos as Epístolas de caráter coletivo. Tomemos a 1ª
Epístola aos Coríntios.
“Esta não tem nada de dissertação nem de tratado
dogmático; é uma série de avisos, reflexões, soluções dirigidas pelas
circunstancias e repartidas em sete artigos: Podemos dividi-la da seguinte forma:
PRIMEIRA SEÇÃO - Reforma dos abusos notados em Corinto:
a) abusos introduzidos por certos pregadores (caps. I
e IV);
b) diversos escândalos dados por particulares (caps. V
e VI).
SEGUNDA SEÇÃO - Resposta às
dúvidas formuladas:
a) sobre o casamento (cap. VII);
b) sobre os manjares consagrados aos ídolos (cap. VIII
e X);
c) acerca da ordem durante as reuniões na igreja (cap.
XI);
d) do uso dos dons espirituais (cap. XII e XIV);
e) sobre a ressurreição ou transfiguração cap. XV).”
Esta Epístola revela o espírito disciplinado e
disciplinador do grande apóstolo, que responde a perguntas que lhe foram
dirigidas e dá solução a questões submetidas ao seu alto critério.
Motivos locais da congregação da cidade de Corinto, na
Europa, determinaram essa carta de Paulo, escrita da cidade de Éfeso, na Ásia,
no ano 56.
Vamos agora examinar os motivos que levaram o apóstolo
a escrever aos crentes da cidade de Éfeso. Achava-se ele em Roma, no ano 62.
Éfeso, metrópole da Ásia proconsular (governada por um
pro cônsul, do império romano, era célebre pelo seu comércio, pela sua riqueza
e sobretudo pelo seu celebérrimo templo de Diana, uma das sete maravilhas do
mundo. Paulo chegou até aí, pregou, recolheu bom fruto do seu apostolado e
fundou aí uma florescente cristandade. Nesta Epístola o grande apóstolo dirige-se
aos seus irmãos e procura-os penetrar do grande amor que deviam ter a Jesus
Cristo, deixando os enganos fantasiosos da mentira, as artimanhas da
gentilidade ou paganismo, as sutilezas dos gnósticos (filósofos que formularam
e ensinaram a Gnose ou Conhecimento
em Ciências Sagradas).
Objeto dessa Epístola:
a) pôr em relevo a grandeza da obra de Jesus; todos os
povos e todos os indivíduos foram pelo Redentor chamados à adoção divina [cáp.
I, cáp. II, v. 11);
b) traçar aos cristãos a sua regra de conduta, dar-lhes
conselhos gerais (cáp. IV; cáp. V vs. 21) e particulares (cáp. V vs. 22 e cáp.
VI) para os diversos estados da vida cristã.
O estilo é as vezes obscuro, mas as ideias são
profundas e os pensamentos sublimes.
Para se fazer ideia do atraso mental do povo efésio,
bastará ler o pequeno relatório do grande apóstolo, em Atos dos Apóstolos, pelo
qual se vê o perigo a que se expôs, quando foi anunciar ali o Evangelho. Tão
fanáticos pelos deuses da mitologia grega, pelas imagens ou ídolos fabricados
pelos artífices - mas, sobretudo pela imagem de Diana, deusa, filha de Júpiter,
que, não só não queriam ouvir a Paulo, como nem ao menos queriam ouvir a voz de
um judeu! E Paulo era judeu. Tamanha confusão reinou no seio do povo, quando
souberam que havia judeus pregando o Evangelho, que discípulos de Paulo não lhe
permitiram se apresentasse no teatro da cidade, onde pretendia falar acerca da
doutrina do Crucificado, Fanatizado por sua crença, o povo, querendo mostrar a
sua desaprovação e repulsa pela palavra dos Judeus, chegou a gritar pelo espaço
de quase duas horas: “Viva a grande Diana os efésios! (Atos dos Apóstolos, cáp.
24 a 28 e cáp. 19 vs. 1 a 40).
