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terça-feira, 5 de novembro de 2019

Salvação pela fé ou pelas obras? - parte 2



6. Salvação pela fé ou pelas obras?
por Romeu A. Camargo
Empresa Gráfica da “Revista dos Tribunais - São Paulo SP - 1941

Igreja Reformada ou Protestante - O grande movimento religioso do século XVI foi o maior acontecimento dos tempos modernos. E a civilização moderna foi assinalada por quatro grandes invenções: a pólvora, a bússola, o papel e a imprensa.

E essas invenções determinaram uma mudança nos costumes e nos destinos do velho mundo. "A pólvora tornou inúteis as fortificações medievais dos castelos, e das propriedades dos nobres, deu o último golpe no regime feudal e consolidou o prestigio da realeza (ou dignidade do rei). A bússola, tornando mais seguras as derrotas (ou viagens marítimas), conduz às grandes descobertas, demonstra a esfericidade do planeta e lança por terra a antiga concepção geográfica (geocentrismo). O papel, tornando dispensável o caro pergaminho, preserva da destruição grande número de trabalhos de vulto que servirão para orientar a humanidade no período moderno, e fornece à imprensa o veículo próprio para a transmissão dos conhecimentos. Finalmente, a imprensa, vulgarizando as concepções do pensamento humano, torna a ciência accessível a todos e acaba com o monopólio que as ordens monásticas (conventos) faziam da instrução. O primeiro livro que se imprimiu foi a Bíblia, em 1445. A instrução deixou de ser um privilégio exclusivo das abadias, igrejas e universidades, e teve livre entrada em todas as mansões.”

A grande revolução religiosa teve, pois, bases firmes que garantiriam seu triunfo através dos séculos: as grandes descobertas marítimas, a invenção da imprensa e a renascença das ciências e das artes. “A essas causas veio-se juntar o. profundo desgosto pela corrupção do clero, seu luxo, sua insolência e sua ignorância, e a vulgarização dos conhecimentos científicos pelos leigos (não sacerdotes).”

Como é sabido, a Reforma teve como centro a Alemanha, berço de Gutenberg, que personifica a imprensa, e de Lutero, que corporiza a liberdade de pensamento.

Os crentes da Igreja Reformada são os continuadores daqueles que, orientados e dirigidos pelo ardoroso reformador alemão, protestaram, no séc. XVI (1517), contra o desvirtuamento da doutrina cristã pela Igreja de Roma.

Os reformados ou protestantes, ou ainda, cristãos evangélicos, procuraram seguir a Moral do Evangelho e praticá-la. E por assim pensar e proceder, os protestantes tornaram a linha de frente no caminho do progresso, deixando os romanistas na retaguarda. Vamos repetir o que dissemos há pouco, em outro trabalho: por que não se vê espetáculo semelhante ao espanhol (luta fratricida, de 1936 a 1939) na Holanda protestante, na Suíça mais protestante que católica, na Dinamarca protestante, na Suécia protestante, na Noruega protestante, na Inglaterra protestante, na Alemanha feita e formada no protestantismo, na União Norte Americana protestante? De onde virá esse espírito de ordem, de disciplina, de respeito à liberdade de consciência, “condição e fonte de todas as liberdades”? Por que não se verificam, nesses países, movimentos subversivos, abalos desfibradores da ordem? A causa dessa superioridade que caracteriza os povos protestantes está na qualidade do sistema educativo, do sistema de formação mental, do sistema de cultura da alma do povo, sistema que tem por principal escopo a iluminação do espírito e a abolição completa do analfabetismo, erva daninha que viceja frondejante no campo romanista. É essa a explicação da superioridade dos povos protestantes sobre os povos católicos. E a Espanha foi o espelho fiel onde o mundo viu a falência completa do sistema católico romano, na formação moral, mental e espiritual de seus professantes, sim, a Espanha que foi sempre alimentada de catecismo e dominada pela Igreja. “Repleta de igrejas, cheia de conventos, povoada de organizações religiosas, a Espanha é a região do planeta onde os dogmas dos bispos romanos encontraram mais guarida e maior amplitude.” (Emmanuel). (*)

(*) Ver nosso livro "De cá e de lá", págs. 289 e 441.

O leitor tem ao alcance da vista, que lhe oferecemos, excelente elemento probante, da referida superioridade do sistema educativo protestante sobre o sistema educativo católico: a estatística. É um documento de valor, porque é a expressão numérica das forças sociais.

Ilustre escritor patrício, em magnífico artigo publicado no "O Estado de S. Paulo", do dia 19 Fev. 1938, citou a The Modern Encyclopedia, de cujas páginas extraiu a relação dos principais países civilizados, com a respectiva porcentagem de analfabetos.

Baseado naqueles algarismos, imaginemos distribuída em cidades de 10.000 almas, a população de cada um dos países seguintes.

Países protestantes - Em cada cidade de 10.000 habitantes, possuiria a Suécia apenas 1 analfabeto, a Suíça 1, a Dinamarca 2, a Alemanha 3, a Holanda 20, a Inglaterra e Escócia 30, os Estados-Unidos 430.

Países católicos - Em cada cidade de 10.000 habitantes, a França possuiria 840 analfabetos, a Bélgica 930, a Itália 2.700, a Argentina 3.790, o Uruguai 3.980, o Chile 4.790, o Equador 5.000, a Colômbia 6.000, a Espanha 6.370, Portugal 6.800, e o Brasil 7.550. (Cálculos baseados nos dados da The Modern Encyclopedia).

A eloquência do contraste é impressionante. Os países mais adiantados são exatamente os que procuram ler a Bíblia como a única regra de fé e prática, o Evangelho, cuja Moral ensina ao homem a compreender o que faz na terra, porque aqui está, para onde vai, e, sobretudo, ensina ao homem a amar os seus semelhantes que são seus irmãos. Essa Moral, que faz abrir os olhos e lhes desvenda os infinitos horizontes da Espiritualidade, leva o homem a compreender que cada um é responsável por seus pensamentos, por seus atos, por sua conduta, por seu destino. Dando a cada um a noção e o senso da responsabilidade individual, é bem de ver que essa Moral não pode ensinar que João, pecando por pensamento contra José ou Josefina, vá confessar esse pecado ao ouvido do pastor e este o declara limpo desse pecado.