A esse povo, de costumes grosseiros, praticante de obras
más, na proporção desses costumes faltos de moralidade - não podia falar Paulo
que Jesus exigia boas obras, pois que os efésios entenderiam por boas obras, as
que eles praticavam...
Nas instruções e nos conselhos gerais de sua Epístola
aos Efésios, o grande apóstolo fala muito claramente sobre as obras a serem
praticadas. “E não comuniqueis com as obras infrutuosas das trevas, mas antes,
pelo contrário, condenai-as; porque as coisas que eles fazem em secreto, vergonha
é ainda dizê-las. (Cap. 5 vs, 11, 12).
Passando a apontar os deveres domésticos, aí, sim, fala
Paulo de modo a servirem suas instruções e seus conselhos a todo e qualquer
cristão e a estranho mesmo. Um compendio de sublimes normas morais, sobressaindo
as que ditam deveres conjugais, visando diretamente a família, célula fundamental
da sociedade, Exortações aos maridos, às esposas, aos filhos, aos servos (escravos)
e aos senhores.
Uma
congregação, uma família, um indivíduo, com normas desse quilate, finíssimo
quilate, não poderiam deixar de praticar muito boas obras, excelentes obras,
desde que subordinadas à ideia motriz, à fé geradora dessas obras, não aquela
do politeísmo observada no famoso templo de Diana, que tal fé não era senão um
índice das obras vergonhosas -, mas a fé baseada na doutrina de Jesus, fé
sinônima de virtude, força, coragem de avançar para a frente, confiante no
poder de Deus, na autoridade de Jesus, como a do comandante do batalhão romano
que a externou por esta forma: “Senhor, eu não sou digno de que entres na minha
casa; porém, manda-o só com a tua palavra, e o meu criado será salvo, Pois eu também
sou homem sujeito a outro, que tenho soldados às minhas ordens, e digo a um:
Vai acolá, e ele vai; e a outro: Vem cá, e ele vem; e ao meu servo: Faze isto,
e ele o faz.” “E Jesus, ouvindo-o assim falar, admirou-se (porque esse
centurião era pagão como os seus superiores e o resto do governo imperial
romano), e disse para os que o seguiam: em verdade vos afirmo que não achei
tamanha fé em Israel!” (Mt., 8 vs. 5 a 10). Isto é, entre os Judeus, não vi fé
semelhante!
O comandante da centúria (cem soldados) não externara
ideia alguma acerca de Deus ou de Jesus; não tinha nem podia ter opinião
religiosa sobre Jesus, porque era ele uma parcela do poder público da Roma
pagã, e como pagão só podia ter ideias pagãs, confusas e anticristãs...
A fé, de que fala Paulo aos efésios, é dessa natureza,
e por isso, há de manifestar-se através da conduta, das ações, das obras do
homem como indivíduo, como marido, como filho, como escravo, como senhor, Jesus
não indagou do centurião se sabia o que era “reconciliação”, “propiciação”,
justificação' predestinação, “expiação”. Louvou a fé do pagão e apontou-a aos
discípulos como fé-exemplo, fé-padrão, digna de ser imitada! E disse Jesus: “Vai,
e faça-se segundo tu creste.” “E naquela mesma hora ficou são o criado.”
Passemos a considerar a Epístola aos Gálatas, escrita
de Éfeso, no ano 55.
9. Salvação pela fé ou pelas obras?
por Romeu A.
Camargo
Empresa
Gráfica da “Revista dos Tribunais - São Paulo SP - 1941
AOS GÁLATAS
Na sua segunda viagem missionária, isto é, por volta
do ano 53, havia Paulo conquistado para a fé em Jesus Cristo um número bastante
considerável de Gálatas, ou, seja, de Gauleses estabelecidos, ali pelo ano 280,
a. C., numa pequena província da Ásia Menor, que deles tomara o nome de
Galácia. A Galácia era a Gaba do Oriente (gauleses, antecessores dos
franceses).