Diferente do católico que nada diz porque nada abe acerca da salvação - se pela fé ou pelas obras -, o protestante tem suas diretrizes, sabe pensar por si. Essa disparidade é um libelo acusatório contra a Igreja Romana. Como diz um grande filósofo cristão, "dezenove séculos decorreram desde os tempos do Cristo, dezenove séculos de autoridade para a Igreja, dos quais doze de poder absoluto. Quais são, na hora presente, as consequências do seu ensino?

O Cristianismo tinha por missão recolher, explicar, difundir a doutrina de Jesus, dela fazer o estatuto de uma sociedade melhor e mais feliz. Soube ela desempenhar essa grande tarefa? Julga-se a árvore pelos seus frutos, diz a Escritura. Verga ela ao peso de frutos de amor e de esperança? A árvore, indubitavelmente, se conserva sempre gigantesca, mas, na sua ramaria, quantos galhos não foram decepados, mutilados, quantos outros não secaram, quantos não ficaram infecundos!

De que procede o atual estado de coisas? Durante doze séculos a Igreja dominou, formou a seu talante a alma humana e toda a sociedade. Em sua mão se concentravam todos os poderes. Todas as autoridades residiam nela, ou dela procediam. Ela imperava sobre os espíritos como sobre os corpos; imperava pela palavra e pelo livro, pelo ferro e pelo fogo. Era senhora absoluta no mundo cristão; nenhum freio, nenhum marco limitava a sua ação. Que fez ela dessa sociedade? Queixa-se da sua corrupção, do seu ceticismo, dos seus vícios. Esquece-se de que, acusando-a, acusa-se a si mesma? Essa sociedade é obra sua; a verdade é que ela foi impotente para a dirigir e melhorar. A sociedade corrompida e cética do século XVIII saiu de suas mãos. Foram os abusos, os excessos, os erros do sacerdócio que determinaram o seu estudo ele espírito. Foi a impossibilidade de crer nos dogmas da Igreja o que impeliu a humanidade para a dúvida e para a negação.

O materialismo penetrou até a medula no corpo social. Mas de quem é a culpa? Se as almas tivessem encontrado na religião, tal como lhes era ensinada, a força moral, as consolações, a direção espiritual de que necessitavam, ter-se-ia afastado dessas igrejas que em seus poderosos braços embalaram tantas gerações? Teriam elas deixado de crer, de amar e de esperar?

A verdade é que o ensino da Igreja não conseguiu satisfazer as inteligências e as consciências. Não pode dominar os costumes; por toda parte lançou a incerteza, a perturbação do pensamento, de que proveio a hesitação no cumprimento do dever e, para muitos, o aniquilamento de toda esperança.

Se, no auge do seu poderio, a Igreja não conseguiu regenerar a humanidade, como o poderia fazer hoje? A Igreja Romana sempre impôs o temor de Deus às multidões. Havia nisso um sentimento necessário para realizar o seu plano de domínio, para submeter a humanidade semibárbara ao princípio de autoridade, mas um sentimento perigoso, porque, depois de haver feito por muito tempo escravos, acabou por suscitar os revoltados -, sentimento nocivo, esse do medo, que, depois de ter levado o homem a temer, o levou a odiar; que o ensinou a não ver no poder supremo senão o Deus das punições terríveis e das eternas penas, O Deus em cujo nome se levantaram os cadafalsos e as fogueiras, em cujo nome correu o sangue nas salas de tortura. Daí se originou essa reação violenta, essa furiosa negação, esse ódio à ideia de Deus, do Deus carrasco e déspota, ódio que se traduz por esse grito que hoje em dia ressoa em toda parte, em nossos lares: nem Deus, nem Senhor!

Ah! Talvez, se a Igreja abandonasse os seus palácios, as suas riquezas, o seu culto faustoso e teatral, o ouro e a púrpura; se, cobertos de burel, com o crucifixo na mão, os bispos, os príncipes da Igreja, renunciando aos seus bens materiais e se tornando, como o Cristo, sublimes vagabundos, fossem pregar às multidões o verdadeiro evangelho da paz e do amor, então talvez a humanidade acreditasse neles. Não se mostra disposta a Igreja Romana a desempenhar esse papel; o espírito do Cristo parece cada vez mais abandoná-la. Nela quase não resta senão uma forma exterior, uma aparência, sob a qual já não existe mais que o cadáver de uma grande ideia."

* * *

No tocante à doutrina da salvação, se pela fé ou pelas obras, a Igreja Reformada, pela voz de todas as suas denominações (Igreja Metodista, Igreja Presbiteriana, Igreja Batista, Igreja Cristã, etc.) definiu a sua posição. O pecador se salva pela fé, sem o concurso das boas-obras. Estas jamais entrariam no plano judicial de Deus. "Pela graça é que sois salvos, mediante a fé, e isto não vem de vós, porque é um dom de Deus. Não vem das nossas obras, para que ninguém se glorie.” (Efésios, 2:8, 9). A salvação depende da fé na eficácia expiatória do sangue de Jesus.

Na Igreja Presbiteriana; pode-se consultar a obra “Esboços de Teologia”, do rev. A. A. Hodge, prof. de Teologia Sistemática no Seminário Teológico de Princeton, New Jersey, USA. Leia-se o cap. XI, bem como o cap. XXXIII, págs. 465 a 468, edição de 1895, sob o título "Da Justificação".

Esse versículo da carta de Paulo aos Efésios é o eixo em torno do qual gira toda a doutrina que forma a estruturação religiosa do Protestantismo.

De acordo com o ensino da Igreja Presbiteriana, Deus é Pai de amor infinito. É ensino de aceitação geral. Vejamos outro, não geral. É do Presbiterianismo. Antes de formar a Terra, ou melhor, antes de criar os milhões de estrelas, de planetas e de nebulosas ou poeiras de estrelas que rolam no Infinito -, Ele, que é onisciente, escolheu as criaturas que ainda não existiam, umas para o gozo da bem-aventurança eterna, e outras, em número muito maior, para o fogo de tormentos sem fim.