Os gálatas eram inteligentes mas de espírito volúvel,
de caráter inconstante, traço característico da raça gaulesa. Aí o apóstolo Paulo
pregou o Evangelho e obteve resultados lisonjeiros.
Que Cristianismo lhes ensinara ele? O Cristianismo
nada complicado que Jesus lhe revelara e que consistia muito simplesmente em crer
que o mesmo Jesus é o Cristo, quer dizer: o celeste enviado incumbido de
ensinar que todos os homens são irmãos, todos filhos do mesmo Deus, que a todos
ama e só lhes pede amor para lhes perdoar os pecados; que os ajuda com a sua
graça, para os conduzir livremente à santidade e que a todos predestinou à
bem-aventurada vida de eterna ascensão no mundo espiritual: "que nos abençoou
com toda a bênção espiritual em bens celestiais em Cristo; assim como nos
elegeu nele mesmo, antes do estabelecimento do mundo, pelo amor que nos teve,
para sermos santos e imaculados diante de seus olhos". (Efésios, I, 3 e
4).
Dois anos depois, pregando em Éfeso, Paulo vem a saber
que os cristãos de Jerusalém tinham enviado nas suas pegadas, aquela
cristandade livre que ele fundara e organizara, missionários do Cristianismo deles
(doutores judaizantes), para o fim de imporem, além da fé em Jesus Cristo, toda
a lei judaica, práticas do mosaismo, a começar pela circuncisão, e que os
Gálatas, ingênuos e timoratos; se deixavam persuadir. Se uns resistiram, outros
deixaram-se enlevar pela novidade, estabelecendo a necessária e consequente
cisão, pelo que, ele, imediatamente, lhes escreveu essa carta, na qual a
sinceridade vai até à violência e que permanecerá, façam o que fizerem, como
indestrutível sustentáculo da liberdade cristã.
Era este o objetivo de Paulo:
a) demonstrar a realidade do seu apostolado e perfeita
identidade com a doutrina dos apóstolos (cáp. 1, 2; cáp. II, 16);
b) demonstrar que a justificação ou salvação dos
homens depende da fidelidade a Jesus Cristo e não ao mosaismo, cuja observância
é perigosa (cáp. II, 17; cáp. V. 13);
c) corrigir os abusos e fortalecer os espíritos na lei
máxima dada por Cristo (cáp. V, 14);
d) lembrar que a vaidade é reprovável (cáp. VI, 3) e
que a responsabilidade é direta e intransferível (cáp. VI, 5, 8);
e) reafirmar que a criatura vale diante de Jesus, não
pelas ideias que professe, mas pela renovação da sua mente e da sua vida [cáp.
VI, 15).
10. Salvação pela fé ou pelas obras?
por Romeu A.
Camargo
Empresa
Gráfica da “Revista dos Tribunais - São Paulo SP - 1941
CARÁTER DIFERENCIAL
ENTRE O EVANGELHO
E AS CARTAS DE PAULO
AOS GÁLATAS
E AOS EFÉSIOS
Da leitura atenta dessas cartas paulistas, ressalta
vivo e inconfundível o caráter particular dado pelo autor a essas epístolas.
Não há necessidade de elementos subsidiários para essa constatação. Todavia, o
assunto merece e exige mesmo particular atenção.
Haverá, como de fato há, preceitos de caráter geral ao
lado de instruções ou advertências de índole particular. E não podia deixar de
ser assim, desde que o objetivo do epistológrafo era procurar adaptar o espírito
dos destinatários ao espírito do Evangelho ou norma principal. Exemplo
(Gálatas, V: 14, 15): “Porque toda a lei
se encerra neste só preceito: Amarás ao teu próximo como a ti mesmo.” - É o
mandamento por excelência dado pelo Cristo, cuja observância exclui qualquer
outra exigência para alcançar o reino de Deus (Luc. X: 25 e 37). Essa forma
citada por Paulo tinha aplicação entre os Gálatas como entre os romanos ou
outros crentes. Ao lado dessa norma universal figuram ensinos e admoestações só
para os Gálatas, porque só entre eles encontrou Paulo motivos especiais, como
por exemplo: “Vós porém vos mordeis e vos
devorais uns aos outros; vê de não vos consumais uns aos outros.” Honestamente,
ninguém jamais poderá supor, muito menos afirmar, que o apóstolo pretendera
estabelecer normas fixas e imutáveis para todos os povos, uma vez que ele sabia,
melhor que os leigos ou alheios no assunto, que o Evangelho, escrito por quatro
homens inspirados pelo Alto, encerra a substancia completa da palavra toda do
Mestre dos mestres. Ele, o grande Paulo, nunca poderia pretender - falar mais
alto do que falara o Mestre, pois se considerava sempre seu servo, seu submisso,
seu imitador, como se vê desta bela exortação, de cunho imperativo: “Rogo-vos
pois que sejais meus imitadores, Como também eu o sou de Cristo." (I Cor.
IV: 16).
E, caso ele alimentasse o desejo de perpetuar suas
instruções entre todos os povos, teria acrescentado no endereço ou dedicatória
onde se lê “aos Gálatas” mais algumas palavras... Mas, tal não se deu nem
poderia dar-se, visto que o converso da estrada de Damasco tinha um só
objetivo: dar instruções, solucionar questões ou situações, de certos e
determinados agrupamentos, como os da Galácia e de Éfeso, como de Corinto e de
Roma, de Tessalônica, etc.
Não há mal em insistirmos: se cada carta de Paulo traz
“um endereço”, uma dedicatória, é que essas cartas não eram de caráter geral.
Sim, pois que elas trariam o prefácio da de Tiago, se fossem para todos os
crentes.
Então seria este o começo de cada carta ou epístola
paulina: “às doze tribos de Israel”, ou “a todos os crentes em Jesus Cristo,
espalhados pelo mundo.”
Para clarear mais ainda o nosso pensamento, podemos
recorrer ao processo por analogismo que é processo comparativo, pela analogia
ou semelhança.
Uma nação tem a sua Carta Constitucional ou
Constituição Política, ou ainda Código Político. É a lei básica, fundamental,
estatal, para todos os cidadãos desse Estado. Se os países são “expressões
geográficas”, os Estados ou Nações são “formas de equilíbrio político” ou forma
de governo, cada uma com a sua norma administrativa interna, cada uma
regendo-se por leis próprias, emanadas de si mesmo e gozando dos direitos de
soberania.
A Carta Constitucional ou Código Político do Brasil,
de 10 de Novembro de 1937, no seu art. 130, estatui: "O ensino primário é
obrigatório e gratuito."
Baseada nesse texto constitucional, cada unidade da
Federação, por seu representante legal que é o chefe do governo, emprega toda
diligência no sentido de facilitar aos pais a matrícula de seus filhos nas
escolas estaduais. O Estado do Ceará, por exemplo, organiza horários especiais
para o verão, de modo que as crianças possam frequentar as aulas das 8 às 12,
em classes mistas. O Estado de S. Paulo, para dar instrução às crianças
residentes na zona rural, isto é, nos núcleos agrícolas, fazendas ou sítios -,
organiza programas onde figuram rudimentos sobre a cultura do arroz, do feijão,
do algodão, etc. E assim, cada Estado, conhecedor das suas possibilidades, empreende
medidas capazes de responder as necessidades sentidas pelo povo, as quais variam
na proporção do crescimento da população.
Cada Estado da Federação Brasileira fala, age, delibera,
aconselha - por intermédio de seu órgão ou representante, que é o chefe do
governo, escolhido e nomeado pelo Supremo Magistrado da Nação.