É o dogma da predestinação divina. Segundo este dogma, “os fiéis são salvos não por um exercício da sua livre vontade, nem por seus próprios merecimentos, porque não há livre-arbítrio em face da soberania de Deus, mas por efeito de uma "graça" que Deus concede a seus eleitos. Acompanhando este argumento em todas as suas consequências lógicas, poder-se-ia dizer: é Deus quem atrai os escolhidos; é Deus quem endurece os pecadores. Tudo se faz pela predestinação divina. Adão, por conseguinte, não pecou por seu livre-arbítrio; quem não tem liberdade, não tem responsabilidade.” “A liberdade e a responsabilidade são correlativas no ser e aumentam com sua elevação; é a responsabilidade do homem que faz sua dignidade e moralidade. Sem ela, não seria mais do que um autômato, um joguete das forças ambientes: a noção de moralidade é inseparável da de liberdade. A responsabilidade é estabelecida pelo testemunho da consciência, que nos aprova ou censura segundo a natureza de nossos atos. A sensação do remorso é uma prova mais demonstrativa que todos os argumentos filosóficos. Para todo espirito, por pequeno que seja o seu grau de evolução, a Lei do dever brilha como um farol, através da névoa das paixões e interesses. Por isso, vemos todos os dias homens nas posições mais humildes e difíceis preferirem aceitar provações duras a se abaixarem a cometer atos indignos.” - Se Adão foi predestinado à queda, a Lei do dever era então um farol apagado e ele não poderia fugir á queda; consequentemente, não era ou não foi responsável, visto que Deus, absoluto e soberano, o predestinou à queda...

E, a queda de Adão induz fatalmente à pesquisa sobre a origem dessa entidade pessoal que o levou a cair, conduzido pelo braço de sua companheira. De onde veio o tentador, diabo ou satanás? Se no Éden ou paraíso terreal só existia o casal, duas criaturas puras e inocentes -, como explicar a existência, ali, de uma entidade pessoal, disfarça da sob a pele de serpente, com autoridade ou poder superior ao de Deus, pois que seu palavreado prevaleceu sobre a ordem divina e o casal caiu na tentação da desobediência, comendo do fruto proibido? (Gen., 2:16, 17 e cap. 3, vers. 1 a 13),

Essa inquirição admite esta alternativa: ou esse ser foi criado ou não foi criado; se foi criado, é criatura de Deus e nesse caso é a negação da Bondade Infinita, mas não deixa de ser irmão do casal claudicante (e tio da descendência); se não foi criado, então é incriado ou eterno; mas, seria o cúmulo dos absurdos admitir a ideia de duas Eternidades ou dois Infinitos, um, o Infinito do bem, derrotado em seus planos pelo Infinito do mal.
Deixemos de analisar essa questão filosófica, para não entrarmos nos domínios da metafísica, pois sairíamos dos limites desta obrinha. Podemos dizer, de escantilhão e à guisa de reportagem, que é promissor o movimento que já se vai operando no seio das congregações evangélicas, a prol da revisão de seus postulados.

Na Inglaterra, por exemplo, o protestantismo está revelando acentuado interesse por uma revivificação espiritual. Será certamente o primeiro fruto dessa acurada e profunda investigação em torno de ensinos tradicionais, como o da ressurreição dos corpos, o da unicidade da existência, o do inferno eterno. Quem lê revistas e jornais ingleses pode acompanhar esse movimento evolutivo. Não nos referimos a publicações particulares ou de associações, mas aos grandes órgãos da imprensa britânica, The Times, Daily Express, em cujas colunas se encontram frequentemente artigos, notícias e fotografias, de fundo nitidamente religioso, em busca da verdade, sem peias de preconceitos ou de dogmatismos, antes, com base no testemunho irretorquível da experimentalidade objetiva dos fatos, no vastíssimo campo das investigações psíquicas.


7. Salvação pela fé ou pelas obras?
por Romeu A. Camargo
Empresa Gráfica da “Revista dos Tribunais - São Paulo SP - 1941

Pela fé ou pelas obras?
Paulo e Tiago estarão em desacordo
quanto ao método de salvação?

AMBOS, DENTRO DO EVANGELHO.

O leitor precisa conhecer um ponto importante, sim, importante para quem crê no Evangelho e o adota como única regra de vida. É aquele ponto em que parece haver divergência entre esses dois grandes apóstolos, quanto ao plano de salvação dos homens. Essa divergência - dizem os intérpretes ou exegetas bíblicos - é aparente e não real.

Paulo fala da justificação (digamos logo salvação) pela fé, sem as obras; Tiago fala da Justificação pelas obras e não pela fé.

A Reforma, pela voz de Lutero e de Calvino, concentrou o plano de salvação ou iluminação do homem no pensamento vazado nestes dois versículos: “Pela graça é que sois salvos mediante a fé, e isto não vem de vós, porque é um dom de Deus. Não vem das nossas obras, para que ninguém se glorie". "O justo vive da fé.” “(Epístolas de Paulo: aos Efésios, cap. 2 v. 8; aos Gálatas, cap. 3 V. 11).

Está firmado o plano de salvação. Meditado, examinado e analisado, quer dizer: a salvação é dom ou dádiva de Deus. Não depende da vontade do homem. Está condicionada entre outros dois dons, ou, flutua entre outras duas dádivas de Deus: a graça e a fé.

As obras do pecador nada valem diante da graça e da fé. Deus não as vê, como também não vê o esforço e o trabalho do homem para se salvar. Segundo Calvino (fundador do calvinismo ou presbiterianismo) serão salvos da condenação eterna não todos os homens, mas os predestinados ou eleitos por Deus. Eleger, bem o sabemos, é escolher, preferir; logo, é parcializar ou escolher uma parte e deixar a outra parte. Mas, racionalmente, ninguém ousaria atribuir a Deus a fraqueza de querer ser parcial.

Pergunta-se: não quer toda a humanidade a salvação? Sim. E por que não se salvam todos os homens? Porque depende isso da “graça” que Deus concede, não a todos os filhos, mas aos seus eleitos ou preferidos que são os predestinados à salvação. Logo, a salvação ou iluminação não depende da vontade do pecador, faça o que fizer, viva ele a vida que viver, de provação, de privação, de paciência, de resignação, de inflexível moralidade, amando e praticando a beneficência.

E porquê tudo isso nada vale? Simplesmente porque a salvação depende exclusivamente da graça e da , dois dons, duas dádivas, conferidas a quem é eleito ou escolhido por Deus. Ganha-as, não quem quer, mas aquele a quem Deus quer.

Como está vendo o leitor, essas reflexões giram em torno da palavra de Paulo, mas palavra isolada do resto da sua palavra no resto das suas epístolas. Examinemos a questão.

Coloquemos a epístola de Paulo aos Gálatas em frente da de Tiago, outro apóstolo, este, companheiro inseparável de Jesus. Que resulta desse confronto? Ouçamos Tiago:

“Que aproveitará, irmãos meus, a um que diz que tem fé, se não tem obras? Acaso podê-lo-á salvar a fé? Se um irmão, porém, ou uma irmã estiverem nus, e lhes faltar o alimento quotidiano, e lhes disser algum de vós: ide em paz, aquentai-vos e fartai-vos; e não lhes derdes o que hão de mister para o corpo, de que lhes aproveitará? Assim também a fé, se não tiver obras, é morta em si mesma.

Poderá logo algum dizer: Tu tens a fé e eu tenho as obras; mostra-me tu a tua fé sem obras; e eu te mostrarei a minha fé pelas minhas obras. Tu crês que há um só Deus. Fazes bem, mas também os demônios o creem, e estremecem. Queres, pois tu saber, ó homem vão, que a fé sem obras é morta? Não é assim que nosso pai Abraão foi justificado pelas obras, oferecendo a seu filho Isaac sobre o altar? Não vês como a fé acompanhava as suas obras, e que a fé foi consumada pelas obras? Não vedes como pelas obras é justificado o homem, e não pela fé somente? Do mesmo modo até Rahab, sendo uma prostituta, não foi ela justificada pelas obras, recebendo os mensageiros (ou espiões de Josué) e fazendo-os sair por outro caminho?

Porque, bem como um corpo sem espirito é morto, assim também a fé sem obras é morta." (Cap. 2, vs. 14 a 26).

* * *

Esses treze versetos, por si sós, dissipam qualquer dúvida sobre a questão... A linguagem de Tiago é clara, claríssima, sem ambiguidade, sem sentido figurado. Mas, continuemos a considerar o assunto, posto que está entre a palavra de Paulo e a de Tiago.


8. Salvação pela fé ou pelas obras?
por Romeu A. Camargo
Empresa Gráfica da “Revista dos Tribunais - São Paulo SP - 1941

SALVAÇÁO PELA FÉ - DIZ PAULO
SALVAÇÁO PELAS OBRAS - DIZ TIAGO

Sim, cada um no seu ponto de vista. Não há antinomia ou contradição.

Acompanhe-nos o leitor na elucidação do assunto. Dispa-se, porém, de qualquer ideia preconceituada. Preconceito é conceito antecipado, e com ele ninguém poderá julgar, porque será mau observador, e mau observador nunca poderá ser bom julgador. É que o preconceito não permite ao homem reflexionar nem comparar ideias. É espirito de partido, de sistema, que se afasta da opinião geral para formar a sua opinião. Nesse estado mental, o sectário não poderá ler isto que estamos escrevendo, porque seus olhos lerão antes o que ele traz no cérebro e não o que estas linhas dizem.

Varia entre os homens a ideia acerca da finalidade da obra de Jesus. E não podia deixar de ser assim, desde que o modo de entender ou de apreender está proporcionado à capacidade mental que é capacidade intelectiva, e a inteligência varia de indivíduo a indivíduo. Sabe-se que entre os seres criados, animados e inanimados, não há dois iguais, e o grande Charles Richet, o maior mestre em Fisiologia (“ciência dos fenômenos da vida e das funções dos órgãos, tanto dos animais como dos vegetais”), afirmou que não existe igualdade entre duas coisas, nem mesmo entre dois átomos de hidrogênio. “A inteligência compreende como pode, não como se quer. Forçar os espíritos a crer, sob o pretexto de unidade de fé, é enganar-se de domínio, submetendo o espírito a força, que é lei da matéria.”

Consequentemente, quem diz “conhecimento”, “capacidade", e as capacidades geram a “diversidade”. Daí, aquela inspirada pergunta de Bossuet, o ilustre bispo de Meaux (França) e célebre orador: “Que diríeis de um homem que não soubesse ler uma carta? Não seria, de certo, que a carta não exista, mas que ele a não sabe ler. Porque negais as verdades que não podeis entender?

Não andará errado quem se propuser descobrir no Evangelho, no espirito e não na letra desse maravilhoso livro, o verdadeiro caráter e a verdadeira finalidade da obra realizada pelo Mestre.

É com esse propósito que nos apresentamos. Desprezamos toda a sabedoria de fora, desde que não esteja de acordo com a palavra de Jesus, seja sabedoria encasacada pela filosofia ou abatinada pelo cientificismo teológico, mas sempre sabedoria inclinada á “infalibilidade, que é uma tirania intelectual.” Preferimos dar pouco, muito pouco, mas do que é real, a fazer transfusão de ideias anuviadas, máxime no campo da fé, que estamos palmilhando.

Na aquisição do conhecimento do Evangelho que é o pensamento de Jesus ou o pensamento de Deus, obedecemos ao conselho de ilustre escritor francês: “Pelo que toca ao conhecimento de Deus, não peçais a cada um, senão “segundo a medida de fé que Deus mediu para cada um, escreveu formalmente S. Paulo, “somente essa fé constitui uma adoração racional" (Rom., XII 1 a 3). E Deus mede a cada um, diz Jesus, segundo a capacidade de cada um” (Mat., XXV, 15).

Dito isso, passemos adiante. Vejamos a suposta disparidade entre as duas epístolas.

Lendo o prefácio dessas cartas, ressalta logo à nossa vista o seguinte: Paulo escreveu cartas particulares, a certas e determinadas igrejas ou agrupamentos de crentes, e até a determinadas pessoas, como iremos ver daqui a pouco -, ao passo que Tiago escreveu carta ou Epístola Católica (isto é, Universal) “às doze tribos que estão dispersas” ou sejam os Judeus convertidos e espalhados pelo mundo. Não se dirige a uma igreja, a uma congregação, a um indivíduo, mas a todos os cristãos, vindos do Judaísmo. É epístola de caráter universal, e como tal, todas as instruções, todos os ensinos, todos os conselhos ali encerrados, têm este endereço: a toda a cristandade. O autor dessa carta generalizou as suas instruções, que serviriam aos cristãos da Palestina, da Etiópia, da Grécia ou da China. Um padrão para todo crente.