Cada Governador estadual é autônomo, isto é, governa
por leis próprias (estaduais), em harmonia com a Lei Federal que é a Constituição
ou Código Político, para todos os Estados. Todos os Estados tem a sua
autonomia, ou a faculdade de se governar por leis próprias -, Autonomia ou independência.
A Nação possui a Soberania, que significa Poder Supremo, autoridade máxima, que
não é dada aos Estados.
Reza o art. 142 da Lei Federal: “A usura será punida.”
O ilustre constitucionalista, Dr. Antônio Figueira de
Almeida, comenta esse texto: “A usura é o recebimento de juro extorsivo,
desumano, e ilegal porque superior ao que é permitido pela lei. Ser usurário é
exercer função não honesta nem permitida, por isso que não constitui, sequer,
uma profissão. É mesmo praticar um crime contra a ordem natural e a ordem
pública. Por todos estes fundamentos morais, sociais, econômicos e políticos -a
usura será e já tem sido punida desde a data da Constituição."
Agora, suponhamos que o Governador de um dos Estados
do Brasil, invocando a Bíblia, estriba-se na palavra do grande legislador
hebreu e, de um traço de pena, baixa um Decreto-Lei, declarando que a usura é
proibida, mas só aos nacionais. E lá cita ele, textualmente, o livro
Deuteronômio (que significa repetição da lei):
"Não emprestarás com usura a teu irmão, nem
dinheiro, nem grão, nem outra qualquer coisa que seja: mas somente ao estrangeiro.”
(Deut. XXIII, 19 e 20).
Levanta-se a grita da imprensa contra essa medida posta
em Decreto-Lei. Os defensores, porém, obedientes ao livro de Deuteronômio, alegam
que os ministros dos dois ramos do cristianismo, no país, escudam-se no cáp. XVIII,
11, desse livro, para condenar a doutrina cientifico-filosófico-religiosa do
Espiritismo.
Vai abaixo esse Decreto-Lei, porque está contra o espírito
e a letra da Lei Geral. Não prevalece a alegação de que tal Decreto-Lei foi
assinado por um apóstolo do Chefe da Nação, visto que esse enviado não
interpretou, como devia, o pensamento da Constituição ou Código Político. Ao
demais, a legislação mosaica foi abolida, e mesmo entre o povo judeu, não mais
vigoram as ordenações que chocam o direito moderno.
O Governador que teria assinado esse Decreto-Lei, não
pretenderia legislar para todos os brasileiros, senão para um reduzido número deles,
habitantes no figurado Estado.
Já o leitor apreendeu o símile. O Código Político de 10 de Novembro de 1937, é o Evangelho
para todo o Brasil; os Decretos-Leis dos Governadores são epístolas ou cartas, que variam em sua natureza, em seus
dispositivos, em suas finalidades, de acordo com as necessidades de cada
circunscrição administrativa ou Estado, este, formado de municípios,
compreendendo muitas cidades, vilas e povoações. O Código Político ou Constituição,
é a Lei. E lei é o direito escrito, ou então, “é o direito positivo ditado pelo
Estado e que deve valer como norma obrigatória para todos os cidadãos.”
Nenhum Governador irá contra os dispositivos
constitucionais. Se houver alguma antinomia ou divergência entre os
Decretos-Leis e o Código Político, prevalecerá este - e aqueles serão
desprezados.
Mutatis mutandi - quando houvesse divergência ou antinomia entre uma
Epístola ou Carta de Paulo ou de Pedro, e o Evangelho, este é que prevaleceria
sempre. Mas não há tal. As Epístolas de Paulo, de Pedro, de caráter particular,
encerram assunto para particulares, grupados em igrejas, congregações, do mesmo modo que os brasileiros se distribuem
por Estados, municípios, cidades, vilas, povoações.