Este traço distintivo é de importância capital. Outro é o objetivo das cartas paulistas, que visam núcleos locais, ora na Europa (Roma, Corinto, Tessalônica, Filipos), ora na Ásia (Colossos, Éfeso, Galácia).

Essas cartas, segundo o teor de cada uma, obedeciam a interesses locais, ocasionais, o que diferenciou a natureza delas, pois o conteúdo mostra a diversidade do assunto.

Para radicar no espírito do leitor a certeza da particularidade e não generalidade das epístolas de Paulo, vamos examinar rapidamente algumas delas. Vejamos em primeiro lugar a Epístola de Filemon. Citaremos sempre a tradução do Padre Antônio Pereira de Figueiredo, pelo motivo declarado no começo desta obrinha. Servimo-nos da edição católica do revm. Santos Farinha, a qual encerra algumas anotações do editor.

A Epístola a Filemon é única no gênero. Carta particular, de caráter íntimo. De Roma escreveu Paulo a Filemon, homem de posição que vivia em Colossos (Ásia), convertido ou pelo próprio Paulo ou por seu discípulo Epafras, Paulo remete Onésimo, escravo de Filemon, que fugira de casa do seu senhor com receio de ser castigado, acolhendo-se em Roma sob a proteção do apóstolo, que o instruiu na fé. Terminada a obra de conversão do escravo, remeteu-o com todas as provas de consideração, recebendo-o Filemon de braços abertos e cooperando ambos na difusão do Evangelho.

As três Epístolas aos discípulos Timóteo e Tito, “epístolas pastorais”, tratam de assuntos referentes ao ministério pastoral, e em particular à escolha, aos deveres e virtudes dos pastores de almas.

Vejamos as Epístolas de caráter coletivo. Tomemos a 1ª Epístola aos Coríntios.

“Esta não tem nada de dissertação nem de tratado dogmático; é uma série de avisos, reflexões, soluções dirigidas pelas circunstancias e repartidas em sete artigos: Podemos dividi-la da seguinte forma:

           PRIMEIRA SEÇÃO - Reforma dos abusos notados em Corinto:

a) abusos introduzidos por certos pregadores (caps. I e IV);

b) diversos escândalos dados por particulares (caps. V e VI).


SEGUNDA SEÇÃO - Resposta às dúvidas formuladas:

a) sobre o casamento (cap. VII);

b) sobre os manjares consagrados aos ídolos (cap. VIII e X);

c) acerca da ordem durante as reuniões na igreja (cap. XI);

d) do uso dos dons espirituais (cap. XII e XIV);

e) sobre a ressurreição ou transfiguração cap. XV).”

Esta Epístola revela o espírito disciplinado e disciplinador do grande apóstolo, que responde a perguntas que lhe foram dirigidas e dá solução a questões submetidas ao seu alto critério.

Motivos locais da congregação da cidade de Corinto, na Europa, determinaram essa carta de Paulo, escrita da cidade de Éfeso, na Ásia, no ano 56.

Vamos agora examinar os motivos que levaram o apóstolo a escrever aos crentes da cidade de Éfeso. Achava-se ele em Roma, no ano 62.

Éfeso, metrópole da Ásia proconsular (governada por um pro cônsul, do império romano, era célebre pelo seu comércio, pela sua riqueza e sobretudo pelo seu celebérrimo templo de Diana, uma das sete maravilhas do mundo. Paulo chegou até aí, pregou, recolheu bom fruto do seu apostolado e fundou aí uma florescente cristandade. Nesta Epístola o grande apóstolo dirige-se aos seus irmãos e procura-os penetrar do grande amor que deviam ter a Jesus Cristo, deixando os enganos fantasiosos da mentira, as artimanhas da gentilidade ou paganismo, as sutilezas dos gnósticos (filósofos que formularam e ensinaram a Gnose ou Conhecimento em Ciências Sagradas).

Objeto dessa Epístola:

a) pôr em relevo a grandeza da obra de Jesus; todos os povos e todos os indivíduos foram pelo Redentor chamados à adoção divina [cáp. I, cáp. II, v. 11);

b) traçar aos cristãos a sua regra de conduta, dar-lhes conselhos gerais (cáp. IV; cáp. V vs. 21) e particulares (cáp. V vs. 22 e cáp. VI) para os diversos estados da vida cristã.

O estilo é as vezes obscuro, mas as ideias são profundas e os pensamentos sublimes.

Para se fazer ideia do atraso mental do povo efésio, bastará ler o pequeno relatório do grande apóstolo, em Atos dos Apóstolos, pelo qual se vê o perigo a que se expôs, quando foi anunciar ali o Evangelho. Tão fanáticos pelos deuses da mitologia grega, pelas imagens ou ídolos fabricados pelos artífices - mas, sobretudo pela imagem de Diana, deusa, filha de Júpiter, que, não só não queriam ouvir a Paulo, como nem ao menos queriam ouvir a voz de um judeu! E Paulo era judeu. Tamanha confusão reinou no seio do povo, quando souberam que havia judeus pregando o Evangelho, que discípulos de Paulo não lhe permitiram se apresentasse no teatro da cidade, onde pretendia falar acerca da doutrina do Crucificado, Fanatizado por sua crença, o povo, querendo mostrar a sua desaprovação e repulsa pela palavra dos Judeus, chegou a gritar pelo espaço de quase duas horas: “Viva a grande Diana os efésios! (Atos dos Apóstolos, cáp. 24 a 28 e cáp. 19 vs. 1 a 40).

A esse povo, de costumes grosseiros, praticante de obras más, na proporção desses costumes faltos de moralidade - não podia falar Paulo que Jesus exigia boas obras, pois que os efésios entenderiam por boas obras, as que eles praticavam...

Nas instruções e nos conselhos gerais de sua Epístola aos Efésios, o grande apóstolo fala muito claramente sobre as obras a serem praticadas. “E não comuniqueis com as obras infrutuosas das trevas, mas antes, pelo contrário, condenai-as; porque as coisas que eles fazem em secreto, vergonha é ainda dizê-las. (Cap. 5 vs, 11, 12).        

Passando a apontar os deveres domésticos, aí, sim, fala Paulo de modo a servirem suas instruções e seus conselhos a todo e qualquer cristão e a estranho mesmo. Um compendio de sublimes normas morais, sobressaindo as que ditam deveres conjugais, visando diretamente a família, célula fundamental da sociedade, Exortações aos maridos, às esposas, aos filhos, aos servos (escravos) e aos senhores.
           
            Uma congregação, uma família, um indivíduo, com normas desse quilate, finíssimo quilate, não poderiam deixar de praticar muito boas obras, excelentes obras, desde que subordinadas à ideia motriz, à fé geradora dessas obras, não aquela do politeísmo observada no famoso templo de Diana, que tal fé não era senão um índice das obras vergonhosas -, mas a fé baseada na doutrina de Jesus, fé sinônima de virtude, força, coragem de avançar para a frente, confiante no poder de Deus, na autoridade de Jesus, como a do comandante do batalhão romano que a externou por esta forma: “Senhor, eu não sou digno de que entres na minha casa; porém, manda-o só com a tua palavra, e o meu criado será salvo, Pois eu também sou homem sujeito a outro, que tenho soldados às minhas ordens, e digo a um: Vai acolá, e ele vai; e a outro: Vem cá, e ele vem; e ao meu servo: Faze isto, e ele o faz.” “E Jesus, ouvindo-o assim falar, admirou-se (porque esse centurião era pagão como os seus superiores e o resto do governo imperial romano), e disse para os que o seguiam: em verdade vos afirmo que não achei tamanha fé em Israel!” (Mt., 8 vs. 5 a 10). Isto é, entre os Judeus, não vi fé semelhante!

O comandante da centúria (cem soldados) não externara ideia alguma acerca de Deus ou de Jesus; não tinha nem podia ter opinião religiosa sobre Jesus, porque era ele uma parcela do poder público da Roma pagã, e como pagão só podia ter ideias pagãs, confusas e anticristãs...

A fé, de que fala Paulo aos efésios, é dessa natureza, e por isso, há de manifestar-se através da conduta, das ações, das obras do homem como indivíduo, como marido, como filho, como escravo, como senhor, Jesus não indagou do centurião se sabia o que era “reconciliação”, “propiciação”, justificação' predestinação, “expiação”. Louvou a fé do pagão e apontou-a aos discípulos como fé-exemplo, fé-padrão, digna de ser imitada! E disse Jesus: “Vai, e faça-se segundo tu creste.” “E naquela mesma hora ficou são o criado.”

Passemos a considerar a Epístola aos Gálatas, escrita de Éfeso, no ano 55.

9. Salvação pela fé ou pelas obras?
por Romeu A. Camargo
Empresa Gráfica da “Revista dos Tribunais - São Paulo SP - 1941

               AOS GÁLATAS

Na sua segunda viagem missionária, isto é, por volta do ano 53, havia Paulo conquistado para a fé em Jesus Cristo um número bastante considerável de Gálatas, ou, seja, de Gauleses estabelecidos, ali pelo ano 280, a. C., numa pequena província da Ásia Menor, que deles tomara o nome de Galácia. A Galácia era a Gaba do Oriente (gauleses, antecessores dos franceses).

Os gálatas eram inteligentes mas de espírito volúvel, de caráter inconstante, traço característico da raça gaulesa. Aí o apóstolo Paulo pregou o Evangelho e obteve resultados lisonjeiros.

Que Cristianismo lhes ensinara ele? O Cristianismo nada complicado que Jesus lhe revelara e que consistia muito simplesmente em crer que o mesmo Jesus é o Cristo, quer dizer: o celeste enviado incumbido de ensinar que todos os homens são irmãos, todos filhos do mesmo Deus, que a todos ama e só lhes pede amor para lhes perdoar os pecados; que os ajuda com a sua graça, para os conduzir livremente à santidade e que a todos predestinou à bem-aventurada vida de eterna ascensão no mundo espiritual: "que nos abençoou com toda a bênção espiritual em bens celestiais em Cristo; assim como nos elegeu nele mesmo, antes do estabelecimento do mundo, pelo amor que nos teve, para sermos santos e imaculados diante de seus olhos". (Efésios, I, 3 e 4).

Dois anos depois, pregando em Éfeso, Paulo vem a saber que os cristãos de Jerusalém tinham enviado nas suas pegadas, aquela cristandade livre que ele fundara e organizara, missionários do Cristianismo deles (doutores judaizantes), para o fim de imporem, além da fé em Jesus Cristo, toda a lei judaica, práticas do mosaismo, a começar pela circuncisão, e que os Gálatas, ingênuos e timoratos; se deixavam persuadir. Se uns resistiram, outros deixaram-se enlevar pela novidade, estabelecendo a necessária e consequente cisão, pelo que, ele, imediatamente, lhes escreveu essa carta, na qual a sinceridade vai até à violência e que permanecerá, façam o que fizerem, como indestrutível sustentáculo da liberdade cristã.

Era este o objetivo de Paulo:

a) demonstrar a realidade do seu apostolado e perfeita identidade com a doutrina dos apóstolos (cáp. 1, 2; cáp. II, 16);

b) demonstrar que a justificação ou salvação dos homens depende da fidelidade a Jesus Cristo e não ao mosaismo, cuja observância é perigosa (cáp. II, 17; cáp. V. 13);

c) corrigir os abusos e fortalecer os espíritos na lei máxima dada por Cristo (cáp. V, 14);

d) lembrar que a vaidade é reprovável (cáp. VI, 3) e que a responsabilidade é direta e intransferível (cáp. VI, 5, 8);

e) reafirmar que a criatura vale diante de Jesus, não pelas ideias que professe, mas pela renovação da sua mente e da sua vida [cáp. VI, 15).