Os apóstolos epistológrafos estão para Jesus como os
governadores estão para o Chefe da Nação. Os enviados estão subordinados àquele
que os envia. A lei só poderá ser modificada por seu autor. Ora, “a lei contém
dois elementos, que constituem as suas duas partes essenciais: uma, na qual o
legislador dispõe o que deve ser observado; outra, na qual estabelece pena ou
vantagem para quem transgride ou cumpre o preceito legal. Aquela se chama parte
dispositiva; esta se denomina parte sancitiva ou sanção. A sanção é a
recompensa ou o castigo, que decorrem da observância ou da transgressão da lei,
- e que servem para faze-la respeitada por todos; é o meio coercitivo empregado
para se conseguir o cumprimento de um preceito legislativo. A lei moral tem por
sanção o remorso ou a satisfação da consciência; a lei religiosa tem por sanção
a recompensa ou as penas da vida futura; a lei natural tem por sanção as consequências
físicas resultantes da prática da virtude ou do vício; a lei social tem por
sanção o desprezo ou a estima dos nossos semelhantes; a lei jurídica tem por
sanção a vantagem ou a pena ligada ao seu cumprimento ou à sua transgressão, e
se distingue pelo cunho característico de poder tornar-se efetiva por meio da
coação material exercida pelo poder público.”
O Evangelho ou Código Moral dos Cristãos, é a Lei
Suprema, completa, perfeita, tanto na parte dispositiva como na sancitiva,
esta, fundada na satisfação da consciência, ou no remorso que é remordimento da
mesma consciência. Os epistológrafos neo testamentários não podiam jamais
alimentar a pretensão de alterar um “til”, d esse monumento de saber e amor,
porque ali não há nem poderia haver coisa alguma alterável. A palavra de Jesus é
para todos os homens e para todos os tempos. A nossa miopia mental é que
poderia ter a pretensão de ver divergência entre a palavra de Jesus e a de
Paulo. Na interpretação das epístolas, cumpre, a quem lê, observar estas
circunstancias: quando, como, porque e a quem fala o apóstolo.
Ninguém se convencerá de que a carta aos Gálatas possa
assumir o mesmo caráter da de Tiago, isto é, de generalidade. E é fácil a
verificação dessa impossibilidade de extensão. Figuremos a aplicação do inteiro
conteúdo dessa epístola a uma congregação do Estado do Pará, a uma outra do
Estado do Rio Grande do Sul, ao mesmo tempo em que é dirigido aos crentes da
Galácia. As congregações desses Estados brasileiros poderiam encontrar alguma
coisa que lhes fosse aplicável; os gálatas encontraram tudo, porque assim devia
ser, uma vez que a carta era só para eles. A absurdidade da generalização aos
brasileiros, por nós figurada, é patente. E absurdos não se comentam; desprezam-se.
Para rematar este assunto, queremos que o leitor não
se esqueça jamais de que o Evangelho, a palavra direta de Jesus, é a pedra
fundamental desse monumento e se chama a Verdade; as epístolas, inspiradas no
Evangelho, e que dele fluem, são as pedras secundárias.
Logo adiante, é o grande Paulo que mostrará ao leitor
como tem mostrado a todos os amigos de Jesus e do seu Evangelho - que o método
de “salvação” adotado pelo Mestre é simples, e o apóstolo secunda, confirma e
apregoa esse método, com toda a força do seu entendimento, com todo o calor da
sua fé, com todo o brilho da sua palavra, com todo o entusiasmo da sua
sinceridade.
Paulo não era separatista. Não disse que os Gálatas
seriam salvos pela fé somente, e os Efésios pela “graça” mediante a fé. Veremos
daqui a pouco, pelas palavras do próprio apóstolo, que ele jamais se afastou
uma virgula da doutrina do seu Mestre. Dotado de brilhante inteligência, possuía
bela e sólida cultura filosófica, conhecia a literatura grega (Atos dos Apóstolos
XVII, 28), tinha sua biblioteca e pergaminhos (II Tim. IV, 13), coisa pouco
comum ou mesmo rara, quinze séculos antes da imprensa, quando as letras e as
ciências eram privilégio dos ricos e, principalmente,' da casta sacerdotal.
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