10. Salvação pela fé ou pelas obras?
por Romeu A. Camargo
Empresa Gráfica da “Revista dos Tribunais - São Paulo SP - 1941

CARÁTER DIFERENCIAL 
ENTRE O EVANGELHO 
E AS CARTAS DE PAULO 
AOS GÁLATAS 
E AOS EFÉSIOS

Da leitura atenta dessas cartas paulistas, ressalta vivo e inconfundível o caráter particular dado pelo autor a essas epístolas. Não há necessidade de elementos subsidiários para essa constatação. Todavia, o assunto merece e exige mesmo particular atenção.

Haverá, como de fato há, preceitos de caráter geral ao lado de instruções ou advertências de índole particular. E não podia deixar de ser assim, desde que o objetivo do epistológrafo era procurar adaptar o espírito dos destinatários ao espírito do Evangelho ou norma principal. Exemplo (Gálatas, V: 14, 15): “Porque toda a lei se encerra neste só preceito: Amarás ao teu próximo como a ti mesmo.” - É o mandamento por excelência dado pelo Cristo, cuja observância exclui qualquer outra exigência para alcançar o reino de Deus (Luc. X: 25 e 37). Essa forma citada por Paulo tinha aplicação entre os Gálatas como entre os romanos ou outros crentes. Ao lado dessa norma universal figuram ensinos e admoestações só para os Gálatas, porque só entre eles encontrou Paulo motivos especiais, como por exemplo: “Vós porém vos mordeis e vos devorais uns aos outros; vê de não vos consumais uns aos outros.” Honestamente, ninguém jamais poderá supor, muito menos afirmar, que o apóstolo pretendera estabelecer normas fixas e imutáveis para todos os povos, uma vez que ele sabia, melhor que os leigos ou alheios no assunto, que o Evangelho, escrito por quatro homens inspirados pelo Alto, encerra a substancia completa da palavra toda do Mestre dos mestres. Ele, o grande Paulo, nunca poderia pretender - falar mais alto do que falara o Mestre, pois se considerava sempre seu servo, seu submisso, seu imitador, como se vê desta bela exortação, de cunho imperativo: “Rogo-vos pois que sejais meus imitadores, Como também eu o sou de Cristo." (I Cor. IV: 16).

E, caso ele alimentasse o desejo de perpetuar suas instruções entre todos os povos, teria acrescentado no endereço ou dedicatória onde se lê “aos Gálatas” mais algumas palavras... Mas, tal não se deu nem poderia dar-se, visto que o converso da estrada de Damasco tinha um só objetivo: dar instruções, solucionar questões ou situações, de certos e determinados agrupamentos, como os da Galácia e de Éfeso, como de Corinto e de Roma, de Tessalônica, etc.

Não há mal em insistirmos: se cada carta de Paulo traz “um endereço”, uma dedicatória, é que essas cartas não eram de caráter geral. Sim, pois que elas trariam o prefácio da de Tiago, se fossem para todos os crentes.

Então seria este o começo de cada carta ou epístola paulina: “às doze tribos de Israel”, ou “a todos os crentes em Jesus Cristo, espalhados pelo mundo.”

Para clarear mais ainda o nosso pensamento, podemos recorrer ao processo por analogismo que é processo comparativo, pela analogia ou semelhança.

Uma nação tem a sua Carta Constitucional ou Constituição Política, ou ainda Código Político. É a lei básica, fundamental, estatal, para todos os cidadãos desse Estado. Se os países são “expressões geográficas”, os Estados ou Nações são “formas de equilíbrio político” ou forma de governo, cada uma com a sua norma administrativa interna, cada uma regendo-se por leis próprias, emanadas de si mesmo e gozando dos direitos de soberania.

A Carta Constitucional ou Código Político do Brasil, de 10 de Novembro de 1937, no seu art. 130, estatui: "O ensino primário é obrigatório e gratuito."

Baseada nesse texto constitucional, cada unidade da Federação, por seu representante legal que é o chefe do governo, emprega toda diligência no sentido de facilitar aos pais a matrícula de seus filhos nas escolas estaduais. O Estado do Ceará, por exemplo, organiza horários especiais para o verão, de modo que as crianças possam frequentar as aulas das 8 às 12, em classes mistas. O Estado de S. Paulo, para dar instrução às crianças residentes na zona rural, isto é, nos núcleos agrícolas, fazendas ou sítios -, organiza programas onde figuram rudimentos sobre a cultura do arroz, do feijão, do algodão, etc. E assim, cada Estado, conhecedor das suas possibilidades, empreende medidas capazes de responder as necessidades sentidas pelo povo, as quais variam na proporção do crescimento da população.

Cada Estado da Federação Brasileira fala, age, delibera, aconselha - por intermédio de seu órgão ou representante, que é o chefe do governo, escolhido e nomeado pelo Supremo Magistrado da Nação.

Cada Governador estadual é autônomo, isto é, governa por leis próprias (estaduais), em harmonia com a Lei Federal que é a Constituição ou Código Político, para todos os Estados. Todos os Estados tem a sua autonomia, ou a faculdade de se governar por leis próprias -, Autonomia ou independência. A Nação possui a Soberania, que significa Poder Supremo, autoridade máxima, que não é dada aos Estados.

Reza o art. 142 da Lei Federal: “A usura será punida.”

O ilustre constitucionalista, Dr. Antônio Figueira de Almeida, comenta esse texto: “A usura é o recebimento de juro extorsivo, desumano, e ilegal porque superior ao que é permitido pela lei. Ser usurário é exercer função não honesta nem permitida, por isso que não constitui, sequer, uma profissão. É mesmo praticar um crime contra a ordem natural e a ordem pública. Por todos estes fundamentos morais, sociais, econômicos e políticos -a usura será e já tem sido punida desde a data da Constituição."

Agora, suponhamos que o Governador de um dos Estados do Brasil, invocando a Bíblia, estriba-se na palavra do grande legislador hebreu e, de um traço de pena, baixa um Decreto-Lei, declarando que a usura é proibida, mas só aos nacionais. E lá cita ele, textualmente, o livro Deuteronômio (que significa repetição da lei):

"Não emprestarás com usura a teu irmão, nem dinheiro, nem grão, nem outra qualquer coisa que seja: mas somente ao estrangeiro.” (Deut. XXIII, 19 e 20).

Levanta-se a grita da imprensa contra essa medida posta em Decreto-Lei. Os defensores, porém, obedientes ao livro de Deuteronômio, alegam que os ministros dos dois ramos do cristianismo, no país, escudam-se no cáp. XVIII, 11, desse livro, para condenar a doutrina cientifico-filosófico-religiosa do Espiritismo.

Vai abaixo esse Decreto-Lei, porque está contra o espírito e a letra da Lei Geral. Não prevalece a alegação de que tal Decreto-Lei foi assinado por um apóstolo do Chefe da Nação, visto que esse enviado não interpretou, como devia, o pensamento da Constituição ou Código Político. Ao demais, a legislação mosaica foi abolida, e mesmo entre o povo judeu, não mais vigoram as ordenações que chocam o direito moderno.

O Governador que teria assinado esse Decreto-Lei, não pretenderia legislar para todos os brasileiros, senão para um reduzido número deles, habitantes no figurado Estado.

Já o leitor apreendeu o símile. O Código Político de 10 de Novembro de 1937, é o Evangelho para todo o Brasil; os Decretos-Leis dos Governadores são epístolas ou cartas, que variam em sua natureza, em seus dispositivos, em suas finalidades, de acordo com as necessidades de cada circunscrição administrativa ou Estado, este, formado de municípios, compreendendo muitas cidades, vilas e povoações. O Código Político ou Constituição, é a Lei. E lei é o direito escrito, ou então, “é o direito positivo ditado pelo Estado e que deve valer como norma obrigatória para todos os cidadãos.”

Nenhum Governador irá contra os dispositivos constitucionais. Se houver alguma antinomia ou divergência entre os Decretos-Leis e o Código Político, prevalecerá este - e aqueles serão desprezados.

Mutatis mutandi - quando houvesse divergência ou antinomia entre uma Epístola ou Carta de Paulo ou de Pedro, e o Evangelho, este é que prevaleceria sempre. Mas não há tal. As Epístolas de Paulo, de Pedro, de caráter particular, encerram assunto para particulares, grupados em igrejas, congregações, do mesmo modo que os brasileiros se distribuem por Estados, municípios, cidades, vilas, povoações.

Os apóstolos epistológrafos estão para Jesus como os governadores estão para o Chefe da Nação. Os enviados estão subordinados àquele que os envia. A lei só poderá ser modificada por seu autor. Ora, “a lei contém dois elementos, que constituem as suas duas partes essenciais: uma, na qual o legislador dispõe o que deve ser observado; outra, na qual estabelece pena ou vantagem para quem transgride ou cumpre o preceito legal. Aquela se chama parte dispositiva; esta se denomina parte sancitiva ou sanção. A sanção é a recompensa ou o castigo, que decorrem da observância ou da transgressão da lei, - e que servem para faze-la respeitada por todos; é o meio coercitivo empregado para se conseguir o cumprimento de um preceito legislativo. A lei moral tem por sanção o remorso ou a satisfação da consciência; a lei religiosa tem por sanção a recompensa ou as penas da vida futura; a lei natural tem por sanção as consequências físicas resultantes da prática da virtude ou do vício; a lei social tem por sanção o desprezo ou a estima dos nossos semelhantes; a lei jurídica tem por sanção a vantagem ou a pena ligada ao seu cumprimento ou à sua transgressão, e se distingue pelo cunho característico de poder tornar-se efetiva por meio da coação material exercida pelo poder público.”

O Evangelho ou Código Moral dos Cristãos, é a Lei Suprema, completa, perfeita, tanto na parte dispositiva como na sancitiva, esta, fundada na satisfação da consciência, ou no remorso que é remordimento da mesma consciência. Os epistológrafos neo testamentários não podiam jamais alimentar a pretensão de alterar um “til”, d esse monumento de saber e amor, porque ali não há nem poderia haver coisa alguma alterável. A palavra de Jesus é para todos os homens e para todos os tempos. A nossa miopia mental é que poderia ter a pretensão de ver divergência entre a palavra de Jesus e a de Paulo. Na interpretação das epístolas, cumpre, a quem lê, observar estas circunstancias: quando, como, porque e a quem fala o apóstolo.

Ninguém se convencerá de que a carta aos Gálatas possa assumir o mesmo caráter da de Tiago, isto é, de generalidade. E é fácil a verificação dessa impossibilidade de extensão. Figuremos a aplicação do inteiro conteúdo dessa epístola a uma congregação do Estado do Pará, a uma outra do Estado do Rio Grande do Sul, ao mesmo tempo em que é dirigido aos crentes da Galácia. As congregações desses Estados brasileiros poderiam encontrar alguma coisa que lhes fosse aplicável; os gálatas encontraram tudo, porque assim devia ser, uma vez que a carta era só para eles. A absurdidade da generalização aos brasileiros, por nós figurada, é patente. E absurdos não se comentam; desprezam-se.

Para rematar este assunto, queremos que o leitor não se esqueça jamais de que o Evangelho, a palavra direta de Jesus, é a pedra fundamental desse monumento e se chama a Verdade; as epístolas, inspiradas no Evangelho, e que dele fluem, são as pedras secundárias.  

Logo adiante, é o grande Paulo que mostrará ao leitor como tem mostrado a todos os amigos de Jesus e do seu Evangelho - que o método de “salvação” adotado pelo Mestre é simples, e o apóstolo secunda, confirma e apregoa esse método, com toda a força do seu entendimento, com todo o calor da sua fé, com todo o brilho da sua palavra, com todo o entusiasmo da sua sinceridade.

Paulo não era separatista. Não disse que os Gálatas seriam salvos pela fé somente, e os Efésios pela “graça” mediante a fé. Veremos daqui a pouco, pelas palavras do próprio apóstolo, que ele jamais se afastou uma virgula da doutrina do seu Mestre. Dotado de brilhante inteligência, possuía bela e sólida cultura filosófica, conhecia a literatura grega (Atos dos Apóstolos XVII, 28), tinha sua biblioteca e pergaminhos (II Tim. IV, 13), coisa pouco comum ou mesmo rara, quinze séculos antes da imprensa, quando as letras e as ciências eram privilégio dos ricos e, principalmente,' da casta sacerdotal.

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